DOI 10.34019/1980-8518.2021.v23.41395  
“O evangelho segundo Foucault”  
Apresentação à tradução do artigo:  
As palavras e as coisas no pensamento econômico (Pierre Vilar)  
Ronaldo Vielmi Fortes*  
Em 1972, Carlos Nelson Coutinho publicou a 1ª. edição de O estruturalismo e a miséria  
da razão, livro de combate que se posiciona contra as tendências estruturalistas que emergiram  
fortemente na década anterior. No capítulo destinado à crítica do pensamento de Michel  
Foucault, Coutinho encerra suas ponderações com as seguintes palavras: “esperemos que ele  
[Foucault] venha a ser apenas um curioso fenômeno, rapidamente esquecido, de uma época de  
transição”1. As esperanças de Coutinho foram em vão. Cinco décadas depois, o que assistimos  
é o forte predomínio do pensamento do filósofo francês no âmbito acadêmico mundial. As  
resistências e denúncias de insustentabilidade de parte de suas teses não foram poucas, mas  
contra todas as provas e demonstrações o pensamento foucaultiano prevaleceu. Sinal dos  
tempos? É preciso, sem dúvida, entender esse fenômeno.  
Algumas palavras sobre as influências recebidas por Foucault na construção de sua  
filosofia podem ajudar a compreender dimensões importantes de sua obra. As bases do  
pensamento do filósofo francês são mais que evidentes. Claramente anunciada, a presença de  
Nietzsche marca seu pensamento, contudo outro autor também transparece em vários  
momentos de suas reflexões: Martin Heidegger2. O que não é mero acaso, uma vez que essa  
tríade configura em nossos dias presença hegemônica no campo das ciências humanas em geral.  
Obviamente o Nietzsche de Foucault é o filósofo pasteurizado, atenuado, visto à esquerda como  
* Doutor em filosofia pela UFMG, professor da Faculdade de Serviço Social – UFJF.  
1
COUTINHO, Carlos Nelson; O estruturalismo e a miséria da razão; São Paulo, Expressão Popular, 2010; p.  
174.  
2 “Heidegger sempre foi para mim o filósofo essencial. Comecei com Hegel, depois Marx, e me pus a ler Heidegger  
em 1951 ou 1952; e em 1953 ou 1952 - não me lembro mais – li Nietzsche. Ainda tenho as notas que tomei sobre  
Heidegger no momento em que o lia - são toneladas! -, e elas são muito mais importantes do que aquelas que tomei  
sobre Hegel ou Marx” (FOUCAULT, Ditos V, p. 259). Dados os limites dessa apresentação, a relação de Foucault  
com Heidegger não poderá ser tratada, remetemos os interessados ao livro de François Dosse, História do  
estruturalismo, vol. I; São Paulo: Ensaio, 1993 (particularmente ao capítulo 37: “As raízes nitzscheo-  
heideggerianas. Dosse descata a forte influência do pensamento anti-historicista e anti-humanista de Nietzsche e  
Heidegger no estruturalismo, no qual se inclui a obra de Foucault.  
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“O evangelho segundo Foucault”  
crítico da sociedade3. Dele se retirou as palavras mais ásperas e comprometedoras4, restando a  
filosofia a marteladas como a expressão mais contundente do niilismo sobre a qual Foucault  
funda a natureza mais íntima de seus procedimentos analíticos.  
É de Nietzsche que Foucault recolhe a desconfiança em relação à razão, denunciando-a  
como incapaz de instituir a verdade:  
O que é, pois a verdade? Um exército móvel de metáforas, metonímias,  
antropomorfismos, numa palavra, uma soma de relações humanas que foram  
realçadas poética e retoricamente, transposta e adornadas, e que, após uma  
longa utilização, parece a um povo consolidadas, canônicas e obrigatórias: as  
verdades são ilusões das quais se esqueceu que elas assim o são, metáforas  
que se tornaram desgastadas e sem força sensível, moedas que perderam seu  
troquel e agora são levadas em conta apenas como metal, e não mais como  
moedas.5  
Ademais em Nietzsche o universo em sua totalidade, incluindo a esfera das relações  
propriamente humanas, se constitui como multiplicidade caótica inexorável. A própria  
objetividade do mundo é negada, não existe verdade, a morte de Deus é anunciada, o que  
predomina no campo das formulações filosóficas são sempre “interpretações de interpretações”.  
