R E V I S TA
Revista de Serviço Social
Programa de Pós
-
Graduação em Serviço Social
Curso de Graduação em Serviço Social
Universidade Federal de Juiz de Fora
ISSN 1980
-
8518
DOSSIÊ
:
Estado, Democracia
e Serviço Social
VO
L
UME
2
3
NÚMERO
2
JULHO
-
DEZEMBRO
ANO 202
3
E
XPEDIENTE
FOCO E ESCOPO
A
r
evista
Libertas
, criada em 2001, é uma
publicação semestral da Faculdade de Serviço
Social e do Programa de Pós
-
Graduação em
Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de
Fora. Seu objetivo é estimular o interc
â
mbio da
produção intelectual, de conteúdo crítico,
produzida a partir de pesquisas empíricas e
teóricas, no âmbito brasileiro e internacional,
sobre temas atuais e relevantes da área do
Serviço Social e das Ciências Sociais e Humanas,
com as quais mantem i
nterlocução.
EDITORES
Drª. Mônica Aparecida Grossi, Faculdade de
Serviço Social, Universidade Federal de Juiz de
Fora, Brasil. Editora
-
chefe.
Drª. Isaura Gomes de
Carvalho Aquino,
Faculdade de Serviço Social, Universidade
Federal de Juiz de Fora, Brasil. Editora
-
a
djunta
.
Drª.
Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra
Eiras, Faculdade de Serviço Social, Universidade
Federal de Juiz de Fora, Brasil. Editora
-
adjunta.
Esp.
Luciano Cardoso de Souza, Faculdade de
Serviço Social, Universidade Federal de Juiz de
Fora, Brasil. Editor
-
e
xecutivo
.
CONSELHO EDITORIAL
Alcina Maria de Castro Martins, Instituto
Superior Miguel Torga, Portugal
;
Carina Berta
Moljo,
Universidade Federal de Juiz de Fora,
Brasil
;
Caterine Reginensi, Ecole Nacionale
Superieure Agronomique de Toulouse, França
;
Elizete Menegat, Universidade Federal de Juiz de
Fora, Brasil
;
Íris Maria de Oliveira, Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Brasil
;
José
Paulo Net
t
o, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Brasil
;
Margarita Rozas Pagaza,
Universidad Nacional de La Plata, Argentina
;
Maria Aparecida Tardim Cassab, Universidade
Federal de Juiz de Fora, Brasil
;
Maria Beatriz
Abramides, Pontifíc
ia
, U
niversidade Católica de
São Paulo, Brasil
;
Maria Patricia Fernandes Kelly,
Princeton University, EUA
;
Maria Rosangela
Batistoni, Universidade Federal de
São Paulo,
Brasil
;
Marilda Vilella Iamamoto, Universidade
Estadual do Rio de Janeiro, Brasil
;
Nicolas Bautes,
Universite de Caen Normandie, França
;
Olga
Mercedes Paez, Universidad Nacional de
Córdoba, Argentina
;
Roberto Orlando Zampani,
Universidad Nacional de Rosário, Argentina
;
Rosangela Nair Carvalho Barbosa, Universidade
Estadual do Rio de Janeiro
; Brasil
;
Silvia
Fernandes Soto, Universidad Nacional de Tandil,
Argentina
;
Xabier Arrizabalo Montoro,
Universidad Complutense de Madri, Espanha
.
AVALIADORES
Alejandra Pastorini
Corleto [UFRJ, Rio de Janeiro,
RJ/Brasil]; Alessandra Ribeiro de Souza [UFOP, Ouro
Preto, MG/Brasil]; Alexandra Aparecida Leite
Toffanetto Seabra Eiras [UFJF, Juiz de Fora,
MG/Brasil]; Alexandre Aranha Arbia
[UFJF, Juiz de
Fora, MG/Brasil]; Ana Livia Souza Coimbra [UFJF, Juiz
de Fora, MG/Brasil]; Ana Luiza Avelar [UFJF, Juiz de
Fora, MG/Brasil]; Andrea Kelmer de Barros [UFVJM,
Montes Claros, MG/Brasil]; Antoniana Dias Defilippo
Bigogno [UFF, Rio das Ostras, RJ
/Brasil]; Bruno
Bruziguessi Bueno [UFJF, Juiz de
Fora, MG/Brasil];
Caio Cezar Cunha [UEL, Londrina, PR/Brasil]; Carlos
Eduardo Montaño Barreto [UFRJ, Rio de Janeiro,
RJ/Brasil]; Carlos Henrique Lopes Rodrigues [UFVJM,
Montes Claros, MG/Brasil]; Cézar Henrique Miranda
Coelho Maranhão [UFRJ, Rio de Janeir
o, RJ/Brasil];
Claudiana Tavares da Silva Sgorlon [UEM, Maringá,
PR/Brasil]; Cristiane Silva Tomaz [UFOP, Ouro Preto,
MG/Brasil]; Cristina Simões Bezerra
[UFJF,
Juiz de Fora, MG/Brasil]; Daniela Leonel de Paula
Mendes [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Danie
le
Batista Brandt [UERJ, Rio de Janeiro/Brasil]; Dayana
Christina Ramos de Souza Juliano [UFRJ, Rio de
Janeiro, RJ/Brasil]; Denise Maria Fank de Almeida
[UEL, Londrina, PR/Brasil]; Douglas Marques [UEM,
Maringá, PR/Brasil]; Douglas Ribeiro Barboza [UFF,
Ni
terói, RJ/Brasil]; Ednéia Alves de Oliveira [UFJF, Juiz
de Fora, MG/Brasil]; Elaene Alves [UnB, Brasília,
DF/Brasil]; Elizete Menegat [UFJF, Juiz de Fora,
MG/Brasil]; Estela Saleh da Cunha [UFJF, Juiz de Fora,
MG/Brasil]; Fábio do Nascimento Simas [UFF, Ni
terói,
RJ/Brasil]; Fábio Fraga dos Santos [UFVJM, Montes
Claros, MG/Brasil]; Flávio José Souza Silva [UFRJ, Rio
de Janeiro, RJ/Brasil]; Francisca Rodrigues de Oliveira
Pini [UNIFESP, São Paulo, SP/Brasil]; Gabriela Abrahão
Masson [UFTM, Uberaba, MG/Brasil]
; Glênia Rouse
Costa [UFPI, Teresina, PI/Brasil]; Graziela Scheffer
[UERJ, Rio de Janeiro/Brasil]; Gustavo Fagundes
[UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Inez Rocha Zacarias
[UFRGS, Porto Alegre, RS/Brasil]; Ivy Ana Carvalho
[UERJ, Rio de Janeiro/Brasil]; Jamer
son Murillo
Anunciação de Souza [UFPE, Recife, PE/Brasil];
Janaina Bilate Martins [UNIRIO, Rio de Janeiro,
RJ/Brasil]; Jeovana Nunes Ribeiro [UFMA, São Luís,
MA/Brasil]; Jhony Zigato [UFVJM, Montes Claros,
MG/Brasil]; Joana Valente Santana [UFPA, Belém,
PA
/Brasil]; João Paulo da Silva Valdo [UFRJ, Rio de
Janeiro, RJ/Brasil]; Joseane Barbosa de Lima [UFJF,
Juiz de Fora, MG/Brasil]; Juan Tapiro [UERJ, Rio de
Janeiro/Brasil]; Katia Iris Marro [UFF, Rio das Ostras,
RJ/Brasil]; Kelly Rodrigues Melatti [PUC/SP, S
ão Paulo,
SP/Brasil]; Laryssa Gabriella Gonçalves dos Santos
[UFRJ, Rio de Janeiro, RJ/Brasil]; Letícia Batista Silva
[UFF, Niterói, RJ/Brasil]; Luciana Gonçalves Pereira de
Paula [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Mara Kátia de
Oliveira Nascimento [UFRN, Na
tal, RN/Brasil]; Márcia
Pereira Cunha [FLACSO, São Paulo, SP/Brasil]; Márcio
Achtschin Santos [UFVJM, Montes Claros, MG/Brasil];
Marco José de Oliveira Duarte [UFJF, Juiz de Fora,
MG/Brasil]; Maria Fernanda Escurra [UERJ, Rio de
Janeiro/Brasil]; Maria Hele
na Elpidio [UFES, Vitória,
ES/Brasil]; Maria Lucia Duriguetto [UFJF, Juiz de Fora,
MG/Brasil]; Mariana Costa Carvalho [UFV, Viçosa,
MG/Brasil]; Marina Maciel Abreu [UFMA, São Luís,
MA/Brasil]; Marina Monteiro de Castro e Castro
[UFJF, Juiz de Fora, MG/Bras
il]; Monique de Carvalho
Cruz [UFRJ, Rio de Janeiro, RJ/Brasil]; Naires
Raimunda Gomes Farias [UFMA, São Luís, MA/Brasil];
Nanci Lagioto Hespanhol Simões [UFJF, Juiz de Fora,
MG/Brasil]; Nanci Soares [UNESP, Franca, SP/Brasil];
Nicole Alves Espada Pontes [
