DOI 10.34019/1980-8518.2021.v23.41396  
– Tradução dos Clássicos –  
As palavras e as coisas no pensamento econômico*  
Pierre Vilar**  
Nem vida, nem ciência da vida na época clássica; tampouco filologia. Mas  
sim uma história natural, uma gramática geral. Do mesmo modo, não há  
economia política porque, na ordem do saber, a produção não existe. Em  
contrapartida, existe, nos séculos XVII e XVIII uma noção que nos  
permaneceu familiar, embora tenha perdido para nós a sua precisão essencial.  
Nem é de "noção" que se deveria falar a seu respeito, pois não tem lugar no  
inerior de um jogo de conceitos econômicos que ele deslocaria levemente,  
confiscando um pouco do seu sentido ou corroendo sua extensão. Trata-se  
antes de um domínio geral, uma camada bastante coerente e muito bem  
estratificada que compreende e aloja, como tantos objetos parciais, as noções  
de valor, de preço, de comércio, de circulação, de renda, de interesse. Esse  
domínio, solo e objeto da “economia” na idade clássica, é o da riqueza. Inútil  
colocar-lhe questões vindas de uma economia de tipo diferente, organizada,  
por exemplo, em torno da produção e do trabalho; inútil igualmente analisar  
seus diversos conceitos (mesmo e sobretudo se seus nomes em seguida se  
perpetuaram com alguma analogia de sentido) sem levar em conta o sistema  
em que assumem sua positividade. Isso equivaleria a analisar o gênero  
segundo Lineu fora do domínio da história natural, ou a teoria dos tempos de  
Bauzée sem levar em conta o fato de que a gramática geral era a condição  
histórica de sua possibilidade”1.  
Tal é, em As palavras e as coisas, uma das teses de Michel Foucault, ou melhor, tal é a  
tese de Michel Foucault, aqui aplicada às "coisas" econômicas.  
Tais são também um método de exposição e um estilo cujos segredos não é supérfluo  
questionar.  
De início a frase curta, incisiva e decisiva: “não...”, “isso não existe”, “inútil para...”.  
*
Les mots et les choses dans la pensée économique; publicado em La Nouvelle Critique, juin 1967, numero 5  
(186), Paris. Tradução e notas de Ronaldo Vielmi Fortes.  
** Pierre Vilar (Frontignan, 3 de maio de 1906 - Donapaleu, 7 de agosto de 2003) foi um hispanista e historiador  
francês. É considerado uma das maiores autoridades no estudo da História de Espanha, tanto no período do Antigo  
Regime como na Época Contemporânea, bem como na história económica e na história social em geral. Como  
marxista, ele criticou o fim da União Soviética e do Bloco de Leste. Foi a referência mais destacada da  
historiografia catalã desde a segunda metade do século XX.  
1
FOUCAULT, Michel; As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas; São Paulo, Editora  
Martins Fontes, 1999; p. 228.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 268-285, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
As palavras e as coisas no pensamento econômico  
Em suma, a hipótese de trabalho colocada como fundamento inabalável, e transformada por  
essa certeza em condicionamento do leitor. Se se é pouco competente, é convocado a aceitar  
tudo. Competente, se tremerá só de pensar em ser vítima do "se assim quiser" e do "inútil  
para...". Quantas mentes conseguem resistir a esse terrorismo?  
Mas Michel Foucault também joga outro jogo, ele também usa a frase longa. Sob o  
esmerado edifício do rigor exigido (exigido dos outros), ele sabe cavar (para si) o labirinto dos  
incidentes, e torná-lo mais desconcertante através do espelho das imagens. A “noção” que ele  
pretende apresentar – a “riqueza” – não é sequer uma “noção”. É “domínio”, “camada”, “solo”.  
É estranho ao jogo dos conceitos. Ele “abriga” “objetos”.  
Pelo menos até ao momento em que, desta mesma “riqueza”, nos seja vedado analisar  
os diversos vários conceitos fora do sistema que eles constituem.  
Assim, o zumbido das palavras abstratas e das imagens-palavras nos conduziu do  
afirmativo ao vago, do vago ao contraditório. Grande comodidade para o nosso demonstrador  
que poderá responder a qualquer objeção, aqui pensou em “coleção”, ali pensou em “sistema”.  
Mas será essa a única confusão permitida pelo seu rigor?  
Para Michel Foucault, a “era clássica” começa com o Quixote, especialmente com sua  
segunda parte, digamos em 1615.  
No entanto, 1615, para qualquer leitor medianamente informado, é também o ano em  
que, pela primeira vez, certas palavras aparecem no frontispício de um livro: Tratado de  
Economia Política, de Antoine de Montchrestien2. No entanto, somos advertidos: “Na era  
clássica, não há economia política”.  
269  
T
R
A
D
U
Ç
Ã
O
Surgiria então uma palavra no alvorecer de uma época da qual somos convidados a  
eliminá-la? E eliminá-la em nome do quê, senão da nossa concepção do que ela abrange? Que  
é exatamente o pecado mortal contra o qual acabamos de ser advertidos, imperiosamente,  
solenemente. O que é então um conselheiro que não segue seu conselho? O que é uma  
meditação sobre palavras que descarta o testemunho de seu nascimento? O que é uma  
arqueologia do saber que não respeita a sua própria cronologia?  
Pois, depois de uma brilhante demonstração do contraste entre dois “saberes” – o do  
século XVI, o da “era clássica” – eis que a demonstração, no que diz respeito à economia,  
primeiro situa a "era clássica" nos “séculos XV e XVI”, mas depois inclui Davanzati3 – ou seja,  
2 Antoine Monchrestien de Watteville, nasceu em Falaise em 1575 e faleceu em Tourailles em 7 de outubro de  
1621, foi um poeta, dramaturgo e economista francês. Ele foi o primeiro a usar o termo "economia política".  
Publicou em 1615 o Traité d’économie politique (versão revista e publicada na integralidade em 1616)  
3 Bernardo Davanzati (1529-1606) foi um agrônomo, economista e tradutor italiano. Davanzati foi um importante  
tradutor de Tácito. Ele escreveu sobre economia fundamentado sobre a teoria do metalismo (princípio econômico  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 268-285, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Pierre Vilar  
a década de 1580 –, o “Compendious examination4 – ou seja, a década de 1540 – e até  
Copérnico5 – que nos leva de volta a 1520. É verdade que, no outro extremo do “domínio”, a  
“era clássica” parece se estender pelo menos até [David] Ricardo.  
Digo “parece”, porque com Cantillon6, [François] Quesnay, Adam Smith (e ainda que  
esqueçamos William Petty), sustentar que, “na ordem do saber”, “a produção não existe”, torna-  
se difícil, até mesmo para Michel Foucault, que vai se torturar diante das evidências. Mas, a  
partir daí, será muito ruim para quem se deixar levar pela autoridade do tom.  
Não vou censurar Michel Foucault por ter caricaturado, em um atalho favorável, a  
"história das doutrinas econômicas" como, infelizmente, ainda é ensinada. Também me  
aconteceu de denunciar os estereótipos de manual, as sequelas de Gonnard7.  
O que me incomoda aqui é que Michel Foucault leva esses fantasmas a sério. Se tivesse  
preferido a História da análise econômica de Schumpeter, essa obra-prima, o Theorien über  
den Mehrwert de Marx, esse modelo de exploração genética de um pensamento, ou ainda,  
simplesmente, tal apresentação de Alfred Sauvy8 dos “primitivos” da economia, sem dúvida ele  
teria falado mais modestamente. Que o “preço justo” medieval se baseia numa problemática  
“puramente moral”, que o mercantilismo é uma “confusão sistemática” entre riqueza e dinheiro,  
que a utilidade aparece pela primeira vez em Galiani9, o “preço natural” em Cantillon, julgava  
que essas coisas velhas estivessem enterradas. Michel Foucault coloca-os como contrastes para  
sua análise. Pouco importaria se a análise fosse boa. No entanto, podemos condenar  
antecipadamente qualquer pesquisa de um certo tipo sobre as sementes do pensamento  
científico no cerne dos textos antigos, se não nos referimos primeiro aos verdadeiros  
especialistas nesta pesquisa, se desdenhamos sistematicamente o que eles nos disseram sobre  
270  
T
R
A
D
U
Ç
Ã
O
segundo o qual o valor do dinheiro deriva do poder de compra da mercadoria na qual ele se baseia). Suas obras  
incluem Notizie dei cambi (1582) e Lezione delle monete (1588).  