A radicalidade do caos generalizado, proposta por ele, é conduzida à própria interioridade do  
indivíduo. Diferentemente dos modernos – eis aqui uma das raízes da pós-modernidade de  
Foucault – o sujeito já não se encontra mais fechado em si mesmo por meio da identificação  
direta com sua consciência, pelo contrário, a própria individualidade é compreendida como 259  
fragmentada, cindida. Nesse ponto, cabe dar voz ao próprio Nietzsche:  
que a consciência não faz parte propriamente da existência individual do  
homem, mas antes daquilo que nele é da natureza de comunidade e de  
rebanho; que também, como se segue disso, somente em referência à utilidade  
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de comunidade e rebanho ela se desenvolveu e refinou e que,  
consequentemente, cada um de nós, com a melhor vontade de entender a si  
mesmo tão individualmente quanto possível, de “conhecer a si mesmo”,  
sempre trará a consciência, precisamente, apenas o não-individual em si, seu  
“corte transversal” – que nosso pensamento mesmo, pelo caráter da  
consciência – pelo “gênio da espécie” que nele comanda –, é constantemente  
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3 Cf. MONVILLE, Aymeric; Mísère du nietzschéisme de gauche: de Georges Bataille à Michel Onfray; Bruxelles:  
Aden, 2007.  
Bastaria citar como por exemplo, passagens de Assim falou Zaratrusta: “O homem deve ser educado para a  
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guerra, a mulher para o repouso do guerreiro: fora disso tudo é loucura... Vais às mulheres? Não esqueças o chicote”  
(Zaratrusta, I, “Das mulherzinhas jovens e velhas”); “Os homens efeminados, os filhos de escravos e sobretudo a  
população mestiça, tudo isso quer ter hoje nas mãos o destino humano – ó nojo, ó nojo, ó nojo” (Zaratrusta, IV,  
“Do homem superior”); “Que todos tenham o direito de aprender a ler, eis o que a longo prazo te enoja não só de  
escrever, mas também de pensar” (Zaratrusta, I, “Ler e escrever”). Ou ainda em Além do bem e do mal: “Uma boa  
e verdadeira aristocracia [deve aceitar] sacrificar de bom grado uma multidão de pessoas que deverão ser, no  
interesse dessa aristocracia, humilhadas e reduzidas à condição de seres mutilados, de escravos, de instrumentos”.  
“Morram os fracos e fracassados: primeiro princípio de nosso amor aos homens. E que sejam ajudados a  
desaparecer” (O anti-cristo). Retiramos essas citações do artigo de André Comte-Sponville; A besta-fera, o sofista  
e o esteta: “a arte a serviço da ilusão”; in: BOYER, Alain [et al.]; Por que não somos Nietzscheanos; São Paulo,  
Editora Ensaio, 1993.  
5 NIETZSCHE, Friedrich; Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral; São Paulo: Hedra, 2007; p. 36-7.  
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como que majorizado e retraduzido para a perspectiva do rebanho.6  
Para Nietzsche, o valor supremo, contrariamente aos modernos, não consiste mais na  
autonomia dos indivíduos frente ao todo, nem na construção de uma ética norteadora da ação  
individual, porém na prerrogativa do si mesmo por meio da afirmação da máxima  
independência em relação ao outro e à sociedade. Desse modo, ao se opor ao individualismo  
do pensamento moderno não sugere pôr o indivíduo contra o todo, mas sim afirmar  
sobremaneira o pessoal, o sujeito, em sua diferença incomparável com o todo.  
O pensamento de Foucault segue a linha de continuidade de Nietzsche em as suas mais  
profundas consequências, principalmente no que concerne à crítica da modernidade. O combate  
à modernidade é a expressão do desencanto da razão, assomada à afirmação peremptória da  
incapacidade dos indivíduos de controlar e direcionar sua história coletiva ou pessoal.  
