Socialização da política versus privatização do  
Estado: elementos para reposicionar a democracia  
em tempos de crise orgânica – representação e  
representatividade  
Socialization of politics versus privatization of the State: elements to  
reposition democracy in times of organic crisis – representation and  
representativeness  
Bárbara T. Sepúlveda*  
Miriam Krenzinger**  
Resumo: Propomo-nos nesse artigo a questionar  
as formas políticas existentes no Brasil. Buscou-  
se problematizar, assim, em que medida a  
representação político-partidária sob uma  
sociedade periférica, estruturada a partir de uma  
lógica colonialista, escravista e sexista, logra  
alcançar os grupos subalternos, com destaque  
para as mulheres negras, que se constituem como  
avesso do sujeito que historicamente ocupa esse  
lugar, o homem branco. Tal cenário complexifica-  
se na contemporaneidade, tendo em vista o  
rearranjo no mundo capitalista em virtude da crise  
que se coloca a partir da década de 1970, que no  
Brasil significará a negação das conquistas  
constitucionais de 1988, ocasionando uma  
descrença na política, uma crise de representação  
que se soma a crise econômica. Trata- se de uma  
pesquisa bibliográfica, em que se faz uso de  
algumas categorias gramscianas. Nossa hipótese é  
que as demandas por representatividade espelham  
as lutas em torno da democratização da sociedade  
e do Estado brasileiro.  
Abstract: In this article, we propose to question  
existing political forms in Brazil. We sought to  
problematize, therefore, to what extent political-  
partisan representation in a peripheral society,  
structured based on a colonialist, slave and sexist  
logic, manages to reach subaltern groups, with  
emphasis on black women, who constitute  
themselves as the opposite of the subject who  
historically occupies this place, the white man.  
This scenario becomes more complex in  
contemporary times, given the rearrangement in  
the capitalist world due to the crisis that emerged  
from the 1970s, which in Brazil will mean the  
denial of the constitutional achievements of 1988,  
causing disbelief in politics,  
a
crisis of  
representation that adds to the economic crisis.  
This is a bibliographical research, in which some  
Gramscian categories are used. Our hypothesis is  
that the demands for representation mirror the  
struggles surrounding the democratization of  
society and the Brazilian State.  
Palavras-chaves: Estado; Socialização da  
política; Formação social brasileira; Mulher  
negra.  
Keywords: State; Socialization of politics;  
Brazilian social formation; Black woman.  
* Assistente social, doutora em Serviço Social, professora do curso de Serviço Social da Universidade Estadual de  
** Assistente social, doutora em Serviço Social, professora do curso de Serviço Social da Universidade Federal do  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.41730  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 30/07/2023  
Aprovado em: 15/04/2024  
Socialização da política versus privatização do Estado: elementos para reposicionar a democracia em  
tempos de crise orgânica representação e representatividade  
Introdução  
A mulher negra brasileira tem sido historicamente representada a partir das figuras da  
doméstica, mãe preta ou mulata1, apresentando uma maior dificuldade em ocupar os espaços  
públicos a partir de outro lugar, como é o caso da política institucional, evidenciando as  
particularidades de uma experiência racializada do gênero. Por outro lado, a crescente  
organização desses sujeitos, em coletivos, ONGS, associações de bairro, as têm qualificado, de  
forma a deslocar a norma, que celebra a política institucional como lugar do homem branco.  
Entende-se que o acesso das mulheres negras à política institucional acaba por responder  
a necessidade genuína de formulação de políticas públicas inclusivas, pela quebra do monopólio  
político decisório, que não alcança os descendentes mais diretos de um sistema colonial  
reprodutor de desigualdades. Nesse espaço, oferecem um olhar singular, justamente por sua  
condição marginal, uma espécie de forasteira, nos moldes daquilo que aponta Collins (2016),  
no que diz respeito às intelectuais negras nas Universidades norte-americanas. Sua presença  
ainda implica na quebra de estereótipos funcionais a uma sociedade estruturada sob o racismo,  
das imagens construídas para nós. A democratização da sociedade brasileira passa, sob esse  
prisma, pela representatividade, como aspecto mesmo de uma representação partidária  
renovada, tendo como norte o projeto em que se pauta a Constituição de 1988, a expansão dos  
direitos de cidadania a uma população frequentemente ignorada, a possibilidade de ampliação  
do Estado brasileiro.  
265  
Tendo em vista esse horizonte, organizamos o presente artigo em três seções, além dessa  
introdução e das considerações finais.  
Na primeira delas, intitulada Sociedade Civil, emancipação e socialização da política,  
recorremos às formulações de Gramsci (2017), a fim de apreender algumas das mediações  
necessárias para compreensão do desenvolvimento e das mudanças no funcionamento do  
Estado moderno; mas também o processo pelo qual se torna permeável às classes e grupos  
subalternos, o que o autor chamará de Estado Ampliado. Além da questão da classe, pontua-se  
a importância de consideramos, na formulação de uma teoria do Estado e das lutas para sua  
ampliação, a questão racial e o sexo/gênero.  
Na segunda seção, Os limites do Estado Ampliado no Brasil, problematiza-se o  
processo de ampliação do Estado brasileiro, entendendo que há particularidades que devem ser  
levadas em conta, particularidades essas que respondem à sua formação sócio-histórica, à  
economia e às formas políticas correspondentes. Nesse sentido, pontua- se o que caracterizaria  
1 Para saber mais, ler Lélia Gonzalez- Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira (1984).  
Bárbara T. Sepúlveda; Miriam Krenzinger  
o Brasil, seu desenvolvimento capitalista, a mudança de chave com a constituição de 1988 e a  
guinada neoliberal na década de 1990.  