4 Referência à obra de autoria anônima: Compendious or briefe examination of certayne ordinary complaints, of  
diuers of our country men in these our dayes.  
5
Copérnico, Nicolau. “Moneto cudente ratio”. In: Wolowski, M. L. (Ed.). Traictie de la première invention des  
monnoies de Nicole Oresme et Traité de la monnoie de Copernic. Genève: Slatkine Reprints, 1976 [1526].  
Tradução em português: Sobre a moeda (1526). Tradução A. H. P. R. de Moura. Curitiba: Segesta, 2004 [1526].  
6 Richard Cantillon (c. década de 1680 – maio de 1734) foi um economista franco-irlandês e autor de Essai sur la  
Nature du Commerce en Général (Ensaio sobre a Natureza do Comércio em Geral), livro considerado por William  
Stanley Jevons como o "berço da economia política". Apesar da pouca informação existente sobre sua vida, sabe-  
se que em sua juventude se tornou banqueiro e mercador de sucesso.  
7
René-Charles Gonnard (1874-1966), doutor em ciências políticas e econômicas e posteriormente doutor em  
direito. Vilar faz referência aqui á obra L’Histoire des doctrines économique, que assim como numerosos outros  
artigos escritos por Gonnard estão impregnados de um nacionalismo virulento.  
8 Alfred Sauvy, nascido em Villeneuve-de-la-Raho (Pyrénées-Orientales) em 31 de outubro de 1898 e falecido em  
Paris em 30 de outubro de 1990, foi um economista, demógrafo e sociólogo francês.  
9
Ferdinando Galliani (2 de dezembro de 1728 - 30 de outubro de 1787, Nápoles) foi um economista italiano e  
figura de destaque do Iluminismo. Dentre suas obras se destacam: Della moneta (1750) e Dialogues sur le  
commerce des bieds (1770).  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 268-285, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
As palavras e as coisas no pensamento econômico  
"o nascimento enigmático desse conhecimento”?  
Reconheçamos que Michel Foucault, ao propor sua própria demonstração, teve um  
escrúpulo. Ele observou que a “análise da riqueza”, mais do que a gramática geral ou a história  
natural, sempre esteve ligada à prática e às instituições. Uma feliz reserva, mas rapidamente  
esquecida, pois imediatamente se repete que a prática e a teoria, no seio de uma “cultura” e num  
dado momento, dependem da mesma “episteme”, que define as condições das possibilidades  
de todo saber”. Assim, a reforma monetária de 1575 e a reforma de Law10 assentariam “na  
mesma base arqueológica”.  
Confesso que, se eu fosse consultar os textos da época, colocaria Oresme11 e Jacques  
Rueff12 na “fundação” da reforma de 157513. Mas Michel Foucault, sem dúvida, vê as coisas de  
forma diferente. É preciso ouvir suas justificativas.  
Moedas e preços no século XVI  
Ele também busca suas justificativas nos textos. Para o século XVI, nas obras publicadas  
por Le Branchu, o que não é inteiramente reconfortante. Porque se confiarmos nas palavras,  
teríamos que buscá-las em outro lugar que não em traduções medíocres. E é muito fácil atribuir  
às pessoas do século XVI preocupações exclusivamente monetárias (“ou quase isso”), se lermos  
a seleção de Ecrits notables sur la monnaie14 [Escritos notáveis sobre dinheiro].  
Aceitemos, porém, provisoriamente, ater-nos a Copérnico, ao Compendious  
271  
T
R
A
D
U
Ç
Ã
O
10  
O sistema de Law, idealizado pelo escocês John Law, foi implantado na França, sob a regência de Philippe  
d'Orléans, de 1716 a 1720, cujo objetivo consistia em liquidar a dívida deixada por Luís XIV. Uma de suas  
particularidades é desenvolver o uso do papel-moeda em substituição ao dinheiro metálico, de forma a facilitar o  
comércio e o investimento.  
11 Nicole Oresme, nasceu em Fleury-sur-Orne (então Alemanha) por volta de 1320-1321 e faleceu em Lisieux em  
11 de julho de 1382, foi filósofo, astrônomo, matemático, economista, musicólogo, físico, tradutor de língua latina  
e teólogo que estudou e viveu na França medieval. Ele foi bispo de Lisieux e conselheiro do rei Carlos V, o Sábio.  
Escreveu em 1355 o Tractatus de origine, natura, iure et mutationibus monetarum (Tratado sobre a origem,  
natureza, lei e mudanças do dinheiro).  
12 Jacques Rueff, nascido em 23 de agosto de 1896 em Paris e falecido em 24 de abril de 1978 na mesma cidade,  
foi um alto funcionário público e economista francês, que desempenhou um papel importante nas políticas  
econômicas realizadas na década de 1930 e, especialmente, a partir de 1958. É autor de vários livros e artigos de  
economia. Provável referência ao livro L’Ordre social, em que elementos da história da economia são tratados.  
13  
Em 1575-7, a França experimentou o auge de uma aguda crise monetária que uma reforma monetária sem  
precedentes tentou resolver. Sua principal medida consiste em abolir a conta em libras de tournois em favor de  
uma chamada moeda real, o ecu de ouro.  
14  
LE BRANCHU, Jean Yves; Écrits notables sur la monnaie, XVIe siècle, de Copernic à Davanzati; Paris:  
Librairie Félix Alcan, 1934.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 268-285, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Pierre Vilar  
examination, a Bodin15, a Malestroit16, a Davanzati, velhos conhecidos. Mesmo a propósito  
deles, Michel Foucault demonstra pouco, afirma muito. Para os homens desse tempo, diz ele,  
“assim como as palavras tinham a mesma realidade daquilo que diziam, assim como as marcas  
dos seres vivos estavam inscritas sobre seu corpo à maneira das marcas visíveis e positivas,  
assim os signos que indicavam as riquezas e as mediam deviam, eles próprios, trazer sua marca  
real dela”17.  
Curiosa definição da episteme econômica de um tempo em que, justamente, quase  
nenhuma moeda real trazia a marca de seu valor nominal, ainda que fixado por decreto. Nós é  
que ficamos surpresos com esse divórcio.  
Estou bem ciente de que o que impressiona Michel Foucault na controvérsia monetária  
de 1575 é que os homens entraram em uma luta para obter essa conjunção de valor e marca.  
Mas ele se esquece de enfatizar que, embora eles tenham conseguido, isso não durou nem trinta  
anos. Então, o "saber" monetário de toda uma "era" foi imposto apenas por meio da luta, e  
apenas por um curto período? Mas onde estava, então, o "a base" determinante, a "episteme"  
constrangedora, a coerência entre prática, teoria e "cultura" que havia sido postulada?  
De fato, o problema de 1575-1577, como o do tempo de Qresme, ou de Copérnico (ou  
de Locke, ou de Law, ou de Aftalion18), é o conflito, tão antigo como a moeda, entre os seus  
diversos papéis e as suas diversas formas; moeda-objeto (que é uma mercadoria), moeda-signo  
(que é “corrente” e fiduciária), moeda-nome (que é apenas uma medida de valor). Sobre isso,  
nunca diremos mais do que Marx disse, graças ao seu conhecimento sério, dos textos dos  
séculos XVII e XVIII. Mas se quisermos voltar mais longe, será uma episteme do "signo", uma  
episteme "do Renascimento" que encontraremos? Ou simplesmente, diante do mesmo  
problema, uma reflexão nova sobre fatos novos?  
