DOI 10.34019/1980-8518.2022.v22.39727
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 22, n.2, p. XI-XXII, jul. / dez. 2022 ISSN 1980-8518
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Novas refrações da questão social:
um lugar para a razão
Não há nenhuma tomada de posição filosófica “inocente”
(LUKÁCS, 2020, p. 34)
I
contam mais de duas décadas, desde que o seminal N. 3 da Revista Temporalis
1
foi
publicado. De para cá, muito se escreveu sobre o assunto, com significativos avanços, é
verdade, mas sem alterações substantivas no que diz respeito às suas estruturas de fundo.
Noutros termos, a compreensão dos fundamentos da “questão social”, no serviço social, parece
relativamente bem consolidada.
O lugar heurístico que ocupa na construção dos saberes profissionais, sua posição basilar
praticamente transversal na estruturação curricular, a exigência de seu prévio
(re)conhecimento, inclusive, antes mesmo da reflexão sobre as formas de intervenção
arquitetura compreensiva que ao menos procura nos colocar em uma posição distinta da de
meros “administradores” das mazelas sociais ou simples executores terminas de políticas
sociais (como advertiu Netto, 2009)... São questões que atestam a dupla importância do tema
para a profissão: a) sua admissão como parte da materialidade mesma das relações sociais
burguesas e b) de sua compreensão na constituição da arquitetura de saberes da formação
profissional.
É claro, como todo “objeto” de estudos, a questão social e, por consequência, suas
refrações não passa sem controvérsias e contribuições distintas. Poderíamos citar uma miríade
de pesquisadores nacionais e latino-americanos que se dedicam em aprofundar as aquisições
1
Aqui estamos nos referindo ao N. 3, Ano II, jan. a jun. 2022, da Revista Temporalis, na qual foram publicados
artigos de Marilda Iamamoto, Maria Carmelita Yazbek, José Paulo Netto e Potyara Pereira sobre o tema “questão
social”.
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inauguradas por Marilda Iamamoto, Maria Carmelita Yazbek, José Paulo Netto e Potyara
Pereira. Poderíamos citar também posicionamentos discordantes, sejam em relação à própria
abstração da definição, seja em relação ao seu lugar na estrutura curricular
2
. Por tratar-se de
tema tão sensível e, ao mesmo tempo, abordado por inúmeros estudiosos sérios, preferimos não
os nominar aqui, sob pena de cometermos injustiças. Tampouco poderíamos dar conta, em um
editorial, até mesmo das intervenções mais significativas. Todavia, fique registrado nosso
modesto reconhecimento àqueles que se dedicam a problematizar e aprofundar tema tão central
para a profissão.
A definição de “questão social”, de Iamamoto, parece conter a síntese tornada
praticamente “lugar comum” na profissão, merecendo, aqui, sua reprodução:
A gênese da questão social na sociedade burguesa deriva do caráter coletivo
da produção contraposto à apropriação privada da própria atividade humana
o trabalho –, das condições necessárias à sua realização, assim como de seus
frutos. É inseparável da emergência do “trabalhador livre”, que depende da
venda de sua força de trabalho como meio de satisfação de suas necessidades
vitais. Assim, a questão social condensa o conjunto das desigualdades e lutas
sociais, produzidas e reproduzidas no movimento contraditório das relações
sociais, alcançando plenitude de suas expressões e matizes em tempo de
capital fetiche. As configurações assumidas pela questão social integram tanto
determinantes históricos objetivos que condicionam a vida dos indivíduos
sociais, quanto dimensões subjetivas, fruto da ão dos sujeitos na construção
da história. Ela processa, portanto, uma arena de lutas políticas e culturais na
disputa entre projetos societários, informados por distintos interesses de
classe na condução das políticas econômicas e sociais, que trazem o selo das
particularidades históricas nacionais (IAMAMOTO, 2007, p. 156).