Mas falemos mais diretamente de Foucault. Sua notoriedade tem início com a  
publicação de sua tese História da loucura. Antes vale aqui uma ressalva, contra quaisquer mal-  
entendidos. O livro não inaugura o movimento antimanicomial, ele surge a propósito de um  
debate que já vinha ocorrendo desde a década de 1950. A esse respeito vale lembrar da edição  
da revista Esprit7, que no ano de 1952 dedica um número especial sobre o tema, intitulado  
Misère de la psychiatrie. Assim sendo, a obra de Foucault surge a propósito das discussões já  
acirradas que clamavam a necessidade da reforma da psiquiatria. Participa do debate,  
assumindo aí uma notoriedade expressiva, porém com a intenção clara de propor uma nova  
problematização quanto ao tema. Esse aspecto revela uma dimensão importante do pensamento  
do filósofo francês que sempre procurou conciliar suas reflexões com as questões e conflitos  
mais relevantes da sociedade francesa e mundial. Haja vista, sua obra Vigiar e punir, que marca  
a participação relevante do autor nas crises que vinham ocorrendo no sistema penitenciário  
É preciso indagar sobre o verdadeiro propósito do livro sobre a loucura. Se, de fato,  
trata-se de construir uma tese sobre a história da loucura, ou voltar-se contra um dos principais  
fundamentos do pensamento moderno: a razão. Já de início o ataque frontal à razão é anunciado,  
na medida que a loucura é definida como o contraponto da racionalidade. Conforme conclama  
o autor: “a não-razão do século XVI constituía uma espécie de ameaça aberta cujos perigos  
podiam sempre, pelo menos de direito, comprometer as relações da subjetividade e da verdade.  
[...] Doravante, a loucura será exilada”8.  
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NIETZSCHE, Frederic; A gaia ciência; in: Obras incompletas; Coleção “Os pensadores”; São Paulo: Nova  
Cultural, 1999; p. 201.  
7 Esprit, numéro 12, décembre 1952.  
8 FOUCAULT, Michel; História da Loucura na idade clássica; São Paulo, Editora Perspectiva, 1978, p. 54.  
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Não por mero acaso sua obra tem início com a exemplaridade do pensamento cartesiano.  
Descartes é quem inaugura, para Foucault – também para Heidegger –, o pensamento da  
modernidade ao definir a substância do homem como a res cogitans. Enfocando um pequeno  
fragmento da argumentação cartesiana, em sua construção da dúvida metódica, Foucault  
denuncia:  
Ora, Descartes adquiriu agora essa certeza, e agarra-se firmemente a ela: a  
loucura não pode mais dizer-lhe respeito. Seria extravagante acreditar que se  
é extravagante. Como a experiência do pensamento, a loucura implica a si  
própria e, portanto, exclui-se do projeto. Com isso a loucura desaparece no  
próprio exercício da razão.9  
A curta passagem da obra cartesiana a partir da qual Foucault fundamenta suas  
considerações é a seguinte:  
E como poderia eu negar que estas mãos e seu corpo sejam meus? A não  
talvez, que eu me compare a esses insensatos, cujo cérebro está de tal modo  
perturbado e ofuscado pelos negros valores da bile que constantemente  
asseguram que são reis quando são muito pobres [...] Mas quê? São loucos e  
eu não seria menos extravagante se me guiasse por seus exemplos.10  
O truque de Foucault é dizer que Descartes bane a loucura na exata medida em que ela  
contradiz a razão, e uma vez que ele quer garantir a res cogitans [substância pensante] é preciso,  
insiste o autor, repudiar logo de saída o perigo da loucura, pois ela é o exato oposto da razão.  
Entretanto, o que de fato diz Descartes e qual o propósito de sua argumentação? Na verdade,  
Descartes abandona o argumento do louco, pois se trata de algo insuficiente para negar a certeza  
das sensações, ou seja, trata-se de uma experiência de poucos, de doentes, e não pode ser  
universalizada de forma a suscitar a dúvida que serviria para provocar em todos o ceticismo em  
relação às sensações. O objetivo não é salvar a razão como definição da substância humana,  
mas construir a dúvida metódica, a radicalização do ceticismo provisório, como forma de buscar  
alcançar uma certeza que possa fundamentar como princípio claro e distinto o estabelecimento  
da certeza científica. Comentários dessa ordem, ou seja, o argumento das alucinações da  
loucura, não são suficientes para negar que as sensações são a fonte da certeza, pois bastaria  
dizer, que não são passíveis de serem elevados a uma experiência geral, pois são experiências  
particulares, comuns a uma classe específica de pessoas. Nesse sentido, o exemplo dos sonhos  
vívidos, ainda segundo Descartes, tendo em vista que pode ser vivenciado por qualquer  
indivíduo.  