Na última seção, Crise orgânica, representação e representatividade, parte-se da  
análise da crise econômica e política que se instaura no Brasil, para se problematizar os limites  
de nossa democracia e a necessidade de renovação dos sentidos da representação político-  
partidária, tendo em vista sua constituição historicamente elitista, o que só aprofunda os  
processos de privatização do Estado. Retoma- se a atuação das mulheres negras em prol do  
projeto democratizante, entendendo que tal projeto, alinhado à Constituição de 1988, não se faz  
sem a devida abertura do Estado brasileiro aos grupos historicamente excluídos da política  
institucional: a representação que não se faz sem representatividade.  
Sociedade civil, emancipação e socialização da política  
Na abordagem marxiana do Estado a dimensão fundamental a se considerar é a ideia de  
que a produção seja o núcleo central da vida social. Uma economia determinada pela lógica de  
produção burguesa assumirá as particularidades dessa configuração, também no que se refere  
às formas políticas adotadas pela sociedade, garantindo-lhe sustentação. Essas definições,  
inicialmente jurídicas, para se materializarem de fato, tornaria necessário a adoção da repressão  
e o emprego da violência, que no Estado encontra respaldo oficial e legal. Vê-se dessa forma o  
desenvolvimento de todo um aparato burocrático e repressivo que dará corpo a esse Estado, no  
intuito de preservar as relações econômicas (Behring e Boschetti, 2011).  
266  
A novidade que Gramsci (2017) traz para essa análise é o peso que dá a política, tanto  
quanto Marx deu às relações econômicas. O cuidado, nesse caminho, tal qual adverte Coutinho  
(2010), é não o associar a um politicismo vulgar (a política não está acima da economia), mas  
entender as particularidades históricas que levam o autor dos Cadernos do Cárcere a buscar  
outro caminho.  
A economia segue sendo determinante em Gramsci (2017), uma vez que a existência de  
classes antagônicas, representadas pela burguesia e proletariado, condiciona a de governantes  
e governados, já demonstrado o caráter classista do Estado. Mas a novidade aqui está na  
ampliação daquilo que chamou de sociedade civil, a partir do processo de socialização da  
produção, que levou a uma maior liberdade e recuo das barreiras naturais e econômicas; ganhos  
reais em termos de autonomia, inclusive para os que, até então, viam-se excluídos das decisões  
políticas, essas também gradualmente socializadas (Coutinho, 2010). Há, nesse sentido, uma  
relação direta a se observar:  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 264-281, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Socialização da política versus privatização do Estado: elementos para reposicionar a democracia em  
tempos de crise orgânica representação e representatividade  
Quanto mais se ampliar a socialização da política, quanto mais a sociedade  
civil for rica e articulada, tanto mais os processos sociais serão determinados  
pela teleologia (pela vontade coletiva organizada) e tanto menos se imporá a  
causalidade automática e espontânea da economia (Coutinho, 2010, p. 99).  
Aqui, embora a burguesia siga operando o Estado, sua atuação passa pelo crivo de uma  
sociedade civil amadurecida pelos processos de socialização da política. Não há o automatismo  
que levou Marx a designação do Estado como comitê a executar a vontade da burguesia, isso  
em virtude do desenvolvimento histórico, das mudanças e mediações operadas no interior da  
sociedade burguesa.  
Ao componente dinâmico da produção, que no transcurso do seu desenvolvimento  
forçaria a progressiva diminuição do trabalho necessário e em decorrência disso, maior  
liberdade para a atuação humana; Gramsci (2017) adiciona ainda a própria natureza da  
burguesia, a revolucionar a função do Estado. Isto porque, ao contrário das classes precedentes,  
essencialmente conservadoras (no sentido de não buscar assimilar as demais), a burguesia põe  
a si mesma como em eterno movimento, como que capaz de assimilar a todos, ideológica e  
economicamente.  
O seu Estado é, nesse sentido, um Estado educador. Ideais como igualdade e liberdade,  
assim como uma moral burguesa e o próprio Direito, chegam ao conjunto da sociedade, que a  
burguesia espelha. Tais valores passam a compor o Estado, manifestos, tal qual apontam  
Demier e Gonçalves (2017), na forma política democracia liberal representativa, que nasce e se  
desenvolve conforme floresce o próprio capitalismo.  
267  
A política a ser operada nessa configuração de Estado implica num tipo de consenso,  
sem o qual o Estado moderno perde legitimidade (notadamente nas sociedades que Gramsci  
(2017) chama ocidentais)2, ainda que, no esforço de garantir sua dominação, a burguesia lance  
mão daquele Estado restrito, coercitivo.  
Tem-se dessa forma a distinção de “dois momentos da articulação do campo estatal: o  
Estado em sentido estreito (unilateral), e o Estado em sentido amplo, dito integral” (Buci-  
Glucksmann, 1980, p. 127). O primeiro identifica-se com o governo, com as funções  
burocráticas, administrativas e propriamente coercitivas, como o exército, a polícia, os  
tribunais, etc. O segundo, “a tomada em consideração do conjunto dos meios de direção  
intelectual e moral de uma classe sobre a sociedade, a maneira como ela poderá realizar sua  
hegemonia” (p. 128), que encontra expressão na sociedade civil, em escolas, igrejas, jornais, e  
2 Não se refere a uma questão geográfica, mas ao próprio desenvolvimento da sociedade civil. Dessa forma, nas  
sociedades tidas como orientais, o Estado era tudo, a sociedade civil pouco se desenvolvera, enquanto as ocidentais  
experimentaram seu adensamento e complexificação.  
Bárbara T. Sepúlveda; Miriam Krenzinger  
outros equipamentos, que Gramsci (2017) chamará de aparelhos privados. Desses dois  
momentos inseparáveis tem-se a fórmula gramsciana: Estado = ditadura + hegemonia.  
Vê-se dessa forma, que na perspectiva gramsciana do Estado, a dominação dos aspectos  
propriamente políticos- coercitivos por parte da burguesia são insuficientes. A garantia das  
condições ótimas para a exploração capitalista viria requerer dela a capacidade de elevar seu  
projeto político particular ao lugar de um projeto político nacional, ou dito de outra forma, “que  
apresentasse os seus interesses particulares como os interesses gerais da nação” (Demier e  
Gonçalves, 2017, p. 18), dirigindo-a também ideologicamente a partir da sociedade civil.  