Não é imprescindível retomarmos aqui as discussões francesas (das escolas de
Rosanvallon, Castel, entre outras
3
). Mesmo os graduandos em serviço social, que passaram
pela discussão, estão bastante prevenidos em relação ao fato de que não tratamos de uma nova
“questão social”, mas da “’velha questão social’, inscrita na própria natureza das relações
sociais capitalistas, mas que, na contemporaneidade, se re-produz sob novas mediações
históricas e, ao mesmo tempo, assume inéditas expressões espraiadas em todas as dimensões
da vida em sociedade” (IAMAMOTO, 2007, p. 161). Mas é justamente na compreensão
das inéditas expressões assumidas pela “questão social” – que reside o problema.
Aí reside o problema hodierno pelo fato de que a “questão social”, em si mesma, não é
palpável; não se presta a uma abordagem direta, a uma intervenção pontual e cirúrgica. Não é
manipulável ou tangível. A “questão social” é empiricamente perceptível por meio de suas
2
Basta lembrar as polêmicas sobre as bases de fundamentação da profissão: políticas sociais ou questão social.
3
Por certo, não é nosso objetivo aqui igualar autores como Castel e Rosanvallon. A referência é apenas alusiva,
dado que já que foram (e ainda são) de grande influência nos debates do Serviço Social brasileiro.
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expressões. E, não sem imbróglio, suas expressões se revelam nas mais variadas formas. Por
um lado, o campo para a intervenção profissional alarga-se tanto mais as formas de interação
da sociedade burguesa se complexificam; por outro, o desdobramento muitas vezes
epifenomênico – das formas obscurece ainda mais a substância comum que as anima.
Mas, da relação entre as formas e a substância, da aparência e a essência, Hegel tratou
com zelo invulgar na Ciência da Lógica e na Enciclopédia. É claro, não se trata aqui de
revisitarmos os imbróglios da querela epistemológica, mergulhando em discussões sobre o
“método”, sob pena de retrocedermos “da lógica da coisa” para a “coisa da lógica”. Mas, em
suas especulações a respeito do finito e do infinito, do puro ser e das determinações, Hegel
oferece uma dissecação dos processos de pensamento que vão da indeterminação à
especificação e desta ao conceito. Hegel ultrapassa a datidade estática da coisa para descobrir
o ser enquanto processo: o ser, na elaboração hegeliana, é o vir-a-ser. A coisa imediatamente
dada, em suas determinações mais elementares finitas é apenas a expressão momentânea do
desenvolvimento. O ser é o hoje e seu desdobramento futuro. Hegel capturou esse movimento
e conseguiu distinguir com acuidade a identidade tensionada entre a contingência e o processo
(cf. HEGEL, 2017). Seu passo seguinte, na Lógica a Doutrina da Essência em um nível
superior de abstração, é justamente uma tentativa de compreender a realidade da coisa para
além de suas propriedades (finitas) que, embora expressem a coisa, não a esgotam. Do que nos
interessa aqui, é que o processo de conhecimento, com a aquisição hegeliana, deixa de ser o
reconhecimento meramente sensorial da coisa isolada, ou mera essencialidade que prescinde da
propriedade, infinito que prescinde do finito, para tornar-se o conceito que expressa a coisa
imersa na estrutura racional mais ampla que enforma todos os seres. Ora, repetimos: Hegel
captura, assim, o movimento; a coisa não é objeto singular estanque, átomo inerte, a coisa é
processo; o ser é vir-a-ser.
É provável que não precisássemos viajar tão longe, ao encontro do velho filósofo
burguês, que com brilhantismo anteviu o movimento da realidade e procurou comprimi-lo no
quadro de uma solução filosófica. Nem cometeríamos aqui a absurda impropriedade de realizar
uma apresentação de Hegel em dois parágrafos. Essa alusão permite-nos destacar que, um
pouco mais próximo de nós, seu mais inteligente crítico havia observado, nos idos de
1843/44, que as grandes questões humanas não poderiam mais ser resolvidas no plano do
pensamento, da filosofia, mas na prática (MARX, 2010a). Marx reposicionou em definitivo
(sim, podemos afirmá-lo sem medo de exagero), numa relação cuja compreensão é
proporcional ao desprezo a ela dedicada, a relação sujeito-objeto, ser e conhecer, espelhar e
exteriorizar, exteriorizar e alienar, alienar e estranhar...
