“O evangelho segundo Foucault”
crítico da sociedade3. Dele se retirou as palavras mais ásperas e comprometedoras4, restando a
filosofia a marteladas como a expressão mais contundente do niilismo sobre a qual Foucault
funda a natureza mais íntima de seus procedimentos analíticos.
É de Nietzsche que Foucault recolhe a desconfiança em relação à razão, denunciando-a
como incapaz de instituir a verdade:
O que é, pois a verdade? Um exército móvel de metáforas, metonímias,
antropomorfismos, numa palavra, uma soma de relações humanas que foram
realçadas poética e retoricamente, transposta e adornadas, e que, após uma
longa utilização, parece a um povo consolidadas, canônicas e obrigatórias: as
verdades são ilusões das quais se esqueceu que elas assim o são, metáforas
que se tornaram desgastadas e sem força sensível, moedas que perderam seu
troquel e agora são levadas em conta apenas como metal, e não mais como
moedas.5
Ademais em Nietzsche o universo em sua totalidade, incluindo a esfera das relações
propriamente humanas, se constitui como multiplicidade caótica inexorável. A própria
objetividade do mundo é negada, não existe verdade, a morte de Deus é anunciada, o que
predomina no campo das formulações filosóficas são sempre “interpretações de interpretações”.
A radicalidade do caos generalizado, proposta por ele, é conduzida à própria interioridade do
indivíduo. Diferentemente dos modernos – eis aqui uma das raízes da pós-modernidade de
Foucault – o sujeito já não se encontra mais fechado em si mesmo por meio da identificação
direta com sua consciência, pelo contrário, a própria individualidade é compreendida como 259
fragmentada, cindida. Nesse ponto, cabe dar voz ao próprio Nietzsche:
que a consciência não faz parte propriamente da existência individual do
homem, mas antes daquilo que nele é da natureza de comunidade e de
rebanho; que também, como se segue disso, somente em referência à utilidade
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de comunidade e rebanho ela se desenvolveu e refinou e que,
consequentemente, cada um de nós, com a melhor vontade de entender a si
mesmo tão individualmente quanto possível, de “conhecer a si mesmo”,
sempre trará a consciência, precisamente, apenas o não-individual em si, seu
“corte transversal” – que nosso pensamento mesmo, pelo caráter da
consciência – pelo “gênio da espécie” que nele comanda –, é constantemente
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3 Cf. MONVILLE, Aymeric; Mísère du nietzschéisme de gauche: de Georges Bataille à Michel Onfray; Bruxelles:
Aden, 2007.
Bastaria citar como por exemplo, passagens de Assim falou Zaratrusta: “O homem deve ser educado para a
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guerra, a mulher para o repouso do guerreiro: fora disso tudo é loucura... Vais às mulheres? Não esqueças o chicote”
(Zaratrusta, I, “Das mulherzinhas jovens e velhas”); “Os homens efeminados, os filhos de escravos e sobretudo a
população mestiça, tudo isso quer ter hoje nas mãos o destino humano – ó nojo, ó nojo, ó nojo” (Zaratrusta, IV,
“Do homem superior”); “Que todos tenham o direito de aprender a ler, eis o que a longo prazo te enoja não só de
escrever, mas também de pensar” (Zaratrusta, I, “Ler e escrever”). Ou ainda em Além do bem e do mal: “Uma boa
e verdadeira aristocracia [deve aceitar] sacrificar de bom grado uma multidão de pessoas que deverão ser, no
interesse dessa aristocracia, humilhadas e reduzidas à condição de seres mutilados, de escravos, de instrumentos”.
“Morram os fracos e fracassados: primeiro princípio de nosso amor aos homens. E que sejam ajudados a
desaparecer” (O anti-cristo). Retiramos essas citações do artigo de André Comte-Sponville; A besta-fera, o sofista
e o esteta: “a arte a serviço da ilusão”; in: BOYER, Alain [et al.]; Por que não somos Nietzscheanos; São Paulo,
Editora Ensaio, 1993.
5 NIETZSCHE, Friedrich; Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral; São Paulo: Hedra, 2007; p. 36-7.
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 258-267, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518