UFPE, Recife, PE/Brasil];
Patrícia da Silva Coutinho [UFJF, Juiz de Fora,
MG/Brasil]; Patrícia Soraya Mustafa [UNESP, Franca,
SP/Brasil]; Paulo Lourenço Domingues Junior [UFRRJ,
Três Rios, RJ/Brasil]; Raquel Cristina Lucas Mota
[UFVJM, Montes Claros, MG/Br
asil]; Regina Celia
Tamaso Mioto [UFSC, Florianópolis, SC/Brasil];
Ricardo Silvestre da Silva [UFVJM, Montes Claros,
MG/Brasil]; Roberto Coelho do Carmo [UFOP, Ouro
Preto, MG/Brasil]; Rodrigo Alvarenga [PUC/PR,
Curitiba, PR/Brasil]; Rodrigo de Souza Filho
[UFJF, Juiz
de Fora, MG/Brasil]; Rodrigo dos Santos Nunes
[PUC/RS, Porto Alegre, RS/Brasil]; Rodrigo Silva Lima
[UFF, Niterói, RJ/Brasil]; Rosangela Gonzaga [UFF,
Niterói, RJ/Brasil]; Sabrina Pereira Paiva [UFJF, Juiz de
Fora, MG/Brasil]; Silvina Veronica
Galizia [UFRJ, Rio
de Janeiro, RJ/Brasil]; Tatiana Reidel [PUC/RS, Porto
Alegre, RS/Brasil]; Thaís Luiz Vargas [UFRJ, Rio de
Janeiro, RJ/Brasil]; Thaisa Teixeira Closs [PUC/RS,
Porto Alegre, RS/Brasil]; Thaíse Seixas Peixoto
Carvalho [Centro de Ensino Supe
rior de Conselheiro
Lafaiete, MG/Brasil]; Vanessa Cardoso Cezário [USP,
São Paulo, SP/Brasil]; Vanessa Follmann Jurgenfeld
[UFVJM, Montes Claros, MG/Brasil]; Victor Martins
[UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Victor Miranda Elias
[IBC, Rio de Janeiro, RJ/Bras
il]; Vilmar da Silva [UTFPR,
Curitiba, PR/Brasil]; Vitor Bartoletti Sartori [UFMG,
Belo Horizonte, MG/Brasil]; Viviane Sousa Pereira
[UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]
.
Universidade Federal de Juiz de Fora
Faculdade de Serviço Social
Programa de Pós
-
graduação em Serviço Social
Editores:
Mônica Aparecida Grossi (editora
-
chefe)
;
Isaura Gomes de Carvalho Aquino (
e
ditora
-
adjunta)
;
Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras
(editora
-
adjunta)
;
Luciano Cardoso de Souza (
e
ditor
-
executivo)
.
Editor de Leiaute
:
Luciano Cardoso de Souza
.
IMAGE
NS
DA CAPA
E CONTRACAPA
:
SOUZA,
Luciano Cardoso
de
.
Lut@
, 2023
.
Mão/modelo: Lucas
da Silva
Simeão
.
ARTE CAPA
E CONTRACAPA
:
Luciano Cardoso de Souza
.
Juiz de Fora/MG,
dezembro
,
20
2
3
.
FICHA CATALOGRÁFICA
Publicação indexada em:
Revista Libertas
/ Universidade Federal de
Juiz de Fora,
Programa de Pós
-
graduação em Serviço
Social, Curso de graduação em Serviço Social.
–
n.
1
(
abril,
2001
)
–
.
–
Juiz de Fora
,
ano 202
3
–
v.
2
3
nr.
2
.
Se
mestral
Resumo em português e inglês
V
inculada ao Programa de Pós
-
graduação em Serviço Social e ao Curso de
Graduação em
Serviço Social.
Versão online ISSN 198
0
-
8518
1. Serviço Social. 2. Periódico. I. Universidade Federal de Juiz de Fora, Programa de
Pós
-
Graduação em
Serviço Social. II. Universidade Federal de
Juiz de Fora
, Curso d
e
Graduação em Serviço Social.
Sumário
Editorial
IX
Dossiê:
Estado, Democracia e Serviço Social
Estado capitalista e democracia:
disputa de
projetos político
-
ideológicos
Paula Raquel da Silva Jales
Solange Maria Teixeira
286
Estado, capitalismo dependente e racismo no Brasil:
considerações teórico
-
metodológicas
Ana Paula Ornellas Mauriel
307
Estado, burocracia e poder: apontamentos
sobre a teoria das elites e do poder
Patricia da Silva Coutinho
329
Democracia com desigualdades: sinais da vulnerabilidade
social em
ambientes politicamente ideologizados
Jairo de Carvalho Guimarães
35
4
O
problema da emancipação humana na obra
de Marx de 1843
-
1844: atualidade e desafios
João Paulo Galhardo Brun
Luiza Miranda Furtuoso
375
A universalização da democracia como tarefa da
revolução proletária: as lições de Marx e Engels
Douglas
Ribeiro Barboza
389
Associativismo migrante nas encruzilhadas
da gestão de políticas sociais
João Ricardo Lemes
Líria Maria Bettiol Lanza
417
Educação Popular no Brasil: uma sistematização de processos e
experiências desenvolvidas nos anos 1940 a
1964
Juliano Zancanelo Rezende
Maria Lúcia Duriguetto
436
Condições para a emergência do neofascismo no Brasil:
da crise política ao governo Bolsonaro
Liana França Dourado Barradas
Gabriel Magalhães Beltrão
453
Concepção de estado em Marx,
degradação dos direitos do trabalho
e o governo Bolsonaro
Laryssa Gabriella Gonçalves dos Santos
477
Políticas de emprego e renda do governo Bolsonaro:
mãe hostil dos filhos do Brasil
Ednéia Alves de Oliveira
Monalisa Aparecida Santos
499
Artigos
Fluxo Contínuo
Conflitos socioambientais envolvendo água e mineração
no Brasil: sujeitos políticos e suas lutas
Maria das Graças e Silva
Nailsa Maria Souza Araújo
Pedro Gabriel Silva
521
Ruptura metabólica no capitalismo: a urgência do
proletariado
ambiental no enfrentamento à crise ecológica
Nicole Alves Espada Pontes
539
Serviço
S
ocial e trabalho: mapeando
o debate no âmbito do CBAS
Hiago Trindade
Ana Beatriz Bandeira dos Santos
554
Depoimento de crianças e implicações da Lei
13.431/2017
no trabalho de assistentes sociais
Rita de Cássia Pereira Farias
Mariana Costa Carvalho
577
Entrevista
Annamaria Campanini
Entrevistadora: Carina Berta Moljo
597
Resenha
JESUS, Júlio César Lopes de.
O Serviço Social na previdência social
brasileira
: as ofensivas do capital e as resistências coletivas. São Paulo:
Editora Dialética, 2023.
A luta dos assistentes sociais brasileiros pela democracia: resistências da
classe ao capitalismo na previdência social
Arnaldo Fernandes Pinto Junior
6
04
DOI 10.34019/1980
-
8518.202
3
.v2
3
.
43067
IX
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.
2, p. IX
-
XIII, jul./dez. 2023. ISSN 1980
-
8518
Editorial
Com a publicação desta edição, a Libertas apresenta o resultado do trabalho realizado
pela comissão editorial atual. Com a permanência
das professoras Isaura Aquino e Mônica
Grossi, e do Técnico em Assuntos
Educacionais Luciano Cardoso de Souza, a comissão
posteriormente, chega ao seu formato atual com a vinda da professora Alexandra Eiras.
Expressamos nosso reconhecimento ao trabalho realizado por Luciano Cardoso de Souza, sua
postura sensível aos temas da r
evista e por nos ter brindando com as fotos da capa e da
contracapa, nas quais tivemos como "modelo" o nosso muito prezado técnico
-
administrativo
em educação
Lucas da Silva Simeão
, figura histórica na Faculdade de Serviço Social
e na
militância sindical da UFJF.
É com imensa alegria e satisfação que apresentamos mais um número da Libertas. Esta
edição conta com o dossiê temático, a seção de temas livres, seguidos das seções entrevista e
traduções, sendo finalizada com uma resenha de livro.