272  
T
R
A
D
U
Ç
Ã
O
Copérnico queria uma moeda fixa, como a braça ou o alqueire, pois o dinheiro deve ser  
15  
Jean Bodin (Angers, 1530 — Laon, 1596) teórico político, jurista francês, membro do Parlamento de Paris e  
professor de Direito em Toulouse. O autor é reconhecido pelos seus estudos que foram de suma importância para  
o avanço dos conceitos de soberania e absolutismo dos Estados. “Os Seis Livros da República” é uma das grandes  
obras de Jean Bodin, considerada como o primeiro tratado político sistemático da época.[19] A obra foi escrita em  
meio às guerras de religião e pretendia resolver os impasses nas guerras civis e religiosas na França e, ao mesmo  
tempo, que fosse uma obra acessível.  
16  
Jean de Malestroit (século XVI) economista conhecido por seus debates sobre a moeda, mais tarde referido  
como Controvérsia sobre o Dinheiro, debates travados entre Malestroit e Jean Bodin. Cf. Malestroit, Jehan  
Cherruyt de (1567), “Mémoires sur le faict des monnoyes, proposez et leues par le Maistre des Comptes De  
Malestroit au Privé conseil du Roi tenu à Sainct Maur des Fossez le 16 jour de may 1567”, in: L. Einaudi (ed.),  
Paradoxes inédits du Seigneur de Malestroit touchant les monnoyes avec la response du Président de la Tourette,  
Turin: G. Einaudi, 1937, pp. 99-130.  
17 FOUCAULT, Michel; As Palavras e as Coisas; op. cit. p. 231.  
18 Albert Aftalion (1874–1956) economista francês nascido na Bulgária. Foi professor na Universidade de Lille e  
depois na Universidade de Paris. Autor de várias obras de economia, dentre elas: Les crises périodiques de  
surproduction; Paris: Librairie de Sciences Politiques et Sociales, 1913.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 268-285, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
As palavras e as coisas no pensamento econômico  
medido. Malestroit localizou esta medida fixa no metal precioso. Bodin descobriu que esse  
metal, que confere "estimativa e preço às coisas", pode ele mesmo, pela abundância, mudar de  
valor. É essa descoberta que importa para nós. O parentesco das três posições, se formos buscar  
nas noções de relação, medida, comensurabilidade. nos levaria de volta a Aristóteles, descer às  
teorias do equilíbrio. O que há de grave em Foucault é que, por meio de imagens e comparações,  
ele define como típicos de um século problemas que são eternos porque são formais, enquanto  
se recusa a ver o que cada século, sob o ditado de “coisas” novas, impõe conquistas ao espírito.  
Ora, o que é novo no século XVI, é que este metal “precioso”, “raro, útil e desejável”,  
calibrado pelo seu peso, e única referência possível na prática do comércio internacional,  
começou a mudar de valor, não por oscilações momentâneas, localizadas ou distantes (com as  
quais os cambistas e comerciantes sempre jogaram), mas na Europa, diante de todos os  
produtos, de forma desigual, sem dúvida, mas rapidamente. Isso é o que perturbou o espírito  
das pessoas, perturbou seu “saber”. O que é emocionante é descobrir o limite imposto a essa  
agitação pelas ferramentas mentais do século: ou é medir o impacto, nas ferramentas mentais  
do século, do “fenômeno que se produziu”, nos mercados do México, de Potosi, nas gradas de  
Sevilha?  
Não vou censurar Michel Foucault (embora seu livro não seja de desencorajar o  
pedantismo) por não ter lido a tese inédita de Humbleton, o fragmento de Azpilcueta19 que foi  
publicado muito recentemente na França, ou qualquer um dos meus artigos que permaneceram  
desconhecidos por ele. Mas como ele estava confrontando o pensamento econômico de um  
século, pelo menos poderia ter complementado Le Branchu com Monroe, Grice Hutchison20,  
Hamilton21, Larraz22, ou seja, com os textos aos quais eles se referem. Talvez ele tivesse  
extraído deles argumentos para sua tese, porque, formalmente, eles pertencem ao seu século.  
Mas no fundo, eles não se contentam em simplesmente vincular a riqueza e o sinal de riqueza;  
273  
T
R
A
D
U
19 Martin d'Azpilcueta, nascido em Barásoain em Navarra em 13 de dezembro de 1491 e falecido em Roma em 21  
de junho de 1586. Achamado de "Doutor Navarro" ou "Navarra", foi um canonista e teólogo espanhol. Foi o  
primeiro a desenvolver a teoria quantitativa do dinheiro e um dos maiores intelectuais de seu tempo; ele pertence  
à Escola de Salamanca.  
Ç
Ã
O
20  
Marjorie Grice-Hutchinson (Eastbourne, Inglaterra, 26 de maio de 1909 - Málaga, 12 de abril de 2003),  
economista britânica radicada em Málaga, especialista em pensamento econômico na Espanha, e muito  
particularmente na Escola de Salamanca e pensamento econômico medieval.  
21 Alexander Hamilton (Charlestown, 11 de janeiro de 1755 - Nova Iorque, 12 de julho de 1804) estadista, político,  
acadêmico, comandante militar, advogado, banqueiro e economista americano. Ele foi um dos “Pais Fundadores”  
dos Estados Unidos e um importante intérprete e influente proponente da Constituição federal americana, além de  
ter sido um dos principais fundadores do sistema financeiro dos Estados Unidos.  
22 José Larraz López (Cariñena, província de Saragoça, 1904 - Madrid, 1973) foi um jurista, economista, sociólogo,  
filósofo histórico e político espanhol. Seu discurso de entrada para a Academia Real de Ciências Porais e Política  
(Madrid), proferido em 5 de abril de 1943, foi intitulado La época del mercantilismo en Castilla (1500-1700) e  
tratou da Escola de Salamanca.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 268-285, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Pierre Vilar  
eles estão buscando a dinâmica concreta de sua relação. Que não venha Michel Foucault objetar  
que, de qualquer forma, trata-se de uma “análise da riqueza” baseada na troca, ou eu pedirei a  
ele colocar Cournot23 e Walras24 na mesma “base”. Pois, eles não partem da “produção”, até  
onde eu sei!  
Tudo gira, em Mercado25, em torno da distinção entre “estimativa” e valor da moeda. O  
real vale 34 maravedi26 tanto na Índia quanto na Espanha, mas “a estimativa é muito diferente  
aqui e ali. A prata vale muito menos nas Índias do que na Espanha... Estimativa, valorização  
que vem primeiro da grande abundância ou escassez desses metais; e como eles nascem e são  
colhidos lá, eles são mantidos lá por muito pouco...”  
Mercado examina então todos os fatores que influenciam a estimativa do dinheiro. No  
tempo e no espaço. Ele lamenta que essa medida de valor não seja “fixo, certo, permanente”,  
como a arroba ou a hora do relógio. Mas ele observa que, na Índia, o valor de uma “barra” de  
prata muda “pelas mesmas razões que o tecido”. Inversamente no caso dos tecidos, ele sabia  
que um certo veludo de Granada havia subido em 15 dias de 28 para 35 réis, porque alguém  
queria carregar uma caravela com ele. A comparação entre mercadoria e dinheiro não é uma  
construção intelectual que Malestroit “lê” de uma forma e Bodin de outra; é uma observação  
do mercado, interpretada por testemunhas com graus variados de penetração e posições  
diferentes.  
