R E V I S TA Revista de Serviço Social Programa de Pós - Graduação em Serviço Social Curso de Graduação em Serviço Social Universidade Federal de Juiz de Fora ISSN 1980 - 8518 DOSSIÊ : Estado, Democracia e Serviço Social VO L UME 2 3 NÚMERO 2 JULHO - DEZEMBRO ANO 202 3
E XPEDIENTE FOCO E ESCOPO A r evista Libertas , criada em 2001, é uma publicação semestral da Faculdade de Serviço Social e do Programa de Pós - Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora. Seu objetivo é estimular o interc â mbio da produção intelectual, de conteúdo crítico, produzida a partir de pesquisas empíricas e teóricas, no âmbito brasileiro e internacional, sobre temas atuais e relevantes da área do Serviço Social e das Ciências Sociais e Humanas, com as quais mantem i nterlocução. EDITORES Drª. Mônica Aparecida Grossi, Faculdade de Serviço Social, Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. Editora - chefe. Drª. Isaura Gomes de Carvalho Aquino, Faculdade de Serviço Social, Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. Editora - a djunta . Drª. Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras, Faculdade de Serviço Social, Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. Editora - adjunta. Esp. Luciano Cardoso de Souza, Faculdade de Serviço Social, Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. Editor - e xecutivo . CONSELHO EDITORIAL Alcina Maria de Castro Martins, Instituto Superior Miguel Torga, Portugal ; Carina Berta Moljo, Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil ; Caterine Reginensi, Ecole Nacionale Superieure Agronomique de Toulouse, França ; Elizete Menegat, Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil ; Íris Maria de Oliveira, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil ; José Paulo Net t o, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil ; Margarita Rozas Pagaza, Universidad Nacional de La Plata, Argentina ; Maria Aparecida Tardim Cassab, Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil ; Maria Beatriz Abramides, Pontifíc ia , U niversidade Católica de São Paulo, Brasil ; Maria Patricia Fernandes Kelly, Princeton University, EUA ; Maria Rosangela Batistoni, Universidade Federal de São Paulo, Brasil ; Marilda Vilella Iamamoto, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Brasil ; Nicolas Bautes, Universite de Caen Normandie, França ; Olga Mercedes Paez, Universidad Nacional de Córdoba, Argentina ; Roberto Orlando Zampani, Universidad Nacional de Rosário, Argentina ; Rosangela Nair Carvalho Barbosa, Universidade Estadual do Rio de Janeiro ; Brasil ; Silvia Fernandes Soto, Universidad Nacional de Tandil, Argentina ; Xabier Arrizabalo Montoro, Universidad Complutense de Madri, Espanha .
AVALIADORES Alejandra Pastorini Corleto [UFRJ, Rio de Janeiro, RJ/Brasil]; Alessandra Ribeiro de Souza [UFOP, Ouro Preto, MG/Brasil]; Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Alexandre Aranha Arbia [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Ana Livia Souza Coimbra [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Ana Luiza Avelar [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Andrea Kelmer de Barros [UFVJM, Montes Claros, MG/Brasil]; Antoniana Dias Defilippo Bigogno [UFF, Rio das Ostras, RJ /Brasil]; Bruno Bruziguessi Bueno [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Caio Cezar Cunha [UEL, Londrina, PR/Brasil]; Carlos Eduardo Montaño Barreto [UFRJ, Rio de Janeiro, RJ/Brasil]; Carlos Henrique Lopes Rodrigues [UFVJM, Montes Claros, MG/Brasil]; Cézar Henrique Miranda Coelho Maranhão [UFRJ, Rio de Janeir o, RJ/Brasil]; Claudiana Tavares da Silva Sgorlon [UEM, Maringá, PR/Brasil]; Cristiane Silva Tomaz [UFOP, Ouro Preto, MG/Brasil]; Cristina Simões Bezerra [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Daniela Leonel de Paula Mendes [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Danie le Batista Brandt [UERJ, Rio de Janeiro/Brasil]; Dayana Christina Ramos de Souza Juliano [UFRJ, Rio de Janeiro, RJ/Brasil]; Denise Maria Fank de Almeida [UEL, Londrina, PR/Brasil]; Douglas Marques [UEM, Maringá, PR/Brasil]; Douglas Ribeiro Barboza [UFF, Ni terói, RJ/Brasil]; Ednéia Alves de Oliveira [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Elaene Alves [UnB, Brasília, DF/Brasil]; Elizete Menegat [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Estela Saleh da Cunha [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Fábio do Nascimento Simas [UFF, Ni terói, RJ/Brasil]; Fábio Fraga dos Santos [UFVJM, Montes Claros, MG/Brasil]; Flávio José Souza Silva [UFRJ, Rio de Janeiro, RJ/Brasil]; Francisca Rodrigues de Oliveira Pini [UNIFESP, São Paulo, SP/Brasil]; Gabriela Abrahão Masson [UFTM, Uberaba, MG/Brasil] ; Glênia Rouse Costa [UFPI, Teresina, PI/Brasil]; Graziela Scheffer [UERJ, Rio de Janeiro/Brasil]; Gustavo Fagundes [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Inez Rocha Zacarias [UFRGS, Porto Alegre, RS/Brasil]; Ivy Ana Carvalho [UERJ, Rio de Janeiro/Brasil]; Jamer son Murillo Anunciação de Souza [UFPE, Recife, PE/Brasil]; Janaina Bilate Martins [UNIRIO, Rio de Janeiro, RJ/Brasil]; Jeovana Nunes Ribeiro [UFMA, São Luís, MA/Brasil]; Jhony Zigato [UFVJM, Montes Claros, MG/Brasil]; Joana Valente Santana [UFPA, Belém, PA /Brasil]; João Paulo da Silva Valdo [UFRJ, Rio de Janeiro, RJ/Brasil]; Joseane Barbosa de Lima [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Juan Tapiro [UERJ, Rio de Janeiro/Brasil]; Katia Iris Marro [UFF, Rio das Ostras, RJ/Brasil]; Kelly Rodrigues Melatti [PUC/SP, S ão Paulo, SP/Brasil]; Laryssa Gabriella Gonçalves dos Santos [UFRJ, Rio de Janeiro, RJ/Brasil]; Letícia Batista Silva [UFF, Niterói, RJ/Brasil]; Luciana Gonçalves Pereira de Paula [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Mara Kátia de Oliveira Nascimento [UFRN, Na tal, RN/Brasil]; Márcia Pereira Cunha [FLACSO, São Paulo, SP/Brasil]; Márcio Achtschin Santos [UFVJM, Montes Claros, MG/Brasil]; Marco José de Oliveira Duarte [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Maria Fernanda Escurra [UERJ, Rio de Janeiro/Brasil]; Maria Hele na Elpidio [UFES, Vitória, ES/Brasil]; Maria Lucia Duriguetto [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Mariana Costa Carvalho [UFV, Viçosa, MG/Brasil]; Marina Maciel Abreu [UFMA, São Luís, MA/Brasil]; Marina Monteiro de Castro e Castro [UFJF, Juiz de Fora, MG/Bras il]; Monique de Carvalho Cruz [UFRJ, Rio de Janeiro, RJ/Brasil]; Naires Raimunda Gomes Farias [UFMA, São Luís, MA/Brasil]; Nanci Lagioto Hespanhol Simões [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Nanci Soares [UNESP, Franca, SP/Brasil]; Nicole Alves Espada Pontes [ UFPE, Recife, PE/Brasil]; Patrícia da Silva Coutinho [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Patrícia Soraya Mustafa [UNESP, Franca, SP/Brasil]; Paulo Lourenço Domingues Junior [UFRRJ, Três Rios, RJ/Brasil]; Raquel Cristina Lucas Mota [UFVJM, Montes Claros, MG/Br asil]; Regina Celia Tamaso Mioto [UFSC, Florianópolis, SC/Brasil]; Ricardo Silvestre da Silva [UFVJM, Montes Claros, MG/Brasil]; Roberto Coelho do Carmo [UFOP, Ouro Preto, MG/Brasil]; Rodrigo Alvarenga [PUC/PR, Curitiba, PR/Brasil]; Rodrigo de Souza Filho [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Rodrigo dos Santos Nunes [PUC/RS, Porto Alegre, RS/Brasil]; Rodrigo Silva Lima [UFF, Niterói, RJ/Brasil]; Rosangela Gonzaga [UFF, Niterói, RJ/Brasil]; Sabrina Pereira Paiva [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Silvina Veronica Galizia [UFRJ, Rio de Janeiro, RJ/Brasil]; Tatiana Reidel [PUC/RS, Porto Alegre, RS/Brasil]; Thaís Luiz Vargas [UFRJ, Rio de Janeiro, RJ/Brasil]; Thaisa Teixeira Closs [PUC/RS, Porto Alegre, RS/Brasil]; Thaíse Seixas Peixoto Carvalho [Centro de Ensino Supe rior de Conselheiro Lafaiete, MG/Brasil]; Vanessa Cardoso Cezário [USP, São Paulo, SP/Brasil]; Vanessa Follmann Jurgenfeld [UFVJM, Montes Claros, MG/Brasil]; Victor Martins [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Victor Miranda Elias [IBC, Rio de Janeiro, RJ/Bras il]; Vilmar da Silva [UTFPR, Curitiba, PR/Brasil]; Vitor Bartoletti Sartori [UFMG, Belo Horizonte, MG/Brasil]; Viviane Sousa Pereira [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil] .