O dossiê
Estado, Democracia e Serviço Social
reúne artigos que refletem sobre o
contexto atual de profunda crise do capital, a relação entre Estado e Sociedade Civil,
expressando os desafios para a sustentação da democracia em face da luta entre projetos sociais
antagônicos e as contribuições da pro
fissão de Serviço Social nos processos de resistência.
Conta com doze artigos que discutem questões relacionadas ao Estado capitalista, às relações
de poder, ao racismo, às desigualdades, à democracia, às disputas de projetos antagônicos, à
questão da eman
cipação humana, do associativismo e da educação popular. Conta ainda com
análises relacionadas às condições de emergência do
neofascismo
no Brasil e, especificamente,
sobre o governo Bolsonaro, ressaltando questões como a degradação dos direitos do trabalho e
a crítica das políticas de emprego e renda.
O artigo que abre o dossiê, "Estado capitalista e democracia: disputa de projetos
políticos
-
ideológicos", de Paula Raquel da Silva Jales (UECE) e de Solange Maria Teixeira
(UFPI) discute, a partir da crítica à democracia burguesa e dos processos de partici
pação e de
resistência, as contradições e sentidos da democracia, apontando seus usos restritivos e práticas
de desmantelamento da participação deliberativa de um governo de direita, como o governo
Bolsonaro.
Editorial
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.
2, p. IX
-
XIII, jul./dez. 2023. ISSN 1980
-
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X
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t
o
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l
Já o segundo texto, "Estado, capitalismo dependente e racismo no Brasil:
considerações teórico
-
metodológicas", de Ana Paula Ornellas Mauriel (UFF), nos traz os temas
do Estado e da dependência, tomando a categoria
capitalismo dependente e a Questão Social.
Parte do debate marxista do Estado, o caráter dependente dos Estados Latino
-
americanos,
destacando as principais determinações
econômico
-
sociais da realidade brasileira, na
constituição do Estado e das formas de
dominação, afirmando a centralidade do racismo na
ação do Estado para a manutenção da dependência.
O terceiro artigo, "Estado, Burocracia e Poder”, de Patrícia da Silva Coutinho (UFJF),
completa o primeiro bloco de trabalhos
–
dedicados à análise do Estado Capitalista
–
destacando
a obra de Charles Wright Mills. Em seu texto, a autora busca pôr em relev
o os aportes de Mills
sobre o poder, para a compreensão da organização social e da ideologia norte
-
americana.
Os três artigos seguintes tratam da questão da democracia e das desigualdades,
o
problema da emancipação humana e da universalização da democracia como tarefa da
revolução proletária.
O artigo de Jairo de Carvalho Guimarães (UFPI) "Democracia com desigualdades:
sinais de vulnerabilidade social em ambientes politicamente ideologizados" discute os sinais de
vulnerabilidade social na realidade brasileira, principalmente no período da pande
mia de
COVID
-
19, destacando as perdas de considerável parcela da população em relação à proteção
social, diante de estruturas ideológicas implementadas por agentes políticos que detém o poder
decisório.
O texto "O problema da emancipação humana na obra de Marx de 1843
-
1844:
atualidade e desafios", de João Paulo Galhardo Brun (UFJF) e de Luiza Miranda Furtuoso
(UFJF)
traz contribuições fundadas, especialmente, em três obras de Marx
–
escritas entre 1843
e 1844
–
sobre o papel da emancipação humana como objetivo final da revolução proletária.
Destaca
-
se a importância deste estudo na compreensão de questões atuais, como
a luta pela
democracia e a emancipação política, nas transformações necessárias em nossa sociedade,
buscando contribuir na compreensão dos limites das lutas sociais contemporâneas.
"A universalização da democracia como tarefa da revolução proletária: as lições de
Marx e Engels", de autoria de Douglas Ribeiro Barbosa (UFF) busca explicitar que a ampliação
e o aprofundamento da democracia nos âmbitos econômico e social se constituem co
mo um
projeto exclusivamente proletário. O autor afirma que o pensamento revolucionário de Marx e
Engels se constitui de forma radicalmente democrática, baseados na crítica e na superação das
restrições e limitações do poder do Estado a partir do pensament
o liberal.
Editorial
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.
2, p. IX
-
XIII,
jul./dez. 2023. ISSN 1980
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XI
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Na sequência, o artigo “Associativismo migrante nas encruzilhadas da gestão das
políticas sociais”, de autoria de João Ricardo Lemes e de Líria Maria Bettiol Lanza, ambos da
UEL,
“problematiza a relação entre o associativismo migrante e as tendências da g
estão das
políticas sociais, no contexto de reorganização do Estado sob os ditames do neoliberalismo”.
Fundamentados em pesquisa bibliográfica e de campo junto a Associações de migrantes do
Paraná, analisam as contradições e os limites dessas organizações.
O artigo “Educação Popular no Brasil: uma sistematização de processos e experiências
desenvolvidas nos anos 1940 a 1964”, dos autores
Juliano Zancanelo Rezende e Maria Lúcia
Duriguetto, ambos da UFJF, analisa as práticas e experiências de educação popular
desenvolvidas no Brasil pelos Comitês Populares Democráticos (1945
-
1947), Universidade do
Povo (1946
-
1957) e pelos Movimentos de Educação e Cultura Popular (1958
-
1964). Para os
autores, a criação de práticas de educação e cultura popular e sua conversão
pa
ra perspectivas
pedagógicas vinculadas aos anseios das classes subalternas, nesta conjuntura histórica,
potencializam a construção da mobilização, organização e conscientização em torno da luta e
defesa de direitos e de um processo de democratização do paí
s.
Os três últimos artigos do dossiê têm em comum a análise crítica do Governo
Bolsonaro. O artigo de Liana França Dourado Barradas (UFPE) e de Gabriel Magalhães Beltrão
(UFAL), “Condições para a emergência do neofascismo no Brasil: da crise política ao gover
no
Bolsonaro” discute o aprofundamento do neoliberalismo num contexto de crise do capital e o
avanço da extrema direita
em muitos países, com
traços diversos de fascistização. Evidenciam
uma afinidade eletiva entre o neoliberalismo e o neofascismo. Particu
larizam no Brasil a crise
política iniciada em 2013 e radicalizada em 2015, com a crise econômica que deflagrou o
processo de fascistização. Além disso, analisam questões políticas que contribuiram para a
eleição de Jair Bolsonaro.
O artigo "Concepção de estado em Marx, degradação dos direitos do trabalho e o
governo Bolsonaro”, de
Laryssa Gabriella Gonçalves dos Santos (GEPEM/SE), busca refletir
sobre a concepção de Estado em Marx e sobre a relação entre Estado e direitos trabalhis
tas.
Destaca no neoliberalismo e na reestruturação produtiva, a ampliação o processo de
precarização do trabalho que, no Brasil, se expressa através de algumas normativas elaboradas
no governo Bolsonaro para degradar ainda mais os direitos do trabalho.
Encerrando o dossiê, o artigo “Políticas de emprego e renda do governo Bolsonaro:
mãe hostil dos filhos do Brasil”, de Ednéia Alves de Oliveira e Monalisa Aparecida Santos,
ambas da UFJF, apresenta as principais medidas adotadas pelo governo Bolsonaro para
geração
de emprego e renda, para minimizar as consequências da pandemia de covid
-
19 e do
Editorial
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.
2, p. IX
-
XIII, jul./dez. 2023. ISSN 1980
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aprofundamento da crise econômica pós retomada das atividades econômicas. Consideram a
ineficácia das políticas implementadas
durante e após a pandemia, tendo em conta o aumento
da informalidade, do desemprego e da pobreza no país, refletindo a histórica p
olítica residual,
focalizada e pobre no trato da questão social.
Na seção de fluxo contínuo, com temas livres, contamos com 4 artigos. O primeiro,
“Conflitos socioambientais envolvendo água e mineração no Brasil: sujeitos políticos e suas
lutas” de Maria das Graças e Silva (UFPE), Nailsa Maria Souza Araújo (UFSE) e Ped
ro Gabriel
Silva (Universidade de Trás
-
os
-
Montes e Alto Douro
-
Portugal) se dedica a identificar os
principais conflitos e analisar as inter
-
relações entre mineração e água como partes do modelo
de exploração de recursos naturais. Estes conflitos socioamb
ientais destacam a posição
histórica do país como produtor/exportador de commodities e afirmam uma realidade
punjantemente conflitiva no país, com múltiplos sujeitos envolvidos.
Na mesma linha de estudos ambientais, temos o artigo “Ruptura metabólica no
capitalismo: a urgência do proletariado ambiental no enfrentamento à crise ecológica”, de
Nicole Alves E. Pontes (UFPE), que busca evidenciar a destrutividade ambiental pelo
capita
lismo, partindo de uma pesquisa teórica e documental, que recupera contribuições de
Marx, sobretudo no aprofundamento da categoria de ruptura metabólica. Embasada em dados
de documentos e relatórios, busca situar esse debate na concreticidade, ao relaciona
r e
evidenciar problemáticas ambientais contemporâneas
e as contribuições do que Foster (2020)
denominou de “proletariado ambiental”.
