DOI 10.34019/1980-8518.2023.v23. 40787  
Reflexões sobre o dueto família e gênero na  
política de saúde brasileira  
Reflections on the duet of family and gender in Brazilian healthcare policy  
Edilane Bertelli*  
Keli Regina Dal Prá**  
Michelly Laurita Wiese***  
Resumo: O artigo analisa o dueto família e  
gênero como dimensões constitutivas das  
políticas de proteção social e, no caso  
específico, da estruturação da política de saúde  
no contexto brasileiro contemporâneo, cuja  
família configura-se num agente central, sem,  
no entanto, considerar a “consubstancialidade”  
das relações sociais de classe, étnico-raciais e de  
gênero. A partir de revisão bibliográfica sobre  
cuidado, família e gênero sob a ótica de estudos  
feministas e, de pesquisa qualitativa com  
famílias inseridas em serviços de atenção  
domiciliar, abordam-se aspectos da relação  
família e gênero na atenção básica em saúde,  
seguida da relação família e gênero no  
Programa Melhor em Casa, e conclui-se com  
reflexões sobre o gênero do cuidado e o gênero  
no cuidado, cujas fronteiras, a despeito de não  
Abstract: This article analyzes the duet of  
family and gender as dimensions that are  
constitutive of social protection polices, and  
specifically  
of  
healthcare  
policy  
in  
contemporary Brazil. In this context, the family  
is configured as a central agent, without  
however, considering the “consubstantiality” of  
social relations involving class, ethnicity, race  
and gender. The article is based on a  
bibliographic review about care, family and  
gender from the perspective of feminist studies.  
It uses qualitive data from empiric research to  
address aspects of the relationship between  
family and gender in basic healthcare, followed  
by the relationship between family and gender  
in the Better at Home Program. The article  
concludes with reflections about the gender of  
care and gender. Although these distinctions are  
not fixed and linear, in Western capitalist  
societies they historically tend to be  
circumscribed in the private and domestic  
sphere of the family, which is associated to the  
feminine and commonly separated and opposed  
to the public sphere, which is associated to the  
masculine, reproducing a determined sexual  
division of labor.  
serem fixas  
capitalistas  
e
lineares, nas sociedades  
ocidentais tenderam,  
historicamente, a circunscrevê-las na esfera  
privada e doméstica da família associada ao  
feminino e, comumente, separada e oposta à  
esfera pública associada ao masculino,  
reproduzindo determinada divisão sexual do  
trabalho.  
*
Assistente Social. Docente do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina  
(UFSC). Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Integrante do  
Núcleo de Pesquisa Interdisciplinar Sociedade, Família e Política Social (NISFAPS) e da Rede de Pesquisa em  
Família e Política Social (REFAPS). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7570-0613  
**  
Assistente Social. Docente do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina  
(UFSC). Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS).  
Integrante do Núcleo de Pesquisa Interdisciplinar Sociedade, Família e Política Social (NISFAPS) e da Rede de  
Pesquisa em Família e Política Social (REFAPS). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1470-7811  
*** Assistente Social. Docente do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina  
(UFSC). Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Integrante do  
Núcleo de Pesquisa Interdisciplinar Sociedade, Família e Política Social (NISFAPS) e da Rede de Pesquisa em  
Família e Política Social (REFAPS). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1392-0650  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 165-180, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Edilane Bertelli; Keli Regina Dal Prá; Michelly Laurita Wiese  
Palavras-chaves: Família, Gênero, Cuidado,  
Política de Saúde.  
Keywords: Family, Care, Gender, Healthcare  
Policy, Collective Health.  
Recebido em: 11/04/2023  
Aprovado em: 22/05/2023  
Introdução  
A responsabilidade atribuída às famílias como agente fundamental no provimento de  
cuidados e bem-estar aos seus integrantes, embora não seja recente na sociedade brasileira,  
ganhou visibilidade desde a década de 1990. Com o processo de regulamentação de direitos  
sociais garantidos constitucionalmente, o sistema de proteção delineado no âmbito da  
seguridade social indicava a família como agente central à organização, em particular, das  
políticas de saúde e de assistência social. Instituiu-se, jurídica e administrativamente, a família  
como “parceira” na estruturação de programas e serviços sociais, para além da posição de  
usuária, beneficiária ou assistida.  
Nesse “enredo” inúmeras “tramas” são “tecidas” e “cortadas” pelas relações sociais de  
classe, de raça e de gênero, pelo quantum de participação compete à família e às mulheres, ao  
mercado e ao Estado no âmbito da proteção social, quando relacionada aos direitos sociais de  
cidadania no capitalismo hodierno – cujo pensamento neoliberal e suas diretrizes político-  
econômicas tem orientado e determinado também a estruturação de programas, serviços e  
benefícios das políticas sociais.  