Universidade Federal de Juiz de Fora Faculdade de Serviço Social Programa de Pós - graduação em Serviço Social Editores: Mônica Aparecida Grossi (editora - chefe) ; Isaura Gomes de Carvalho Aquino ( e ditora - adjunta) ; Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras (editora - adjunta) ; Luciano Cardoso de Souza ( e ditor - executivo) . Editor de Leiaute : Luciano Cardoso de Souza . IMAGE NS DA CAPA E CONTRACAPA : SOUZA, Luciano Cardoso de . Lut@ , 2023 . Mão/modelo: Lucas da Silva Simeão . ARTE CAPA E CONTRACAPA : Luciano Cardoso de Souza . Juiz de Fora/MG, dezembro , 20 2 3 . FICHA CATALOGRÁFICA Publicação indexada em: Revista Libertas / Universidade Federal de Juiz de Fora, Programa de Pós - graduação em Serviço Social, Curso de graduação em Serviço Social. n. 1 ( abril, 2001 ) . Juiz de Fora , ano 202 3 v. 2 3 nr. 2 . Se mestral Resumo em português e inglês V inculada ao Programa de Pós - graduação em Serviço Social e ao Curso de Graduação em Serviço Social. Versão online ISSN 198 0 - 8518 1. Serviço Social. 2. Periódico. I. Universidade Federal de Juiz de Fora, Programa de Pós - Graduação em Serviço Social. II. Universidade Federal de Juiz de Fora , Curso d e Graduação em Serviço Social.
Sumário Editorial IX Dossiê: Estado, Democracia e Serviço Social Estado capitalista e democracia: disputa de projetos político - ideológicos Paula Raquel da Silva Jales Solange Maria Teixeira 286 Estado, capitalismo dependente e racismo no Brasil: considerações teórico - metodológicas Ana Paula Ornellas Mauriel 307 Estado, burocracia e poder: apontamentos sobre a teoria das elites e do poder Patricia da Silva Coutinho 329 Democracia com desigualdades: sinais da vulnerabilidade social em ambientes politicamente ideologizados Jairo de Carvalho Guimarães 35 4 O problema da emancipação humana na obra de Marx de 1843 - 1844: atualidade e desafios João Paulo Galhardo Brun Luiza Miranda Furtuoso 375 A universalização da democracia como tarefa da revolução proletária: as lições de Marx e Engels Douglas Ribeiro Barboza 389 Associativismo migrante nas encruzilhadas da gestão de políticas sociais João Ricardo Lemes Líria Maria Bettiol Lanza 417 Educação Popular no Brasil: uma sistematização de processos e experiências desenvolvidas nos anos 1940 a 1964 Juliano Zancanelo Rezende Maria Lúcia Duriguetto 436
Condições para a emergência do neofascismo no Brasil: da crise política ao governo Bolsonaro Liana França Dourado Barradas Gabriel Magalhães Beltrão 453 Concepção de estado em Marx, degradação dos direitos do trabalho e o governo Bolsonaro Laryssa Gabriella Gonçalves dos Santos 477 Políticas de emprego e renda do governo Bolsonaro: mãe hostil dos filhos do Brasil Ednéia Alves de Oliveira Monalisa Aparecida Santos 499 Artigos Fluxo Contínuo Conflitos socioambientais envolvendo água e mineração no Brasil: sujeitos políticos e suas lutas Maria das Graças e Silva Nailsa Maria Souza Araújo Pedro Gabriel Silva 521 Ruptura metabólica no capitalismo: a urgência do proletariado ambiental no enfrentamento à crise ecológica Nicole Alves Espada Pontes 539 Serviço S ocial e trabalho: mapeando o debate no âmbito do CBAS Hiago Trindade Ana Beatriz Bandeira dos Santos 554 Depoimento de crianças e implicações da Lei 13.431/2017 no trabalho de assistentes sociais Rita de Cássia Pereira Farias Mariana Costa Carvalho 577 Entrevista Annamaria Campanini Entrevistadora: Carina Berta Moljo 597 Resenha JESUS, Júlio César Lopes de. O Serviço Social na previdência social brasileira : as ofensivas do capital e as resistências coletivas. São Paulo: Editora Dialética, 2023. A luta dos assistentes sociais brasileiros pela democracia: resistências da classe ao capitalismo na previdência social Arnaldo Fernandes Pinto Junior 6 04
DOI 10.34019/1980 - 8518.202 3 .v2 3 . 43067 IX Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n. 2, p. IX - XIII, jul./dez. 2023. ISSN 1980 - 8518 Editorial Com a publicação desta edição, a Libertas apresenta o resultado do trabalho realizado pela comissão editorial atual. Com a permanência das professoras Isaura Aquino e Mônica Grossi, e do Técnico em Assuntos Educacionais Luciano Cardoso de Souza, a comissão posteriormente, chega ao seu formato atual com a vinda da professora Alexandra Eiras. Expressamos nosso reconhecimento ao trabalho realizado por Luciano Cardoso de Souza, sua postura sensível aos temas da r evista e por nos ter brindando com as fotos da capa e da contracapa, nas quais tivemos como "modelo" o nosso muito prezado técnico - administrativo em educação Lucas da Silva Simeão , figura histórica na Faculdade de Serviço Social e na militância sindical da UFJF. É com imensa alegria e satisfação que apresentamos mais um número da Libertas. Esta edição conta com o dossiê temático, a seção de temas livres, seguidos das seções entrevista e traduções, sendo finalizada com uma resenha de livro. O dossiê Estado, Democracia e Serviço Social reúne artigos que refletem sobre o contexto atual de profunda crise do capital, a relação entre Estado e Sociedade Civil, expressando os desafios para a sustentação da democracia em face da luta entre projetos sociais antagônicos e as contribuições da pro fissão de Serviço Social nos processos de resistência. Conta com doze artigos que discutem questões relacionadas ao Estado capitalista, às relações de poder, ao racismo, às desigualdades, à democracia, às disputas de projetos antagônicos, à questão da eman cipação humana, do associativismo e da educação popular. Conta ainda com análises relacionadas às condições de emergência do neofascismo no Brasil e, especificamente, sobre o governo Bolsonaro, ressaltando questões como a degradação dos direitos do trabalho e a crítica das políticas de emprego e renda. O artigo que abre o dossiê, "Estado capitalista e democracia: disputa de projetos políticos - ideológicos", de Paula Raquel da Silva Jales (UECE) e de Solange Maria Teixeira (UFPI) discute, a partir da crítica à democracia burguesa e dos processos de partici pação e de resistência, as contradições e sentidos da democracia, apontando seus usos restritivos e práticas de desmantelamento da participação deliberativa de um governo de direita, como o governo Bolsonaro.