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El hombre no es solamente ser natural, sino ser natural humano; es decir, un
ser que es para mismo, por ende un ser genérico, que como tal debe
confirmar y actuar tanto em su ser como en su saber. En consecuencia, ni los
objetos humanos son objetos de la naturaleza, tal como se ofrecen de forma
inmediata, ni el sentido humano, como existe en forma inmediata, es objetivo,
sensorialidad humana, objetividad humana. Ni la naturaleza objetivamente
ni la naturaleza subjetivamente están inmediatamente disponibles en forma
adecuada para el ser humano. Y como todo lo natural debe originarse, el
hombre también tiene, por lo tanto, su acto de origen, la historia que para él,
sin embargo, es un acto de origen consciente y por ser un acto de origen con
consciencia se supera a sí mismo. La historia es la verdadera historia natural
del hombre (MARX, 2010, p. 199-200)
Ora, se “um ser não objetivo é um não ser” (MARX, 2010, p. 199) e se não resta, para
nós, qualquer dúvida de que a objetividade é, primordialmente, existência objetiva, mas que,
mesmo a existência objetiva, para o homem, é dada por sua relação com o objeto, sua
transformação de ser em-si a ser-para-nós, a relação do homem como mundo envolve o
reconhecimento de sua objetividade primária (do mundo) e, ato contínuo, a dação de forma
humana, como manifestação e expressão da transitividade do homem realmente existente. O
mundo, tomado como dado, realidade objetiva, é agora admitido como dado construído,
previamente posto. Essa espiral indivíduo-gênero confere não apenas ao mundo uma
insuperável forma humana, como revela aos homens seu vínculo inquebrável entre indivíduo e
gênero, natureza e sociedade, singularidade e história.
Bem lidas, as aquisições acima, que datam à primeira metade do século XIX, não
permitem mais a admissão de qualquer redução do ser a uma propriedade única e a
transcendência dessa propriedade como elemento sobredeterminante de todos os outros. De
resto, esse expediente não é nenhuma novidade entre nós. O marxismo vulgar foi pródigo em
estabelecer conexões a fortiori entre todos os aspectos da vida e a economia. Hoje, no lugar da
economia, o corpo, que, ainda que em sua inconteste objetividade, é, também, não podemos
esquecer, corpo social, corpo genérico. E como corpo social e genérico, é também consciência
social e genérica. Perder essa dimensão essencial do corpo é incorrer no risco de um
sensualismo canhestro, digno de fazer corar o mais vulgar materialismo do séc. XVIII.
Voltando ao velho filósofo burguês, na aventura da razão, da consciência ao espírito,
Hegel superou o subjetivismo de Kant para reencontrar, ainda que em meio à mistificação, a
relação entre indivíduo e gênero. Não dúvidas que o fez de maneira “invertida”, especulativa;
mas, mesmo com o exército napoleônico às portas de Iena, Hegel conseguiu demonstrar, na
Fenomenologia do espírito (HEGEL, 2018), livro considerado por alguns como, “talvez, a obra
mais genial de toda a história da filosofia” (Kroner apud VAZ, 2011, p. 9), que as formas de
consciência individual o são formas puras, mas resultados da experiência no mundo. Do final
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dos anos 1810 à Filosofia do Direito, o velho filósofo burguês jamais viria a abandonar essa
ideia. A consciência-de-si, como consciência individual, é sempre formada no mundo. Nossa
autoconsciência – ou, o senso de nós mesmos – ainda que se manifeste em nossa singularidade
corporal, é sempre uma identidade formada intersubjetivamente, na relação entre o eu e o nós,
entre a existência individual e as demais
4
. Noutros termos, a consciência que se manifesta
individualmente é, para Hegel, produto e pressuposto da própria institucionalidade, da
moralidade objetiva; a vida ética é, assim, a convergência entre ambas.