Embora a burguesia detenha melhores condições de exercer hegemonia sobre o conjunto  
da sociedade, que ativa ou passivamente passa a compartilhar de seus projetos e visões de  
mundo, não foi capaz de impedir a ocupação do Estado por outros grupos, que não se deixaram  
assimilar e/ou cooptar, e para os quais a coerção também apresentou limites (quando o fascismo  
aberto não é opção). Esse Estado “ocupado” seria gradualmente absorvido pela sociedade civil,  
quando sua expressão político-coercitiva deixará enfim de existir, dando vida ao que Gramsci  
(2017) chama de Sociedade Regulada.  
A classe, aqui o lugar que se ocupa na produção (se detentor dos meios de produção ou  
se vendedor da sua força de trabalho), é central na análise marxista do Estado. Contudo, é  
preciso que nos atentemos a outras lógicas de dominação e opressão que se fazem presentes na  
sociedade, e pelas quais também se constituiu o Estado moderno. Destacam-se, nesse sentido,  
a raça e o sexo/gênero.  
268  
A compreensão de um Estado, que para além de burguês, também se constitui pela  
branquitude, é dada pela noção de um contrato racial, algo como um conjunto de acordos  
formais ou informais mantidos entre os membros brancos (extensivo às mulheres desse grupo  
racial) a fim de categorizar a população não branca como inferior, subpessoas, de modo que se  
justifique ocupar “posição civil subordinada em regimes políticos brancos ou governados por  
brancos, que os brancos já habitam ou estabelecem, ou em transações com esses regimes na  
condição de estrangeiros[...]”. O Estado ocidental, no qual generalizam- se as noções de  
cidadania, emancipação e socialização da política, ainda é esse mesmo Estado, embora se  
silencie quanto seu fundamento racial. Busca, sobretudo, um privilégio diferencial dos brancos  
enquanto grupos em relação aos demais3 (Mills, 2023, p. 43).  
Já na esfera do sexo/gênero, a fundação do Estado ocidental incorporou uma separação  
entre a esfera pública e a esfera privada, assumindo uma configuração jurídica e institucional  
3
É importante lembrar que, embora nem todas as pessoas brancas estejam conscientes desse pacto, todas são  
beneficiarias dele.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 264-281, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Socialização da política versus privatização do Estado: elementos para reposicionar a democracia em  
tempos de crise orgânica representação e representatividade  
apoiada em valores tidos como masculinos (Sacchet, 2012). Tanto quanto no contrato racial,  
essa espécie de contrato sexual também é frequentemente escamoteada nas teorias que se  
ocupam de debatê-lo. Segundo Pateman (2023), o contrato sexual seria o meio pelo qual os  
homens transformam seu direito “natural” sobre as mulheres, de um período pré-moderno, em  
direito patriarcal civil, agora na forma da lei (quem vota; quem pode ser proprietário; quem  
responde por si).  
O Estado moderno, conforme vemos, tem um fundamento classista, racista e sexista.  
Mas ao fundar uma ordem secular, de um poder que emana dos homens, acabou por fornecer  
meios de questionamento, de busca por uma situação que não é, mas que poderia ser.  
Trabalhadores, negros e mulheres, ao se apropriarem desses discursos, encaparão lutas em favor  
da radicalização da democracia, e de uma igualdade de fato.  
Em Marx (2010) entendemos a secularização como fundamento próprio da emancipação  
política, e esta, como aspecto essencial da construção da cidadania moderna, falando mais  
especificamente da Europa. Embora se trate de um processo limitado, dentro da ordem vigente,  
é passo intransponível na realização da emancipação humana. Assim, segundo o autor;  
A dissociação do homem em judeu e cidadão, em protestante e cidadão, em  
homem religioso e cidadão, essa dissociação não é uma mentira frente a  
cidadania, não constitui uma forma de evitar a emancipação política, mas é a  
própria emancipação política, ela representa o modo político de se emancipar  
da religião (Marx, 2010, p. 42).  
269  
E dessa forma a religião deixa de ser o espírito do Estado, agora um Estado político, de  
cidadãos genéricos, um Estado terreno, passível de lutas praticas. Lembremos, o Estado  
medieval tinha por base o direito divino, sociedades rígidas e fechadas. O que ocorre com a  
emergência do Estado moderno é justamente um deslocamento dessa base, por um processo de  
desenvolvimento das relações econômicas (a própria ascensão da burguesia), que se estenderia,  
nas palavras de Bobbio (1987, p. 50) “para além do governo da casa, de um lado, e do aparato  
dos poderes públicos, de outro”.  
A cidadania decorre, assim, de uma ideia de igualdade, sem a qual o Estado moderno e  
a democracia liberal representativa, como sua organização e expressão política, não teria se  
erguido. A tradição marxista demonstrou, porém, os fundamentos da constituição dessa forma  
política: a propriedade capitalista. Suas leis e instituições reduzem-se a aparência por trás das  
quais a burguesia exerce poder. O que aconteceu, a despeito dos interesses dessa classe, é que  
“as lutas contra essas aparências tornou-se então a via para uma democracia real” em que a  
igualdade e a liberdade seguiriam “encarnadas nas próprias formas de vida material e da  
experiência sensível”, não mais mera aparência (Rancière, 2014, p. 9).  
Bárbara T. Sepúlveda; Miriam Krenzinger  
É a sociedade civil, composta por uma série de instituições (os aparelhos privados de  
hegemonia), tais como partidos políticos, associações, sindicatos, jornais, dentre outros, o que  
logra forçar uma maior democratização da sociedade, uma vez aceita a natureza mundana-  
secular do Estado, e decretada a igualdade, ainda que formal, entre os homens (sua emancipação  
frente a esse Estado, sua cidadania). Assim, a socialização da política estaria relacionada  
justamente a possibilidade de tematização de questões e propostas a partir dos vários  
instrumentos existentes na sociedade civil e a expectativa de que tomem a forma de uma lei,  
direito ou serviço a partir do Estado.  