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Apesar dos avanços na política de saúde brasileira com a criação e implantação do  
Sistema Único de Saúde (SUS) a partir de 1990 – donde se reformou o sistema e os serviços de  
saúde sob os princípios e diretrizes da universalidade, integralidade, equidade, descentralização  
e participação (PAIM, 2006), as medidas de cortes no financiamento público às políticas sociais  
tem se constituído numa das estratégias para reduzir a responsabilidade social do Estado,  
implicando a configuração de políticas familistas e a negação do direito básico à saúde para a  
população mais pobre economicamente (MIOTO, 2012; MIOTO et al, 2015). Não por acaso,  
portanto, a Emenda Constitucional n. 95/2016, que congelou por vinte anos o investimento  
público federal do SUS.  
Vários autores apontam a tendência contínua e crescente de responsabilização das  
famílias, ou seja, de privatização do cuidado em saúde à esfera doméstica familiar, relacionada  
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Reflexões sobre o dueto família e gênero na política de saúde brasileira  
à política neoliberal de enxugamento do Estado no âmbito da proteção social, que intensifica  
tanto a mercantilização dos serviços de saúde e a precarização das condições de trabalho, quanto  
a fragilização da concepção social do processo saúde-doença e a centralidade da família na  
transferência de responsabilidades. Ademais, segundo Draibe (2007, p. 46), “família e gênero  
se assentam em base conceitual comum, com relação aos sistemas de políticas sociais: a esfera  
doméstica da reprodução social e a divisão sexual do trabalho que a fundamenta”.  
Como se sabe, a responsabilidade pelo cuidado envolve atividades desenvolvidas  
majoritariamente por mulheres, tanto no interior das famílias quanto nas instituições públicas  
ou privadas, haja vista que predomina socialmente a ideia de que as mulheres são dotadas “por  
natureza” de habilidades requeridas para o cuidado, as quais “naturalmente” são desde cedo  
desenvolvidas no espaço privado doméstico. Assim, em que pese a ampliação da proteção  
social, a organização social e política delineada, contrariamente à igualdade de gênero  
defendida de longa data pelos movimentos feministas, ainda são reproduzidas múltiplas  
desigualdades de gênero na família e na sociedade, bem como pelo Estado, conforme se observa  
na política de saúde, tanto na atenção básica quanto na atenção especializada, lócus dessas  
reflexões.  
Objetiva-se, nesse contexto, refletir teoricamente sobre os aspectos da relação família e  
gênero no campo da política de saúde brasileira diante de ações governamentais, que, cada vez  
mais, reposicionam as famílias em relação aos cuidados em saúde na esfera doméstica da  
reprodução social, marcada pela divisão sexual do trabalho. A partir da matriz teórica  
materialista histórica que analisa os fenômenos a partir das categorias de contradição,  
historicidade e totalidade, trata-se de considerar, portanto, que os sistemas de proteção e as  
famílias são constituídos e construídos inclusive pela relação de gênero.  
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Importa pensar a que família se refere a política, os serviços e programas de saúde, como  
se organiza a distribuição de responsabilidade dos cuidados em saúde entre o público (Estado)  
e privado (família) erigida sobre os programas da saúde da família e da atenção domiciliar,  
como gênero configura as famílias e a política social de saúde. Mais ainda, conforme a crítica  
feminista, trata-se de considerar a “consubstancialidade” das relações sociais, raciais e de  
gênero (KERGOAT, 2016).  
Neste artigo, abordam-se aspectos da relação família e gênero na atenção básica em  
saúde, seguida da relação família e gênero no Programa Melhor em Casa, e conclui-se com  
reflexões sobre o gênero do cuidado e o gênero no cuidado, cujas fronteiras, a despeito de não  
serem fixas e lineares, nas sociedades capitalistas ocidentais tenderam, historicamente, a  
circunscreve-las na esfera privada e doméstica da família associada ao feminino e, comumente,  
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Edilane Bertelli; Keli Regina Dal Prá; Michelly Laurita Wiese  
em oposição a esfera pública associada ao masculino.  
Porta de entrada: família e gênero na atenção básica em saúde  
Quando se trata da atenção básica na política de saúde brasileira, o Programa de Saúde  
da Família (PSF) implantado em 1994, inicialmente para o atendimento em áreas de maior risco  
social, adquiriu importância na agenda governamental como forma de expansão da cobertura  
dos serviços e de mudanças no modelo vigente – dentre as quais, a municipalização das ações  
básicas de atenção em saúde e o deslocamento da atenção centrada no indivíduo para a família.  
Transformado em Estratégia de Saúde da Família (ESF) com a Política Nacional de Atenção  
Básica (PNAB), aprovada em 2006, reestruturou os serviços de atenção básica no SUS dos  
municípios brasileiros.  
Afamília adquirira centralidade, entretanto, pertinente se perguntar: sob que concepção?  
Quem é esta família nesse programa, depois estratégia, da atenção básica em saúde? Como as  
relações de gênero constituem a organização, as concepções, as abordagens das equipes  
multiprofissionais desse serviço focalizado na família?  
Nos documentos sobre atenção básica do Ministério da Saúde (MS), identifica-se o  
reconhecimento da família como objeto de atenção, participante do cuidado à saúde e contexto  
do cuidado, como alvo da vigilância à saúde e do planejamento da assistência, e, ao mesmo  
tempo, de que a maior proximidade com a família torna o atendimento profissional mais  
humano, bem como a necessidade de conhecer os integrantes, a situação das famílias e suas  
demandas. Porém, não são trazidas à tona a concepção de família que norteia a política de saúde  
e, tampouco, orientações sobre a abordagem com as famílias.  