Descartado como “cachorro morto” por seus detratores “enfadonhos, presunçosos e
medíocres” (MARX, 2018, p. 91), Hegel foi “o primeiro a expor, de modo amplo e consciente,
suas [da dialética]
5
formas gerais de movimento” (MARX, 2018, p. 91). Isso, prossegue Marx,
produziu um efeito paradoxal:
Em sua forma mistificada, a dialética esteve em moda na Alemanha, porque
parecia glorificar o existente. Em sua configuração racional, ela constitui um
escândalo e um horror para a burguesia e seus porta-vozes doutrinários, uma
vez que na intelecção positiva do existente, inclui, ao mesmo tempo, a
intelecção de sua negação, de seu necessário perecimento (MARX, 2018, p.
91).
Enquanto a dialética das coisas, cuja razão é capaz de penetrar e reproduzir
intelectivamente, presta e não se presta a esconder/ revelar a história da gênese e
desenvolvimento dessas coisas mesmas para os homens, o oposto disso é o fosso cavado por
um Schopenhauer ou um Kierkegaard, cujo corolário viria a ser os desdobramentos
aforismáticos de Nietzsche. A partir daí, estaria aberta a barafunda da filosofia do século XX:
de Freud a Lacan, alcançando Derrida, Foucault, Deleuze, Guattari... Essa aparente
“hipercrítica” irracionalista põe em dúvida qualquer possibilidade de a razão alcançar a dialética
mesma do mundo; no mesmo golpe, desconstrói o homem para que, ao tornar todo o realmente
existente incognoscível, mera questão de interpretação e, no limite, desobjetivo, tudo possa
permanecer exatamente como está: a derrota da práxis, sua declaração de impotência, é a
exaltação da vitória da causalidade (desgovernada) das coisas. Não por acaso, o ódio a Hegel.
Afinal,
O niilismo e a falta de perspectiva não querem e não podem dar à ação humana
uma medida concreta, uma orientação resoluta. A visão de mundo que subtrai
o comportamento individual das relações com a sociedade considera as
resoluções individuais como perfeitamente injustificáveis e busca relações por
caminhos errôneos, estradas falsas, onde não as encontra (LUKÁCS, 2022, p.
596).
4
Cf. Hegel, item V (2018, p. 171 ss.).
5
Acréscimo nossos.
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As ideologias da derrelição não têm nada de positivo a oferecer na construção de um
novo homem e de uma nova sociedade, tarefa primária que se impõe à própria sobrevivência
genérica. Somente a reafirmação radical de uma profunda medida humana (racional!)
justamente a medida negada pelas ideologias da derrelição –, a defesa inflexível da primazia do
valor de uso sobre o de troca, poderá pôr de volta as coisas sobre os próprios pés, produzindo a
vitória do mundo dos homens sobre o mundo das coisas, do gênero sobre o capital. Do contrário,
as ideologias da derrelição a exemplo do papel a que se prestaram, como Nietzsche e
Spengler, Heidegger, Jaspers e Klages prepararam, na intelligentsia, o terreno para essa
credulidade, sobre a qual essa ideologia, não obstante sua mediocridade, poderia exercer
irresistivelmente sua eficácia, onde a passividade desesperada poderia se transformar em uma
atividade fundada na credulidade, em uma cega obediência a todas as ordens do Führer”
permanecerão por aí, a adubar consciências para as novas formas de dominação e violência de
classe, que se expressam, também, nas novas expressões da questão social.