O terceiro artigo desta seção, intitulado “Serviço social e trabalho: mapeando o debate
no âmbito do CBAS”, de Hiago Trindade (UFCG) e de Ana Beatriz Bandeira dos Santos
(UFPE), se baseia em uma pesquisa de tipo quali
-
quantitativa, identificando e analisan
do 113
artigos, publicizados no eixo “Trabalho, Questão Social e Serviço Social” do Congresso
Brasileiro de Assistentes Sociais, realizado em 2019. Identifica os principais temas e discussões
sobre o mundo do trabalho e sua relação com o Serviço Social, tr
azendo apontamentos e
desafios à continuidade desse debate na área.
Fechando esta seção, o artigo “Depoimento de crianças e implicações da Lei
13.431/2017 no trabalho de assistentes sociais” de Rita de Cássia Pereira Farias e Mariana Costa
Carvalho, professoras da UFV, traz um debate sobre depoimento especial de crianças e
adolescentes vítimas ou testemunhas de situações de violência. A partir do relato de assistentes
sociais que atuam nos serviços de assistência social de um município de médio porte da zona
da mata mineira, realiza uma crítica aos retrocessos que a Lei 13.
431/2017 imprime para o
Editorial
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.
2, p. IX
-
XIII,
jul./dez. 2023. ISSN 1980
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XIII
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l
trabalho de assistentes sociais na escuta especializada de crianças e adolescentes.
As próximas seções, que finalizam este número, comportam uma entrevista, uma
tradução e uma resenha.
A entrevista foi realizada pela professora Carina Berta Moljo com a professora
Annamaria Campanini, atual presidente da
Asociación Internacional de Escuelas de Trabajo
Social
-
AIETS, abordando
o histórico de constituição desta organização, suas relações com a
Asociación Latinoamericana
de Escuelas de Trabajo Social
-
ALAEITS, a situação do Serviço
Social internacional e suas contribuições.
Finalizamos a edição com a resenha do livro “O Serviço Social na previdência social
brasileira: as ofensivas do capital e as resistências coletivas”, de autoria de
Júlio
César
Lopes
de
Jesus,
realizada
por
Arnaldo
Fernandes
Pinto
Júnior
(Faculdade
Novos
Horizontes)
.
Desejamos uma boa leitura.
Mônica Aparecida Grossi
Isaura Gomes de Carvalho Aquino
Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras
DOI
10.34019/1980
-
8518.202
3
.v2
3
.41377
286
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.
2
, p.
286
-
306
,
jul
./
dez
. 2023. ISSN 1980
-
8518
Estado capitalista e democracia: disputa de
projetos político
-
ideológicos
Capitalist state and democracy: dispute over political
-
ideological projects
Paula Raquel da Silva Jales
*
Solange Maria Teixeira
**
Resumo:
Ao partir do
pressuposto de que a
democracia burguesa é um conceito
contraditório, servindo às práticas de
manutenção do status quo, aos processos de
dominação na sociedade capitalista, bem como
às práticas de resistências, de participação e de
poder de decisão nas dec
isões governamentais,
o objetivo deste artigo foi, a partir de uma
revisão intencional de literatura sobre Estado
capitalista e democracia, desvendar as
contradições e sentidos da democracia e apontar
seus usos restritivos e práticas de
desmantelamento da
participação deliberativa
de um governo de extrema direita no Brasil. A
pesquisa realizada foi do tipo teórica de base
bibliográfica, com metodologia qualitativa com
escolha intencional da literatura. Conclui
-
se que
a democracia participativa foi afetada e
desmantelada pelo governo de Jair Bolsonaro,
ainda que dissesse defender a democracia.
Palavras
-
chaves:
Estado capitalista;
Democracia; Projetos político
-
ideológicos;
Participação; Deliberação.
Abstract:
Based on the assumption that
bourgeois
democracy is a contradictory
concept, serving the practices of maintaining
the status quo, processes of domination in
capitalist society, as well as practices of
resistance, participation and decision
-
making
power in government decisions, the objective of
this article was based on an intentional review
of literature on the capitalist state and
democracy, unveiling the contradictions and
meanings of democracy and pointing out its
restrictive uses and practices of dismantling the
deliberative participation of
an extreme right
-
wing government in Brazil. The research
carried out was theoretical and
bibliographically based, with qualitative
methodology with an intentional choice of
literature. It is concluded that participatory
democracy was affected and dismantl
ed by Jair
Bolsonaro's government, even though he
claimed to defend democracy.
Keywords
:
Capitalist state; Democracy;
Political
-
ideological projects; Participation;
Deliberation.
Recebido em:
07/06/2023
Aprovado em
:
25/10/2023
*
Assistente Social. Doutora em Políticas Públicas, Universidade Federal do Piauí (UFPI). Professora e
pesquisadora do Curso de Graduação em Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Foi bolsista
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES). ORCID:
https://orcid.org/0000
-
0003
-
4357
-
8198
**
Assistente Social. Pós
-
Doutoramento em Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC
-
SP). Doutorado em Políticas Públicas, Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Professora e pesquisadora
dos Cursos de Graduação em Serviço Social e d
e Pós
-
Graduação em Políticas Públicas em nível de Doutorado e
Mestrado da Universidade Federal do Piauí (UFPI). ORCID:
http://orcid.org/0000
-
0002
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Introdução
Para se distanciar e se distinguir de regimes totalitários e autoritários, dentre eles o
nazismo, o fascismo e a ditatura, bem como do socialismo e do comunismo, governos, de
diferentes correntes político
-
ideológicas, têm a necessidade de afirmar em seus p
rogramas e
discursos oficiais que compartilham da ideia e defendem um Estado democrático. A questão
é saber o direcionamento e o sentido atribuído à democracia, no âmbito dos projetos político
-
ideológicos em disputa no Estado capitalista. Em outras palavra
s, a que espécie e/ou formato
de democracia estão se referindo estes governos que se autointitulam
democráticos
.
Ao partir do pressuposto da existência de projetos político
-
ideológicos que orientam a
ação política dos sujeitos, através da articulação de concepções de mundo, de representações
da vida em sociedade e de um conjunto de crenças, valores, princípios e inte
resses (Dagnino,
2004;
Dagnino; Olvera; Panfichi, 2006
) que disputam a hegemonia no Estado contemporâneo,
objetivou
-
se, neste artigo, a partir dos conceitos de Estado burguês e democracia, analisar seus
usos históricos, seja para reproduzir a ordem com bas
e em processos de dominação ancorados
em um suposto consenso e consentimento dos dominados, seja para criar contra
-
hegemonias,
que emergem favorecidas pelos processos democráticos burgueses e geram lutas,
reivindicações, resistências e propostas alternativ
as, como nas democracias deliberativas, e
fazer uma análise das mudanças, via decretos, resoluções e outros, realizadas pelo governo de
Jair Bolsonaro no período de 2019 a 2021, sobre as práticas democráticas institucionalizadas.
O artigo é decorrente de pesquisa teórica do tipo bibliográfica, de escolha intencional
das referências para atender ao objetivo da investigação. Para dar conta do objetivo proposto e
expor os resultados da pesquisa, o artigo foi dividido em quatro seções:
a primeira fundamenta
em Poulantzas (1985) a concepção de Estado capitalista; já a segunda apresenta a noção de
democracia que emerge no capitalismo, as tendências na Teoria democrática e algumas
experiências brasileiras; a terceira discorre sobre as muda
nças nas práticas democráticas no
governo de Jair Bolsonaro; e a última apresenta algumas considerações sobre essas mudanças.
Ressalta
-
se que, por serem assistentes sociais, as autoras reiteram, através da
socialização desta pesquisa, o compromisso da profissão com o projeto ético
-
político do
Serviço Social, que expressa no quarto princípio de seu Código de Ética a “[...] defesa
do
aprofundamento da democracia, enquanto socialização da participação política e da riqueza
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socialmente produzida” (Brasil, 2012, p. 23). Nesse sentido, a diferenciação dos projetos
político
-
ideológicos que disputam a democracia no Estado capitalista mostra uma entre as
diversas contribuições do Serviço Social como área do conhecimento para pensa
r criticamente
a realidade brasileira e possibilitar a opção por concepções e estratégias que ampliem a
democracia participativa.