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Observa-se, para além de indefinições em relação à família nos serviços de atenção  
básica de saúde, a naturalização e idealização de família, subscrita na ESF, as quais também  
implicam a reprodução da divisão social e sexual em relação ao cuidado em saúde, tanto na  
família quanto na sociedade. Como porta de entrada à atenção básica em saúde modificou-se a  
sua composição profissional e sua dinâmica organizacional, as quais revelam como famílias são  
concebidas e como são (re)produzidas as relações de gênero.  
A dinâmica do serviço de atenção básica pressupõe a formação de equipes  
multiprofissionais, composta minimamente de médico generalista, enfermeiro, auxiliar de  
enfermagem e Agente Comunitário de Saúde (ACS), responsáveis pela atenção inicial à saúde  
das famílias circunscritas num território. Tem-se, de um lado, o deslocamento da atenção básica  
centrada no profissional médico ao incorporar a dimensão da interdisciplinaridade e a  
constituição de equipes multiprofissionais, mas, de outro lado, a permanência de determinada  
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Reflexões sobre o dueto família e gênero na política de saúde brasileira  
forma de compreensão e concepção de família, que orientam suas práticas, considerando-se,  
em particular, o status social das áreas de formação e os múltiplos pertencimentos sociais.  
Conforme estudos de Sarti (2010) e Trad (2010), a noção de família geralmente se  
fundamenta na própria experiência de família vivida, independentemente da área e do nível de  
formação profissional, a qual, não incomumente, se assenta no modelo idealizado, atomizado e  
naturalizado de família como unidade nuclear de base biológica. Portanto, alheia a  
consubstancialidade das relações sociais, raciais e de gênero, constituinte e constitutiva das  
condições objetivas e subjetivas que concretam os cuidados em saúde no cotidiano da vida de  
indivíduos e famílias, diferentes e, particularmente, desiguais quando se trata do contexto  
brasileiro.  
Mesmo no campo da saúde coletiva, que desenvolve estudos críticos do modelo de  
atenção em saúde, observa-se a ausência de reflexões sobre a noção de família. “Como resultado  
dessa imprecisão, nas experiências concretas de implantação do modelo, está a utilização pelos  
profissionais de repertório conhecido no campo da saúde a respeito do que é família. Adota-se,  
assim, a abordagem familiar por ciclos de vida, pela qual os indivíduos são categorizados por  
sexo e idade, a partir da dimensão biológica do corpo. (...) esta abordagem continua sendo  
referência para a atuação profissional e para organizar a assistência, operando como forma de  
traduzir o cuidado à família nos termos do modelo biomédico” (SARTI, 2010, p. 93).  
Outro imbróglio se refere a identificação entre família e unidade domiciliar,  
obscurecendo pensar a família a partir da rede de parentesco ou de pensa-la em rede, “de  
percebe-la como um mundo de relações, mas também notar as diferentes formas de organização  
familiar, que não só transcendem, mas, sobretudo, não se confundem com a unidade  
doméstica”7 (SARTI, 2010, p. 94). Além disso, apesar da funcionalidade operacional dessa  
concepção na organização da atenção básica em saúde, a sua utilização incorre o risco de  
fixação de “diferenças nas composições das famílias [que] podem ser apenas instantâneos de  
fases diferentes do ciclo de desenvolvimento de grupos domésticos” (TRAD, 2010, p. 114).  
Concomitantemente, verifica-se a permanência do engessamento da concepção de  
família a despeito da pretensa aproximação com a sua realidade cotidiana, cujas normativas  
estabelecem às equipes desse serviço a necessidade de conhecer as famílias do território de  
abrangência, de identificar os problemas de saúde, as situações de risco existentes e sua relação  
com o contexto comunitário, por exemplo, além da assistência integral às famílias sob sua  
responsabilidade no âmbito da atenção básica. Em que pesem as mudanças preconizadas nesse  
modelo, não raro, as famílias adquirem, contraditoriamente, um caráter instrumental – como  
forma de aproximação ao contexto do indivíduo visando o cumprimento de metas das ações no  
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campo da saúde –, haja vista a disseminação da “lógica de gestão dos serviços, baseada na  
aferição de produtividade que implica o alcance mensal de um determinado número de famílias  
visitadas” (MOROSINI; FONSECA, 2018, p.263).  
Ademais, nessa organização territorial do trabalho das equipes multiprofissionais,  
destaca-se a responsabilidade da relação direta com as famílias nos territórios atribuída ao ACS  
que, oriundo do próprio território, materializa a pressuposta aproximação e fortalecimento de  
vínculos entre os profissionais da atenção básica e as famílias atendidas. Em princípio, portanto,  
são os ACS que representam a porta de entrada e “batem à porta” das famílias nos territórios.  