II
Não é novidade que a aguda crise contemporânea do capital alargou o fosso
intransponível entre os interesses das classes dominantes e do trabalho; que, em resposta à
agudização de suas contradições, setores do capital tentam hoje, de modo brutal e sem qualquer
continência, promover formas bárbaras de (des)socialidade, donde o recrudescimento dos
estranhamentos e a recuperação de formas de domínio de classe que considerávamos
superadas pela história (mas que ora retornam potenciadas por novas roupagens que mal
escondem os velhos conteúdos). Também não é novidade o acirramento das lutas de resistência,
muitas vezes surdas e muitas, muitas vezes derrotadas, dos trabalhadores em busca do simples
direito de existir: de comer, de morar, de viver, de vivenciar sua sexualidade, de poder transitar
pela comunidade tal como são; a sociedade que infla o individualismo é, paradoxalmente, a
mesma que nega a possibilidade de uma individuação plena. A “sociedade livre” é a mesma que
aniquila a existência e violenta as manifestações de determinados grupos sociais, fazendo-os
vítimas cotidianas da barbárie social do capital: pobres, negros, mulheres, LGBTQIA+, pessoas
com deficiência, usuários de drogas ilícitas, pessoas em situação de rua, sujeitos com sofrimento
mental... Este o panorama de novas expressões, que trazem em seu âmago a “velha” questão
social, a nos desafiar, enquanto assistentes sociais, no nosso cotidiano profissional e, enquanto
seres humanos, em nossa vida diária.
Assim, é procurando contribuir na visibilidade de tais expressões que a Revista Libertas
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apresenta, nesta edição, o dossiê Serviço Social e questão social: novas e velhas expressões.
Abrindo este número, Maria Helena Elpídio e João Paulo da Silva Valdo, em O Serviço Social
na encruzilhada: a questão racial e o projeto de formação profissional, problematiza os
dilemas hodiernos vivenciados pela profissão, colocada entre sua histórica defesa de um
“projeto de sociedade livre de todas as formas de exploração” e o avanço das perspectivas mais
recrudescidas da direita, na fase de crise aguda do capital. Para os autores, nessa tensão entre
seu saber consolidado nas últimas quatro décadas, que anima sua inserção profissional, e os
projetos do grande capital, de cariz conservador, “o debate que articula raça, classe, gênero,
sexualidades e territorialidades desponta como força motriz imprescindível para as
reconstruções necessárias que se avizinham nos próximos episódios da história”.
Mirla Cisne e Camila Mesquita Soares, em Questão social no brasil contemporâneo:
contribuições do feminismo marxista e antirracista ao serviço social, procuram abordar a
questão social e algumas de suas expressões na contemporaneidade brasileira frente ao avanço
do ultraconservadorismo de cariz neonazista”. As autoras fundamentam sua análise em uma
perspectiva “feminista, marxista e antirracista”. Seu objetivo é claro: contribuir com a
renovação profissional e o avanço do Serviço Social crítico por meio do fortalecimento do nosso
vínculo com os movimentos sociais e organizações da classe trabalhadora”. E ainda mais:
oferecer aportes à práxis profissional que se compromete a enfrentar as expressões da questão
social, fazendo frente ao “crescimento do ultraconservadorismo neonazista no Brasil
contemporâneo”.
Na terceira intervenção, Joana Valente Santana, Tânia Maria Ramos de Godoy Diniz e
Leonardo Costa Miranda, no artigo Questões Agrária, urbana e ambiental: Serviço Social e as
formas de enfrentamento das relações de opressão presentes na cidade, no campo e na
floresta, trazem a discussão para o âmbito das territorialidades. Conforme as autoras, o artigo
discute a apropriação do território pelo capital articulado à destrutividade ambiental,
financeirização da natureza e desigualdade no acesso à terra no Brasil”. Sua contribuição se
põe na reflexão sobre o posicionamento do Serviço Social para o enfrentamento das relações
de exploração e opressão presentes na cidade, no campo e na floresta”, sem perder de vista a
interseção das dimensões de classe, gênero e raça. Concluem as autoras que, erigidas sobre
as diretrizes curriculares da ABEPSS e o Projeto Ético-Político Profissional, o “Serviço Social
brasileiro tem buscado as mediações da interpretação das questões agrária, urbana e
ambiental para contribuir com o trabalho profissional de assistentes sociais e com todas as
formas de luta social contra as relações de exploração e opressão existentes”.