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O modo como Foucault trata o texto de Descartes acerca do argumento do louco,  
considerando-o como prova do modo como a modernidade tratou da questão e possibilitar assim  
9 Id. ib.  
10 DESCARTES, René; Meditações metafísicas; [coleção “Os pensadores”], p. 94.  
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a rejeição crítica da razão, é um exemplo paradigmático de sua desconsideração pelo texto, ou  
seja, o texto não vale por si mesmo. Os conteúdos, problematizações e argumentos  
desenvolvidos na escrita do filósofo, não valem por si mesmos. É preciso ir além e realizar a  
arqueologia do discurso que se esconde por trás das palavras. Esse procedimento não deixa de  
apresentar problemas e suscitar questões. Nesse sentido, quanto à hermenêutica genealógica  
valeria a pena fazer a seguinte advertência:  
se nos convencermos de que o texto só é compreendido a partir de outra coisa  
que não ele mesmo, corremos o risco de nem mesmo tomarmos mais o cuidado  
de construir a coerência interna da obra estudada e de inseri-la à força, numa  
lógica que não é a dela. Se, de um ponto de vista teórico, a genealogia,  
retirando a priori do sujeito o controle de seus enunciados, participa  
claramente desta destruição da subjetividade em torno da qual se unem os  
componentes do pensamento 68, ela apresenta, além disso, praticamente,  
efeitos perversos, onde o menor não é o delírio interpretativo.11  
Se me for concedido pesar nos termos, como não ver raciocínio semelhante em As  
palavras e as coisas, quando Foucault desconsidera as diferenças entre Karl Marx e David  
Ricardo, conduzindo-os ao denominador comum da episteme característica do homo  
economicus, o que lhe permite acusar: “o marxismo está no pensamento do século XIX como  
peixe n’água. [...] Seus debates podem agitar algumas ondas e desenhar sulcos na superfície:  
são tempestades num copo d’água”12. A oposição dos pensamentos se ergue a partir da mesma  
estrutura, da mesma episteme, desse modo as ideias não importam, não importam seus autores,  
nem o debate sobre a realidade econômica e social, ambos estão calcados nas mesmas estruturas  
que marcam os saberes de dada época. Convém acrescentar outro aspecto de modo algum  
irrelevante: toda a exposição da tese de Foucault se desenrola sem uma única citação, sem  
nenhuma referência à análise direta dos textos. Aspecto que seria justificável para ele, pois não  
se trata de ater-se ao manifesto, mas revelar a lógica do discurso latente aos textos.  
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Procedimento similar pode ser observado em seu Nietzsche, Freud e Marx. Ao  
relacionar Marx como um dos pensadores das interpretações, o argumento usado para colocar  
Marx no rol dos “interpretadores” é o fragmento de O capital, em que se diz: “o valor converte,  
antes, todo produto do trabalho um hieróglifo social. Mais tarde, os homens tentam decifrar o  
sentido desse hieróglifo, desvelar o segredo de seu próprio produto social, pois a determinação  
de seus objetos de uso como valores é seu produto social tanto quanto a linguagem”13. Eis o  
argumento: se se trata de um hieróglifo, é preciso interpretar o hieróglifo. E... basta! Eis o Marx  
11 FERRY, Luc; RENAUT, Alain; Pensamento 68; São Paulo, Editora Ensaio 1988; p. 116-7.  
12  
FOUCAULT, Michel; As Palavras e as Coisas, uma arqueologia das ciências humanas; São Paulo, Editora  
Martins Fontes, 1999; p. 360.  
13 MARX, Karl; O capital, livro 1; São Paulo: Boitempo, 2013, p. 149;  
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intérprete de hieróglifos. As mais de mil páginas que seguem à simples consideração figurativa,  
não importam. Não importa se sua obra visa na realidade desvelar as leis tendenciais concretas  
que regem a forma da sociabilidade do capital, não importa a análise do modo da produção da  
vida. São interpretações, sempre, interpretações de interpretações. Sinal dos tempos: nas  
perguntas que se seguem a sua palestra, nenhum dos presentes o interpela sobre a forma banal,  
imprecisa, de suas referências e de sua classificação apressada e sem conteúdo demonstrativo  
do pensamento de Marx.  