Editorial Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n. 2, p. IX - XIII, jul./dez. 2023. ISSN 1980 - 8518 X E d i t o r i a l Já o segundo texto, "Estado, capitalismo dependente e racismo no Brasil: considerações teórico - metodológicas", de Ana Paula Ornellas Mauriel (UFF), nos traz os temas do Estado e da dependência, tomando a categoria capitalismo dependente e a Questão Social. Parte do debate marxista do Estado, o caráter dependente dos Estados Latino - americanos, destacando as principais determinações econômico - sociais da realidade brasileira, na constituição do Estado e das formas de dominação, afirmando a centralidade do racismo na ação do Estado para a manutenção da dependência. O terceiro artigo, "Estado, Burocracia e Poder”, de Patrícia da Silva Coutinho (UFJF), completa o primeiro bloco de trabalhos dedicados à análise do Estado Capitalista destacando a obra de Charles Wright Mills. Em seu texto, a autora busca pôr em relev o os aportes de Mills sobre o poder, para a compreensão da organização social e da ideologia norte - americana. Os três artigos seguintes tratam da questão da democracia e das desigualdades, o problema da emancipação humana e da universalização da democracia como tarefa da revolução proletária. O artigo de Jairo de Carvalho Guimarães (UFPI) "Democracia com desigualdades: sinais de vulnerabilidade social em ambientes politicamente ideologizados" discute os sinais de vulnerabilidade social na realidade brasileira, principalmente no período da pande mia de COVID - 19, destacando as perdas de considerável parcela da população em relação à proteção social, diante de estruturas ideológicas implementadas por agentes políticos que detém o poder decisório. O texto "O problema da emancipação humana na obra de Marx de 1843 - 1844: atualidade e desafios", de João Paulo Galhardo Brun (UFJF) e de Luiza Miranda Furtuoso (UFJF) traz contribuições fundadas, especialmente, em três obras de Marx escritas entre 1843 e 1844 sobre o papel da emancipação humana como objetivo final da revolução proletária. Destaca - se a importância deste estudo na compreensão de questões atuais, como a luta pela democracia e a emancipação política, nas transformações necessárias em nossa sociedade, buscando contribuir na compreensão dos limites das lutas sociais contemporâneas. "A universalização da democracia como tarefa da revolução proletária: as lições de Marx e Engels", de autoria de Douglas Ribeiro Barbosa (UFF) busca explicitar que a ampliação e o aprofundamento da democracia nos âmbitos econômico e social se constituem co mo um projeto exclusivamente proletário. O autor afirma que o pensamento revolucionário de Marx e Engels se constitui de forma radicalmente democrática, baseados na crítica e na superação das restrições e limitações do poder do Estado a partir do pensament o liberal.
Editorial Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n. 2, p. IX - XIII, jul./dez. 2023. ISSN 1980 - 8518 XI E d i t o r i a l Na sequência, o artigo “Associativismo migrante nas encruzilhadas da gestão das políticas sociais”, de autoria de João Ricardo Lemes e de Líria Maria Bettiol Lanza, ambos da UEL, “problematiza a relação entre o associativismo migrante e as tendências da g estão das políticas sociais, no contexto de reorganização do Estado sob os ditames do neoliberalismo”. Fundamentados em pesquisa bibliográfica e de campo junto a Associações de migrantes do Paraná, analisam as contradições e os limites dessas organizações. O artigo “Educação Popular no Brasil: uma sistematização de processos e experiências desenvolvidas nos anos 1940 a 1964”, dos autores Juliano Zancanelo Rezende e Maria Lúcia Duriguetto, ambos da UFJF, analisa as práticas e experiências de educação popular desenvolvidas no Brasil pelos Comitês Populares Democráticos (1945 - 1947), Universidade do Povo (1946 - 1957) e pelos Movimentos de Educação e Cultura Popular (1958 - 1964). Para os autores, a criação de práticas de educação e cultura popular e sua conversão pa ra perspectivas pedagógicas vinculadas aos anseios das classes subalternas, nesta conjuntura histórica, potencializam a construção da mobilização, organização e conscientização em torno da luta e defesa de direitos e de um processo de democratização do paí s. Os três últimos artigos do dossiê têm em comum a análise crítica do Governo Bolsonaro. O artigo de Liana França Dourado Barradas (UFPE) e de Gabriel Magalhães Beltrão (UFAL), “Condições para a emergência do neofascismo no Brasil: da crise política ao gover no Bolsonaro” discute o aprofundamento do neoliberalismo num contexto de crise do capital e o avanço da extrema direita em muitos países, com traços diversos de fascistização. Evidenciam uma afinidade eletiva entre o neoliberalismo e o neofascismo. Particu larizam no Brasil a crise política iniciada em 2013 e radicalizada em 2015, com a crise econômica que deflagrou o processo de fascistização. Além disso, analisam questões políticas que contribuiram para a eleição de Jair Bolsonaro. O artigo "Concepção de estado em Marx, degradação dos direitos do trabalho e o governo Bolsonaro”, de Laryssa Gabriella Gonçalves dos Santos (GEPEM/SE), busca refletir sobre a concepção de Estado em Marx e sobre a relação entre Estado e direitos trabalhis tas. Destaca no neoliberalismo e na reestruturação produtiva, a ampliação o processo de precarização do trabalho que, no Brasil, se expressa através de algumas normativas elaboradas no governo Bolsonaro para degradar ainda mais os direitos do trabalho. Encerrando o dossiê, o artigo “Políticas de emprego e renda do governo Bolsonaro: mãe hostil dos filhos do Brasil”, de Ednéia Alves de Oliveira e Monalisa Aparecida Santos, ambas da UFJF, apresenta as principais medidas adotadas pelo governo Bolsonaro para geração de emprego e renda, para minimizar as consequências da pandemia de covid - 19 e do
Editorial Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n. 2, p. IX - XIII, jul./dez. 2023. ISSN 1980 - 8518 XII E d i t o r i a l aprofundamento da crise econômica pós retomada das atividades econômicas. Consideram a ineficácia das políticas implementadas durante e após a pandemia, tendo em conta o aumento da informalidade, do desemprego e da pobreza no país, refletindo a histórica p olítica residual, focalizada e pobre no trato da questão social. Na seção de fluxo contínuo, com temas livres, contamos com 4 artigos. O primeiro, “Conflitos socioambientais envolvendo água e mineração no Brasil: sujeitos políticos e suas lutas” de Maria das Graças e Silva (UFPE), Nailsa Maria Souza Araújo (UFSE) e Ped ro Gabriel Silva (Universidade de Trás - os - Montes e Alto Douro - Portugal) se dedica a identificar os principais conflitos e analisar as inter - relações entre mineração e água como partes do modelo de exploração de recursos naturais. Estes conflitos socioamb ientais destacam a posição histórica do país como produtor/exportador de commodities e afirmam uma realidade punjantemente conflitiva no país, com múltiplos sujeitos envolvidos. Na mesma linha de estudos ambientais, temos o artigo “Ruptura metabólica no capitalismo: a urgência do proletariado ambiental no enfrentamento à crise ecológica”, de Nicole Alves E. Pontes (UFPE), que busca evidenciar a destrutividade ambiental pelo capita lismo, partindo de uma pesquisa teórica e documental, que recupera contribuições de Marx, sobretudo no aprofundamento da categoria de ruptura metabólica. Embasada em dados de documentos e relatórios, busca situar esse debate na concreticidade, ao relaciona r e evidenciar problemáticas ambientais contemporâneas e as contribuições do que Foster (2020) denominou de “proletariado ambiental”. O terceiro artigo desta seção, intitulado “Serviço social e trabalho: mapeando o debate no âmbito do CBAS”, de Hiago Trindade (UFCG) e de Ana Beatriz Bandeira dos Santos (UFPE), se baseia em uma pesquisa de tipo quali - quantitativa, identificando e analisan do 113 artigos, publicizados no eixo “Trabalho, Questão Social e Serviço Social” do Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, realizado em 2019. Identifica os principais temas e discussões sobre o mundo do trabalho e sua relação com o Serviço Social, tr azendo apontamentos e desafios à continuidade desse debate na área. Fechando esta seção, o artigo “Depoimento de crianças e implicações da Lei 13.431/2017 no trabalho de assistentes sociais” de Rita de Cássia Pereira Farias e Mariana Costa Carvalho, professoras da UFV, traz um debate sobre depoimento especial de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de situações de violência. A partir do relato de assistentes sociais que atuam nos serviços de assistência social de um município de médio porte da zona da mata mineira, realiza uma crítica aos retrocessos que a Lei 13. 431/2017 imprime para o
Editorial Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n. 2, p. IX - XIII, jul./dez. 2023. ISSN 1980 - 8518 XIII E d i t o r i a l trabalho de assistentes sociais na escuta especializada de crianças e adolescentes. As próximas seções, que finalizam este número, comportam uma entrevista, uma tradução e uma resenha. A entrevista foi realizada pela professora Carina Berta Moljo com a professora Annamaria Campanini, atual presidente da Asociación Internacional de Escuelas de Trabajo Social - AIETS, abordando o histórico de constituição desta organização, suas relações com a Asociación Latinoamericana de Escuelas de Trabajo Social - ALAEITS, a situação do Serviço Social internacional e suas contribuições. Finalizamos a edição com a resenha do livro “O Serviço Social na previdência social brasileira: as ofensivas do capital e as resistências coletivas”, de autoria de Júlio César Lopes de Jesus, realizada por Arnaldo Fernandes Pinto Júnior (Faculdade Novos Horizontes) . Desejamos uma boa leitura. Mônica Aparecida Grossi Isaura Gomes de Carvalho Aquino Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras
DOI 10.34019/1980 - 8518.202 3 .v2 3 .41377 286 Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n. 2 , p. 286 - 306 , jul ./ dez . 2023. ISSN 1980 - 8518 Estado capitalista e democracia: disputa de projetos político - ideológicos Capitalist state and democracy: dispute over political - ideological projects Paula Raquel da Silva Jales * Solange Maria Teixeira ** Resumo: Ao partir do pressuposto de que a democracia burguesa é um conceito contraditório, servindo às práticas de manutenção do status quo, aos processos de dominação na sociedade capitalista, bem como às práticas de resistências, de participação e de poder de decisão nas dec isões governamentais, o objetivo deste artigo foi, a partir de uma revisão intencional de literatura sobre Estado capitalista e democracia, desvendar as contradições e sentidos da democracia e apontar seus usos restritivos e práticas de desmantelamento da participação deliberativa de um governo de extrema direita no Brasil. A pesquisa realizada foi do tipo teórica de base bibliográfica, com metodologia qualitativa com escolha intencional da literatura. Conclui - se que a democracia participativa foi afetada e desmantelada pelo governo de Jair Bolsonaro, ainda que dissesse defender a democracia. Palavras - chaves: Estado capitalista; Democracia; Projetos político - ideológicos; Participação; Deliberação. Abstract: Based on the assumption that bourgeois democracy is a contradictory concept, serving the practices of maintaining the status quo, processes of domination in capitalist society, as well as practices of resistance, participation and decision - making power in government decisions, the objective of this article was based on an intentional review of literature on the capitalist state and democracy, unveiling the contradictions and meanings of democracy and pointing out its restrictive uses and practices of dismantling the deliberative participation of an extreme right - wing government in Brazil. The research carried out was theoretical and bibliographically based, with qualitative methodology with an intentional choice of literature. It is concluded that participatory democracy was affected and dismantl ed by Jair Bolsonaro's government, even though he claimed to defend democracy. Keywords : Capitalist state; Democracy; Political - ideological projects; Participation; Deliberation. Recebido em: 07/06/2023 Aprovado em : 25/10/2023 * Assistente Social. Doutora em Políticas Públicas, Universidade Federal do Piauí (UFPI). Professora e pesquisadora do Curso de Graduação em Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Foi bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). ORCID: https://orcid.org/0000 - 0003 - 4357 - 8198 ** Assistente Social. Pós - Doutoramento em Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC - SP). Doutorado em Políticas Públicas, Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Professora e pesquisadora dos Cursos de Graduação em Serviço Social e d e Pós - Graduação em Políticas Públicas em nível de Doutorado e Mestrado da Universidade Federal do Piauí (UFPI). ORCID: http://orcid.org/0000 - 0002 - 8570 - 5311
Estado capitalista e democracia: disputa de projetos político - ideológicos Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n. 2 , p. 286 - 306 , jul ./ dez . 2023. ISSN 1980 - 8518 287 D o s s i ê Introdução Para se distanciar e se distinguir de regimes totalitários e autoritários, dentre eles o nazismo, o fascismo e a ditatura, bem como do socialismo e do comunismo, governos, de diferentes correntes político - ideológicas, têm a necessidade de afirmar em seus p rogramas e discursos oficiais que compartilham da ideia e defendem um Estado democrático. A questão é saber o direcionamento e o sentido atribuído à democracia, no âmbito dos projetos político - ideológicos em disputa no Estado capitalista. Em outras palavra s, a que espécie e/ou formato de democracia estão se referindo estes governos que se autointitulam democráticos . Ao partir do pressuposto da existência de projetos político - ideológicos que orientam a ação política dos sujeitos, através da articulação de concepções de mundo, de representações da vida em sociedade e de um conjunto de crenças, valores, princípios e inte resses (Dagnino, 2004; Dagnino; Olvera; Panfichi, 2006 ) que disputam a hegemonia no Estado contemporâneo, objetivou - se, neste artigo, a partir dos conceitos de Estado burguês e democracia, analisar seus usos históricos, seja para reproduzir a ordem com bas e em processos de dominação ancorados em um suposto consenso e consentimento dos dominados, seja para criar contra - hegemonias, que emergem favorecidas pelos processos democráticos burgueses e geram lutas, reivindicações, resistências e propostas alternativ as, como nas democracias deliberativas, e fazer uma análise das mudanças, via decretos, resoluções e outros, realizadas pelo governo de Jair Bolsonaro no período de 2019 a 2021, sobre as práticas democráticas institucionalizadas. O artigo é decorrente de pesquisa teórica do tipo bibliográfica, de escolha intencional das referências para atender ao objetivo da investigação. Para dar conta do objetivo proposto e expor os resultados da pesquisa, o artigo foi dividido em quatro seções: a primeira fundamenta em Poulantzas (1985) a concepção de Estado capitalista; já a segunda apresenta a noção de democracia que emerge no capitalismo, as tendências na Teoria democrática e algumas experiências brasileiras; a terceira discorre sobre as muda nças nas práticas democráticas no governo de Jair Bolsonaro; e a última apresenta algumas considerações sobre essas mudanças. Ressalta - se que, por serem assistentes sociais, as autoras reiteram, através da socialização desta pesquisa, o compromisso da profissão com o projeto ético - político do Serviço Social, que expressa no quarto princípio de seu Código de Ética a “[...] defesa do aprofundamento da democracia, enquanto socialização da participação política e da riqueza
Paula Raquel da Silva Jales ; Solange Maria Teixeira Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n. 2 , p. 286 - 306, jul ./ dez . 2023. ISSN 1980 - 8518 288 D o s s i ê socialmente produzida” (Brasil, 2012, p. 23). Nesse sentido, a diferenciação dos projetos político - ideológicos que disputam a democracia no Estado capitalista mostra uma entre as diversas contribuições do Serviço Social como área do conhecimento para pensa r criticamente a realidade brasileira e possibilitar a opção por concepções e estratégias que ampliem a democracia participativa. Por uma teoria do Estado capitalista: contribuições de Poulantzas Para Gramsci , a s superestrutura s do bloco histórico , ou seja, o complexo das relações ideológicas , est ão dividid as em duas esferas : a sociedade civil , constituída por um conjunto de instituições e organismos vulgarmente denominados de privados , que corresponde à função hegem ônica do grupo dominante sobre a sociedade; e a sociedade política ou Estado restrito , que é um prolongamento da sociedade civil , formada por membros desta, porém com função de coerção e manutenção do direcionamento econômico e ideológico do poder hegemônico ( Portelli , 1977 ) . Ambas (sociedade civil e sociedade política) formam o Estado ampliado 1 , que exerce a hegemonia, entendida como direção cultural (política ideológica) da classe dominante, articulando consenso e coerção ( Portelli , 1977 ). Nesse sentido, nenhuma classe se mantém no poder apenas com processos de violência e coerção, típicos de uma ditadura, mas igualmente com consenso ativo das classes sociais que constituem a sociedade civil ( Portelli , 1977 ) . Segundo Miguel (2018), a palavra “ ativo” , junto ao vocábulo “ consenso” , traz nova compreensão para o lugar assumido pelos sujeitos nas relações sociais, pois, em vez de se subjugarem apaticamente à ordem dominante, assimilam um conjunto de crenças e incentivos em suas práticas, reproduzindo constantemente as relações de domi nação; eles agora são ativos, pois envolvem consentimento. Por isso, uma das preocupa ções da classe dominante é sempre se apresentar como representante de interesses universais que abranjam a todos, ou pelo menos a maioria dos membros da sociedade. Nas palavras do autor, “[...] uma hegemonia nunca é ‘dada’: mesmo que permaneça por longo te mpo, ela precisa ser permanentemente mantida (contra adversários) e constantemente atualizada” (Miguel, 2018, p. 73). A revalorização do momento da política feita por Gramsci, por meio da teoria do Estado ampliado e da reflexão sobre necessidade de produção da hegemonia, possibilita fugir ao determinismo, uma vez que ela é percebida como espaço de expressão das contradiçõ es sociais e da busca de soluções transitórias (Miguel, 2018). Dessa forma, a categoria hegemonia elucida a 1 Para Gramsci, a sociedade civil e política e a relação orgânica que estabelecem entre si conformam o Estado ampliado (Portelli, 1977).