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Mantendo-se na questão do território convergindo para o debate feminista, Tatiana
Dahmer Pereira, em Militarização e judicialização: resistências de mulheres em favelas do
Rio de Janeiro, traz uma instigante demonstração da resistência dos movimentos de mulheres
nas favelas do Rio de janeiro (RJ). Abordando a militarização dos territórios de favelas, a autora
evidencia o genocídio da população negra nessas comunidades, concluindo que, embora
insuficiente, o recurso à judicialização “tem se apresentado como um instrumento, se não de
enfrentamento, ao menos de visibilidade, desnaturalização e de contenção temporária em
relação à violência estatal”. No artigo, além de reflexão teórica a autora oferece resultados
preliminares de pesquisa ainda em andamento sobre o tema.
E fechando a discussão sobre questão urbana, Rafaela Barbosa de Oliveira e Valter
Martins em O recorte racial como traço permanente da população em situação de rua, no
Brasil, analisam como as “imbricações entre o racismo estrutural e as desigualdades sociais
inerentes à sociedade capitalista” impactam os processos de “produção e reprodução da
população em situação de rua”. Fenômeno que tem ganhado densidade e evidência nos últimos
anos, segundo os autores, graças ao recrudescimento das crises econômicas. Valendo-se de um
cuidadosa revisão sistemática sobre estudos e documentos que informam sobre “o processo de
constituição e de expressões do fenômeno na realidade brasileira”, concluem pela existência de
uma tendência de “crescimento de pessoas vivendo em situação de rua, com um perfil marcado
pelo recorte racial, e pouca efetividade no acesso às políticas públicas sociais”.
Ainda dentro do dossiê, apresentamos dois artigos que conjugam a análise da formação
prossional à problematização do racismo. No primeiro, Diretrizes curriculares, serviço social
e questão racial: nós a serem interpelados para a centralidade antirracista na formação
profissional, de André Henrique Mello Correa, o autor parte de pesquisa bibliográfica para
articular “os elementos acerca da centralidade da questão étnico-racial enquanto chave analítica,
estrutural e estruturante do capitalismo e dinamizador da ‘questão social’ na particularidade da
formação econômica-social do Brasil, situando o serviço social nesta trama” e a centralidade
da agenda antirracista na profissão”, tomando como parâmetro “os acúmulos da categoria
profissional e as Diretrizes Curriculares da ABEPSS”. Suas conclusões apontam no sentido de
que a categoria conseguiu produzir “avanços significativos para pensarmos a produção do
conhecimento acerca da matéria e a centralidade da luta antirracista na afirmação do projeto
ético-político, ainda que incorra atravessamentos e dilemas a serem postos na agenda do dia”.
Já no segundo artigo, Formação acadêmico-profissional em Serviço Social e racismo
no Brasil: uma análise crítica, Leonardo Dias Alves procura “analisar como a formação
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acadêmico-profissional em Serviço Social pode ser um espaço reflexivo-crítico de combate e
enfrentamento ao racismo”. O autor defende que “a problemática dos desdobramentos dos
antagonismos e conflitos das relações raciais, assim como a materialização do racismo
estrutural na atualidade, são categorias indispensáveis no processo de formação acadêmico-
profissional”. No âmbito da profissão, o autor destaca o Projeto Ético-Político Profissional
como resposta da profissão no combate ao racismo em seu âmbito. Suas conclusões, apontam
para o fato de que “no âmbito da categoria profissional do Serviço Social é necessário
identificar como o racismo apresenta-se para a profissão” e como esta pode formular respostas
em relação ao seu enfrentamento.
Encerrando o dossiê, Pedro Henrique Antunes da Costa e Kíssila Teixeira Mendes
apresentam reflexões sobre os escritos marxianos. Em Marx sobre a "questão social":
Itinerário de análise no New-York Daily Tribune, apresentam “a análise de Marx sobre a
‘questão social’ em seus artigos no New-York Daily Tribune de 1952 a 1962. Os autores
destacam as abordagens de Marx sobre “pobreza, fome, desemprego, formas precárias e
degradantes de trabalho, produção de loucura e do suicídio, criminalidade e emigração forçada
como expressões ou desdobramentos da ‘questão social’”. Defendendo o resgate das produções
marxianas menos conhecidas, argumentam que dito expediente pode contribuir na qualificação
do debate e enfrentamento da “questão social” no Brasil. Reafirmam, no mesmo diapasão, a
pertinência do método em Marx e de suas análises [para a] nossa realidade”.