274  
Todas as mercadorias aumentarão de preço se forem muito necessárias e em  
pequena quantidade; e o dinheiro, na medida em que é algo que pode ser  
vendido, trocado ou objeto de qualquer outro contrato de troca, é uma  
mercadoria e, portanto, aumentará de preço, como já foi dito, de acordo com  
a grande necessidade dele e a pequena quantidade que se tem dele... Se todas  
as outras coisas forem iguais, em um país onde há falta de dinheiro, todos os  
outros bens vendáveis, e até mesmo o trabalho dos homens, serão oferecidos  
por menos dinheiro do que em um país onde há abundância de dinheiro. A  
experiência prova que na França, onde há menos dinheiro do que na Espanha,  
o pão, o vinho, o linho e o trabalho valem muito menos; e na própria Espanha,  
quando havia menos dinheiro, as coisas vendáveis, os braços e o trabalho dos  
homens eram oferecidos por muito menos do que desde que a descoberta das  
Indias a cobriu de ouro e prata. A causa disso é que o dinheiro custa mais caro  
onde falta e quanto falta, do que onde abunda e quando abunda; e se alguns  
dizem que a falta de dinheiro o rebaixa, é porque o excesso dele faz com que  
T
R
A
D
U
Ç
Ã
O
23 Antoine Augustin Cournot, nascido em 28 de agosto de 1801 em Gray (Haute-Saône) e falecido em 30 de março  
de 1877 em Paris, foi um matemático e filósofo francês particularmente interessado na formalização de teorias  
econômicas. Ele é, portanto, um dos primeiros a formular um modelo de oferta e demanda.  
24  
Marie Esprit Léon Walras (Évreux, 16 de dezembro de 1834 - Le Châtelard, 5 de janeiro de 1910) foi um  
economista francês. Considerado por Joseph Schumpeter como "o maior de todos os economistas", ele foi o "pai"  
da primeira formulação completa da teoria do equilíbrio econômico geral.  
25 Tomás de Mercado (Sevilha, 1523-1575): economista, filósofo e teólogo dominicano, pertencente à Escola de  
Salamanca. Publicou, em 1568, Suma de tratos y contratos.  
26 O maravedí, ou maravedi, foi o nome de várias moedas ibéricas de ouro e depois de prata entre os séculos XI e  
XIV e o nome de diferentes unidades contábeis ibéricas entre os séculos XI e XIX.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 268-285, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
As palavras e as coisas no pensamento econômico  
tudo pareça mais barato, assim como um homem de pequena estatura, na  
presença de um homem muito alto, parece ainda menor do que um homem de  
sua própria estatura.  
Esse texto de Martin de Azpilcueta, que é anterior a Bodin e vai mais longe do que ele,  
pode ter encantado Michel Foucault com seu jogo de confrontos e sinais. Mas ele contém toda  
a experiência de um século (a palavra está lá) e todos os fundamentos de uma teoria psicológica  
apoiada em noções de equilíbrio: oferta, demanda, necessidade, escassez. Não estamos tão  
longe do marginalismo. Nem da matemática. “Todas as coisas sendo iguais”, “o valor do  
dinheiro é desigual, mas essa desigualdade é igualada pela quantidade desigual...” “Quantidade  
desigual é igual a apreciação desigual...”.  
Foucault apontou a fórmula em Bouteroue27. Mas se tivermos que procurar  
semelhanças, é claro que ela vem dos escolásticos. Mas até onde se estende o “domínio”? De  
Buridan28 a Jevons29?  
De fato, o que interessa a Michel Foucault é a imagem literária. Quando Davanzati  
escreveu em Florença, em 1586,  
A natureza fez todas as coisas terrenas boas; a soma delas, em virtude do  
acordo concluído pelos homens, vale todo o ouro que pode ser trabalhado;  
todos os homens, portanto, desejam tudo para adquirir todas as coisas... Para  
constatar a cada dia as regras e proporções matemáticas que as coisas têm  
entre si e com o ouro, teríamos de ser capazes de contemplar, do alto do céu  
ou de algum observatório muito alto, as coisas que existem e são feitas sobre  
a terra, ou melhor, suas imagens reproduzidas e refletidas no céu como em um  
espelho fiel. Então, abandonaríamos todos os nossos cálculos e diríamos:  
existe sobre a terra tanto ouro, tantas coisas, tantas pessoas, tantas  
necessidades; na medida em que cada coisa satisfaz essas necessidades, seu  
valor será tantas coisas ou tanto ouro.  
275  
T
R
A
D
U
Ç
Ã
O
Aqui está o comentário de Michel Foucault:  
As marcas da similitude, porque guiam o conhecimento, endereçam-se à  
perfeição do céu; os signos da troca, porque satisfazem o desejo, apoiam-se  
na cintilação negra, perigosa e maldita do metal. Cintilação equívoca, pois  
reproduz no fundo da terra aquela que rutila na extremidade da noite; aí reside  
como uma promessa invertida de felicidade, e porque o metal se assemelha  
aos astros, o saber de todos esses tesouros perigosos é ao mesmo tempo o saber  
do mundo30.  
Muito bonito. Mas Davanzati disse isso? Ele disse apenas que “em virtude do acordo  
concluído pelos homens” (ele em outro lugar enfatiza seu caráter convencional), o ouro era  
27 Bouteroue d'aubigny, Claude de; chevalier, intendente da Nova França 1668-1670. Referência ao livro do autor  
intitulado: Recherches curieuses des monnaies de France. Citado por Foucaul, cf. Palavras e as coisas, p. 243.  
28 Jean Buridan (em latim: Joannes Buridanus; 1300-1358) foi um filósofo e religioso francês.  
29 William Stanley Jevons (Liverpool, 1 de setembro de 1835-Bexhill, 13 de agosto de 1882) foi um economista  
britânico. Foi um dos fundadores da Economia Neoclássica e formulador da teoria da utilidade marginal.  
30 FOUCAULT, Michel; As Palavras e as Coisas; op. cit. p. 237.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 268-285, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Pierre Vilar  
chamado para medir valores. Surge então o problema: qual é a proporção do ouro existente e  
os valores a serem representados? Ele o coloca mal, com certeza, mas não de forma mais  
ingênua do que Locke ou Montesquieu, ou muitos outros quantitativistas do século XIX. Porque  
ele está tentando incluir o número de homens, a noção de necessidade e a relação entre as coisas.  
O que ele está procurando é a equação de Fisher. O que ele sonha é com um planejador mundial  
que conheça o suficiente os termos da equação para definir racionalmente o nível de preços ou  
a oferta monetária. Ele ainda está sonhando? É claro que é minha vez de traduzir Davanzati.  
Mas eu o traio menos do que Michel Foucault. Este último, ao discernir em uma de suas frases  
a imaginação do povo do século XVI, quer reduzi-la a ela, confiná-la a ela. Busco nele as  
sementes de um raciocínio futuro. E elas estão lá, sem a menor dúvida. A episteme analógica  
do século XVI reina, na verdade, em Michel Foucault mais do que em Davanzati. Pois quando  
este último recua das visões globais para a prática cotidiana, ele escreve, com simples bom  
senso:  
Daqui de baixo, mal descobrimos as poucas coisas que nos cercam e damos a  
elas um preço de acordo com a maior ou menor demanda que vemos em cada  
lugar e em cada momento. Os comerciantes ficam de maneira rápida bem  
cientes disso, e é por isso que eles sabem o preço das coisas de forma  
admirável.  
Michel Foucault interpreta isso da seguinte forma:  
276  
Nos confins do saber, lá onde ele se faz todo-poderoso e quase divino, três  
grandes funções se juntam: as do Basileus, do Philósophos e a do Metallikós.  
Mas, assim como esse saber só é dado por fragmentos e na fulguração atenta  
da divinatio, assim também, no que se refere às relações singulares e parciais  
entre as coisas e o metal, o desejo e os preços, o conhecimento divino, ou que  
se poderia adquirir ‘de algum observatório elevado’, não é dado ao homem.  