Estado capitalista e democracia: disputa de projetos político - ideológicos Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n. 2 , p. 286 - 306 , jul ./ dez . 2023. ISSN 1980 - 8518 289 D o s s i ê direção política e ideológica exercida pela classe dominante e a possibilidade de reforma intelectual e moral a ser construída pelas classes trabalhadoras denominada de contra - hegemonia. Apesar de Gramsci afirmar a relação orgânica entre estrutura (relações de produção) e superestrutura (complexo das relações políticas ideológicas), é Poulantzas (1985) que dá densidade a essa discussão, mostrando a existência de poderes de classe nas relaç ões de produção organicamente articuladas, bem como nas relações políticas e ideológicas que consolidam e legitimam a produção e a reprodução dessas relações sociais. Dessa forma, embora o Estado concentre e materialize o poder político, a sua atuação não fica restrita ao binômio repressão - reprodução de ideologia, na análise feita por Poulantzas (1985). A atuação primeira do Estado está na produção e reprodução das classes sociais, ou seja, na luta de classe. Nas palavras do autor: [...] No caso, poderes de classe que nos levam à relação fundamental da exploração: a propriedade econômica espelha notoriamente a capacidade (o poder) de destinar os meios de produção a determinadas utilizações e de, assim, dispor dos produtos obtidos da posse, da capacidade de ativar os meios de produção e de comandar o processo de trabalho. Estes poderes situam - se na rede de relações entre exploradores e explorados, nas oposições entre práticas de classes diferentes; em suma, na luta de classe, pois esses poderes inscrevem - se num sistema de relações de classes. Porque é precisamente considerando o processo econômico e as relações de produção como rede de poderes, que se pode compreender que as relações de produção, como poderes, estão ligadas constitutivamente às relações políticas e ideológicas que as consagram e que estão presentes nas relações econômicas (Poulantzas , 1985, p. 41). Nesse sentido, o autor propõe uma teorização do Estado capitalista capaz de explicar suas formas diversas e metamorfoses históricas, em contraposição a uma teoria geral do Estado que apresentaria um objeto de estudo invariante em diferentes modos de produç ão. Assim, segundo Poulantzas (1985), as modificações no Estado capitalista revelam sua vinculação orgânica tanto com as transformações nas relações de produção e na divisão social do trabalho (fases ou estágios do capitalismo) como com a formação e reprod ução das classes sociais, das suas lutas e da dominação política (formas e regimes assumidos pelo Estado em determinada fase do capitalismo). É a compreensão de que a luta de classe se estabelece desde as relações de produção, constituindo e reproduzindo relações políticas ideológicas que conformam a ossatura institucional do Estado capitalista, que nos faz percebê - lo como condensação material e específica de uma correlação de forças entre classes e frações de classes, na análise de Poulantzas (1985). Nessa perspectiva, as lutas de classe não perpassam pelo Estado como se lhe fossem exteriores visões reiteradas nas compreensões do Estado como C oisa - instrumento
Paula Raquel da Silva Jales ; Solange Maria Teixeira Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n. 2 , p. 286 - 306, jul ./ dez . 2023. ISSN 1980 - 8518 290 D o s s i ê ou Sujeito; elas se encarnam nele, evidenciando suas contradições internas. Nas palavras do autor: [...] O estabelecimento da política do Estado deve ser considerado como a resultante das contradições de classe inseridas na própria estrutura do Estado (o Estado - relação). Compreender o Estado como a condensação de uma relação de forças entre classes e fr ações de classe tais como elas se expressam, sempre de maneira específica, no seio do Estado, significa que o Estado é constituído - dividido de lado a lado pelas contradições de classe. Isso significa que uma instituição, o Estado, destinado a reproduzir as divisões de classe, não é, não pode ser jamais, como nas concepções do Estado - Coisa ou Sujeito, um bloco monolítico sem fissuras, cuja política se instaura de qualquer maneira a despeito de suas contradições e as lutas atravessam o Estado, como se se trat asse de manifestar uma substância já constituída ou percorrer um terreno vazio. As contradições de classe constituem o Estado, presente na sua ossatura material, e armam assim sua organização: a política do Estado é o efeito de seu funcionamento no seio do Estado (Poulantzas, 1985, p. 152). Entretanto, o Estado capitalista tem funções diferentes em relação às classes sociais que o conformam, quais sejam: classes dominantes e classes dominadas. No que tange às primeiras, seu papel é organizar os interesses políticos das frações das classes dominantes do bloco no poder, no sentido de garantir unidade conflitual da aliança e do equilíbrio instável dos compromissos assumidos entre seus membros (Poulantzas, 1985). Já em relação às classes dominadas, age na sua desorganização, divisão, polarização quanto ao bloco no poder e colapso de suas organizações políticas (Poulantzas, 1985). O fato de trabalhar na organização da classe dominante não quer dizer que todas as frações dessa classe tenham seus interesses atendidos nem que todas sejam hegemônicas, ou seja, não torna o Estado capitalista homogêneo em relação a essa classe. Para Poula ntzas (1985), a autonomia relativa do Estado capitalista em relação a algumas frações das classes dominantes e seus interesses particulares permite que ele coordene o interesse político da burguesia sob a hegemonia de uma de suas frações, que, apesar de ga rantir a unidade, disputa com as outras frações de classe o poder de direção dos diferentes aparelhos e setores do Estado capitalista. Dessa forma, a dominação burguesa concentra - se e cristaliza - se nos aparelhos do Estado através de linhas de direção horiz ontais e verticais e das disputas entre as frações de classe que têm poderes próprios, como mostra a citação à frente: As contradições de classe, examinadas momentaneamente apenas as que existem entre as frações do bloco do poder, assumem no seio do Estado a forma de contradições internas entre os diversos ramos e aparelhos do Estado, e no seio de cada um deles, conforme a s linhas de direção ao mesmo tempo horizontais e verticais. Se isso acontece dessa maneira, é porque as diversas classes e frações do bloco no poder só participam da dominação política na medida em que estão presentes no Estado. Cada ramo ou aparelho do Es tado, cada face, de alto a baixo, de cada um deles (pois eles são muitas vezes, sob sua unidade centralizada, desdobrados e obscurecidos), cada patamar de cada
Estado capitalista e democracia: disputa de projetos político - ideológicos Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n. 2 , p. 286 - 306 , jul ./ dez . 2023. ISSN 1980 - 8518 291 D o s s i ê um deles constituem muitas vezes a sede do poder, e o representante privilegiado, desta ou daquela fração do bloco no poder, ou de uma aliança conflitual de algumas dessas frações contra as outras, em suma a concentração - cristalização específica de tal ou qual interesse ou aliança de interesses particulares (Poulantzas, 1985, p. 152 - 153). No que se refere às classes dominadas, a sua desorganização não torna o Estado capitalista impermeável às demandas e aos interesses destas ou de suas frações, posto também sua heterogeneidade. Na verdade, as contradições internas entre frações das classes dominantes e sua relação de forças com as classes dominadas possibilitam o Estado agir no compromisso entre as classes, na geração do substrato material que cria o consenso nas massas na relação estabelecida com o poder político. Incumbe - se, portanto, “[.. .] de uma série de medidas materiais positivas para as massas populares, mesmo quando estas medidas refletem concessões impostas pela luta das classes dominadas” (Poulantzas, 1985, p. 36). Isso explica a materialização de políticas ou de ações favoráveis às classes populares pelo Estado, mesmo que elas desagradem frações da classe dominante não hegemônica. Afinal, o papel do Estado capitalista é, além de organizar os interesses das classes d ominantes sobre a hegemonia de uma de suas frações, o de reproduzir a relação de dominação - subordinação das classes dominadas (Poulantzas, 1985). Mesmo assim, Poulantzas (1985) afirma que as lutas populares no Estado capitalista dividem as posições e opções políticas das frações das classes dominantes embora concordem com a reprodução da dominação e das relações de exploração , intensificando as contradições internas e fissuras dos aparelhos estatais. As classes dominadas, diferentemente das classes dominantes que constituem os aparelhos do Estado, são focos de oposição ao poder cristalizado nessas instituições (Poulantzas, 1985), revelando, ao me smo tempo, sua capacidade de resistência e fragilidade perante a dominação burguesa. Por isso, o autor adverte que a fatual presença das classes dominadas na condensação de forças que constituem o Estado capitalista não garante necessariamente a sua transf ormação, reiterando a sua complexidade, especialmente quando se trata de regimes democráticos. Estes se tornam hegemônicos na sociabilidade do capital, especialmente, quando o Estado se amplia e assume funções de reprodução das condições gerais do capital e das integradoras, ou seja, funções econômicas, sociais e políticas, numa perspectiva de manut enção e reprodução da ordem por via do consenso e do consentimento. Contudo, ao abrir espaço para atender às demandas populares, acirra disputas e se abre para participações diversificadas, podendo gerar antagonismo na direção e entendimento dos processos democráticos, como será abordado no próximo item.