Quando se considera a concepção de família e as relações de gênero agenciadas, observa-se a  
subsunção da saúde dos indivíduos (sujeitos dos direitos de cidadania) à saúde da família e a  
reprodução social do cuidado em saúde como “coisa de mulher”.  
Quando se trata dessa categoria profissional, inegável, conforme observado em vários  
estudos (KERGOAT, 2016; TRAD, 2010; SCOTT, 2005; NUNES; SARTI; OHANA, 2008)que  
se manteve a característica de categoria composta predominantemente por mulheres e  
residentes no território onde trabalham, mesmo com as mudanças havidas nas condições de  
trabalho, de uma situação de informalidade para a integração nas relações sociais pertinentes a  
um trabalhador do SUS. Ao mesmo tempo, apontam que as ACS operam no cotidiano de suas  
atividades com a própria ideia de família, como fazem os demais profissionais da saúde.  
Fundamentadas no arranjo familiar idealizado de família – a nuclear burguesa –, exercem  
comumente papel disciplinador. “Trata-se de uma concepção moral de família, identificada com  
a noção do bem e a consequente dificuldade de pensar o conflito como inerente às relações  
familiares. Daí a tendência a patologização – segundo um padrão de normalidade informado  
pelo modelo biomédico – de tudo o que implica situação de conflito ou de ruptura nas relações  
familiares” (SARTI, 2010, p. 96).  
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Concordando com Scott (2005), nas ações de saúde se defrontam a visão dos  
profissionais e das famílias, na qual, comumente, não são consideradas as relações familiares e  
de vizinhança, e suas implicações no cuidado tal como se desenvolve no território específico,  
portanto, na contramão do pressuposto de aproximação ao contexto familiar e social do modelo  
de atenção básica. Opõem-se na prática a lógica do serviço e a lógica da família, reproduzindo  
a tradicional hierarquia social “que coloca de um lado, os profissionais oriundos das camadas  
médias e de um universo sociocultural distinto, com saber que lhe corresponde; de outro, as  
famílias assistidas na comunidade” (SARTI, 2010, p. 95).  
As relações familiares são subentendidas como hegemônica e homogeneamente  
solidárias e complementares. As relações de poder e hierarquias sociais nas relações de gênero  
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Reflexões sobre o dueto família e gênero na política de saúde brasileira  
são obscurecidas, corroborando a cristalização de lugares. “Nessa configuração, a mulher se  
define, acima de tudo, como mãe, a partir de um lugar tradicional de gênero, sendo a grande  
aliada dos profissionais de saúde, nas suas ações disciplinadoras. Torna-se ´cumplice´ desses  
profissionais (...). As mulheres constituem-se nas “cuidadoras” (...), as que tem disponibilidade,  
podem esperar e adaptar-se ao ritmo do atendimento, ou que estão lá para conversar, para serem  
escutadas. As ações educativas têm, assim, na mulher, o alvo principal” (SARTI, 2010, p. 97).  
O campo da saúde, ainda que não seja característica exclusiva, compõe-se de  
profissionais advindos de várias áreas de formação profissional e, não menos, marcados pelos  
pertencimentos de classe, gênero e raça. No que se refere às relações de gênero que constituem  
e organizam a vida social, estudos relativos à inserção das mulheres no mercado de trabalho,  
apontam, para além de mudanças, algumas permanências – como os “guetos profissionais  
femininos”. Incluídas aqui estão pedagogia, enfermagem, serviço social quando se trata de  
posicionar pela formação no ensino superior, desde longa data caracterizadas pela  
predominância de mulheres. Incluídas estão também as trabalhadoras domésticas e as ACS  
quando se trata de posicionar pela formação no ensino fundamental e médio, conforme os  
parâmetros atuais de escolaridade.  
Na medicina tem-se a segregação entre os sexos expressas nas especialidades, donde a  
medicina sanitarista, a pediatria, por exemplo, apresenta maior presença feminina, enquanto a  
cirurgia, cardiologia (entre outras), com maior prestígio e remuneração na área, as mulheres são  
em menor número. “Os estereótipos sociais criados em torno dessas especialidades sinalizam  
conformações gerais de homens e mulheres na sociedade. A pediatra é a ´dona de casa da  
medicina´, assim o mito do instinto maternal tornaria a mulher mais calma, propícia a arte do  
´cuidar´, logo, apta a trabalhar com o tratamento de enfermos de doenças crônicas – pacientes  
que necessitam de um cuidado contínuo e próximo. Os homens, todos eles banhados pela  
postura agressiva e sem titubeios, seriam adequados à precisão necessária em manobras  
cirúrgicas” (CHIES, 2010, p. 508).  
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Apesar de mudanças sociais e demográficas havidas na sociedade brasileira desde os  
anos de 1970, persiste a valorização maior de profissões construídas como masculinas se  
comparadas às femininas. Mesmo quando as mulheres ocupam espaço nessas profissões a  
tendência é concebe-las como inferiores. Em linhas gerais, na atenção à saúde, “continua-se a  
conceber a família como assunto de mulheres, crianças e idosos, daqueles, enfim, que se  
reconhecem vulnerabilidades” (SARTI, 2010, p. 97).  