Salvo por instantes e como que por sorte, aos espíritos que sabem espreitar,  
isto é, os mercadores31.  
T
R
A
D
U
Ç
Ã
O
Fazer com que um Florentino dizer que a ciência dos preços é dada aos comerciantes  
“por instantes e como que por acaso”, se isso é “arqueologia”, prefiro a história. Perguntemos  
a Davanzati o que ele quer dizer com “comerciante” e o que ele lhe empresta em termos de  
divinatio”:  
Se o valor do dinheiro caísse de 12 para 1, os preços das coisas subiriam de 1  
para 12. A pequena camponesa, acostumada a vender sua dúzia de ovos por  
um ás, e vendo em sua mão um ás reduzido a uma onça, diria: Senhor, ou o  
senhor me dá 12 desses ovos reduzidos a uma onça, ou me dá um ás de 12  
onças, ou lhe dou um ovo por um ás.  
Sem invocar os Metallicos, nem os Philosophos. Quanto ao Basileus, eis o que disse um  
comerciante, às vésperas da reforma de 1577:  
31 FOUCAULT, Michel; As Palavras e as Coisas; op. cit. p. 238,  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 268-285, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
As palavras e as coisas no pensamento econômico  
O valor do denário32 deve ser entendido como aquele segundo o qual é  
corrente entre os mercadores e no comércio, por uso e observação comuns; e  
o que se diz que o valor do denário depende da autoridade pública deve ser  
entendido mais pelo valor pelo qual a moeda é exibida entre mercadores e  
outras pessoas do que pela vontade imposta pelo Príncipe, pois a lei que  
estabeleceu o preço do centavo tomou lugar como é pelo uso observado pelo  
povo, tanto que o não uso dele o abole.  
Essa é a afirmação de que o preço de mercado (que se trata de coisas mercadorias ou da  
moeda) tem precedência sobre as decisões reais. Desde a época dos escolásticos, os  
comerciantes e os “doutores” sempre concordaram com isso: “preço justo”, “lei natural” e  
“consenso popular” são termos que se referem ao preço de mercado.  
Se descartarmos as extrapolações líricas, o que resta da episteme econômica do século  
XVI de Foucault? Em minha opinião, não muita coisa. Não que a questão levantada seja sem  
interesse. Poderíamos ter mostrado em que medida tais imagens dominantes - religiosas,  
mágicas, astrológicas - ou essa confusão erudita, interditam, limitam, obscurecem, se misturam,  
com incidências diversas, com a trajetória de ideias fixadas desde a Idade Média, mas que lidam  
com fatos novos. A experiência dos teólogos (que Michel Foucault negligencia) é  
impressionante a esse respeito.  
O que é exato é que os homens do século XVI, na medida em que apreenderam esses  
novos fatos, eram levadas a considerá-los do simples ponto de vista da troca (a palavra era dada  
aos comerciantes, não aos produtores), e o mercado, “oferta e demanda”, tinha precedência  
sobre todas as outras considerações. O problema do preço de produção, do custo do trabalho,  
pode surgir ocasionalmente em um Saravia de la Calle33, assim como surgiu com Aristóteles ou  
Buridan. Ele é mal colocado, mal resolvido. Jamais insignificante. Mas, enfim, o fato de o  
“preço” ter precedência sobre o “valor”, a troca sobre a produção, é uma característica desta ou  
daquela “camada” ou “idade” arqueológica? Eu o vejo mais como uma linha que vem sendo  
traçada há muito tempo (desde sempre?) e que jamais foi interrompida. Pois ela é um dos modos  
de análise. É o caminho microeconômico e subjetivista, há muito tempo oposto (e agora  
frequentemente combinado) ao caminho dos cálculos globais e dos custos de produção. Esse  
último caminho foi aberto principalmente no final do século XVII na Inglaterra. Michel  
Foucault mal o mencionou, se é que o fez. Devemos acreditar que os espanhóis, franceses,  
277  
T
R
A
D
U
Ç
Ã
O
32  
Pequena moeda de prata que era a de maior circulação no Império Romano. Mesmo após a sua extinção, o  
denário continuou a servir de unidade de conta no Império Romano. Posteriormente, diversos países adotaram o  
termo "denário" (ou uma variação) para designar as suas moedas nacionais, como o denier francês e o dinar usado  
em países árabes. A própria palavra dinheiro, em português (dinero, em espanhol e denaro em italiano) vem do  
latim denarius.  
33  
Luis Saravia de la Calle; (século XVI) Teólogo e economista espanhol. Ele é o autor de Instrucción de  
mercaderes (1544), que trata de questões mercantis, como a teoria quantitativa da moeda, e fornece dados sobre o  
estado da economia na Espanha.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 268-285, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Pierre Vilar  
ingleses e italianos do século XVI e da primeira metade do século XVII ignoraram a noção de  
produção? Que, aos olhos deles, ela “não existia”? Aqui, mais uma vez, Michel Foucault afirma  
e demonstra. Mas ele escolhe seus textos e, ainda mais frequentemente, fala por eles. Temo que  
ele possa ter perdido uma grande descoberta humana, no limite do século XVI e da "era  
clássica": justamente a da descoberta da produção.  
A noção de produção no alvorecer da “era clássica”  
Voltemos a uma de nossas primeiras objeções, à frase: “Não há economia política na era  
clássica” porque “na ordem do saber, a produção não existe”, contrastamos o fato de que, na  
mesma data em que Michel Foucault fixou o início da “era clássica”, as palavras “Œconomia  
política” apareceram no Traicté d'Antoine de Montchrestien34.  
O fato de a palavra “Œconomia”, etimologicamente associada à casa e ao seu bom  
funcionamento, ter sido elevada pela justaposição da palavra “política” ao nível da “polis”, a  
comunidade, não é pouca coisa. Ambas as palavras foram emprestadas de Aristóteles. Mas não  
tomamos emprestado da crematística, que se refere à riqueza. Negligenciar essa preferência e  
essa nova combinação não seria se esquivar de um problema em um livro em que as palavras  
estão sendo postas em questão?  
Fomos aconselhados a ter cuidado com eles, é verdade. E, sem dúvida, a Œconomia  
política de Montchrestien tem pouco em comum com a de Samuelson. Mas será que isso se  
deve ao fato de ignorar a produção? Ficaríamos quase tentados a dizer “pelo contrário”. Aqui  
está o sumário do primeiro livro de Montchrestien: “Artes mecânicas. Sua ordem e utilidade. A  
regulamentação das manufaturas. O emprego de homens. Os ofícios mais lucrativos e  
necessários para as comunidades. A manutenção de boas mentes e o cuidado que o príncipe  
deve ter com elas”.  
278  
T
R
A
D
U
Ç
Ã
O
Por prudência, vamos interpretar esse último ponto como um apelo discreto à  
generosidade do “Príncipe”, e não como a descoberta do custo rentável da educação! Quanto  
ao resto, acho mais difícil encontrar “riqueza” e “troca” do que “produção” e “trabalho”.  
“É preciso trabalhar para se alimentar e se alimentar para trabalhar”. Esse seria o ponto  
de partida que, “pelo fio de uma boa ordem do discurso particular do trabalho manual”, levou  
Montchrestien a falar primeiro sobre agricultura.  
