Revista Libertas, Juiz de Fora, 22, n.2, p. 594-597, jul. / dez. 2022 ISSN 1980-8518
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DOI 10.34019/1980-8518.2022.v22.39494
Por que a burguesia precisa se desesperar?
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György Lukács
Tradução: Alexandre Aranha Arbia
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A ideologia tradicional, habitual, de defesa da burguesia é a idealização: sob uma forma
ideal e artística, desaparecem as oposições brutais, os horrores criados pela sociedade
capitalista. É assim que, após mais de um século, toda a ciência e a arte são baseadas na
apologia, a começar pela filosofia acadêmica. Essa orientação atingiu sua forma mais grosseira
nos filmes hollywoodianos; mas, muitas vezes, a filosofia professoral nada mais é do que um
filme com um happy end, sob uma forma conceitual.
Frente a assustadora realidade das últimas décadas, a idealização pura revelou-se,
portanto, muito fraca, ineficaz. Pelo menos nas esferas de reflexão da intelectualidade burguesa,
fechar os olhos aos chocantes fatos da vida social, apagando-os por meios simples, tornou-se
impossível.
Em tais circunstâncias, então, qual é a dificuldade para a ideologia apologética
burguesa? É a expressão dos fatos no pensamento. Este mundo, que a ideologia burguesa
ordinária tende a representar como um todo harmonioso, apresenta-se aos homens como um
caos assustador e absurdo. Procura fazê-los engolir um mal-estar, neles presente, de sentimentos
invasivos, às vezes, como o início de uma contradição, como o início de uma revolta contra o
mundo imperialista. Existe então um perigo ameaçador, o da fração pensante da intelectualidade
aderir ao socialismo.
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O ensaio é de 1948 e foi publicado com o título original de “Wozu braucht die Bourgeoisie dieVerzweifl ung?”,
em 1951, na revista Sinn und Form, 4, pp. 66-69 e, em 1956, na coleção Schicksalswende, Beiträge zu einer
neuen deutschen Ideologie, Berlim, Aufbau Verlag, 1956, pp. 151-154. Para esta tradução, utilizamos a tradução
italiana de Antonino Infranca, “Perché la borghesia há bisogno della disperazione?”, contida no volume Dialettica
e Irrazionalismo saggi 1932-1970. Milão, Edizioni Punto Rosso, 2020, pp. 122-126. Disponível também em
https://gyorgylukacs.wordpress.com/.
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Professor da Faculdade de Serviço Social da UFJF e prof. colaborador do Programa de Pós-Grraduação em
Serviço Social da mesma instituição.
---------- Tradução dos Clássicos ----------
Por que a burguesia precisa se desesperar?
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Uma nova linha de defesa é então necessária. A filosofia de Nietzsche a forneceu no
início dos anos noventa do século XIX, a de Spengler e seus acólitos durante a Primeira Guerra
Mundial, da mesma forma que o existencialismo moderno, a semântica etc., após a Segunda
Guerra Mundial.
Seria superficial pensar que a burguesia produziu essa filosofia para defesa própria. Não;
estamos lidando aqui com uma visão de mundo nascida espontaneamente, de uma imagem que
reflete diretamente a situação vivida pela intelectualidade na época do imperialismo. Vamos
considerar essa situação! O ponto de partida é a insatisfação com relação ao sujeito do mundo
circundante e o mal-estar, a indignação, o desespero, o niilismo, a ausência de perspectiva que
surge dessa insatisfação. Nesse mundo distorcido, o indivíduo desesperado procura uma brecha
individual, mas não a encontra. Ele não pode encontrá-la porque as questões sociais não podem
ser resolvidas individualmente. Em consequência, um mundo vazio, sem propósito, desumano
e absurdo se reflete nessas ideias. É daqui que ele tira suas conclusões, com cinismo ou
desespero honesto.
Essas visões de mundo parecem, portanto, à primeira vista, expressar uma revolta ou,
pelo menos, uma rejeição resoluta do mundo existente. Para que servem, então, essas visões de
mundo, para a burguesia imperialista? Como ela pode explorá-las para seus objetivos? Como
isso pode influenciá-los?
A utilidade manifesta-se, antes de tudo, no fato de que essa indignação, enquanto tateia
e tenta, girando em círculos, uma saída individual, não pode se transformar em uma mudança
na sociedade. o primeiro clássico do pessimismo, Schopenhauer, rejeitou de antemão todas
as aspirações desprezíveis a seus olhos que se orientassem para uma transformação da
sociedade. E, à sombra do princípio superior da filosofia heideggeriana e sartreana, o nada, ao
lado da “superioridade” do niilismo que muda o mundo inteiro, toda reforma social
“mesquinha”, “medíocre”, é reduzida aos olhos do mais jovem a uma total ausência de
significado. Absurdamente, aquele que se volta para o destino é um filisteu passivo e paciente
na vida.