Paula Raquel da Silva Jales ; Solange Maria Teixeira Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n. 2 , p. 286 - 306, jul ./ dez . 2023. ISSN 1980 - 8518 292 D o s s i ê Democracia como regime no Estado capitalista: poder do povo, poder das elites ou disputa pelo poder? Análises progressistas da democracia normalmente explanam concepções e/ou vivências gregas como processos que permitiram a interferência de sujeitos comuns na vida política das cidades - Estado, mesmo que na Grécia Antiga a participação fosse restrita àquele s considerados cidadãos, os homens livres, excluindo desse conceito mulheres, escravos e estrangeiros. A própria etimologia da palavra tem origem na língua grega, em que “ demos significa “ povo” e “ kratía ”, “força”, “poder”; dito de outra forma, poder do p ovo . Wood (2007, p. 420) faz a seguinte reflexão sobre a sociedade ateniense: É óbvio, nesta trama, que devemos dizer que é complexo aplicar a palavra democracia a uma sociedade com escravidão em grande escala e na qual as mulheres não tinham direitos políticos. Mas é importante compreender que a maioria dos cidadãos atenienses trab alhava para viver; e trabalhavam em ocupações que os críticos da democracia consideravam como vulgares e servis. A idéia [ sic ] de que a democracia consistiu no império de uma classe ociosa dominando uma população de escravos é simplesmente errônea. Esse fo i o ponto central da oposição antidemocrática. Os inimigos da democracia odiavam este regime sobretudo porque outorgava poder político ao povo formado por trabalhadores pobres. A referência à democracia como poder do povo ou soberania popular passou a ser temida pela burguesia desde que esta ascendeu como classe dominante no modo de produção capitalista. Para Netto (2001), os eventos da Revolução Francesa de 1848 encerraram o cic lo progressista da burguesia, que passou a defender, apoiada em pensadores e intelectuais, a manutenção da nova ordem instaurada, ao mesmo tempo que evidenciou o antagonismo entre as classes sociais fundamentais, a organização do proletariado e a tomada de consciência política pelas vanguardas trabalhadoras. Conforme Miguel (2018), a dominação 2 é conceito - chave para a compreensão da democracia, haja vista que toda institucionalidade constitui regimes de dominação, ou seja, estabelece relações de poder 3 que precisam ser continuamente (re)criadas. Nesse sentido, relações democráticas são relações de poder que legitimam e enfrentam a dominação, como mostra o autor a seguir: [...] Se a democracia também se define como o enfrentamento da dominação 2 Segundo Miguel (2018, p. 15), a dominação “[...] é o exercício assimétrico da autoridade ensejado pelo controle de recursos materiais e simbólicos, compelindo aqueles que estão submetidos a comportamentos que beneficiam os que detêm o poder: se a dominaçã o é compreendida dessa maneira sucinta, mas reconhecível, a dominação é, sem dúvida, um fenômeno recorrente”. 3 Consoante Poulantzas (1985, p. 168), “[...] por poder se deve entender a capacidade, aplicada às classes sociais, de uma ou de determinadas classes sociais em conquistar seus interesses específicos. [...] A capacidade de uma classe em realizar seus intere sses está em oposição à capacidade (e interesses) de outras classes: o campo do poder é, portanto, estritamente relacional”.
Estado capitalista e democracia: disputa de projetos político - ideológicos Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n. 2 , p. 286 - 306 , jul ./ dez . 2023. ISSN 1980 - 8518 293 D o s s i ê e da opressão no campo da distribuição do poder político e do processo de tomada coletiva de decisões, formulação que vou reter apenas de maneira provisória, então a dominação entra duplamente como categoria central no esforço de compreensão da democracia, que se mede tanto pelas formas de dominação que ela produz, como institucionalidade, quando por aquelas que ela combate, como prática emancipatória (Miguel, 2018, p. 17). Desse ponto de vista, a democracia não pode ser simplesmente associada ao governo que elimina, combate a dominação, na verdade, a contradição que perpassa pelas relações sociais de produção na sociedade capitalista também alcança a superestrutura, o Estado ampliado e suas formas de governo, revelando que a busca pela hegemonia é central para a dominação burguesa, por isso a disputa é uma constante nos processos democráticos. Nas palavras de Miguel (2018, p. 23 - 24), o conceito de h egemonia de Gramsci: [...] enfatiza a vinculação entre a dominação e a organização do mundo social em benefício de determinados interesses, o que já estava presente na compreensão de Marx. Por isso, a dominação na sociedade está em permanente disputa a hegemonia é sempre con frontada por estratégias contra - hegemônicas de grupos dominados, que buscam inverter a situação. E, por fim, essa disputa leva a que a hegemonia apresente um caráter muito mais dinâmico que a legitimidade weberiana: ela precisa ser reconstruída a cada mome nto, diante dos desafios postos pelo conflito social. Mas o sistema capitalista estabeleceu, segundo Wood (2007), uma relação diferenciada entre a economia e a política, que teve consequências diretas no desenvolvimento das democracias modernas. Nos modos de produção precedentes, a classe proprietária se util izava de meios extraeconômicos para explorar os produtores diretos. O uso do poder militar, político e jurídico fazia - se necessário para coagir uma população que detinha a posse dos meios de produção ao pagamento de impostos, bem como à condição de sujeito s escravizados. Nesse sentido, a economia dependia da política para funcionar, ocasionando uma fusão dessas áreas no mundo antigo e uma divisão explícita entre as classes fundamentais (Wood, 2007). A autora chama a atenção para a influência que os produtores diretos, participantes da vida política em Atenas, tiveram sobre o poder de exploração das classes apropriadoras. A classe produtora gozava de direitos políticos e uma liberdade sem antecedentes, revelando a importância política e econômica da democracia nas cidades - Estado (Wood, 2007). No capitalismo, a exploração passou a ser puramente econômica (Wood, 2007), uma vez que, livres das amarras da escravidão e da servidão, os indivíduos poderiam escolher como, onde e quando trabalhar, ideia promissora do novo modo de produção que se consolidava. O que não foi dito para a população e Marx evidenciou posteriormente é que, desprovidos dos meios de produção, pois estes se tornaram obsoletos após o cercame nto das terras comunais e das revoluções industrial e tecnológica, os trabalhadores só t inham a propriedade da sua força
Paula Raquel da Silva Jales ; Solange Maria Teixeira Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n. 2 , p. 286 - 306, jul ./ dez . 2023. ISSN 1980 - 8518 294 D o s s i ê de trabalho, que deveria concorrer com muitas outras para ocupar um lugar no mercado de trabalho e garantir o recebimento de um salário para a manutenção da subsistência da família (Netto; Braz, 2012). Em relação à participação dos trabalhadores nos assuntos políticos, só depois de muita organização, reivindicação e luta é que foram garantidos direitos políticos, que, juntamente com os direitos civis, não estão em desacordo com o capitalismo. É nesse sentido que Wood (2007) afirma a constituição de uma esfera econômica distinta da política no capitalismo, em que a primeira d ificilmente se submete ao controle democrático e a prestações de contas. Nas palavras da autora: Após e até agora existe uma esfera econômica distintiva, com seu próprio sistema de compulsão e coerção, suas próprias formas de dominação, suas próprias hierarquias. O capital, por exemplo, controla o lugar do trabalho, e tem um manejo sem precedentes do processo de trabalho. E, é obvio, existem as forças de mercado, mediante as quais o capital localiza o trabalho e os recursos. Nenhum destes elementos está sujeito ao controle democrático ou rendição de contas. A esfera política concebida como o espaço ond e as pessoas se comportam em seu caráter de cidadão antes que como trabalhadores ou capitalistas está separada do âmbito econômico. As pessoas podem exercitar seus direitos como cidadãos sem afetar muito o poder do capital no âmbito econômico. Ainda em sociedades capitalistas com uma forte tradição