Um exemplo, nesse sentido, é dado por Rancière (2014). Diz respeito às lutas em torno  
do salário, que se deram no intuito de demonstrar que não se tratava de algo circunscrito a  
relação senhor e servo, patrão e empregado, e, portanto, privado, mas uma questão a ser  
regulada pelo Estado. Como esse, outros também passam a ser tematizados, envolvendo não  
somente o reino da produção, mas o voto feminino, questões de sexualidade, educação, saúde,  
meio ambiente, raça. Não por acaso o autor identifica o que chama de novo ódio à democracia,  
essa que se quer real demais, e o respectivo esforço de reapropriação que as oligarquias  
empreendem na tentativa de repor o poder ora perdido, em meio a ampliação da esfera do  
público.  
Ao também se voltar para essa ampliação, Bobbio (1987, p. 51) demonstra como no  
processo de emancipação dos sujeitos e da sociedade em relação ao Estado, e sua organização  
na sociedade civil, seguiu-se, um caminho inverso, algo próximo de uma reapropriação desse  
Estado pela sociedade. O Estado que, sobretudo no século XX, avança no sentido das garantias  
sociais, mal se distinguiria “da sociedade subjacente que ele invade por inteiro através da  
regulação das relações econômicas”, mas a muito não se restringindo a elas. Completa o autor:  
270  
Observou-se, de outra parte, que a este processo de estatalização da sociedade  
correspondeu um processo inverso mas não menos significativo de  
socialização do Estado através do desenvolvimento das várias formas de  
participação nas opções políticas, do crescimento das organizações de massa  
que exercem direta ou indiretamente algum poder político, donde a expressão  
“Estado Social” pode ser entendida não só no sentido de Estado que permeou  
a sociedade mas também no sentido de Estado permeado pela sociedade  
(Bobbio, 1987, p. 51).  
Bobbio (1987) defende a impossibilidade de uma conclusão. Estado e sociedade civil  
atuariam como dois momentos necessários, distintos, mas interdependentes. Ainda que partindo  
do pensamento gramsciano, acaba assumindo limitações conceituais e políticas. Ignora o  
conteúdo revolucionário dado pela Sociedade Regulada, quando o Estado, em sua expressão  
restrita, seria absorvido pela sociedade civil, dando fim ao dilema que propõe. Também não  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 264-281, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Socialização da política versus privatização do Estado: elementos para reposicionar a democracia em  
tempos de crise orgânica representação e representatividade  
presenciou a onda conservadora que, pós-década de 1970, volta-se justamente contra esse  
Estado social.  
Há mais alguns pontos a se considerar. Um Estado Social ou uma eventual socialização  
do Estado, não foi um fenômeno generalizável ao conjunto dos países capitalistas. Mesmo suas  
formas conhecidas, representadas no Welfare State europeu, dependeu da reunião de certas  
condições, numa conjuntura histórica específica, e não foram capazes de destituir o caráter de  
classe desse Estado. Tal qual advertem Demier e Gonçalves (2017, p. 23):  
ainda que sua existência só tenha sido alcançada por meio de décadas e  
décadas de lutas dos trabalhadores pela efetivação de direitos sociais, civis e  
políticos, a democracia representativa, enquanto uma das formas políticas  
assumidas pelo Estado capitalista, não deixa de ser, nunca, uma forma de  
dominação política do capital sobre o trabalho.  
Os limites e as potencialidades dessas lutas não estão dadas a priori, mas constroem-se  
na realidade concreta e na história. São nesses termos que se torna compreensível o quão  
socializada a política é, e como isso impacta na construção de um Estado mais ou menos  
permeado pela sociedade civil e, nesse caminho, aberto a ação dos grupos subalternos.  
Os limites do "Estado Ampliado" no Brasil  
Nas Veias Abertas da América Latina, Galeano (2000) lembra o massacre impetrado  
pelos colonizadores europeus contra os povos nativos nessa porção do planeta. Cavalos e  
bactérias teriam sido responsáveis pela morte de milhões. Aqueles que resistiram seriam  
subjugados pelo “casamento” da cruz com a espada, respectivamente igreja católica e Estados  
colonizadores, os quais marcharam juntos no saque às riquezas da América.  
271  
O tráfico negreiro, muito lucrativo, acabaria por suplantar a servidão indígena, ao que a  
“descoberta” por parte da igreja de que o “índio”, na verdade, tinha alma, contribuiu bastante.  
Dessa forma, milhões de africanos são sequestrados e trazidos ao continente como mão de obra  
escravizada, compondo o quadro geral que alimentou, substancialmente, o desenvolvimento da  
Europa, não nos esquecendo de todo o terror, a violência e o racismo característicos.  
Não é possível entender a realidade política e a estruturação do Estado brasileiro sem  
que entendamos sua inserção nos processos de dominação e exploração colonial a que esteve  
sujeita a América Latina, na alvorada capitalista. E esse movimento implica em ao menos dois  
processos fundamentais, que correm conectados: o primeiro corresponde aos recursos gerados  
pela exploração das colônias, que financiariam mais tarde o estabelecimento de manufaturas, e  
a própria revolução industrial. O segundo, por outro lado, nos mostra como tal exploração  
acabou impedindo que as regiões saqueadas também se industrializassem, passando a meros  
Bárbara T. Sepúlveda; Miriam Krenzinger  
fornecedores de produtos primários. Fosse ouro, prata, açúcar, ou outro qualquer, a economia  
colonial estruturou- se em função das necessidades do mercado europeu e a seu serviço, o que  
se mostrou algo difícil de ser superado, mesmo após o fim da era colonial (Galeano, 2000).  