Por uma teoria do Estado capitalista: contribuições de Poulantzas
Para Gramsci
, a
s
superestrutura
s do bloco histórico
, ou seja, o complexo das relações
ideológicas
,
est
ão
dividid
as
em
duas esferas
: a sociedade civil
,
constituída por um conjunto de
instituições e organismos
–
vulgarmente denominados de privados
–
,
que corresponde à função
hegem
ônica
do grupo
dominante
sobre a sociedade; e
a
sociedade política ou Estado restrito
,
que
é um prolongamento da sociedade civil
,
formada por membros desta, porém com função
de coerção e manutenção do direcionamento econômico e ideológico do poder hegemônico
(
Portelli
, 1977
)
.
Ambas (sociedade civil
e
sociedade política) formam o Estado ampliado
1
,
que
exerce
a hegemonia, entendida como direção cultural (política ideológica) da classe dominante,
articulando consenso e coerção (
Portelli
, 1977
).
Nesse sentido, nenhuma classe se mantém no poder apenas com processos de violência
e coerção, típicos de uma ditadura, mas
igualmente com consenso ativo das classes sociais que
constituem a sociedade civil (
Portelli
, 1977
)
. Segundo Miguel (2018), a palavra “
ativo”
, junto
ao vocábulo “
consenso”
, traz nova compreensão para o lugar assumido pelos sujeitos nas
relações sociais, pois, em vez de se subjugarem apaticamente à ordem dominante, assimilam
um conjunto de crenças e incentivos em suas práticas, reproduzindo constantemente as relações
de domi
nação; eles agora são ativos, pois envolvem consentimento. Por isso, uma das
preocupa
ções da classe dominante é sempre se apresentar como representante de interesses
universais que abranjam a todos, ou pelo menos a maioria dos membros da sociedade. Nas
palavras do autor, “[...] uma hegemonia nunca é ‘dada’: mesmo que permaneça por longo
te
mpo, ela precisa ser permanentemente mantida (contra adversários) e constantemente
atualizada” (Miguel, 2018, p. 73).
A revalorização do momento da política feita por Gramsci, por meio da teoria do Estado
ampliado e da reflexão sobre necessidade de produção da hegemonia, possibilita fugir ao
determinismo, uma vez que ela é percebida como espaço de expressão das contradiçõ
es sociais e
da busca de soluções transitórias (Miguel, 2018). Dessa forma, a categoria hegemonia elucida a
1
Para Gramsci, a sociedade civil e política e a relação orgânica que estabelecem entre si conformam o Estado
ampliado (Portelli, 1977).
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direção política e ideológica exercida pela classe dominante e a possibilidade de reforma
intelectual e moral a ser construída pelas classes trabalhadoras denominada de contra
-
hegemonia.
Apesar de Gramsci afirmar a relação orgânica entre estrutura (relações de produção)
e superestrutura (complexo das relações políticas ideológicas), é Poulantzas (1985) que dá
densidade a essa discussão, mostrando a existência de poderes de classe nas relaç
ões de
produção organicamente articuladas, bem como nas relações políticas e ideológicas que
consolidam e legitimam a produção e a reprodução dessas relações sociais. Dessa forma,
embora o Estado concentre e materialize o poder político, a sua atuação não
fica restrita ao
binômio repressão
-
reprodução de ideologia, na análise feita por Poulantzas (1985). A
atuação primeira do Estado está na produção e reprodução das classes sociais, ou seja, na
luta de classe. Nas palavras do autor:
[...] No caso, poderes de classe que nos levam à relação fundamental da
exploração: a propriedade econômica espelha
notoriamente a capacidade (o
poder) de destinar os meios de produção a determinadas utilizações e de,
assim, dispor dos produtos obtidos da posse, da capacidade de ativar os meios
de produção e de comandar o processo de trabalho. Estes poderes situam
-
se
na
rede de relações entre exploradores e explorados, nas oposições entre
práticas de classes diferentes; em suma, na luta de classe, pois esses poderes
inscrevem
-
se num sistema de relações de classes. Porque é precisamente
considerando o processo econômico e
as relações de produção como rede de
poderes, que se pode compreender que as relações de produção, como poderes,
estão ligadas constitutivamente às relações políticas e ideológicas que as
consagram e que estão presentes nas relações econômicas (Poulantzas
, 1985,
p. 41).
Nesse sentido, o autor propõe uma teorização do Estado capitalista capaz de explicar
suas formas diversas e metamorfoses históricas, em contraposição a uma teoria geral do Estado
que apresentaria um objeto de estudo invariante em diferentes modos de produç
ão. Assim,
segundo Poulantzas (1985), as modificações no Estado capitalista revelam sua vinculação
orgânica tanto com as transformações nas relações de produção e na divisão social do trabalho
(fases ou estágios do capitalismo) como com a formação e reprod
ução das classes sociais, das
suas lutas e da dominação política (formas e regimes assumidos pelo Estado em determinada
fase do capitalismo).
É a compreensão de que a luta de classe se estabelece desde as relações de produção,
constituindo e reproduzindo relações políticas ideológicas que conformam a ossatura
institucional do Estado capitalista, que nos faz percebê
-
lo como condensação material e
específica de uma correlação de forças entre classes e frações de classes, na análise de
Poulantzas (1985). Nessa perspectiva, as lutas de classe não perpassam pelo Estado como se
lhe fossem exteriores
–
visões reiteradas nas compreensões do Estado como C
oisa
-
instrumento
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ou Sujeito; elas se encarnam nele, evidenciando suas contradições internas. Nas palavras do
autor:
[...] O estabelecimento da política do Estado deve ser considerado como a
resultante das contradições de classe inseridas na própria estrutura do Estado
(o Estado
-
relação). Compreender o Estado como a condensação de uma
relação de forças entre classes e fr
ações de classe tais como elas se expressam,
sempre de maneira específica, no seio do Estado, significa que o Estado é
constituído
-
dividido de lado a lado pelas contradições de classe. Isso significa
que uma instituição, o Estado, destinado a reproduzir as
divisões de classe,
não é, não pode ser jamais, como nas concepções do Estado
-
Coisa ou Sujeito,
um bloco monolítico sem fissuras, cuja política se instaura de qualquer
maneira a despeito de suas contradições e as lutas atravessam o Estado, como
se se trat
asse de manifestar uma substância já constituída ou percorrer um
terreno vazio. As contradições de classe constituem o Estado, presente na sua
ossatura material, e armam assim sua organização: a política do Estado é o
efeito de seu funcionamento no seio do
Estado (Poulantzas, 1985, p. 152).
Entretanto, o Estado capitalista tem funções diferentes em relação às classes sociais que
o conformam, quais sejam: classes dominantes e classes dominadas. No que tange às primeiras,
seu papel é
organizar os interesses políticos das frações das classes dominantes do bloco no
poder, no sentido de garantir unidade conflitual da aliança e do equilíbrio instável dos
compromissos assumidos entre seus membros (Poulantzas, 1985). Já em relação às classes
dominadas, age na sua desorganização, divisão, polarização quanto ao bloco no poder e colapso
de suas organizações políticas (Poulantzas, 1985).
O fato de trabalhar na organização da classe dominante não quer dizer que todas as
frações dessa classe tenham seus interesses atendidos nem que todas sejam hegemônicas, ou
seja, não torna o Estado capitalista homogêneo em relação a essa classe. Para Poula
ntzas
(1985), a autonomia relativa do Estado capitalista em relação a algumas frações das classes
dominantes e seus interesses particulares permite que ele coordene o interesse político da
burguesia sob a hegemonia de uma de suas frações, que, apesar de ga
rantir a unidade, disputa
com as outras frações de classe o poder de direção dos diferentes aparelhos e setores do Estado
capitalista. Dessa forma, a dominação burguesa concentra
-
se e cristaliza
-
se nos aparelhos do
Estado através de linhas de direção horiz
ontais e verticais e das disputas entre as frações de
classe que têm poderes próprios, como mostra a citação à frente:
As contradições de classe, examinadas momentaneamente apenas as que
existem entre as frações do bloco do poder, assumem no seio do Estado a
forma de contradições internas entre os diversos ramos e aparelhos do Estado,
e no seio de cada um deles, conforme a
s linhas de direção ao mesmo tempo
horizontais e verticais. Se isso acontece dessa maneira, é porque as diversas
classes e frações do bloco no poder só participam da dominação política na
medida em que estão presentes no Estado. Cada ramo ou aparelho do Es
tado,
cada face, de alto a baixo, de cada um deles (pois eles são muitas vezes, sob
sua unidade centralizada, desdobrados e obscurecidos), cada patamar de cada
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um deles constituem muitas vezes a sede do poder, e o representante
privilegiado, desta ou daquela fração do bloco no poder, ou de uma aliança
conflitual de algumas dessas frações contra as outras, em suma a
concentração
-
cristalização específica de tal ou
qual interesse ou aliança de
interesses particulares (Poulantzas, 1985, p. 152
-
153).