Mas é claro que isso não constitui um problema para quem advoga a tese de que não há  
verdades, há interpretações de interpretações. Sobre os cânones dessa arqueologia  
hermenêutica toda licenciosidade parece ser permitida.  
No entanto, para analisar o pensamento de um autor não basta a consideração da  
determinação social do pensamento, torna-se necessário revelar os propósitos declarados ou  
ocultos da guerra “suja e violenta” travada por meio das belas armas da abstração, típica dos  
embates da filosofia. Ou seja, a leitura imanente da obra é também tarefa imprescindível.  
Consiste em compreender os meandros próprios das teses e argumentos desenvolvidos, verificar  
a sustentabilidade ou as aporias internas ao texto. E tal análise deve percorrer ao menos dois  
caminhos: a verificação da coerência interna das argumentações e a verificação das bases e  
análises de fenômenos da realidade sobre as quais as teses são desenvolvidas.  
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Como não vermos com estranheza a perpetuação do pensamento de Foucault, quando  
várias foram as críticas em relação às suas interpretações de uma variedade de fatos históricos?  
Talvez, no caso do autor em particular, não seja nem o caso de falar de interpretação de fatos  
históricos, mas de uma construção peculiar da história. Os anos se passaram e não foram poucas  
as denúncias em relação a História da loucura.  
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Nesse sentido, creio não ser inoportuno referir aqui os “ajeitamentos” argumentativos,  
nos quais de maneira escamoteada, com artifícios capiciosos, Foucault enquadra o surgimento  
das Workhouses inglesas do século XVII, como mais um episódio da chamada “grande  
internação”, como se tal evento histórico fizesse parte da atmosfera dos tempos, motivada pelo  
“grande medo” dos insensatos, ou se se preferirem, dos “poderes confusos de corrosão e horror”  
da loucura. Fora de qualquer dúvida, para Foucault, o clima da época justifica a referência às  
instituições inglesas, porém o que fica negligenciado por ele é o problema da origem social dos  
conflitos, isto é, das contradições sociais que culminaram na agudização do fenômeno do  
pauperismo no século XVII. Bastaria reportar ao famoso capítulo 24 de O capital, em que Marx  
trada da “A assim chamada acumulação primitiva” esclarecendo de maneira precisa, no  
contexto histórico de sua época a gênese das Workhouses. Trata-se, segundo Marx, da tentativa  
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de equalizar o desequilíbrio provocado pela “vagabundagem”, pela pobreza generalizada  
oriunda da expropriação dos meios de subsistência dos servos, dos camponeses. É um fenômeno  
social com evidentes decorrências históricas, de natureza em nada idílica, marcada pela  
expulsão dos camponeses de suas terras, pela apropriação das terras sociais, pela exploração  
das colônias, pelo genocídio, pela emergência da escravidão como base da nova forma de  
enriquecimento que começava a se apresentar. Contudo, na obra de Foucault a causalidade dos  
fatos históricos desaparece e tudo se vê reduzido ao “grande medo”, à ameaça da loucura ao  
princípio da razão apregoada pela modernidade. “O classicismo inventou a internação”14 e a  
razão cumpre um papel decisivo nessa prática. A indiferenciação dos assim chamados  
“internados” – sejam eles, loucos, homossexuais, bandidos, vagabundos, doentes etc. –, é o  
artifício que encerra todo o fenômeno da época na mesma quadradura do rechaço condenatório  
promovido pela razão.  
Como decorrência a história é sacrificada no altar da episteme. A descontinuidade, a  
ênfase na estrutura discursiva que molda as ações e saberes de dadas épocas torna quaisquer  
causalidades ou legalidades tendenciais históricas meras sacralizações da racionalidade, na  
medida em que, para o filósofo francês, não existem legalidades ou continuidades na história.  
E ainda, toda tentativa de estabelecer nexos causais que explicam as tendências e diretrizes  
assumidas na trajetória da humanidade, são consideradas como ilação aleatória e totalizadora.  
Novamente estamos diante do primado já referido acima: não há verdades, mas meras  
interpretações de interpretações. Porém, nesse caso, a licenciosidade hermenêutica se volta  
para o estabelecimento arbitrário de fatos; na ausência de dados, que se recolha fragmentos  
descontínuos da história para se construir a tese e argumentar a seu favor.  