Uma burguesia que se molda aos interesses estrangeiros dará vida a Estados igualmente  
orientados a partir de fora. O liberalismo, e o conjunto de leis e práticas políticas  
correspondentes, chegam ao continente como que filtrados, o que dificulta mesmo os ganhos  
restritos experimentados pelos trabalhadores europeus, sobretudo no que se refere à  
generalização da ideia de cidadania, a igualdade que serve de base ao Estado moderno. Não há  
emancipação política em territórios que convivam com a escravidão (a desigualdade é sua base),  
em meio a sociedades fechadas; o desenvolvimento da sociedade civil fica igualmente  
comprometido sem que a produção seja socializada, sem terra e sem indústria.  
Fernandes (2006), ao tratar especificamente do Brasil, mostra como tal realidade  
implicou num tipo de deformação do regime de classes, pela formação de uma sociedade  
altamente segregada, social e racialmente. O esforço de superar o ranço colonial esbarraria  
assim numa condição estrutural: nosso escravismo tardio, expressão cunhada por Moura,  
(2019), conformou instituições e práticas do Estado; mobilizou ideologicamente, através do  
racismo, a própria sociedade brasileira. Por outro lado, a dependência externa se refletiria na  
dificuldade de se construir relações mais equânimes com os países industrializados, e um  
projeto autônomo de desenvolvimento.  
272  
Um padrão de dominação autocrático, num contexto de não generalização da igualdade,  
levaria negação dos conflitos sociais, e uma deslegitimação dos movimentos e demandas dos  
“de baixo”, operando a perpetuação de uma rígida estrutura social, funcional ao capitalismo  
dependente (Fernandes, 2006). Aquela tematização e/ou publicização das condições de vida e  
trabalho vivenciada pela população, própria dos processos de socialização da política, é, nesse  
sentido, abafada. O Estado opera assim segundo uma lógica privada, a partir da ideologia do  
mando e do favor, e, portanto, da subordinação, do arbítrio cenário em que florescem os  
coronéis, latifúndios e “carteiradas”.  
No trato da questão racial, esse Estado, como demonstra Ferreira (2000), viabilizará  
todo um aparato coercitivo, não somente a partir de regulações, mas pela criação de espaços  
propriamente ditos e alvos específicos, no exercício do monopólio da violência. A autora  
lembra os açoites no pelourinho, as torturas e execuções, a perseguição aos capoeiristas (sob a  
desculpa da vadiagem), e às religiões de matriz africana. Raça ainda se faz presente na  
estruturação do Estado brasileiro nas manobras ideológicas que lograram naturalizar o lugar  
dos homens e mulheres negras: O branqueamento e democracia racial. Nega-se o racismo,  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 264-281, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Socialização da política versus privatização do Estado: elementos para reposicionar a democracia em  
tempos de crise orgânica representação e representatividade  
imputa-se aos próprios negros a responsabilidade pela precariedade em que vivem, ao mesmo  
tempo em que se acusa as vozes destoantes de radicais.  
Pontua- se que essas formas autoritárias de se fazer política no Brasil não representam  
a ausência e/ou fraqueza de mobilização e luta popular. Registram-se na história do país  
inúmeras revoltas e insurreições; dentre escravizados, fugas, rebeliões, quilombos, formas de  
resistência que se contrapõe a ideia da passividade das camadas populares. Uniam-se e  
investiam energia nas suas próprias organizações, fora da esfera do Estado (Velloso, 1990), o  
que evidencia novamente nossa particularidade diante do modelo de revolução burguesa  
realizada na Europa, com operários, cidadãos frente ao Estado, organizando-se a partir de  
grandes partidos, greves, etc. algo que no Brasil só ocorrerá no século XX.  
Na análise realizada por Coutinho (2010), a particularidade da formação social e política  
brasileira torna-se compreensível à luz da categoria gramsciana de Revolução Passiva. Nesse  
tipo de configuração, ao mínimo lampejo de uma vontade popular organizada, uma reação das  
classes dominantes força uma restauração, com a devida exclusão das forças populares, ao que  
se segue alguma renovação, sempre dentro da ordem. Essa espécie de forma elitista e  
antipopular de desenvolvimento capitalista marcaria todo nosso processo histórico,  
perpetuando, com poucas variações, os mesmos grupos no poder, ao passo que demais estratos  
da sociedade, ao que acrescentamos: os descendentes mais diretos do sistema colonial e  
escravista permanecem fora dele.  
273  
Iamamoto (2008) adota como caminho para a compreensão dos processos de  
desenvolvimento do Brasil, a noção de modernização conservadora. Nela, o novo emerge sem  
que o velho seja superado. Ao contrário do que algumas análises de ordem marxistas poderiam  
prever, por aqui a modernização capitalista se fez a despeito da ausência de uma revolução  
burguesa “clássica”. O latifúndio pré-capitalista e a dependência externa adéquam-se,  
conformam-se ao novo padrão. O primeiro transforma- se em empresa capitalista agrária, o  
segundo, sob um cenário de internacionalização, acaba por contribuir para uma maior  
urbanização e mais complexa estrutura social.  
Demier (2012), como Coutinho (2010), também se inspira no autor sardo. Apresenta o  
que chama de via bonapartista no desenvolvimento do país, o que teria garantido, por um  
percurso, o qual define como sinuoso, errático e intrinsecamente contrarrevolucionário, nossa  
modernização capitalista. Isso a partir da sucessão de regimes políticos cujo resultado foi a  
transformação do Brasil em uma sociedade de massas, ainda que profundamente desigual e  
combinada.  
Bárbara T. Sepúlveda; Miriam Krenzinger  
A ação desses regimes políticos afirma, em última análise, a primazia do Estado como  
motor da modernização brasileira, não a burguesia. Aliás, ponto comum entre os três autores.  
A modernização do país envolve ainda a imposição de certos padrões de conduta e valores  
culturais tidos como universais. Esse Estado promotor, destaca-se, era um Estado europeizado.  