No que se refere às classes dominadas, a sua desorganização não torna o Estado
capitalista impermeável às demandas e aos interesses destas ou de suas frações, posto também
sua heterogeneidade. Na verdade, as contradições internas entre frações das classes
dominantes
e sua relação de forças com as classes dominadas possibilitam o Estado agir no compromisso
entre as classes, na geração do substrato material que cria o consenso nas massas na relação
estabelecida com o poder político. Incumbe
-
se, portanto, “[..
.] de uma série de medidas materiais
positivas para as massas populares, mesmo quando estas medidas refletem concessões impostas
pela luta das classes dominadas” (Poulantzas, 1985, p. 36).
Isso explica a materialização de políticas ou de ações favoráveis às classes populares
pelo Estado, mesmo que elas desagradem frações da classe dominante não hegemônica.
Afinal, o papel do Estado capitalista é, além de organizar os interesses das classes d
ominantes
sobre a hegemonia de uma de suas frações, o de reproduzir a relação de dominação
-
subordinação das classes dominadas (Poulantzas, 1985).
Mesmo assim, Poulantzas (1985) afirma que as lutas populares no Estado capitalista
dividem as posições e opções políticas das frações das classes dominantes
–
embora
concordem com a reprodução da dominação e das relações de exploração
–
, intensificando as
contradições internas e fissuras dos aparelhos estatais. As classes dominadas, diferentemente
das classes dominantes que constituem os aparelhos do Estado, são focos de oposição ao
poder cristalizado nessas instituições (Poulantzas, 1985), revelando, ao me
smo tempo, sua
capacidade de resistência e fragilidade perante a dominação burguesa. Por isso, o autor
adverte que a fatual presença das classes dominadas na condensação de forças que constituem
o Estado capitalista não garante necessariamente a sua transf
ormação, reiterando a sua
complexidade, especialmente quando se trata de regimes democráticos.
Estes se tornam hegemônicos na sociabilidade do capital, especialmente, quando o
Estado se amplia e assume funções de reprodução das condições gerais do capital e das
integradoras, ou seja, funções econômicas, sociais e políticas, numa perspectiva de
manut
enção e reprodução da ordem por via do consenso e do consentimento. Contudo, ao
abrir espaço para atender às demandas populares, acirra disputas e se abre para participações
diversificadas, podendo gerar antagonismo na direção e entendimento dos processos
democráticos, como será abordado no próximo item.
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Democracia como regime no Estado capitalista: poder do povo, poder das elites ou
disputa pelo poder?
Análises progressistas da democracia normalmente explanam concepções e/ou
vivências gregas como processos que permitiram a interferência de sujeitos comuns na vida
política das cidades
-
Estado, mesmo que na Grécia Antiga a participação fosse restrita àquele
s
considerados cidadãos, os homens livres, excluindo desse conceito mulheres, escravos e
estrangeiros. A própria etimologia da palavra tem origem na língua grega, em que “
demos
”
significa “
povo”
e “
kratía
”, “força”, “poder”; dito de outra forma,
poder do p
ovo
. Wood (2007,
p. 420) faz a seguinte reflexão sobre a sociedade ateniense:
É óbvio, nesta trama, que devemos dizer que é complexo aplicar a palavra
democracia a uma sociedade com escravidão em grande escala e na qual as
mulheres não tinham direitos políticos. Mas é importante compreender que a
maioria dos cidadãos atenienses trab
alhava para viver; e trabalhavam em
ocupações que os críticos da democracia consideravam como vulgares e
servis. A idéia [
sic
] de que a democracia consistiu no império de uma classe
ociosa dominando uma população de escravos é simplesmente errônea. Esse
fo
i o ponto central da oposição antidemocrática. Os inimigos da democracia
odiavam este regime sobretudo porque outorgava poder político ao povo
formado por trabalhadores pobres.
A referência à democracia como poder do povo ou soberania popular passou a ser temida
pela burguesia desde que esta ascendeu como classe dominante no modo de produção
capitalista. Para Netto (2001), os eventos da Revolução Francesa de 1848 encerraram o cic
lo
progressista da burguesia, que passou a defender, apoiada em pensadores e intelectuais, a
manutenção da nova ordem instaurada, ao mesmo tempo que evidenciou o antagonismo entre
as classes sociais fundamentais, a organização do proletariado e a tomada de
consciência
política pelas vanguardas trabalhadoras.
Conforme Miguel (2018), a dominação
2
é conceito
-
chave para a compreensão da
democracia, haja vista que toda institucionalidade constitui regimes de dominação, ou seja,
estabelece relações de poder
3
que precisam ser continuamente (re)criadas. Nesse sentido,
relações democráticas são relações de poder que legitimam e enfrentam a dominação, como
mostra o autor a seguir:
[...] Se a democracia também se define como o enfrentamento da dominação
2
Segundo Miguel (2018, p. 15), a dominação “[...] é o exercício assimétrico da autoridade ensejado pelo controle
de recursos materiais e simbólicos, compelindo aqueles que estão submetidos a comportamentos que beneficiam
os que detêm o poder: se a dominaçã
o é compreendida dessa maneira sucinta, mas reconhecível, a dominação é,
sem dúvida, um fenômeno recorrente”.
3
Consoante Poulantzas (1985, p. 168), “[...] por poder se deve entender a capacidade, aplicada às classes sociais,
de uma ou de determinadas classes sociais em conquistar seus interesses específicos. [...] A capacidade de uma
classe em realizar seus intere
sses está em oposição à capacidade (e interesses) de outras classes: o campo do poder
é, portanto, estritamente relacional”.
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e da opressão no campo da distribuição do poder político e do processo de
tomada coletiva de decisões, formulação que vou reter apenas de maneira
provisória, então a dominação entra duplamente como categoria central no
esforço de compreensão da democracia,
que se mede tanto pelas formas de
dominação que ela produz, como institucionalidade, quando por aquelas que
ela combate, como prática emancipatória (Miguel, 2018, p. 17).
Desse ponto de vista, a democracia não pode ser simplesmente associada ao governo
que elimina, combate a dominação, na verdade,
a contradição que perpassa pelas relações
sociais de produção na sociedade capitalista também alcança
a superestrutura, o Estado
ampliado e suas formas de governo, revelando que a busca pela hegemonia é central para a
dominação burguesa, por isso a disputa é uma constante nos processos democráticos. Nas
palavras de Miguel (2018, p. 23
-
24), o conceito de h
egemonia de Gramsci:
[...] enfatiza a vinculação entre a dominação e a organização do mundo social
em benefício de determinados interesses, o que já estava presente na
compreensão de Marx. Por isso, a dominação na sociedade está em
permanente disputa
–
a hegemonia é sempre con
frontada por estratégias
contra
-
hegemônicas de grupos dominados, que buscam inverter a situação. E,
por fim, essa disputa leva a que a hegemonia apresente um caráter muito mais
dinâmico que a legitimidade weberiana: ela precisa ser reconstruída a cada
mome
nto, diante dos desafios postos pelo conflito social.
Mas o sistema capitalista estabeleceu, segundo Wood (2007), uma relação diferenciada
entre a economia e a política, que teve consequências diretas no desenvolvimento das
democracias modernas. Nos modos de produção precedentes, a classe proprietária se util
izava de
meios extraeconômicos para explorar os produtores diretos. O uso do poder militar, político e
jurídico fazia
-
se necessário para coagir uma população que detinha a posse dos meios de produção
ao pagamento de impostos, bem como à condição de sujeito
s escravizados. Nesse sentido, a
economia dependia da política para funcionar, ocasionando uma fusão dessas áreas no mundo
antigo e uma divisão explícita entre as classes fundamentais (Wood, 2007).
A autora chama a atenção para a influência que os produtores diretos, participantes da
vida política em Atenas, tiveram sobre o poder de exploração das classes apropriadoras. A
classe produtora gozava de direitos políticos e uma liberdade sem antecedentes,
revelando a
importância política e econômica da democracia nas cidades
-
Estado (Wood, 2007).
No capitalismo, a exploração passou a ser puramente econômica (Wood, 2007), uma
vez que, livres das amarras da escravidão e da servidão, os indivíduos poderiam
escolher
como,
onde e quando trabalhar, ideia promissora do novo modo de produção que se consolidava. O
que não foi dito para a população
–
e Marx evidenciou posteriormente
–
é que, desprovidos dos
meios de produção, pois estes se tornaram obsoletos após o cercame
nto das terras comunais e
das revoluções industrial e tecnológica, os trabalhadores só t
inham a propriedade da sua força
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de trabalho, que deveria concorrer com muitas outras para ocupar um lugar no mercado de
trabalho e garantir o recebimento de um salário para a manutenção da subsistência da família
(Netto; Braz, 2012).