Vamos nos apressar em afirmar que o estilo, o quadro de pensamento e, sobretudo, o  
quadro de referência de Montchrestien são aqueles de sua época. O que não quer dizer  
34 Antoine de Montchrestien (1575-1621) foi um soldado, dramaturgo, aventureiro e economista francês. Publicou  
em 1615 o Traicté de l’oeconomie politique, baseado em grande parte nas obras de Jean Bodin.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 268-285, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
As palavras e as coisas no pensamento econômico  
exatamente aqueles sugeridos por Foucault. A “episteme” descrita por Foucault é limitada aos  
aspectos que lhe interessam. O peso da Bíblia, de Platão, de Aristóteles, de Cícero, de Catão e  
de Columella também merece ser apreciado. Isso não impede que Montchrestien alcance certa  
precisão em sua definição de produção agrícola:  
Desde que a terra, amaldiçoada pela transgressão de nossos primeiros pais, foi  
condenada a suportar sarças e espinhoso penar e o labor nos foram  
transmitidos como que por direito de sucessão, de acordo com a seguinte  
condenação: 'Comerás o teu pão com o suor do teu rosto'. Portanto, vida e  
trabalho estão inseparavelmente ligados... Daí a agricultura laboriosa que luta  
continuamente contra a esterilidade (da terra), e a força, ao fazê-la bem, para  
dar alguma recompensa por tanto trabalho e pagar o desgaste de tantos  
empréstimos. Daí o cuidado necessário para plantar e manter as videiras e  
outras árvores frutíferas. Daí a água necessária para regar os prados para que  
as ervas germinem e cresçam. Em seguida o cuidado e a alimentação do gado,  
cuja carne comemos e cujas roupas tiramos para vestir. É principalmente  
nessas coisas que se ocupa a vida rústica, da qual a agricultura é o trabalho e  
a ciência.  
Sublinhei duas palavras que se juntam não por acaso, porque a noção da produtividade  
das tradições e do conhecimento é clara: “Entre os lavradores, não é aquele que tem mais terra  
que obtém o máximo de seu labor, mas aquele que conhece melhor a qualidade natural de cada  
um de seus solos, qual semente é mais adequada e em que época deve ser semeada...”.  
As “artes” são menos necessárias para a vida, mas sem elas a vida seria “carente e  
imperfeita”. A primeira das artes é a forja, “o elemento comum de seus elementos, a mão de  
todas as mãos que trabalham, o primeiro instrumento de invenção; e digamos que ela é o fim  
de todas as outras, que são equipadas com ela, o motor e o órgão do movimento...”.  
Pois é por meio do ferro, o ferro da ferramenta, que “a imaginação instigada pela  
pesquisa curiosa encontrou na natureza (os meios) para levar à perfeição tudo o que depende  
da operação artificial”.  
279  
T
R
A
D
U
Ç
Ã
O
Estamos muito longe do “brilho negro, perigoso e maldito” do metal de Davanzati,  
analisado por Foucault. Não vamos nos deixar levar por isso. Sem mencionar a descoberta da  
produtividade agrícola e uma exaltação da tecnologia metalúrgica. Afinal de contas,  
Montchrestien está retornando a lugares comuns. Todavia, quando ele faz desses lugares  
comuns – e enfatiza que isso não era feito na antiguidade – a matéria de uma ciência que ele  
chama de "Œconomia Política", é possível negar que ele a esteja baseando na produção?  
Acrescentemos: e sobre o trabalho, do qual ele dá, por meio de memórias literárias, uma  
definição que é ao mesmo tempo admirável e singularmente cínica:  
Nenhum animal nasce mais estúpido do que o homem: mas em poucos anos  
ele se torna capaz de grandes serviços. Qualquer um que consiga fazer bom  
uso desse instrumento vivo, dessa ferramenta móvel, que seja susceptível a  
qualquer disciplina, que seja capaz de qualquer operação, pode se gabar de ter  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 268-285, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Pierre Vilar  
atingido o ponto mais alto de eficiência econômica em sua casa.  
Testemunhas Cato, Crassus e Cassius, que “não pouparam tempo, nem custos, nem  
diligência” para instruir e moldar seus escravos, transformando-os em um “comércio e  
mercadoria”. Então, aqui está desta vez, o custo rentável da educação técnica! A mais recente  
escola de história econômica americana se vangloria de ter demonstrado isso para explicar a  
rentatibilidade da posse de escravos às vésperas da Guerra Civil Americana.  
Mas se se tratasse de uma simples lembrança de leitura, o alcance da passagem, apesar  
de sua força na definição de homo faber, seria limitado. Mais curioso é o apelo que se segue:  
Montchrestien elogia a França e o cristianismo por terem ultrapassado o estágio do homem-  
ferramenta e do homem-mercadoria, mas parece estar procurando uma maneira de voltar para  
lá, em nome da eficiência social. "É verdade que a França tem essa glória, incomunicável a  
qualquer outro país, de ter sido, desde tempos imemoriais, o verdadeiro lar da liberdade, que a  
escravidão não tem lugar lá e que até mesmo o servo de um estrangeiro é libertado assim que  
põe os pés lá. Mas, uma vez que a servidão foi abolida por razões boas e cristãs, resta ao público  
tomar o cuidado de empregar os homens em artifícios e trabalhos que combinem o lucro privado  
com a utilidade comum”.  
A tese é que colocar as pessoas para trabalhar, o “berçário de artesãos”, “diversas  
oficinas para diversas manufaturas” seria a única maneira de vencer a vagabundagem, a  
bandalheira, o desemprego (que Montchrestien define perfeitamente) e a emigração.  
Traduzindo, a industrialização é a única maneira de vencer os efeitos do subdesenvolvimento,  
especialmente em tempos de expansão demográfica. Compreendo muito bem. Essa tradução é  
um crime. Eu uso nossas palavras. Estou usando nosso “saber”. Estou substituindo a minha  
“episteme” pela da “era clássica”. E esse anacronismo será justa e amargamente reprovado  
pelos melhores historiadores. Para dizer a verdade, eu estava me divertindo um pouco...  
No entanto... Eu pego os textos. Sob as palavras, procuro coisas. Com algumas nuances  
– fáceis de detectar – algumas coisas na velha economia põem problemas que nós nos  
colocamos. Nós os analisamos à nossa própria maneira. Montchrestien, à sua. Se nos  
encontrarmos, é a similaridade das coisas que nos conduz até lá. Onde elas diferem, não nos  
encontramos. Mas quando um homem procura novas palavras, quando ele distorce o significado  
de palavras antigas, esse é o sinal de coisas novas. Não é essa a lição mais esclarecedora da  
análise dos textos?  
280  
T
R
A
D
U
Ç
Ã
O
Portanto, não condenemos a priori (a aplicação pode ou não ser deformadora) a pesquisa  
vertical, linear e retrospectiva no âmago dos textos antigos. Mas não sejamos menos sensíveis  
às virtudes da análise horizontal, à confrontação de textos do mesmo período. Aqui nos  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 268-285, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
As palavras e as coisas no pensamento econômico  
aproximamos de Michel Foucault, mas em vez de ficarmos fascinados com as limitações  
comuns de forma, por que não descobrir com alegria as inovações comuns de conteúdo? Afinal,  
talvez seja isso que separa o historiador do filósofo formalista com sensibilidade literária. Se o  
último chama sua disciplina de “arqueologia”, isso não é, afinal, um grande inconveniente. Isso  
não tem grande importância.  
Voltemos, então, para o tempo de Antoine de Montchrestien. Vamos nos perguntar se  
ele foi o único, no início da “era clássica”, a refletir sobre o primado da produção?  
Em primeiro lugar, quando ele diz sobre a menor província da França que ela “fornece  
a Vossas Majestades seu trigo, vinho, sal, óleo, tecido, lã, ferro e lã, o que torna a França mais  
rica do que todos os peruanos do mundo”, ele está espontaneamente ecoando, sem se referir,  
aos pensamentos de Sully35: “Lavoura e pastagem são os dois seios dos quais se diz que a França  
se alimenta, e as verdadeiras minas e tesouros do Peru”.  
Quanta tinta foi derramada sobre os “Tesouros do Peru”! Mas não se engane pensando  
que esse desdém francês é simplesmente o fato de a raposa36 dizer que "eles são verdes demais".  