Não nos esqueçamos assim de demarcar o não lugar de negros, nordestinos e outros grupos  
(Velloso, 1990). O Brasil moderno havia de ser branco.  
A maturação de nossa sociedade civil dar-se-á sob a ditadura civil militar que toma o  
poder a partir de 1964. Paradoxalmente, a atitude coercitiva do Estado brasileiro, num momento  
de aprofundamento e modernização do capitalismo, em sua face monopolista, forneceu as  
condições de emergência de quadros políticos combativos (Coutinho, 2010). Era necessário  
ampliar a produção industrial, as comunicações, a pós-graduação e uma infinidade de outras  
áreas. Constituíram- se novos intelectuais, renovados aparelhos privados de hegemonia.  
Tornamo-nos uma sociedade ocidental.  
Os anos de 1980 e a redemocratização trouxeram a possibilidade histórica de mudança.  
Vislumbrou-se, a partir de então, condições internas favoráveis para a minoração de nosso  
autoritarismo social, expressão de Dagnino (2004) - de uma dinâmica naturalizada de negação  
do direito. A irrupção na cena política de sujeitos coletivos, com a tematização de questões  
tornadas fundamentais (saúde, moradia, proteção à infância, direito de minorias, etc.) forçaram  
a abertura do Estado brasileiro. A criação dos conselhos de direito e de política, das  
conferências, previstas na nova Constituição, e mais tarde, as experiências de orçamento  
participativo, ampliaram os sentidos da nossa democracia, para além da lógica restrita do voto.  
Uma linguagem de direitos fora, nesse sentido, instaurada, o que lembramos, nos  
marcos do capitalismo não garante igualdade real. Como Gramsci (2017) alerta na sua crítica  
aos utopistas, leis arbitrárias não teriam tal poder. O que vemos surgir é um novo pacto social,  
uma inflexão na cultura política brasileira, capaz de imprimir uma nova racionalidade: o direito  
a ter direitos. A superação de uma relação entre o Estado e as demandas populares, estabelecida  
a partir da “recorrente exclusão da participação popular nos processos de decisão política”  
(Durigueto, Souza e Silva, 2009, p. 14).  
274  
Certo que o conflito não poderia mais ser negado. Nenhuma restauração daria conta de  
anular os efeitos das lutas populares que explodiram naquele período, isto por que, elas  
conquistaram uma base material própria, autônoma, entre antigas e novas instituições da  
sociedade civil. A partir delas, novos consensos foram criados, alinhados aos interesses dos  
trabalhadores, das mulheres, negros, crianças, população LGBTQIAP+, entre outros, forçando  
a ampliação do Estado brasileiro. Contudo, é preciso lembrar a emergência do projeto  
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Socialização da política versus privatização do Estado: elementos para reposicionar a democracia em  
tempos de crise orgânica representação e representatividade  
neoliberal, que avança no país na década de 1990, e que passa a disputar, inclusive  
ideologicamente, espaço com o projeto democratizante, construído na década anterior.  
O projeto neoliberal tem implicado em perdas significativas no campo da política, na  
lógica da participação, também no que tange aos direitos de cidadania, agindo, segundo Braga  
(1996), no sentido de passivação do Estado, que perde suas funções reguladoras, em benefício  
do Mercado. O conjunto de ideais e valores sobre os quais se expandiu a lógica do direito,  
expresso na Constituição de 1988, passa agora a conviver com a defesa do enxugamento do  
Estado, tese disseminada entre os vários aparelhos privados atrelados à burguesia, nacional e  
internacional, para quem “a multiplicidade das demandas acerca dos serviços e gastos públicos  
inflaciona e sobrecarrega o sistema político” (Durigueto, 2008, p. 90). Tendo em vista as  
questões de ordem estrutural que recaem sobre a população negra brasileira, esta acaba por  
sofrer mais fortemente os impactos dos cortes e reformas regressivas efetuadas a partir desse  
ideário, frente a um Estado que encolhe.  
Crise orgânica, representação e representatividade  
As sociedades modernas, tipicamente ocidentais, segundo a tradição gramsciana,  
experienciaram a expansão da democracia, com suas variantes locais, como um fenômeno mais  
ou menos geral a partir do século XX. O modelo predominante fora, sobretudo, o da democracia  
liberal e/ou representativa, baseado no sufrágio universal, no parlamentarismo e na expansão  
da ideia de cidadania.  
275  
Demonstrado o caráter classista do Estado moderno, a representação igualmente não  
escapa a uma lógica historicamente elitizada- “uma representação das minorias que têm título  
para se ocupar dos negócios comuns”. Em países como o Brasil, marcado pelo colonialismo e  
escravidão, essa minoria corresponderia a um grupo restrito de homens pertencentes às classes  
mais abastadas, predominantemente brancas. Democracia e representação não são, assim,  
diretamente identificáveis, sobretudo se falamos de uma democracia real, não realizável na  
sociedade não igualitária (Ranciére, 2014, p. 69).  
O que Ranciére (2014) nos ensina é que aquilo que chamamos de democracia  
representativa, na verdade, compõe uma forma mista de funcionamento do Estado,  
fundamentada inicialmente no privilégio das elites “naturais”, e só depois desviada pelas lutas  
democráticas, o que aqui compõe o que viemos chamando de socialização da política. Tão  
pouco o sufrágio universal seria consequência natural da democracia. Nasceu da oligarquia, ao  
que acrescentamos o racismo e a misoginia inerentes, desviado pela luta democrática, pelos  
setores até então excluídos, mas perpetuamente reconquistado pela oligarquia. Votar, ser  
Bárbara T. Sepúlveda; Miriam Krenzinger  
votado, quando o que está em jogo são interesses destoantes dos dominantes (sejam assentados  
na classe, na raça, gênero ou qualquer outro) subverteu, na verdade, a lógica natural da  
representação, o que possibilitou conquistas reais para a população, direitos sociais amplos,  
comumente associados ao contexto europeu no pós-segunda guerra, e que alcança o Brasil, em  
certa medida, na década de 1980.  