Em relação à participação dos trabalhadores nos assuntos políticos, só depois de muita
organização, reivindicação e luta é
que foram garantidos direitos políticos, que, juntamente com
os direitos civis, não estão em desacordo com o capitalismo. É nesse sentido que Wood (2007)
afirma a constituição de uma esfera econômica distinta da política no capitalismo, em que a
primeira d
ificilmente se submete ao controle democrático e a prestações de contas. Nas palavras
da autora:
Após e até agora existe uma esfera econômica distintiva, com seu próprio
sistema de compulsão e coerção, suas próprias formas de dominação, suas
próprias hierarquias. O capital, por exemplo, controla o lugar do trabalho, e
tem um manejo sem precedentes do
processo de trabalho. E, é obvio, existem
as forças de mercado, mediante as quais o capital localiza o trabalho e os
recursos. Nenhum destes elementos está sujeito ao controle democrático ou
rendição de contas. A esfera política concebida como o espaço ond
e as pessoas
se comportam em seu caráter de cidadão
–
antes que como trabalhadores ou
capitalistas
–
está separada do âmbito econômico. As pessoas podem exercitar
seus direitos como cidadãos sem afetar muito o poder do capital no âmbito
econômico. Ainda em
sociedades capitalistas com uma forte tradição
intervencionista do Estado, os poderes de exploração do capital costumam
ficar intactos pela ampliação dos direitos políticos (Wood, 2007, p. 6).
Para Wood (2006), o sistema capitalista, pela sua própria essência, construiu
paulatinamente outra forma de regime democrático, a designada democracia formal, que,
circunscrita à esfera política e jurídica, mais
legitima do que afronta o poder da classe
dominante. Nesse sentido, o processo da vida e dos corpos humanos fica sujeito à
mercantilização e, por consequência, distante do alcance da responsabilidade democrática, o
que leva a autora a concluir que o capita
lismo é basilarmente antidemocrático, se por
democracia entendermos o poder popular desafiando a dominação de classe.
Não há dúvida de que o poder das companhias transnacionais, que não
respondem perante nenhum eleitorado, é um ataque massivo contra a
democracia qualquer que seja a definição que se adote. Também é verdade que
organizações, tais como o FMI, usurparam certa
s funções de governos eleitos
(embora em proveito de outros governos nacionais mais fortes). Mas o mais
sério desafio à democracia no sentido de ‘governo do povo’ está na natureza
da economia capitalista. Nem é preciso dizer que o sistema de dominação de
c
lasse, as iniqüidades [
sic
] geradas pelo capitalismo e a relação entre riqueza
e acesso ao poder são incompatíveis com a democracia nesse sentido. A
democracia estadunidense, por exemplo, onde a política é bastante dependente
do dinheiro grosso, é obviamente algo muito diferente de
‘democracia’ no seu
sentido literal (Wood, 2006, p. 45).
A autora também destaca que foram os pais fundadores dos Estados Unidos da América
(EUA), com a colaboração de conceituados intelectuais, que redefiniram o significado da
Estado capitalista e democracia: disputa de projetos político
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palavra “democracia”
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A estratégia ideológica e constitucional utilizada para afiançar direitos
políticos sem garantir soberania popular foi transformar o
povo
em um conjunto amorfo de
cidadãos com direitos civis comuns e o
poder
na capacidade de voto individual, de escolha de
representantes para assumir cargos políticos (Wood, 2007). Na análise de Wood (2007), a
“
República”
, termo utilizado pelos americanos para se diferenciar da “
democracia”
como poder
popular, que posteriormente, por pressão, teve que se
r substituída pela terminologia
“
democracia representativa
”, afastou a gente comum do poder político e identificou mais ainda
a democracia com o governo dos ricos, reiterando concepções de que estes seriam os mais
qualificados para representar os trabalhadores.
A cidadania passiva divorcia, segundo Wood (2007), os sujeitos de suas condições
sociais, de seu pertencimento de classe, para lhes atribuir uma identidade de cidadãos
despolitizada, alienada, uma vez que o voto individual substitui qualquer poder coletivo
. A
democracia foi reduzida à universalização de direitos políticos, que ocorreu por meio de muita
luta, e a processos eleitorais, em que a renúncia de poder para delegá
-
lo a alguém vinha com
a certeza de desfrutar de direitos civis e certas liberdades bás
icas (Wood, 2007).
O fato de as relações de produção capitalista terem possibilitado a criação de outro tipo
de democracia não ausenta a existência de outras concepções, propostas e experiências
democráticas que enfatizem o poder popular e o confronto à dominação de classe.
A democracia
fruto do Estado capitalista, ou seja, de uma condensação
material e específica de uma correlação
de forças entre classes e frações de classes (Poulantzas, 1985),
é espaço de disputas de projetos
político
-
ideológicos que lhe atribuem significad
os e sentidos diferentes no processo de
reconstrução cotidiana da dominação, de busca pela hegemonia.
Enquanto as classes dominantes buscam consenso ativo da sociedade civil em sua
heterogeneidade para a representação ou a delegação da tomada de decisões, a democracia
participativa, como alguns denominam, é proposta contra
-
hegemônica que visa trazer o povo
para o centro dos espaços de discussão e de disputa do poder, no sentido de constituição e
valorização de sujeitos e decisões coletivas. Campos (2012, p. 252) apresenta algumas reflexões
sobre democracia participativa e representativa que se coadunam com
essas análises:
A democracia participativa funda
-
se em critérios e valores ideopolíticos
distintos da democracia representativa. Nessa modalidade de representação
política, o indivíduo atomizado constitui
-
se no seu fundamento e objetivo. O
cidadão é dotado de um conjunto
de direitos civis, políticos e sociais. Em tese,
é dotado de autoridade para realizar escolhas e eleger governantes. Todavia,
na prática, o experimento democrático representativo estimula e cultiva o
afastamento do cidadão comum das arenas que tratam do ne
gócio público [...].
A democracia participativa, ao contrário, valoriza, apoia
-
se e nutre
-
se nos
atores coletivos, ou seja, nos cidadãos organizados. Nessa perspectiva de
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democracia, o povo pode se constituir efetivamente em fonte de poder, em
autoridade, nos termos trabalhados por Arendt (1983), para quem a autoridade
originada das bases não significa a ficção de um povo absoluto, pois se trata
da articulação desses corpos
constituídos em convenções e assembleias. Nesse
caso, o povo significa um conjunto de cidadãos organizados segundo leis
reconhecidas por todos.
No âmbito da teoria democrática, Pateman (1992) identificou duas correntes antagônicas
a direcionar a relação da sociedade com o Estado e seus governos, que se vinculam geralmente,
dependendo dos autores de referência, às noções de democracia representativ
a e democracia
participativa, são elas: a teoria contemporânea da democracia e a teoria da democracia
participativa. Sendo a mais disseminada na produção teórica e influente nas experiências
republicanas, tornando
-
se hegemônica no primeiro semestre do sécu
lo XX, a teoria
contemporânea da democracia tem em Joseph Schumpeter, economista e cientista político
austríaco, a sua maior referência intelectual, por sua crítica à
teoria clássica
4
e consequentemente
pela construção de uma nova concepção da democracia como método político fundamentado na
competição pela liderança nas eleições.
Além dele, a autora analisa as produções de Bernard Berelson, Robert Dahl, Giovanni
Sartori e Harry Eckstein para traçar linhas gerais dessa teoria de legitimação dos governos
representativos, dentre elas destacam
-
se: o caráter empírico ou descritivo, com
foco no
funcionamento do sistema político; a democracia compreendida como método político ou
arranjos institucionais nacionais; a competição entre os líderes, membros da elite, pelos votos da
população é o elemento democrático por excelência; as eleições s
ão a forma privilegiada de
controle das ações dos representantes, pela possibilidade de não recondução de seus mandatos; a
igualdade política é sinônimo de sufrágio universal e acesso aos canais que interferem nas
decisões dos líderes; e a participação é o
direito de escolher aqueles que integrarão a esfera
política e terão o poder para tomar decisões, nesse sentido sua função é proteger as pessoas contra
as decisões autoritárias dos representantes e os interesses individuais. Com uma visão tão
minimalista
e procedimental da democracia, da igualdade, da participação e de outros vocábulos
que contribuem para a manutenção do
status quo
e da hegemonia das classes dominantes, não é
difícil entender sua compatibilidade com o projeto político
-
ideológico neoliberal.
A corrente
decisionística
de deliberação, elucidada por Avritzer (2000) na teoria
democrática, também defende elementos da democracia representativa, ao significar a
deliberação como momento em que se tomam as decisões, articulando
-
se ao projeto político
-
4
Pateman (1992) afirma que o autor e seus sucessores constroem um mito em torno da teoria clássica da
democracia, pois a maioria deles não expõe os autores de referência de suas críticas, além de negar seu caráter
normativo.