No alvorecer do século XVII, os espanhóis também condenaram a ilusão de riqueza que  
a conquista da Índia lhes deu. Assim Pedro de Valencia37:  
O mal vinha da abundância do ouro, da prata, do dinheiro, que sempre foi  
(mostrei em outro lugar) o veneno destruidor das cidades e das repúblicas.  
Acredita-se que o dinheiro é o que assegura a subsistência e não é. Heranças  
lavradas, rebanhos e pescas, é isso que faz subsistir as cidades e as repúblicas.  
(1608)  
281  
E Caxa de Leruela38, em1620, diz:  
T
R
A
D
U
Ç
Ã
O
As riquezas e os tesouros que as monarquias retiram do exterior não podem  
compensar a insuficiência dos frutos naturais da pátria... Desde que os  
espanhóis colocaram sua felicidade temporal na aquisição desses metais,  
desprezando, como disse Columella, a melhor maneira de manter e aumentar  
o patrimônio sem crime, ou seja, lavrando e pastoreando, eles perderam  
35  
Maximilien de Béthune, duque de Sully, nascido em Rosny-sur-Seine em 13 de dezembro de 1559 e falecido  
em Villebon em 22 de dezembro de 1641, marechal da França (1634) foi um soldado protestante e companheiro  
de armas do rei Henrique IV, de quem se tornou um dos principais conselheiros. Cf. Les Œconomies royales de  
Sully, éditées par David Buisseret et Bernard Barbiche, tome I (1572-1594), tome II (1595-1599), Paris, Librairie  
C. Klincksieck, 1970-1988.  
36  
Referência à fábula “A raposa e as uvas”. Chegando uma Raposa a uma parreira, viu-a carregada de uvas  
maduras e formosas e cobiçou-as. Começou a fazer tentativas para subir; porém, como as uvas estavam altas e a  
subida era íngreme, por muito que tentasse não as conseguiu alcançar. Então disse: - Estas uvas estão muito azedas,  
e podem manchar-me os dentes; não quero colhê-las verdes, pois não gosto delas assim. E, dito isto, foi-se embora.  
37 Pedro de Valência (falecido em 1631) foi um prelado católico romano que serviu como Bispo de La Paz (1617–  
1631) e Bispo de Santiago da Guatemala (1615–1617).  
38  
Miguel Caxa (modernizado como Caja) de Leruela (Palomera, província de Cuenca, 5 de maio de 1562 -  
Palomera, província de Cuenca, por volta de 1632), foi um economista espanhol, jurista e magistrado. Autor das  
obras: Discurso sobre la principal causa y reparo de la necesidad común, carestía general y despoblación destos  
reynos, Madrid, 1627 e Restauración de la abundancia de España, o prestantíssimo, único y fácil reparo de su  
carestía presente, Nápoles, Lázaro Scorigio, 1631.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 268-285, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Pierre Vilar  
estupidamente ambas as riquezas ao mesmo tempo.  
Dirão: lugares-comuns, latim universitário. Sim, mas os mecanismos destrutivos da  
“inflação construída sobre os tesouros do Peru” já haviam encontrado seu analista sutil em  
1600, embora um deles tenha ficado surpreso diante de sua própria descoberta: Martin Gonzalez  
de Cellorigo39, em um capítulo intitulado “Que a abundância de dinheiro não sustenta nem  
enriquece os Estados”, não se contentou com afirmações; bem antes de Cantillon, ele havia  
esboçado o processo destrutivo:  
Com a massa de moeda que foi cunhada, elevaram-se os impostos, as  
anuidades reais e as capitações, cujas exigências só podem ser satisfeitas pela  
circulação no reino de uma quantidade de moeda capaz de dar às coisas um  
valor tal que seu preço corresponda ao que os contribuintes têm de cobrir e ao  
que é necessário para sustentar a monarquia e honrar os compromissos que ela  
assumiu. O mesmo se aplica a bens e compromissos que devem ser pagos no  
exterior e cujos preços subiram tanto pela razão geral que a abundância de  
moeda... Esse é o resultado da abundância de moeda, de ouro e de prata, e esse  
é o valor deles quando faltam as coisas necessárias para a vida humana, coisas  
cuja falta em um reino faz com que esse reino não tenha a verdadeira riqueza...  
Jamais houve tantos súditos ricos como hoje, e nunca houve tanta miséria  
entre eles, jamais houve um rei tão poderoso e dono de tanta receita, e jamais  
até o momento um rei subiu ao trono com tamanha diminuição e  
endividamento de seus Estados. E o que tem impedido que a riqueza se enraíze  
vem do fato de que ela permaneceu e permanece no ar, em papéis, contratos,  
impostos, letras de câmbio, moeda, prata e ouro, e não em bens capazes de  
frutificar e atrair para si, por serem mais dignos, a riqueza dos estrangeiros,  
sustentando assim a do país.  
282  
Assim, portanto, se a Espanha não tem moeda, nem ouro, nem prata, é porque  
os tem, e se é pobre, é porque é rica, o que torna verdadeiras duas afirmações  
contraditórias que, embora se apliquem ao mesmo sujeito, são ambas  
verdadeiras em nossa Espanha, de acordo com os vários aspectos que são  
considerados no corpo de toda a República....  
T
R
A
D
U
Ç
Ã
O
O que aqui se abala é a episteme escolástica, cuja lógica se surpreende diante dessa  
dialética da “riqueza”. E Cellorigo, constatando “que de baixo para cima podemos calcular que  
entre os que trabalham e os que não fazem nada, a proporção é de um para trinta", conclui com  
a espantosa fórmula: “parece que queríamos fazer desta república uma república de homens  
encantados, vivendo fora da ordem natural das coisas.”  
Isso foi escrito em 1600. Dom Quixote foi publicado em 1605. Se ele anuncia a “era  
clássica”, se ele é, de acordo com Foucault, “uma escrita errante no mundo entre a semelhança  
das coisas”, Cellorigo já deu a razão.  
39  
Martin Gonzalez de Cellorigo: Economista espanhol, nascido em Oviedo no final do século XVI. Muitos  
detalhes sobre sua juventude são desconhecidos, embora se saiba que ele era um eclesiástico e advogado da  
chancelaria de Valladolid. Sua principal obra, Memorial da política necessária e útil, restauração da Espanha e  
seus estados e atuação universal desses reinos, foi publicada em Valladolid no ano de 1600.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 268-285, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
As palavras e as coisas no pensamento econômico  
Contra a ilusão do Peru, contra o mito das Índias - e ao contrário do que Michel Foucault  
imagina, seguindo os passos de muitos economistas apressados, a geração de 1600-1620 nunca  
deixou de opor o trabalho à ociosidade, a produção à “riqueza”.  
O que é surpreendente é a velocidade da assimilação as coisas por parte dos espíritos. O  
declínio espanhol mal havia começado e já estava sendo interpretado em termos de suas causas  
mais profundas. A ascensão econômica da Inglaterra e de Flandres estava em seus primórdios  
e já assombrava as pessoas em outros países como um modelo a ser imitado.  
Certamente, a riqueza monetária, e sua forma metálica, continuam sendo o signo dos  
países vencedores, dos países perdedores. “Fazer dinheiro”, nas origens da economia e da  
sociedade burguesa, era um objetivo coletivo antes de se tornar uma palavra de ordem  
individual. Mas Antonio Serra40, de sua prisão em Nápoles, escreveu em 1613, dois anos antes  
de Montchrestien, seu Breve tratado sobre as causas que podem fazer abundar ouro e prata em  
reinos que não têm minas. O que ele recomendou? As mesmas receitas de Montchrestien, mas  
mais fundamentadas teoricamente, pois ele contrastou o rendimento decrescente e irregular da  
agricultura com o custo decrescente da produção industrial: “Ninguém, se puder semear 100  
quartos de grãos no solo, poderá tornar possível semear 150, enquanto para o fabricante, não é  
assim: ele pode multiplicar não apenas o dobro, mas cem vezes o que produz, e com uma  
proporção menor de despesa”. Aqui, a antecipação do pensamento é particularmente clara,  
isolada demais para que dela possamos extrair um argumento. Mas como negar que os  
primórdios da “era clássica”, na viragem que opõe a crise espanhola aos primeiros sucessos do  
Norte, nos mostram uma reflexão econômica onde a produção assume o protagonismo? O  
próprio Quixote é uma forma de dizer, a contrário. Uma consciência de uma anacronia, de um  
irrealismo. Isso em nada invalida a interpretação dada por Michel Foucault. A multiplicidade  
de sentidos é própria às obras-primas.  