Conforme críticas feministas, o programa de atendimento em saúde básica reforça a  
identificação naturalizada entre mulher e mãe, de longa data presente em programas de saúde  
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Edilane Bertelli; Keli Regina Dal Prá; Michelly Laurita Wiese  
com ênfase materno-infantil, a despeito das lutas feministas à saúde das mulheres  
independentemente da função reprodutiva. Ao fim e ao cabo, predomina a ideia do lugar da  
mulher como natural cuidadora, tanto em relação aos profissionais que compõem as equipes de  
trabalho da atenção básica em saúde, quanto em relação as famílias nos territórios de  
abrangência. Reproduz-se nas políticas sociais a naturalização de habilidades socialmente  
construídas. O trabalho não remunerado da dedicação de mulheres aos cuidados de saúde,  
associada ao fato desse trabalho de cuidado reunir tanto o afeto quanto a competência, se  
importantes à efetivação das políticas sociais, implicam e significam, não menos, a sobrecarga  
de trabalho às mulheres, impedindo-as de se realizarem em outras esferas do social  
(SCAVONE, 2005).  
Desde longa data na sociedade brasileira, embora não exclusivamente, à família  
competiram os cuidados e provimento dos recursos necessários à sociabilidade e à reprodução  
social de seus integrantes, sob a égide da concepção idealizada e naturalizada de família – que,  
importada de outros contextos, “nem sempre ajudam para entender a realidade em que  
vivemos”–, e da divisão social e sexual do trabalho – cujo trabalho de cuidado, cindido entre  
esferas pública e privada, ainda permanece como ofício naturalizado feminino e exercido  
principalmente pelas mulheres na vida em sociedade.  
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Porta de saída: família e gênero no Programa Melhor em Casa  
A família ocupará lugar de destaque e protagonizará papel fundamental na política de  
saúde, em particular com a criação, em 2011, do Programa Melhor em Casa – cuja  
nomenclatura, conforme se lê, remete à esfera privada doméstica como porta de saída. A  
constituição desse programa expressa a reorganização da atenção domiciliar, sob as normativas  
da Política Nacional de Atenção Domiciliar do MS, que transfere parte da assistência hospitalar  
para o domicílio. Dito noutros termos, promove o deslocamento de assistência anteriormente  
centrada nas instituições de saúde reconhecidas legalmente pelo Estado para a família no espaço  
da própria moradia – configurando uma estratégia de reprivatização do trabalho de cuidado em  
saúde.  
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Mesmo que as situações para a atenção domiciliar sejam necessariamente deliberadas  
pelo saber médico e consentidas pela família, não são necessariamente consideradas as  
desigualdades consubstanciadas nas relações sociais de classe, gênero e étnico-racial. E,  
assim como na “porta de entrada”, indaga-se: quem é a família subentendida nesses  
dispositivos legais que normatizam a atenção domiciliar em saúde? E, mais ainda, quem cuida  
de quem e sob que formas na atenção domiciliar?  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 165-180, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Reflexões sobre o dueto família e gênero na política de saúde brasileira  
Quem é o cuidado ou a cuidada mostra-se no disposto oficialmente à atenção domiciliar:  
constitui um “serviço indicado para pessoas que apresentam dificuldades temporárias ou  
definitivas de sair do espaço da casa para chegar até uma unidade de saúde, ou ainda para  
pessoas que estejam em situações nas quais a atenção domiciliar é a mais indicada para o seu  
tratamento” e que objetiva “proporcionar ao paciente um cuidado mais próximo da rotina da  
família, evitando hospitalizações desnecessárias e diminuindo o risco de infecções, além de  
estar no aconchego do lar” (BRASIL, 2012). Trata-se, portanto, de pessoas dependentes de  
alguma forma do cuidado de outrem.  
Como parte do trabalho de cuidado em saúde é deslocada para o contexto da vida  
privada, às famílias implicarão mudanças nas suas dinâmicas familiares, na organização do  
espaço doméstico, nos custos financeiros, nos conhecimentos e habilidades para o cuidado em  
saúde no domicílio. Todavia, no “andar da carruagem”, sublima-se família e gênero. No repasse  
do cuidado para as famílias perpetua-se o pressuposto da existência de mulher disponível no  
seio familiar para tal e a naturalização da disposição para cuidar como feminina.  
Na reorganização institucional hospitalar e familiar da atenção domiciliar determinadas  
relações de gênero são reproduzidas através da tradicional divisão sexual do trabalho assentada  
na ideia de que cabe ao homem o papel de provedor da família e à mulher as atividades  
domésticas e funções de cuidado. Reitera-se a imagem idealizada da família, assim como  
observada na atenção básica, e, ao mesmo tempo, ignoram-se as condições sociais distintas e  
desiguais das famílias para a satisfação das necessidades de reprodução social, e, não menos,  
das mulheres. Dito noutros termos, são reiteradas “a cisão ideológica entre casa e trabalho, no  
ocidente industrializado”, a qual “obscureceu as formas pelas quais cada uma dessas órbitas  
conforma a outra” (BORIS, 2014, p. 101).  