intervencionista do Estado, os poderes de exploração do capital costumam ficar intactos pela ampliação dos direitos políticos (Wood, 2007, p. 6). Para Wood (2006), o sistema capitalista, pela sua própria essência, construiu paulatinamente outra forma de regime democrático, a designada democracia formal, que, circunscrita à esfera política e jurídica, mais legitima do que afronta o poder da classe dominante. Nesse sentido, o processo da vida e dos corpos humanos fica sujeito à mercantilização e, por consequência, distante do alcance da responsabilidade democrática, o que leva a autora a concluir que o capita lismo é basilarmente antidemocrático, se por democracia entendermos o poder popular desafiando a dominação de classe. Não há dúvida de que o poder das companhias transnacionais, que não respondem perante nenhum eleitorado, é um ataque massivo contra a democracia qualquer que seja a definição que se adote. Também é verdade que organizações, tais como o FMI, usurparam certa s funções de governos eleitos (embora em proveito de outros governos nacionais mais fortes). Mas o mais sério desafio à democracia no sentido de ‘governo do povo’ está na natureza da economia capitalista. Nem é preciso dizer que o sistema de dominação de c lasse, as iniqüidades [ sic ] geradas pelo capitalismo e a relação entre riqueza e acesso ao poder são incompatíveis com a democracia nesse sentido. A democracia estadunidense, por exemplo, onde a política é bastante dependente do dinheiro grosso, é obviamente algo muito diferente de ‘democracia’ no seu sentido literal (Wood, 2006, p. 45). A autora também destaca que foram os pais fundadores dos Estados Unidos da América (EUA), com a colaboração de conceituados intelectuais, que redefiniram o significado da
Estado capitalista e democracia: disputa de projetos político - ideológicos Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n. 2 , p. 286 - 306 , jul ./ dez . 2023. ISSN 1980 - 8518 295 D o s s i ê palavra “democracia” . A estratégia ideológica e constitucional utilizada para afiançar direitos políticos sem garantir soberania popular foi transformar o povo em um conjunto amorfo de cidadãos com direitos civis comuns e o poder na capacidade de voto individual, de escolha de representantes para assumir cargos políticos (Wood, 2007). Na análise de Wood (2007), a República” , termo utilizado pelos americanos para se diferenciar da “ democracia” como poder popular, que posteriormente, por pressão, teve que se r substituída pela terminologia democracia representativa ”, afastou a gente comum do poder político e identificou mais ainda a democracia com o governo dos ricos, reiterando concepções de que estes seriam os mais qualificados para representar os trabalhadores. A cidadania passiva divorcia, segundo Wood (2007), os sujeitos de suas condições sociais, de seu pertencimento de classe, para lhes atribuir uma identidade de cidadãos despolitizada, alienada, uma vez que o voto individual substitui qualquer poder coletivo . A democracia foi reduzida à universalização de direitos políticos, que ocorreu por meio de muita luta, e a processos eleitorais, em que a renúncia de poder para delegá - lo a alguém vinha com a certeza de desfrutar de direitos civis e certas liberdades bás icas (Wood, 2007). O fato de as relações de produção capitalista terem possibilitado a criação de outro tipo de democracia não ausenta a existência de outras concepções, propostas e experiências democráticas que enfatizem o poder popular e o confronto à dominação de classe. A democracia fruto do Estado capitalista, ou seja, de uma condensação material e específica de uma correlação de forças entre classes e frações de classes (Poulantzas, 1985), é espaço de disputas de projetos político - ideológicos que lhe atribuem significad os e sentidos diferentes no processo de reconstrução cotidiana da dominação, de busca pela hegemonia. Enquanto as classes dominantes buscam consenso ativo da sociedade civil em sua heterogeneidade para a representação ou a delegação da tomada de decisões, a democracia participativa, como alguns denominam, é proposta contra - hegemônica que visa trazer o povo para o centro dos espaços de discussão e de disputa do poder, no sentido de constituição e valorização de sujeitos e decisões coletivas. Campos (2012, p. 252) apresenta algumas reflexões sobre democracia participativa e representativa que se coadunam com essas análises: A democracia participativa funda - se em critérios e valores ideopolíticos distintos da democracia representativa. Nessa modalidade de representação política, o indivíduo atomizado constitui - se no seu fundamento e objetivo. O cidadão é dotado de um conjunto de direitos civis, políticos e sociais. Em tese, é dotado de autoridade para realizar escolhas e eleger governantes. Todavia, na prática, o experimento democrático representativo estimula e cultiva o afastamento do cidadão comum das arenas que tratam do ne gócio público [...]. A democracia participativa, ao contrário, valoriza, apoia - se e nutre - se nos atores coletivos, ou seja, nos cidadãos organizados. Nessa perspectiva de
Paula Raquel da Silva Jales ; Solange Maria Teixeira Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n. 2 , p. 286 - 306, jul ./ dez . 2023. ISSN 1980 - 8518 296 D o s s i ê democracia, o povo pode se constituir efetivamente em fonte de poder, em autoridade, nos termos trabalhados por Arendt (1983), para quem a autoridade originada das bases não significa a ficção de um povo absoluto, pois se trata da articulação desses corpos constituídos em convenções e assembleias. Nesse caso, o povo significa um conjunto de cidadãos organizados segundo leis reconhecidas por todos. No âmbito da teoria democrática, Pateman (1992) identificou duas correntes antagônicas a direcionar a relação da sociedade com o Estado e seus governos, que se vinculam geralmente, dependendo dos autores de referência, às noções de democracia representativ a e democracia participativa, são elas: a teoria contemporânea da democracia e a teoria da democracia participativa. Sendo a mais disseminada na produção teórica e influente nas experiências republicanas, tornando - se hegemônica no primeiro semestre do sécu lo XX, a teoria contemporânea da democracia tem em Joseph Schumpeter, economista e cientista político austríaco, a sua maior referência intelectual, por sua crítica à teoria clássica 4 e consequentemente pela construção de uma nova concepção da democracia como método político fundamentado na competição pela liderança nas eleições. Além dele, a autora analisa as produções de Bernard Berelson, Robert Dahl, Giovanni Sartori e Harry Eckstein para traçar linhas gerais dessa teoria de legitimação dos governos representativos, dentre elas destacam - se: o caráter empírico ou descritivo, com foco no funcionamento do sistema político; a democracia compreendida como método político ou arranjos institucionais nacionais; a competição entre os líderes, membros da elite, pelos votos da população é o elemento democrático por excelência; as eleições s ão a forma privilegiada de controle das ações dos representantes, pela possibilidade de não recondução de seus mandatos; a igualdade política é sinônimo de sufrágio universal e acesso aos canais que interferem nas decisões dos líderes; e a participação é o direito de escolher aqueles que integrarão a esfera política e terão o poder para tomar decisões, nesse sentido sua função é proteger as pessoas contra as decisões autoritárias dos representantes e os interesses individuais. Com uma visão tão minimalista e procedimental da democracia, da igualdade, da participação e de outros vocábulos que contribuem para a manutenção do status quo e da hegemonia das classes dominantes, não é difícil entender sua compatibilidade com o projeto político - ideológico neoliberal. A corrente decisionística de deliberação, elucidada por Avritzer (2000) na teoria democrática, também defende elementos da democracia representativa, ao significar a deliberação como momento em que se tomam as decisões, articulando - se ao projeto político - 4 Pateman (1992) afirma que o autor e seus sucessores constroem um mito em torno da teoria clássica da democracia, pois a maioria deles não expõe os autores de referência de suas críticas, além de negar seu caráter normativo.