283  
T
R
A
D
U
Ç
Ã
O
Mas, por mais claro que seja o agrupamento de pensamentos entre 1600 e 1620, não é  
proibido encontrar em meados do século XVI a noção de produção exaltada contra a de riqueza.  
Luis Ortiz41, “contador de Burgos”, “para que o dinheiro não saia de Espanha”, manda expulsar  
toda a ociosidade e aí reintroduzir o trabalho; trabalho produtivo (muitos jovens vão para  
40 Antonio Serra (Dipignano, meados do século XVI - Nápoles, início do século XVII) foi um economista italiano  
e filósofo da escola mercantilista. Serra é considerado o primeiro escritor de economia política na Itália e um dos  
primeiros na Europa. Foi o primeiro a escrever um trabalho de política econômica sobre o mercantilismo, uma  
forma primitiva de protecionismo da política comercial, em 1613, intitulado Piccolo trattato sulla ricchezza e sulla  
povertà delle nazioni.  
41  
Ortiz, Luís de, M. (século XVI) contador e alto funcionário do Estado. Autor de um dos tratados mais  
interessantes sobre questões econômicas espanholas do século XVI: o Memorial para que no salgan dineros del  
Reino, datado de 1º de março de 1558 em Valladolid.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 268-285, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Pierre Vilar  
Salamanca, ou para o exército, ou para a Índia); as mulheres devem fiar com uma roca, não  
com um fuso, porque produz quatro vezes mais; e se a Espanha conseguisse reter o seu dinheiro,  
teria de o dedicar a grandes obras de irrigação, para regularizar a produção agrícola. Quanto ao  
comércio global, todos os itens do balanço de pagamentos (não comerciais) são analisados por  
Luis Ortiz.  
Assim, já em 1557 (para não falar dos precursores) existe uma linha de reflexão no  
sentido da análise macroeconómica, das “contas nacionais”, entre aqueles que, por posição,  
partem do Estado, tal como existe uma “linha microeconômica”, representada pelos teólogos,  
porque esses partem do indivíduo.  
“Era clássica” e “clássicos” da economia  
“Era clássica” e “clássicos” da economia. Este artigo já está muito longo. Não vou seguir  
Michel Foucault nos meandros de sua demonstração ao longo do século XVIII. Isso exigiria  
muito desenvolvimento. Vamos deixá-los para mais tarde.  
Contentemo-nos com algumas observações:  
1) De início, como sempre, sobre a questão da cronologia; o mundo da "arqueologia" é  
o das cronologias precisas; e se Michel Foucault faz alguma alusão aqui e ali à conjuntura, é  
sempre de forma bastante lamentável. Além disso, ele às vezes justifica formas de raciocínio de  
pleno século XVIII coma ajuda de argumentos que empregou para o século XVI, enquanto  
acredita discernir, no início do século XVII, uma “reversão”, uma “inversão” que introduziria  
o “mercantilismo”, sem destruir as estruturas essenciais do “saber”. Vimos que essa “inversão”  
tinha suas raízes em meados do século XVI e não correspondia de forma alguma às definições  
de Michel Foucault (particularmente no que diz respeito ao lugar dado à produção).  
2) Da mesma forma, Michel Foucault tem seu trabalho dificultado quando precisa  
identificar o "saber" de Law com o de Cantillon, o de Condillac com o de Quesnay. Mas, seja  
por comodidade ou negligência, o que dificilmente é admissível é o seu silêncio sobre o final  
do século XVII na Inglaterra, sobre Graunt42, King43, Petty44, em uma época em que nasceram  
284  
T
R
A
D
U
Ç
Ã
O
42 John Graunt (Londres, 24 de abril de 1620 - Londres, 18 de abril de 1674) foi um cientista e um dos primeiros  
demógrafos britânico, precursor na construção de Tábuas de Mortalidade. Graunt publicou em 1662 o livro Natural  
and Political Observations upon the Bills of Mortality, que lança as bases para a demografia e torna-se uma das  
obras pioneiras no estudo atuarial de mortalidade.  
43  
44  
William Petty FRS (Romsey, Hampshire, 27 de maio de 1623 - Londres, 16 de dezembro de 1687) foi um  
economista, cientista e filósofo britânico. Pioneiro no estudo da Economia Política, Petty propôs a utilização da  
métodos quantitativos - por ele chamados de aritmética política - como meio de análise da riqueza de um país.[1]  
Ele antecipou também a importância da velocidade de transações no equilíbrio das contas nacionais, conceito  
posteriormente ilustrado na Teoria quantitativa da moeda.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 268-285, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
As palavras e as coisas no pensamento econômico  
a preocupação estatística, a preocupação probabilística e a noção de custo de trabalho, tanto  
para o dinheiro como para as coisas. Esse silêncio, por si só, julgaria a seriedade do método.  
Há aqui um galocentrismo45 herdado não dos livros didáticos mais recentes, mas dos mais  
antigos.  
3) Como, em última análise, a episteme da “era clássica” deve opor-se (segundo as  
hipóteses de Foucault) à dos “clássicos” (no sentido corrente da palavra) da economia, as  
aquisições progressivas que levam a esta última são assim escamoteadas. E o próprio Smith é  
tratado por alusões. Quanto a Ricardo, será atribuída a ele uma descoberta de "historicidade"  
(pelo facto de ter anunciado a imobilização da história). A fim de admitir que nenhum “corte”  
existe entre ele e Marx.  
Pois trata-se de chegar na fórmula:  
“O marxismo está no pensamento do século XIX como um peixe n’água: o que quer  
dizer que noutra parte qualquer deixa de respirar”.  
Continuemos, pois há frases que devem ser saboreadas:  
Se (o marxismo) se opõe às teorias burguesas da economia, e se nessa  
oposição, projeta contra ela uma reversão radical da História, esse conflito e  
esse projeto têm por condição de possibilidade não a retomada de toda a  
História nas mãos, mas um acontecimento que toda a arqueologia pode situar  
com precisão e que prescreve simultaneamente, segundo o mesmo modo, a  
economia burguesa e a economia revolucionária do século XIX. Seus debates  
podem agitar algumas ondas e desenhar sulcos na superfície: são tempestades  
num copo d’água46.  
285  
Proponho que vá comemorar o quinquagésimo aniversário da Revolução de Outubro na Bacia  
de Luxemburgo. E verificar qual é a “arqueologia” que um “acontecimento” abala.  
Assim, a análise “arqueológica” de Michel Foucault, no campo da economia, termina  
tão infelizmente quanto começou. De bom grado deixo-lhe as de história natural e de gramática  
geral, esperando que as conheça melhor do que eu. Em todo caso, ele nos deixa a "doxologia",  
que me parece assemelhar-se a uma verdadeira análise histórica. Resta saber se esta análise,  
que através das palavras sempre se propõe a apreender as coisas, é compatível com uma  
pesquisa que subordina as coisas às palavras.  
T
R
A
D
U
Ç
Ã
O
45 Galocentrismo: conceito que se aplica principalmente ao campo político e cultural. Refere-se a uma atitude onde  
a França é vista como o centro do mundo, com suma importância em vários aspectos da vida.  
46 FOUCAULT, Michel; As Palavras e as Coisas; op. cit. p. 360.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 268-285, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518