Alcione Ferreira da Silva
que, após a Independência, seguiu praticando, de forma massiva, o tráfico negreiro, de modo
que, para cá, foram realizadas “cerca de 36 mil viagens, correspondendo a 70% do volume
estimado de viagens negreiras para as Américas” (Alencastro, 2018, n.p.).
Acerca do comércio de pessoas escravizadas, o complexo do Cais do Valongo2 é digno
de nota:
O Cais do Valongo, construído em 1811 em substituição à antiga ponte de
madeira que foi usada inicialmente para desembarque dos escravos desde
1774. O Valongo funcionou como uma extensa área de receptação exclusiva
dos escravos africanos vendidos na cidade do Rio, capital da colônia e maior
mercado escravista do país. Cerca de 1 milhão de escravos circularam por ali
nesses quase cinquenta anos, a maioria remetida para as minas de ouro e as
fazendas de café do Vale do Paraíba (Soares, 2018, n.p.).
A quantidade de escravizados e a duração da escravidão demarca uma particularidade
que demonstra o impacto do espectro colonial na nossa formação, que foi delineada através da
tentativa de expropriação completa da humanidade dos povos africanos, em um processo de
sequestro, seguido de escravização possibilitada pela violência despudorada do
empreendimento colonizador, que foi categoricamente denunciada por Césaire (2020, p. 24-
27):
[...] olho e vejo em todos os lugares onde há, cara a cara, colonizadores e
colonizados, a força, a brutalidade, a crueldade, o sadismo, o choque [...]. Eu
falei de contato. Entre colonizador e colonizado, só há espaço para o trabalho
forçado, a intimidação, a pressão, a polícia, os impostos, o roubo, o estupro, a
imposição cultural, o desprezo, a desconfiança, o necrotério, presunção, a
grosseria, as elites descerebradas, as massas aviltadas. [...] eu falo de milhares
de homens sacrificados no Congo-Océan [...]. Falo de milhares de homens
arrancados a seus deuses, suas terras, seus costumes, sua vida, a vida, a dança
a sabedoria. [...] eu falo das economias naturais, economias harmoniosas e
viáveis, economias na medida do homem indígena que foram desorganizadas,
culturas alimentares destruídas, subnutrição instalada, desenvolvimento
agrícola orientado para o benefício único das metrópoles, roubo de produtos,
roubo de matérias primas. [...] a colonização europeia adicionou o abuso
moderno à antiga injustiça; o racismo odioso à velha desigualdade.
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Em suma: a barbárie anunciada como civilização. Barbárie essa que não cessou com o
estabelecimento do Estado Imperial, através da Independência. Retomemos: só nós, em todo o
continente americano, conseguimos ser formalmente independentes e escravocratas ao mesmo
tempo. Dada as particularidades sócio-históricas nacionais, em relação à escravização de povos
africanos e seus descendentes, seria atípico se fosse diferente, visto que as relações
estabelecidas entre a economia e os demais complexos sociais brasileiros estavam
completamente imbuídos da mais longeva instituição nacional: a escravidão.
2 Atualmente, o Cais do Valongo é um sítio arqueológico, que foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (IPHAN), graças à atuação do Movimento Negro.
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 100-114, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518