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Há, entretanto, elementos mais problemáticos ainda a esse respeito na obra em questão.  
A reavaliação da cronologia apresentada por Foucault em seu livro História da loucura, por  
meio da qual se demonstra que a assim chamada “grande internação” havia ocorrido durante a  
idade clássica, mais precisamente em 1657 com a fundação do Hospital Geral, na verdade,  
nunca ocorreu. A datação não sobrevive ao exame da documentação histórica. Na trilha dos  
argumentos apresentados por Michel Foucault, Gladys Swivan e Marcel Gauchet15 desmontam  
o erro histórico do construto cronológico estabelecido em História da loucura. Os documentos  
coletados por ambos permitem estimar em duas mil pessoas reclusas em 1660, elevando-se para  
cinco mil após a Revolução Francesa, e atingindo cem mil em 1914. Em suma, não há  
14 FOUCAULT, Michel; História da Loucura na idade clássica; op. cit. p. 61.  
15  
GAUCHET, M. e SWAIN, G. La pratique de l’esprit humain. L’instituition asilaire et la révolution  
démocratique; Paris: Gallimard, 1980.  
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evidências históricas para a tese de Foucault sobre a “grande internação” no século XVII, o que  
se tem é uma interpretação assentada em passagens selecionadas sem nenhum rigor de certas  
documentações selecionadas para legitimar sua tese. Desse modo, a história não importa, os  
fatos não importam, vale apenas a localização da episteme, do saber com base na razão, que  
estrutura em geral o saber e o discurso do filósofo, do padre, do juiz, do político, do agente  
sanitário, do médico etc.  
Claude Quétel16, em um livro homônimo ao de Foucault, reendossa a constatação do  
erro – e adverte, a data correta da fundação do Hospital Geral é 1656 e não 1657 – dando  
destaque a outras incorreções históricas. Por exemplo, a afirmação de Foucault, segundo a qual  
“desde os primeiros meses do internamento, os doentes venéreos pertencem de pleno direito ao  
Hospital Geral”17. A indistinção – entre loucos, doentes etc. – promovida artificiosamente por  
Foucault tinha a intenção de destacar “a geometria imaginária de sua moral, o espaço do  
internamento, a época clássica acabava de encontrar ao mesmo tempo uma pátria e um lugar de  
redenção comuns aos pecados contra a carne e às faltas contra a razão. A loucura começa a  
avizinhar-se com o pecado...” 18. E na sequência Foucault coloca os homossexuais sob a mesma  
condição. A esse respeito, Quétel é taxativo: “a dialética é talvez sedutora, mas nada é mais  
falso”19. Os documentos – sempre eles – atestam que os acometidos por doença venérea eram  
“excluídos explicitamente” do Hospital Geral20, e a homossexualidade nunca foi associada à  
loucura, pois era punida como um crime e o Ancient Regime “jamais teve a ideia de punir um  
louco por sua loucura”21.  
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Obviamente, os adeptos de Foucault ainda poderiam contra-argumentar com as  
seguintes ponderações: “ainda assim o pensamento de Foucault contribui com algumas  
considerações relevantes...”, ou, “existem determinados aspectos a serem considerados...” etc.  
Entretanto, para manter certa coerência seria necessário acrescentar a essas ponderações: se os  
fatos contradizem a teoria, pior para os fatos.  
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Se insistimos aqui na obra História da loucura é para abrir e auxiliar na problematização  
do texto que ora apresentamos em tradução inédita no Brasil. Logo na sequência à primeira  
publicação de As palavras e as coisas, houve críticas incisivas e bem demonstradas contra as  
teses desenvolvidas por Foucault em seu livro. A revista La nouvelle critique, vinculada ao  