Sob essa análise, uma eleição não garante que a voz do povo seja de fato ouvida, como  
se repete reiteradamente. Essa possibilidade, embora sempre limitada, estaria relacionada à  
capacidade desse povo- as classes e os grupos que a compõem- de se fazer representar,  
consideradas as condições históricas, econômicas e políticas, dadas estrutural e  
conjunturalmente.  
Na contemporaneidade, pós- crise do capital dos anos 1970, o que se verifica é  
justamente a limitação do uso democrático do sistema político, e aquelas conquistas,  
possibilitadas pelo avanço das lutas democráticas passam a ser atacadas. Há um recuo da  
democracia, que assume, para Demier e Durigueto (2017), a forma de uma democracia blindada  
aos interesses populares, em nome de se retomar e garantir as taxas de lucro.  
Embora eleições continuem a ocorrer, isto está longe de significar que os programas  
defendidos pelos candidatos vindos dos meios populares, quando vitoriosos, sejam  
implementados de fato, tanto em virtude dos limites da política interna e externa (dívida pública,  
restrições orçamentárias, pressões de organismos multilaterais), quanto pelo que os autores  
identificam como uma espécie de revezamento, em que dois blocos político- partidários, um  
conservador e outro composto por partidos do campo social democrata, assumem um programa  
contra reformista, de cunho neoliberal. No caso desses últimos, à revelia de um discurso  
alinhado às demandas populares, reduzido, na prática, às políticas públicas focalizadas na  
extrema pobreza e/ou programas sociais compensatórios.  
276  
Não estranhamente uma crise de representação, manifesta na distância, descrença e/ou  
apatia entre representantes e representados tem se colocado como mais um desafio, num cenário  
já tornado dramático pelo neoliberalismo, que solapa os sentidos da cidadania numa escala  
global, mas especialmente bárbaro na periferia. Há um clima geral de possibilismo, ao que tem  
acarretado a ressignificação e respectivo esvaziamento de valores democráticos. Soma-se à  
crise econômica, uma crise política, fenômeno descrito por Gramsci (2017) sob a rubrica da  
Crise Orgânica.  
Gramsci (2017) teorizou a Crise Orgânica como contexto em que a classe dirigente  
perde seu papel junto aos representados, embora siga dominante. O fato de se manifestar em  
meio a uma crise econômica prejudica a capacidade material dos grupos e classes articularem  
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tempos de crise orgânica representação e representatividade  
um novo projeto, que alcance e implique o conjunto da sociedade, ou seja, que se estabeleça  
uma hegemonia, abrindo uma lacuna, que pode vir a ser preenchida pelos que ele chama de  
homens providenciais ou carismáticos, por um tipo de equilíbrio estático, em que prevalece a  
imaturidade, tanto de progressistas como de conservadores. Acentua que:  
O processo é diferente em cada país, embora o conteúdo seja o mesmo. E o  
conteúdo é a crise de hegemonia da classe dirigente, que ocorre porque a  
classe dirigente fracassou em algum grande empreendimento político para o  
qual pediu ou impôs pela força o consenso das grandes massas (Gramsci,  
2017, p. 61).  
Para Gomes e Rojas (2017) há uma relação direta entre a agenda neoliberal, que se  
instaurou nos países da América Latina, e a estratégia de passivação do Estado, que implica na  
crise de representação. Dito de outra forma, a construção de contra tendências e busca de espaço  
para a valorização do capital, num contexto de crise econômica, se dá sob uma lógica da  
regressão social (o inverso de um Estado socializado). Ganham espaço o apelo e/ou retorno às  
instituições tradicionais; o que mais tem de atrasado e conservador em termos de projetos  
políticos (a oligarquia retoma o Estado).  
No Brasil esse fenômeno alcança maior expressão nas jornadas de junho de 2013, o que  
redundou no processo de impedimento da presidenta Dilma Roussef e ascensão do governo  
Bolsonaro, de extrema direita, atestando as tais formas mórbidas de política que oportunamente  
estabelecem- se por ocasião da crise de representação (Bianchi, 2017; 2019).  
277  
Mas, o fundamental no que diz respeito aos objetivos postos por esse artigo é entender  
até que ponto essa crise logrou reposicionar os sentidos da representação, também entre  
progressistas. Quer dizer, em que medida os questionamentos em torno das formas políticas  
existentes, conservadoras e nesse ponto, reacionárias, repercutiram de forma a recriar novos  
caminhos e personagens para a luta democrática, que façam frente a naturalização das  
desigualdades e preconceitos. Defendemos a hipótese de que as demandas em torno de  
representatividade espelham as lutas em torno de uma maior democratização da sociedade e do  
próprio Estado brasileiro, ressignificando e renovando a representação.  
Embora em número ainda menor, mulheres negras, indígenas, transexuais4, alcançam  
visibilidade na cena pública, oferecendo um contraponto aos políticos tradicionais, homens  
brancos de classe alta. Longe de mero identitarismo5, o que se presencia é justamente a  
4 Dentre as quais, destacamos Talíria Petrone, Jack Rocha, Sônia Guajajara, Célia XaKriabá, Erika Hilton, Duda  
Salabert.  
5
Não negamos os riscos e prejuízos de uma política essencialista, apenas defendemos que para além deles, a  
representatividade pode favorecer a representação, produzindo ambientes mais diversos, dando voz a sujeitos  
marginalizados.  
Bárbara T. Sepúlveda; Miriam Krenzinger  
reformulação da representação, é reforma moral pautada na ideia de representatividade (não  
estranhamente teve político baiano, Estado brasileiro com maior número de pessoas negras,  
acusado de escurecer a pele).  
Efetivamente, uma política pautada na representatividade avança no sentido de garantir  
um olhar singular e íntimo sobre a realidade de grupos que compõem a população brasileira,  
facilmente ignorada por políticos tradicionais, mesmo no campo progressista, que se apegam a  
pautas gerais, negligenciando a complexidade que se constituem as relações e os sujeitos em  
sociedade.  