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ideológico supramencionado. Conforme o autor, teóricos do elitismo democrático
–
que se
inicia com Max Weber, é aprimorado por Joseph Schumpeter e tem Anthony Downs, Giovanni
Sartori e Norberto Bobbio como representantes contemporâneos
–
justificam uma ce
rta
homogeneidade cultural, a racionalidade administrativa e o processo eleitoral como aspectos
que assegurariam o funcionamento efetivo das democracias modernas, já que não é possível
resolver cientificamente os conflitos resultantes das diferenças cultur
ais. Questiona
-
se, no
entanto, efetividade para quem, para qual classe social ou para que tipo de sociabilidade?
Na teoria da democracia participativa, Pateman (1992) recorre às obras de Jean
-
Jacques
Rousseau e de John Stuart Mill, intelectuais
clássicos
, e de George Cole, teórico político do
socialismo de guildas do século passado. Apesar dos paradoxos que atravessam a produção de
John Mill, especialmente nas propostas práticas às democracias de massa, por não romper com a
visão utilitarista da participa
ção e reforçar a representação política através de membros
instruídos
com formação acadêmica da elite, Pateman (199
2, p. 51) o inclui nessa teoria pela ênfase na
função educativa da participação no governo local e nos espaços de trabalho, o que poderia ser
ampliado a “[...] todas as estruturas de autoridade ou sistemas políticos das ‘esferas inferiores’”.
O papel educativo no desenvolvimento de qualidades e atitudes psicológicas e
democráticas é, portanto, a principal função da participação numa teoria que reconhece a
inter
-
relação
entre sujeitos e instituições (Pateman, 1992). A
autossustentação do sistema está
no próprio processo participativo, visto que o seu contínuo exercício é a garantia de maior
aprendizado (Pateman, 1992). A participação também pode secundariamente ter um efeito
integrativo e de aceitação das decisões colet
ivas (Pateman, 1992), por isso faz
-
se necessária a
democratização tanto do sistema político como de todos os espaços onde a participação possa
se realizar, incluindo o local de trabalho; dentre eles, a autora destaca a indústria. A igualdade
econômica e a
política tornam
-
se, assim, pressupostos para que as pessoas tenham
independência e segurança para participar com poder de determinação das decisões (Pateman,
1992). Democracia, política e igualdade ganham sentidos ampliados no contexto de uma
sociedade par
ticipativa com máxima democratização das estruturas de autoridade e participação
direta dos indivíduos (Pateman, 1992).
Diferentemente de alguns autores que propõem associar democracia representativa à
participação indireta ou delegação de poder e democracia participativa à participação direta,
Miguel (2017) afirma, a partir das análises de Carole Pateman, que a possibilida
de de os sujeitos
participarem da autogestão das empresas, o que a autora conceitua como democracia industrial,
não inviabiliza a escolha de representantes articulados aos interesses e decisões da base. Na
verdade, a concepção de democracia participativa e
stá mais articulada à ampliação da
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autonomia na vida cotidiana, à educação política, às relações horizontalizadas, à maior
comunicação entre representantes e representados e a um processo contínuo de
acompanhamento e fiscalização coletiva das ações econômicas, políticas e sociais do que à
a
usência de representação política. A função educativa da participação dos sujeitos no cotidiano
de trabalho e outros espaços garantiria a qualificação da representação política de qualquer
pessoa nas estruturas horizontais e verticais do sistema democrátic
o (Miguel, 2017), o que
diferencia sobremaneira a teoria da democracia participativa da teoria contemporânea e vincula
aquela ao projeto político
-
ideológico democrático participativo.
Outra corrente que influenciou as experiências democráticas participativas, a partir da
década de 1970, quando a vertente
decisionística
entrou em crise, foi a argumentativa de
deliberação (Avritzer, 2000). John Rawls
5
e Jürgen Habermas foram, segundo Avritzer (2000),
fundamentais na recuperação de uma dimensão de debate público que minou o consenso
antiargumentativo
. Apesar das diferenças teóricas e conceituais, das limitações dos dois autores
em relação aos locais em que a deliberação argumentativa ocorreria na sociedade democrática
e da existência de arranjos deliberativos no nível público, respectivamente, ambos a
dmitem a
pluralidade de pensamentos e opiniões que devem ser expressos na busca da construção de
consensos, dando ênfase ao momento da discussão e da argumentação, opondo
-
se, em alguma
medida, à decisão baseada na maioria:
[...] Nesse sentido, tanto a preocupação rawlsiana quanto a preocupação
habermasiana parece estar contemplada, na medida em que se substitui a
percepção da falta da legitimidade do processo de agregação de maiorias por
um formato institucional no qual maio
rias e minorias, ou interesses
simplesmente distintos, podem argumentar sobre suas posições, algo que a
teoria democrática convencional julgava desnecessário (Avritzer, 2000, p. 43).
Joshua Cohen e James Bohman partem das contribuições
rawsianas
e
habermasianas
no sentido de equacionar suas insuficiências em relação a um espaço de concretização da
deliberação como argumentação (Avritzer, 2000). O primeiro dá caráter institucional à
deliberação, alertando para a possibilidade de decisões legítimas, mesmo sem a co
ncordância
de ideias entre todos. Já “[...] Bohman faz uma tentativa de integrar elementos dialógicos com
uma concepção de razão pública e, ao mesmo tempo, de integrar os público
s informais com
algum elemento capaz de institucionalizar a deliberação pública” (Avritzer, 2000, p. 42).
5
Avritzer (2000, p. 32) considera Rawls um autor de transição entre os dois sentidos atribuídos à deliberação, “[...]
na medida em que, em algumas das suas obras, especialmente em sua
Uma teoria da justiça
, ele opera com um
consenso decisionístico (ainda que não sem algumas contradições) e, em outras, ele supõe que as diferenças
culturais são parte de uma condição de pluralismo que supõe a argumentação e a deliberação”.
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Atribuem, portanto, uma dimensão institucional pública à democracia deliberativa (Avritzer,
2000).
Nessa perspectiva, Avritzer (2000) afirma serem os fóruns de articulação entre Estado
e sociedade o lugar da democracia deliberativa e exemplifica os conselhos e o orçamento
participativo na realidade brasileira por eles expressarem três características es
senciais da
argumentação deliberativa, são elas: constituição de locais de decisão pelo Estado na direção
de uma participação pública ampliada;
publicização
e/ou socialização de informações
relevantes para a tomada de decisões; e possibilidade de múltiplas
experiências institucionais
(Avritzer, 2000), o que aproxima essa corrente de algumas concepções defendidas pelo projeto
democrático participativo.
Para Pateman (1992), as teorias que ela intitula de
pluralismo social
têm notórias
similitudes com a teoria da democracia participativa, no entanto elas se ausentam da discussão
das estruturas de autoridade. Miguel (2018) complementa esse raciocínio ressaltando que,
apesar da importância dada aos sujeitos, aos pontos de vis
ta diferentes e à capacidade de discutir
e argumentar, as correntes
liberal
-
pluralistas
, proeminentes no pós
-
guerra, percebem o conflito
sob a óptica da competição, uma vez que os indivíd
uos estariam em busca de seus interesses, e
esse movimento poderia prejudicar outras pessoas, não havendo luta de classe. A tentativa de
objeção a essas vertentes feita por John Rawls, Jürgen Habermas e Axel Honneth acabou,
segundo Miguel (2018, p. 16), po
r redefinir a política na perspectiva do consenso, “[...] espaço
em que a cooperação social pode ser alcançada por meio de acordo intersubjetivo entre os
participantes, de forma livre e igualitária. Se porventura existe dominação, ela não se expressa
nessa
arena política idealizada”. Por isso, o autor é tão questionador dessas teorizações e das
experiências que subsidiaram.
Em sua severa crítica à participação materializada no orçamento participativo, nos
conselhos e nas conferências no Brasil, Miguel (2017) afirma que a ênfase na corrente
deliberacionista como principal alternativa às democracias liberais possibilitou a abso
rção e a
reinterpretação tanto da doutrina liberal como da concepção de democracia participativa, numa
confluência, que se identifica perversa na perspectiva de Dagnino (2004)
6
, entre a participação
e a deliberação, pois a primeira se torna apenas um requisito para a concretização das trocas
deliberativas.
6
A palavra “perversa” é utilizada pela autora para expressar “[...] um fenômeno cujas consequências contrariam
sua aparência, cujos efeitos não são imediatamente evidentes e se revelam distintos do que se poderia esperar”
(Dagnino, 2004, p. 142).
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