16 QUÉTEL, Claude; Histoire de la folie: de l’antiquité à nos jours; Paris: Tallandier, 2009.  
17 FOUCAULT, Michel; História da Loucura na idade clássica; op. cit. p. 95.  
18 Idem 98-9.  
19 QUÉTEL, op. cit. p. 94.  
20 Quétel refere outro livro por ele publicado onde apresenta a documentação em questão: Le mal de Naples.  
21 QUÉTEL, op. cit. p. 94.  
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Partido Comunista Francês (PCF), publicou em 1967 – um ano após a edição do livro de  
Foucault – dois artigos que visavam ferir no âmago os fundamentos sobre os quais o filósofo  
estruturalista assentou suas teses. No primeiro deles, publicado em maio, nr, 4 (185), de  
Jeannette Colombel, intitulado Les mots de Foucault et les choses, a autora adverte para os  
perigos da tese estruturalista:  
o apocalipse é reconfortante. O estruturalismo, assim compreendido, terá  
contribuído para a manutenção da ordem estabelecida, mesmo que nos revele  
que essa ordem é a do absurdo, mesmo que sintamos, de forma intolerável,  
nossa própria fragilidade e nos sintamos ameaçados. A loucura que nos  
ameaça não incomodará ninguém. Além disso, seu reconhecimento reforça  
nossa impotência.22  
Segundo Colombel, em última instância, na démarche do pensamento estruturalista não  
se trata mais de indagar o que poderia contribuir para a construção de outro devir, uma vez que  
o futuro se vê atado pelos grilhões da estrutura, encontra-se imobilizado pela vigência do  
equilíbrio estruturante do presente inexorável, chamado a se repetir indefinidamente. Nesse  
sentido, não passa de reforço ao reconhecimento da impotência mediante a estrutura.  
Apesar dos apontamentos críticos interessantes de Colombel – aqui ilustrado pela  
citação dessa curta passagem –, selecionamos para a tradução o texto publicado no nr 5 (186)  
em juin 1967, da mesma revista, de autoria de Pierre Vilar, cujo título é Les mots et les choses  
dans la pensée économique. O artigo que ora traduzimos segue a mesma linha dos aspectos até  
então suscitados nesta apresentação. Nele busca-se averiguar as bases sobre as quais encontram-  
se assentadas as teses de Foucault, em particular a afirmação peremptória, segundo a qual, “não  
há economia política na época clássica”. Aos desprevenidos e desconhecedores da  
recomposição histórica empreendida por Foucault resta aceitar os fatos narrados e buscar  
compreender as teses apresentadas. Porém, esse não é o caso de Pierre Vilar. Profundo  
conhecedor dos períodos históricos tratados em As palavras e as coisas, Vilar desmonta os  
argumentos por dentro. Para isso, bastam os fatos, basta a análise dos livros de época, bastam  
os documentos históricos – sempre eles. Autor de vasta obra sobre a história da economia,  
particularmente da Catalunha e da Espanha, Vilar demonstra por meio de sua erudição ímpar a  
negligência de Foucault – intencional ou não – quanto aos textos, aos documentos, à uma série  
de autores cuidadosamente deixados de lado na elaboração das descontinuidades das epistemes  
que caracterizam as ordens de saber na economia.  
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Os argumentos de Vilar são mais que evidentes. O rigor de sua reconstituição histórica  
das produções em torno da economia é demonstrado com máxima clareza e precisão. Um ano  
22 La Nouvelle Critique, nr 4 (185), mai-1967, p. 13.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 258-267, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
“O evangelho segundo Foucault”  
após a publicação do livro de Foucault, a demonstração da insuficiência de seus argumentos  
segue desconsiderada. Pesa sobre ela a estratégia de combater por meio do silêncio, do  
esquecimento.  
O objetivo desta tradução é a retomada desse artigo histórico importante. O artigo de  
Vilar é um texto de combate, porém fundado no necessário rigor científico, aspecto  
imprescindível a toda tese de natureza histórica ou filosófica. Diante dos argumentos levantados  
pelo historiador – obviamente nos referimos a Vilar, e não ao outro, o da outra história – fica a  
impressão de que tudo é permitido na hermenêutica arqueológica de Foucault. O arranjo dos  
fatos autoriza as assertivas e teses mais levianas baseadas em tomadas de posição sem lastro  
comprobatório, formulada por meios de afirmações manipulatórias que funcionam como  
máscaras de argumentos probantes, mas que sequer pensam em recorrer às fontes reais, nem  
mesmo para a comprovação dos fatos, aliás, na maior parte das vezes, laçam mão de alguns  
fatos para remetê-los contra os fatos. Afinal de contas: não há verdades, existem apenas,  
interpretações de interpretações.  
Mais do que nunca é preciso reenfatizar contra essa prática que tem se tornado comum  
em certos âmbitos do pensamento contemporâneo: se queremos transformar o mundo o rigor  
das ideias não é uma opção, é uma exigência.  
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Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 258-267, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518