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Analisando alguns dados de pesquisa realizada com dez famílias usuárias do serviço de  
atenção domiciliar em saúde de cinco municípios de Santa Catarina (DAL PRÁ et al, 2018),  
verifica-se a presença das mulheres como cuidadoras. Conforme os relatos, todas as pessoas  
indicadas como “cuidadora” pelas famílias desse serviço de saúde são do sexo feminino.  
Responsabilidade exclusivamente delegada às mulheres – que cuidam de seis homens e de  
quatro mulheres. Essa realidade corrobora a tendência apontada em vários estudos quanto a  
predominância das mulheres nas atividades de cuidados domésticos, familiares e pessoais,  
realizadas no próprio domicílio ou não, mercantilizadas ou não.  
O trabalho de cuidado domiciliar não pago, no caso em tela, representa uma proporção  
maior: em oito das dez famílias. Todos os seis homens (quatro velhos e dois jovens adultos)  
eram cuidados por alguma mulher da própria família de forma não remunerada – em três  
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Edilane Bertelli; Keli Regina Dal Prá; Michelly Laurita Wiese  
situações são as esposas as cuidadoras, noutras, a mãe, a irmã e a mãe, as filhas e filhos  
alternadamente, mas, consoante a narrativa, pela proximidade de moradia predominavam as  
filhas. Entre as quatro mulheres cuidadas, duas famílias dispunham do trabalho de cuidado não  
pago realizado pelas mulheres – uma pelas filhas e, noutra, pelas filhas e bisneta – e, noutras  
duas situações, esse trabalho de cuidado fora externalizado.  
Nesse universo de pessoas cuidadas e de pessoas cuidadoras predominaram aquelas com  
idade superior aos sessenta anos – marco determinado socialmente pela cronologia biológica  
ao “ciclo da vida”, sob o qual se erigem concepções, parâmetros, dinâmicas à vida em sociedade  
e, especificamente, ao acesso à proteção social como idoso. Entre as dez pessoas cuidadas, seis  
se enquadram nesta categoria: três na faixa dos 80 anos, dois na faixa dos 70 anos, uma na faixa  
dos 90 anos – os outros quatro, dois são jovens na faixa dos 20 anos e dois na faixa dos 50 anos.  
Entre as cuidadoras, seis estão na faixa dos 60 anos ou mais de idade.  
Assim, fosse feita uma média, infere-se que se tratam de mulheres idosas cuidando de  
homens idosos – aspecto este relacionado também às mudanças sociodemográficas com o  
envelhecimento populacional, que aumentou a demanda de cuidados com pessoas idosas. O  
cuidado na atenção domiciliar, nesse espectro, corrobora “a ideia da centralidade do trabalho  
das mulheres, nas instituições ou em domicílio, realizado gratuitamente ou como uma forma de  
atividade remunerada” (HIRATA, 2016, p. 193).  
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O que se apresenta é o arquétipo do familismo, pois os cuidados em saúde das pessoas  
passam a não ser mais executados nos espaços hospitalares, mas por um familiar em sua própria  
casa e junto dela os seus custos. Segundo Grah (2018), com a incorporação do trabalho familiar  
não remunerado, este acaba sendo altamente funcional para o modos operandi do programa em  
pauta. “As exigências colocadas ao cuidador envolvem um cuidado tecnificado que podem ser  
comparadas às funções básicas de técnicos em enfermagem ou outras especialidades presentes  
no âmbito hospitalar, com custos emocionais, financeiros e repercussões na própria saúde do  
cuidador” (GRAH, 2018, p. 155).  
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Considerando o fato de que grande parte dos usuários do SUS pertence a população  
pobre economicamente – cujos recursos são poucos ou inexistentes para acesso de serviços no  
mercado, cujos serviços públicos de cuidados pessoal, de creches e escolas, de atendimento as  
pessoas idosas são insuficientes e ou precários para atender as necessidades sociais básicas – a  
sobrecarga é inegavelmente maior quando se trata de famílias e de mulheres pobres e ou negras  
da classe trabalhadora. Necessário, portanto, considerar que os sistemas de proteção social se  
assentam numa determinada divisão sexual do trabalho, refletindo a estrutura de poder  
hierárquico ainda predominante nas famílias (DRAIBE, 2007).  
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Ademais, observa-se os efeitos do envelhecimento acompanhado do adoecimento e os  
cuidados especiais requeridos cotidianamente sob a responsabilidade de mulheres,  
reproduzindo a ideia do cuidado como genuinamente feminino e a sobrecarga de trabalho como  
normal. Conforme constatado em estudos sobre o tema (HIRATA; GUIMARÃES, 2012),  
dissemina-se a tendência de responsabilização da família pela proteção social em saúde e  
reproduz-se nos programas de atenção domiciliar as características familistas, principalmente  
no reforço da família – leia-se da mulher – como instância natural do cuidado.  