Estado capitalista e democracia: disputa de projetos político - ideológicos Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n. 2 , p. 286 - 306 , jul ./ dez . 2023. ISSN 1980 - 8518 297 D o s s i ê - ideológico supramencionado. Conforme o autor, teóricos do elitismo democrático que se inicia com Max Weber, é aprimorado por Joseph Schumpeter e tem Anthony Downs, Giovanni Sartori e Norberto Bobbio como representantes contemporâneos justificam uma ce rta homogeneidade cultural, a racionalidade administrativa e o processo eleitoral como aspectos que assegurariam o funcionamento efetivo das democracias modernas, já que não é possível resolver cientificamente os conflitos resultantes das diferenças cultur ais. Questiona - se, no entanto, efetividade para quem, para qual classe social ou para que tipo de sociabilidade? Na teoria da democracia participativa, Pateman (1992) recorre às obras de Jean - Jacques Rousseau e de John Stuart Mill, intelectuais clássicos , e de George Cole, teórico político do socialismo de guildas do século passado. Apesar dos paradoxos que atravessam a produção de John Mill, especialmente nas propostas práticas às democracias de massa, por não romper com a visão utilitarista da participa ção e reforçar a representação política através de membros instruídos com formação acadêmica da elite, Pateman (199 2, p. 51) o inclui nessa teoria pela ênfase na função educativa da participação no governo local e nos espaços de trabalho, o que poderia ser ampliado a “[...] todas as estruturas de autoridade ou sistemas políticos das ‘esferas inferiores’”. O papel educativo no desenvolvimento de qualidades e atitudes psicológicas e democráticas é, portanto, a principal função da participação numa teoria que reconhece a inter - relação entre sujeitos e instituições (Pateman, 1992). A autossustentação do sistema está no próprio processo participativo, visto que o seu contínuo exercício é a garantia de maior aprendizado (Pateman, 1992). A participação também pode secundariamente ter um efeito integrativo e de aceitação das decisões colet ivas (Pateman, 1992), por isso faz - se necessária a democratização tanto do sistema político como de todos os espaços onde a participação possa se realizar, incluindo o local de trabalho; dentre eles, a autora destaca a indústria. A igualdade econômica e a política tornam - se, assim, pressupostos para que as pessoas tenham independência e segurança para participar com poder de determinação das decisões (Pateman, 1992). Democracia, política e igualdade ganham sentidos ampliados no contexto de uma sociedade par ticipativa com máxima democratização das estruturas de autoridade e participação direta dos indivíduos (Pateman, 1992). Diferentemente de alguns autores que propõem associar democracia representativa à participação indireta ou delegação de poder e democracia participativa à participação direta, Miguel (2017) afirma, a partir das análises de Carole Pateman, que a possibilida de de os sujeitos participarem da autogestão das empresas, o que a autora conceitua como democracia industrial, não inviabiliza a escolha de representantes articulados aos interesses e decisões da base. Na verdade, a concepção de democracia participativa e stá mais articulada à ampliação da
Paula Raquel da Silva Jales ; Solange Maria Teixeira Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n. 2 , p. 286 - 306, jul ./ dez . 2023. ISSN 1980 - 8518 298 D o s s i ê autonomia na vida cotidiana, à educação política, às relações horizontalizadas, à maior comunicação entre representantes e representados e a um processo contínuo de acompanhamento e fiscalização coletiva das ações econômicas, políticas e sociais do que à a usência de representação política. A função educativa da participação dos sujeitos no cotidiano de trabalho e outros espaços garantiria a qualificação da representação política de qualquer pessoa nas estruturas horizontais e verticais do sistema democrátic o (Miguel, 2017), o que diferencia sobremaneira a teoria da democracia participativa da teoria contemporânea e vincula aquela ao projeto político - ideológico democrático participativo. Outra corrente que influenciou as experiências democráticas participativas, a partir da década de 1970, quando a vertente decisionística entrou em crise, foi a argumentativa de deliberação (Avritzer, 2000). John Rawls 5 e Jürgen Habermas foram, segundo Avritzer (2000), fundamentais na recuperação de uma dimensão de debate público que minou o consenso antiargumentativo . Apesar das diferenças teóricas e conceituais, das limitações dos dois autores em relação aos locais em que a deliberação argumentativa ocorreria na sociedade democrática e da existência de arranjos deliberativos no nível público, respectivamente, ambos a dmitem a pluralidade de pensamentos e opiniões que devem ser expressos na busca da construção de consensos, dando ênfase ao momento da discussão e da argumentação, opondo - se, em alguma medida, à decisão baseada na maioria: [...] Nesse sentido, tanto a preocupação rawlsiana quanto a preocupação habermasiana parece estar contemplada, na medida em que se substitui a percepção da falta da legitimidade do processo de agregação de maiorias por um formato institucional no qual maio rias e minorias, ou interesses simplesmente distintos, podem argumentar sobre suas posições, algo que a teoria democrática convencional julgava desnecessário (Avritzer, 2000, p. 43). Joshua Cohen e James Bohman partem das contribuições rawsianas e habermasianas no sentido de equacionar suas insuficiências em relação a um espaço de concretização da deliberação como argumentação (Avritzer, 2000). O primeiro dá caráter institucional à deliberação, alertando para a possibilidade de decisões legítimas, mesmo sem a co ncordância de ideias entre todos. Já “[...] Bohman faz uma tentativa de integrar elementos dialógicos com uma concepção de razão pública e, ao mesmo tempo, de integrar os público s informais com algum elemento capaz de institucionalizar a deliberação pública” (Avritzer, 2000, p. 42). 5 Avritzer (2000, p. 32) considera Rawls um autor de transição entre os dois sentidos atribuídos à deliberação, “[...] na medida em que, em algumas das suas obras, especialmente em sua Uma teoria da justiça , ele opera com um consenso decisionístico (ainda que não sem algumas contradições) e, em outras, ele supõe que as diferenças culturais são parte de uma condição de pluralismo que supõe a argumentação e a deliberação”.
Estado capitalista e democracia: disputa de projetos político - ideológicos Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n. 2 , p. 286 - 306 , jul ./ dez . 2023. ISSN 1980 - 8518 299 D o s s i ê Atribuem, portanto, uma dimensão institucional pública à democracia deliberativa (Avritzer, 2000). Nessa perspectiva, Avritzer (2000) afirma serem os fóruns de articulação entre Estado e sociedade o lugar da democracia deliberativa e exemplifica os conselhos e o orçamento participativo na realidade brasileira por eles expressarem três características es senciais da argumentação deliberativa, são elas: constituição de locais de decisão pelo Estado na direção de uma participação pública ampliada; publicização e/ou socialização de informações relevantes para a tomada de decisões; e possibilidade de múltiplas experiências institucionais (Avritzer, 2000), o que aproxima essa corrente de algumas concepções defendidas pelo projeto democrático participativo. Para Pateman (1992), as teorias que ela intitula de pluralismo social têm notórias similitudes com a teoria da democracia participativa, no entanto elas se ausentam da discussão das estruturas de autoridade. Miguel (2018) complementa esse raciocínio ressaltando que, apesar da importância dada aos sujeitos, aos pontos de vis ta diferentes e à capacidade de discutir e argumentar, as correntes liberal - pluralistas , proeminentes no pós - guerra, percebem o conflito sob a óptica da competição, uma vez que os indivíd uos estariam em busca de seus interesses, e esse movimento poderia prejudicar outras pessoas, não havendo luta de classe. A tentativa de objeção a essas vertentes feita por John Rawls, Jürgen Habermas e Axel Honneth acabou, segundo Miguel (2018, p. 16), po r redefinir a política na perspectiva do consenso, “[...] espaço em que a cooperação social pode ser alcançada por meio de acordo intersubjetivo entre os participantes, de forma livre e igualitária. Se porventura existe dominação, ela não se expressa nessa arena política idealizada”. Por isso, o autor é tão questionador dessas teorizações e das experiências que subsidiaram. Em sua severa crítica à participação materializada no orçamento participativo, nos conselhos e nas conferências no Brasil, Miguel (2017) afirma que a ênfase na corrente deliberacionista como principal alternativa às democracias liberais possibilitou a abso rção e a reinterpretação tanto da doutrina liberal como da concepção de democracia participativa, numa confluência, que se identifica perversa na perspectiva de Dagnino (2004) 6 , entre a participação e a deliberação, pois a primeira se torna apenas um requisito para a concretização das trocas deliberativas. 6 A palavra “perversa” é utilizada pela autora para expressar “[...] um fenômeno cujas consequências contrariam sua aparência, cujos efeitos não são imediatamente evidentes e se revelam distintos do que se poderia esperar” (Dagnino, 2004, p. 142).
Paula Raquel da Silva Jales ; Solange Maria Teixeira Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n. 2 , p. 286 - 306, jul ./ dez . 2023. ISSN 1980 - 8518 300