Na seção de artigos recebidos em fluxo contínuo, trazemos cinco trabalhos que, mesmo
não compondo o dossiê, são de interesse para o tema deste número.
Os dois primeiros, trazem abordagens sobre a precarização contemporânea do trabalho
em duas vertentes: no contexto das tecnologias digitais no período pandêmico e no abuso da
força de trabalho imigrante na indústria têxtil, em São Paulo.
Assim, Angélica Luiza Silva Bezerra e Milena Gomes de Medeiros, em Trabalho
alienado na era das tecnologias digitais no contexto da covid-19, procuram demarcar “os
aspectos contemporâneos do trabalho alienado na era das tecnologias digitais no contexto da
Covid-19”. Valendo-se de revisão bibliográfica e dados empíricos, as autoras argumentam que
“pandemia da Covid-19 tem demonstrado um processo prolongado das contrarreformas, que
desnudou o drama da classe trabalhadora destituída de proteção”. Em suas avaliações, a
precariedade do trabalho que “se estende e se universaliza”, de modo explícito no período
pandêmico, pela via da incorporação de tecnologias digitais, encontra sua explicação mais
profunda no movimento dos processos de reestruturação do mundo do trabalho desde a década
de 1970”. Concluem as autoras: “o contexto pandêmico apenas antecipa o que era uma
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tendência qual seja, a ampliação do trabalho alienado sob a gestão das tecnologias digitais”.
em A superexploração da força de trabalho dos imigrantes têxteis de São Paulo,
Rodrigo Fernandes Ribeiro e Valéria Regina da Fonseca, com base na análise de “reportagens
publicadas pelo sítio da Organização Não-Governamental (Ong) Repórter Brasil sobre os casos
de denúncias de trabalho análogo à escravidão de imigrantes sul-americanos nas indústrias
têxteis do estado de São Paulo, entre 2009 e 2020” assumem o conceito de capitalismo
dependente para identificar a “funcionalidade da superexploração da força de trabalho e do
exército industrial de reserva no processo de acumulação capitalista”. Apresentam, finalmente,
as condições de trabalho a que o submetidos os imigrantes na indústria do vestuário,
concluindo que “o pagamento de irrisórios salários e o oferecimento de condições de trabalho
degradantes, são elementos que caracterizam o uso da força de trabalho imigrante neste setor
de produção de vestuário”.
No terceiro artigo desta seção, Conjunto Paraíso dos Pássaros: Avaliação da eficácia
societal do Projeto Una (Belém PA), Sérgio Luiz Cortinhas Ferreira Filho e Raquel Carvalho
Paiva, combinando pesquisa bibliográfica, documental e de campo, trazem para primeiro plano
“a vida das famílias do Conjunto Paraíso dos Pássaros após 22 anos do processo de
reassentamento realizado pelo Projeto Una (Belém PA)”. Tendo por compreensão de fundo
que os impactos produzidos pelos projetos urbanísticos podem ser minimizados quando a
intervenção urbanística possui uma orientação que preza pela participação efetiva dos
beneficiados”, concluem que o reassentamento das famílias pelo Projeto produziu melhorias
“na qualidade de vida, satisfação na maioria dos moradores investigados, impacto na renda,
implementação de infraestrutura e serviços coletivos na área, acesso a boas condições de
moradia, dentre outros.
Em Reflexões para o debate sobre formação e o ensino teórico-prático no Serviço
Social, Eliane Martins de Souza Guimarães retoma a problematização da formação profissional
para apresentar “reflexões para o debate sobre formação e o ensino teórico-prático no Serviço
Social”. Apresentando “dados de pesquisa com o estado da arte do debate sobre o ensino
teórico-prático no Serviço Social”, a autora explora a relação “de ensino e aprendizagem a partir
da formação e suas expressões: na docência, ensino e método; instrumentalidade, instrumentos
e a relação teoria e prática”. Conclui apresentando como “elementos do debate sobre as teorias
pedagógicas contra hegemônicas e formação em saúde trazem contribuições para o Serviço
Social”.