Quando falamos de mulher negra, sem o entendimento de como gênero inscreve o corpo  
racializado, ou de como raça imprime uma experiência de gênero com outros significados, não  
se alcança a lógica salarial do mercado de trabalho, em que mulheres negras seguem na base da  
pirâmide, recebendo menos que a mulher branca e o homem negro. Igualmente não se  
compreende as desigualdades no que se refere ao acesso à aposentadoria, quando mulheres  
negras apresentam maior dificuldade em acessar um trabalho formal (lembremos de toda  
resistência envolvida na regularização do trabalho doméstico no Brasil, onde são maioria). Ou  
porque são as maiores vítimas de violência obstétrica... ou ainda, como padrões de beleza e  
feminilidade associado à brancura, e sua publicização pelas várias mídias, repercutem na auto-  
estima e na forma como as mulheres negras acessam (ou não acessam) um relacionamento  
amoroso.  
278  
Essas e outras questões não inviabilizam ou enfraquecem as lutas em torno da  
democratização da sociedade brasileira, mas na verdade, as ressignifica. Geral e particular não  
se excluem.  
Além desse olhar singular, que também educa, enquanto forasteiras de dentro (Outsider  
Within), nos moldes daquilo que aponta Collins (2016), para demarcar a experiência e agência  
das mulheres negras em espaços de poder – a presença de mulheres negras entre as eleitas para  
representar a população ainda propiciaria o desmantelamento das "narrativas discriminatórias  
que sempre colocam minorias em locais de subalternidade. Isso pode servir para que, por  
exemplo, mulheres negras questionem o lugar social que o imaginário racista lhes reserva"  
(Almeida, 2019, p. 68).  
O cuidado, além de não reduzirmos a questão da falta de poder de todo um grupo a  
mera visibilidade (a representatividade é sempre institucional e não estrutural), é  
entendermos que nem sempre o representante espelha suas demandas (lembremos um jovem  
parlamentar negro, ex-MBL, que tem se colocado abertamente contra às cotas). Trata-se de  
sujeitos diversos. Ainda assim, não deixa de ser uma conquista. Não se pode menosprezar a  
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tempos de crise orgânica representação e representatividade  
“força da eleição ou o reconhecimento intelectual de um homem negro e, especialmente, de  
uma mulher negra [...] quando se trata de uma realidade dominada pelo racismo e pelo  
sexismo” (Almeida, 2019, p. 68).  
Contudo, insistimos: a luta democrática é coletiva. Seu resultado também só tem  
sentido na medida em que alcança mais pessoas. As mulheres negras brasileiras, ocupadas  
dessa luta, entenderam isso.  
O trabalho junto aos movimentos sociais possibilitou o acúmulo necessário ao  
amadurecimento político desses sujeitos. Na aproximação com a política institucional, viu-se a  
possibilidade histórica de se alcançar outros grupos e de promover mudanças significativas a  
partir do Estado, pela tematização da realidade vivida pela população negra, sua inclusão na  
agenda governamental. A partir daí ganham vida discussões que englobam educação, acesso à  
emprego e renda, cuidados em saúde, cotas em concurso público, processos de reconhecimento  
de quilombos, entre outros, que se desdobram em leis e materializam-se em políticas públicas.  
Essas e outras conquistas democratizantes veem-se ameaçadas diante do avanço do  
projeto neoliberal, que encontra na crise política e econômica instalada no país um cenário ainda  
mais propício para realização das suas contrarreformas. Embora a eleição de Lula da Silva para  
seu terceiro mandato, represente uma vitória frente à barbárie da extrema direita, não seria  
prudente negar a conjuntura desfavorável. A nossa democracia segue blindada.  
Nesse cenário é justamente a população negra, especialmente as mulheres negras, quem  
mais sofre. Sua experiência escancara o racismo o estrutural, que impõe a elas, seus filhos e  
companheiros, uma realidade marcada pela violência e pela precariedade das condições de vida  
e trabalho. Votar e ser votada, ainda que não se traduza imediatamente em políticas públicas  
que façam frente a realidade, é um começo, é expectativa que movimenta o jogo político.  
279  
Considerações finais  
Numa sociedade tão desigual quanto a brasileira, a conservação de um modelo  
representativo montado sob bases elitistas, serve apenas a reprodução de tal estado de coisas.  
No cenário atual essa constatação assume ares ainda mais problemáticos, pela imposição de  
reformas restritivas, sob a hegemonia do capital financeiro, pela disseminação de um ideário  
minimalista quanto aos direitos outrora conquistados. Mais do que nunca, os sentidos da  
representação partidária sob uma democracia burguesa (em si mesmo limitada), passam a ser  
questionados. Quem, de dentro do poder, de fato nos representa?  
A descrença na política, a ausência de direção moral, em meio a sensação de "mais do  
mesmo" ajusta- se bem a agenda neoliberal. Mas a democracia não é estática, é “ação que  
Bárbara T. Sepúlveda; Miriam Krenzinger  
arranca continuamente dos governos oligárquicos, o monopólio da vida pública e da riqueza, a  
onipotência sobre a vida” (Rancière, 2014, p. 121). Tal afirmação nos lembra as lutas que  
lograram alterar a lógica inicial da representação, socializar a política, e ampliar o Estado, isso,  
muitas vezes, a despeito dos interesses das classes dominantes.  
A representatividade pode servir a representação, no sentido de uma reformulação ou  
renovação, possibilitando um canal por meio do qual as demandas de grupos historicamente  
subalternizados adquirem visibilidade, ao mesmo tempo em que oferece a quebra de  
estereótipos que alimentam essa subalternidade. Socializar a política, o Estado ou mesmo a  
sociedade brasileira, implica, sim, em nos vermos mais em quem nos representa. É educativo,  
orgânico e emancipatório.  
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