“Sob o slogan da melhoria e ampliação da assistência no SUS aos pacientes com agravos  
de saúde, que possam receber atendimento humanizado em casa e perto da família, o Programa  
Melhor em Casa incentiva e normatiza a presença das famílias, através da obrigatoriedade da  
indicação de um/a cuidador/a e afirma o processo de privatização, pois a família ao ser  
incorporada na gestão do cuidado passa a ser “oficialmente” requisitada para tal. Para responder  
às requisições as famílias têm basicamente duas alternativas: 1) a contratação/pagamento de  
cuidadores e a 2) utilização do trabalho familiar, não pago e invisível, e que continua recaindo  
majoritariamente sobre as mulheres” (MIOTO et al, 2015).  
A divisão sexual do trabalho doméstico permanecerá invisibilizada nas políticas sociais  
e, de acordo com Sorj (2014, p. 125), “a questão do care aparece como um problema de e para  
as mulheres”. A despeito de avanços no âmbito dos direitos sociais, cabe as mulheres,  
principalmente das mães, além do trabalho remunerado, a responsabilidade desproporcional do  
trabalho doméstico e do cuidado (BILAC, 2014).  
175  
Além disso, quando se analisa a distribuição por sexo dos trabalhadores em grandes  
grupos ocupacionais constata-se que as mulheres se destacam entre os profissionais das ciências  
e artes, dos serviços administrativos e dos trabalhadores de serviços. Ocupações ligadas ao  
cuidar, mas um cuidar exercido, agora, na esfera do mercado: professoras, assistentes sociais,  
enfermeiras (GRAH, 2018). Embora as mulheres constituíssem, de acordo com o Censo  
Demográfico (IBGE, 2010), 43,5% da População Economicamente Ativa (PEA), famílias  
chefiadas por mulheres representassem, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada  
(IPEA, 2016), 40,5% das famílias, portanto, fossem as provedoras principais ou exclusivas,  
mantem-se a ideia de que o lugar e atribuição da mulher é “cuidar” da família e da esfera  
reprodutiva.  
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Porta dos fundos: o gênero do cuidado e o gênero no cuidado  
Ao pensar as relações família e gênero na proteção social são muitas as questões que  
podem ser trazidas à tona e possíveis porque constituem a cena da vida cotidiana de alguma  
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forma. Destaca-se, entretanto, a naturalização (histórica) do cuidado como “lugar” das famílias  
e como “qualidade” das mulheres na família e na sociedade – como se não houvesse a divisão  
sexual do trabalho e do trabalho doméstico.  
Presente, portanto, em vários cenários. Na vida privada da casa quando as mulheres  
realizam as atividades domésticas necessárias à manutenção e reprodução da vida social –  
gratuita e ou remunerada. A mulher empregada doméstica responsável por cuidados com a casa  
e a família de outrem (trabalho formal ou informal remunerado) e pela sua também (trabalho  
não remunerado). A mulher que para trabalhar no mercado formal contrata outra mulher  
(empregada doméstica) para determinados cuidados, enquanto ela própria, também  
profissional, realiza o trabalho (remunerado) de enfermeira ou de professora, por exemplo, em  
que cuidados estão indubitavelmente implicados. Amulher contratada e remunerada para cuidar  
de pessoas com limitações físicas (relacionadas à idade, saúde, acidente etc.) no domicílio da  
pessoa cuidada e que para cuidar de pessoa idosa, por exemplo, de sua própria família conta  
com a solidariedade familiar e fraternal de outras mulheres. A mulher, “dona de casa”, ao  
realizar cotidianamente os cuidados com a sua casa e família, que, ao mesmo tempo, por  
motivações diversas, cuida gratuitamente de pessoa dependente e idosa cuja família vizinha a  
sua casa.  
Como indicado nas reflexões, o cuidado não se restringe a vida privada não mercantil -  
ou seja, a casa e a família sejam quais dinâmicas familiares forem engendradas. No “mundo do  
trabalho”, considerado “motor” essencial da engrenagem social capitalista, comumente  
vislumbra-se o trabalho remunerado e assalariado realizado na dita esfera pública - mercantil.  
Mas, aqui, o cuidado também está implicado e, mais ainda, as relações de gênero. Veja-se, por  
exemplo, alguns estudos sobre a participação das mulheres no mercado de trabalho no contexto  
brasileiro das três décadas finais do século XX, que sinalizam tendências tanto de continuidades  
quanto de mudanças (BRUSCHINI, 2007; BRUSCHINI, 2000; COSTA; SORJ; BRUSCHINI,  
2008; LAVINAS, 1997).  
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As continuidades apontam o constante incremento da inserção feminina no mercado de  
trabalho, porém em atividades laborais mais precárias em relação aos vínculos e às condições  
de trabalho – as mulheres ainda são maioria em ocupações como o trabalho doméstico, cuja  
remuneração é baixa e amplamente realizado sem carteira assinada. Para as mulheres com nível  
educacional “superior”, em termos de formação profissional, persistem alguns “nichos  
tradicionais”: magistério, enfermagem, serviço social.  
Dessas continuidades em relação ao mundo do trabalho, a despeito da crescente  
participação feminina, os “lugares ocupados” por essas mulheres, independentemente do grau  
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Reflexões sobre o dueto família e gênero na política de saúde brasileira  
de escolarização, tenderam para atividades relacionadas, de alguma forma, à noção de cuidado.  