Isso também é uma aquisição para a burguesia imperialista. A coisa vai, no entanto,
ainda mais longe. O pessimismo torna-se logo autossatisfação. O pessimismo e o desespero
aparecem como um comportamento “diferente” em relação ao “banal” otimismo, o mesmo que
uma atitude reservada e “ofendida” em relação à ação “superficial”. No coração da crise social,
à beira do abismo que ameaça engolir a sociedade burguesa, essa intelectualidade autossatisfeita
segue sua vida filisteia sobre a base moral do pessimismo e do desespero. E dado que o
imperialismo tolera esse comportamento “revolucionário”, até o apoia, naquilo que desperta
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uma forte antipatia pela sociedade democrática ou mesmo socialista nascente, os quais exigem
dos homens uma participação ativa. Isso gera a visão de mundo segundo a qual para a
“civilização” isto é, para a atitude pessimista de autossatisfação esta sociedade, que lhe é
subjacente, semais favorável do que a sociedade progressista que exige participação ativa no
trabalho da humanidade.
No entanto, este é apenas um ponto de acesso. O niilismo e a falta de perspectiva não
querem e não podem dar à ação humana uma medida concreta, uma orientação resoluta. A visão
de mundo que subtrai o comportamento individual das relações com a sociedade considera as
resoluções individuais como perfeitamente injustificáveis e busca relações por caminhos
errôneos, estradas falsas, onde não as encontra. A busca por relações “cósmicas” é,
naturalmente, a estufa onde floresce a credulidade e a superstição. É assim que se tornam moda
os novos destinos das novas superstições: o novo misticismo, a yoga, a astrologia. E aí, nessas
aspirações modernas em matéria de visão de mundo, a política imperialista está ativamente
implicada. E na propaganda do fascismo pode-se ver muito claramente. Isto é dirigido à
credulidade, enrijecido na espera do milagre, no desespero pronto para tudo. Se a reivindicação
da visão nacional-socialista do mundo conseguiu conquistar uma parte significativa da
intelectualidade, é apenas porque Nietzsche e Spengler, Heidegger, Jaspers e Klages
prepararam, na intelectualidade, o terreno para essa credulidade, sobre a qual essa ideologia,
não obstante sua mediocridade, poderia exercer irresistivelmente sua eficácia, onde a
passividade desesperada poderia se transformar em uma atividade fundada na credulidade, em
uma cega obediência a todas as ordens do Führer. Hitler foi derrubado, mas as tentativas do
imperialismo agressivo de reviver o fascismo estão hoje mais vivas do que nunca. E não é
surpreendente que não se tenha feito nada, pela burguesia, para liquidar ideologicamente essas
visões de mundo que precederam o fascismo, que o prepararam. Ao contrário, vemos que essas
visões de mundo estão se espalhando imperturbavelmente em escala mundial, que gozam de
pleno apoio, pode-se dizer, de todos os matizes da burguesia. O sucesso mundial do
existencialismo mostra que esse ponto de vista não produziu na sociedade burguesa qualquer
alteração essencial. E a política da “terceira via”, que os existencialistas seguiram, no início,
contra De Gaulle, mostra claramente que o papel social atribuído ao novo niilismo não se
diferencia essencialmente do antigo.
Essa situação, com razão, obriga-nos a travar a luta mais aberta contra essas visões de
mundo, mesmo que temporariamente elas não manifestem tendências abertamente reacionárias.
Em nossos dias, de fato, iniciou-se uma virada decisiva, mesmo no terreno da visão de mundo.
A política do imperialismo conduz cada vez mais a humanidade ao novo abismo da guerra
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mundial. Não é por acaso que a reação a essa política, pela intelectualidade pensante, como
reação imediata, restrinja-se ao primeiro passo, ao niilismo, à ausência de perspectiva. A política
dos trabalhadores, pelo contrário, indica tanto aos povos como aos indivíduos a perspectiva da
paz, do trabalho e da libertação. A consequência dessa política da nova ordem social emergente
deve, evidentemente, ser, mesmo no seio da intelectualidade, o vínculo saldável entre visão de
mundo e realidade. O movimento popular não apela à passividade, à credulidade, ao desespero
dos homens; ao contrário, espera que eles esclareçam, sóbria e conscientemente, sua própria
situação, seus objetivos e aspirações e os transformem em realidade pela via da ação consciente.
A realidade não é, portanto, para os homens, um caos estranho e hostil, mas uma lareira
a ser construída.
As duas visões de mundo encontram-se, uma em relação a outra, em oposição
inconciliável. Tanto são úteis, à burguesia imperialista, a ausência de perspectiva, o niilismo e
a ideologia do desespero das visões de mundo modernas, que agem de forma nociva na visão
de mundo dos povos que se libertam. É, pois, uma tarefa ideológica urgente liquidar
radicalmente do plano das ideias as visões de mundo da burguesia. Não apenas para aniquilar a
arma de reserva ideológica, a quinta coluna do fascismo, que poderia eventualmente aparecer,
mas também para devolver a inteligência, perdida ao imperialismo, ao seu lugar de
pertencimento: ao lado da classe trabalhadora e dos partidários que constroem o novo mundo.