Encerrando a seção de artigos, Thaís Kristosch Imperatori, Melina Sampaio de Ramos
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Barros e Anna Júlia Medeiros Lopes Garcia desenvolvem o instigante Voluntariado e a Nova
Direita: reflexões sobre as estratégias de proteção social em tempos de pandemia. As autoras
retomam a análise do voluntariado “como estratégia de proteção social no contexto de pandemia
de COVID-19 no Brasil à luz da ideologia da Nova Direita”. Compreendendo as diferentes
formas de proteção social, as autoras investem em pesquisa documental ampla para defender a
existência de uma “histórica institucionalização de programas de incentivo ao voluntariado no
Brasil”, cuja tendência permanece sendo fortalecer, ainda que “de maneira distinta”, “a redução
da responsabilidade do Estado”. Concluem as autoras que, “no atual contexto, ao ser
apresentado como principal estratégia de proteção social do governo Bolsonaro, o voluntariado
se orienta pela privatização da assistência e pela moralização do trabalho e da pobreza”.
Fecha o nosso número, a entrevista com Rita Meoño Molina, Presidente da ALAEITS,
gestão 2020-23. A professora da Escuela de Trabajo Social de la Universidad de Costa Rica,
fala sobre a Associação, faz um balanço sobre o XXIII Semanario Latinoamericano de Trabajo
Social, ocorrido no Uruguai em novembro deste ano e tece prospecções sobre os desafios
futuros para o serviço social latino-americano. E a tradução do artigo Por que a burguesia
precisa se desesperar?, de György Lukács, de 1848, publicado às portas de sua mais
contundente crítica do irracionalismo, A destruição da razão, de 1954, e dez anos após a
conclusão de O jovem Hegel. De um modo direto, claro e ao mesmo tempo erudito, Lukács não
foge à uma de suas mais intransigentes características: o combate das ideologias burguesas.
Que permaneçamos instigados a continuar oferecendo respostas emancipadoras
aos desafios postos pelas novas expressões da “questão social” aos e às assistentes sociais. Boa
leitura!
Os editores.
Referências
ABEPSS. Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social. Revista Temporalis.
Rio de Janeiro, ano II, N. 3, jan-jun 2001.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. Trad. Paulo Meneses, Karl-
Heinz Efken e José Nogueira Machado. Petrópolis/ Bragança Paulista: Vozes/ Editora
Universitária São Francisco, 2018.
______. Ciência da Lógica. 2. A doutrina da Essência. Trad. Christian G. Iber e Frederico
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______. Ciência da Lógica. 1. A doutrina do Ser. Trad. Christian G. Iber e Frederico Orsini.
Petrópolis/ Bragança Paulista: Vozes/ Editora Universitária São Francisco, 2017.
Editorial
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 22, n.2, p. XI-XXII, jul. / dez. 2022 ISSN 1980-8518
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E
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IAMAMOTO, Marilda Vilella. Serviço Social em tempo de capital fetiche. São Paulo: Cortez,
2007.
LUKÁCS, György. Por quê a burguesia precisa se desesperar. Trad. Alexandre Aranha
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______. A destruição da razão. Trad. Bernard Herman Hess, Rainer Patriota e Ronaldo Vielmi
Fortes. São Paulo: Instituto Lukács, 2020.
______. O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista. Trad. Nélio Schneider. São
Paulo: Boitempo, 2018.
MARX, Karl. O capital. Livro I: O processo de produção do capital. Ed. Trad. Rubens
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______. Manuscritos económico-filosóficos de 1844. Traducción y notas: Fernanda Aren,
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______. Crítica da filosofia do direito de Hegel introdução. Ed. Trad. Rubens Enderle.
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NETTO, José Paulo. Ditadura e Serviço Social. Uma análise do Serviço Social no Brasil pós-
64. 13ª Ed. São Paulo: Cortez, 2009.
VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Introdução ao pensamento de Hegel. Tomo I A
Fenomenologia do espírito e seus antecedentes. São Paulo: Loyola/ FAPEMIG, 2020.
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