Em particular, se considerarmos que “o cuidado não é apenas uma atitude de atenção, é um  
trabalho que abrange um conjunto de atividades materiais e de relações que consistem em  
oferecer uma resposta concreta às necessidades dos outros. Assim, podemos defini-lo como  
uma relação de serviço, apoio e assistência, remunerada ou não, que implica um sentido de  
responsabilidade em relação à vida e ao bem-estar de outrem” (KERGOAT, 2016).  
Mesmo em relação às mudanças, a despeito da conquista de empregos e da expansão da  
participação feminina em profissões de maior prestígio social (medicina, direito e áreas da  
engenharia ocupadas tradicionalmente pelos homens), outro fenômeno econômico-social  
evidenciado diz respeito à participação cada vez maior no mercado de trabalho de mulheres  
mais velhas, casadas e que têm filhos, cujas implicações se manifestam tanto nas relações de  
trabalho e na organização familiar, quanto nas relações de gênero que as constituem e donde o  
cuidado se faz presente.  
Essas mudanças e permanências trazem à tona um corolário de questões, em particular  
se considerarmos os sentidos do trabalho construídos na modernidade e a constituição dos  
sistemas de proteção social, originariamente vinculados ao trabalho assalariado, e, não menos,  
ao levarmos em conta as mudanças contemporâneas na família e na própria cidadania das  
mulheres – impulsionadas pelos movimentos feministas desde as décadas de 1960 e 1970.  
Nas sociedades ocidentais, sob as hostes da racionalidade capitalista de produção, o  
trabalho socialmente valorizado se refere àquelas atividades realizadas na esfera pública,  
reconhecidas úteis por outrem e remuneradas. O trabalho que confere dignidade e direitos,  
existência e identidade sociais às pessoas é o trabalho pago, em particular, o assalariado (GORZ,  
2003), implicando, conforme críticas feministas, o esvaziamento de sentido, a invisibilidade e  
a exclusão de outras tantas formas de trabalho, dentre as quais se situam aquelas realizadas na  
esfera da reprodução social, não remuneradas e sob a responsabilidade de mulheres.  
Embora historicamente o ingresso feminino no mercado de trabalho formal e informal  
não seja constitutivo apenas dessas décadas e das recentes (se considerarmos o pertencimento  
de classe e étnico-racial) e seja inegável que se intensificou e tornou-se uma tendência constante  
desde os anos de 1970, manteve-se a divisão sexual do trabalho doméstico, cuja  
responsabilidade permanece predominantemente às mulheres. A reprodução dessa relação de  
gênero produz consequências - distintas consoantes a condicionantes econômicos, políticos e  
culturais - tanto objetivas quanto subjetivas no cotidiano de trabalhadoras do sexo feminino e,  
em que pesem os avanços na cidadania das mulheres nas esferas pública e privada, ainda  
persistem desigualdades e discriminações sociais.  
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Considerando que gênero se refere às relações sociais de poder construídas a partir das  
diferenças percebidas entre os sexos e que dizem respeito incluso às organizações e instituições  
sociais, dentre as quais o mercado de trabalho (SCOTT, 1995), há profissões e ocupações cujas  
clivagens expressam nitidamente as divisões e hierarquias no mundo do trabalho: algumas delas  
associadas ao masculino, enquanto outras, ao feminino. Como assinalado, as mulheres ainda  
são maioria em determinados ramos da atividade econômica - dentre os quais: serviços pessoais,  
administração pública, serviços de saúde e de ensino, além de comunitários. Isso significa que  
o setor do mercado de trabalho no qual as mulheres encontravam e ainda encontram as maiores  
oportunidades de trabalho e emprego é o de serviços.  
O envelhecimento populacional como tendência mundial, incluso a sociedade brasileira,  
tem se mostrado, em alguns estudos, o propulsor do debate acerca do cuidado. Mas não está só,  
ao se considerar que em algumas políticas de proteção social (saúde, assistência, crianças e  
adolescentes, idoso) a questão do cuidado se traduz na referência à responsabilidade da família,  
da sociedade e do Estado. Em que pesem a histórica participação da família no âmbito da  
proteção, nos dias hodiernos, pelos rumos neoliberais do Estado brasileiro em relação às  
políticas sociais, essa ordem de responsabilidade não constitui acaso: “preferencialmente” as  
famílias e, pela “tradição”(!?) e “natureza”(?!), indubitavelmente as mulheres – principais  
implicadas nos efeitos dessa direção político-econômica voltada à reprodução do capital e “de  
costas” para a reprodução da vida humana.  
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Quando se trata de família e de cuidado, fundamental a concepção de que gênero  
constitui e atravessa as relações e instituições sociais, demarcando fronteiras e hierarquias tanto  
entre campos profissionais quanto entre os sujeitos no interior de um mesmo campo, tanto no  
mercado de trabalho quanto na família e, mais ainda, a consubstancialidade das relações sociais  
de classe, sexo e étnico-racial e as desigualdades erigidas, as quais não são poucas, outrora e  
agora, na sociedade brasileira.  
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