DOI 10.34019/1980-8518.2022.v22.39384
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Questões agrária, urbana e ambiental: Serviço
Social e as formas de enfrentamento das
relações de exploração e opressão presentes na
cidade, no campo e na floresta
1
Agrarian, urban and environmental issues: Social Work and the ways of
confronting the relations of exploration and oppression present in the city,
countryside and forest
Joana Valente Santana*
Tânia Maria Ramos de Godoi Diniz**
Leonardo Costa Miranda***
Resumo: Este artigo discute a apropriação do
território pelo capital articulado à destrutividade
ambiental, financeirização da natureza e
desigualdade no acesso à terra no Brasil; e o
posicionamento do Serviço Social para o
enfrentamento das relações de exploração e
opressão presentes na cidade, no campo e na
floresta, densas das dimensões de classe, gênero
e raça. As reflexões apontam que o Serviço
Social brasileiro, tomando por base a
fundamentação das Diretrizes Curriculares da
ABEPSS e do Projeto Ético-Político
historicamente construído, tem buscado as
mediações da interpretação das questões
agrária, urbana e ambiental para contribuir com
o trabalho profissional de assistentes sociais e
com todas as formas de luta social contra as
relações de exploração e opressão existentes.
Abstract: This article discusses the
appropriation of territory by capital articulated
to environmental destructiveness,
financialization of nature and inequality in
access to land in Brazil; and the positioning of
Social Work to confront the relations of
exploitation and oppression present in the city,
countryside and forest, dense in the dimensions
of class, gender and race. The reflections point
out that Brazilian Social Work, based on the
foundation of the Curricular Guidelines of the
ABEPSS and the historically constructed
Ethical-Political Project, has sought the
mediations of the interpretation of agrarian,
urban and environmental issues in order to
contribute to the professional work of social
workers and all forms of social struggle against
the existing relations of exploitation and
oppression.
1
Texto produzido originalmente para a palestra proferida na mesa "Serviço Social na luta pela terra, no direito à
cidade e na questão ambiental no Brasil", Plenárias Simultâneas no XVII Congresso Brasileiro de Assistentes
Sociais/CBAS, em outubro de 2022 e editado para publicação.
* Docente da Faculdade e do Programa e Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do
Pará/UFPA. Assistente Social. Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ.
Orcid http://orcid.org/0000-0003-4033-1317.
** Docente do Curso de Serviço Social e do Programa de Pós-graduação em Serviço Social e Políticas Públicas da
Universidade Federal de São Paulo/UNIFESP, campus Baixada Santista. Assistente Social. Doutora em Serviço
Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP. https://orcid.org/0000-0003-3715-1438.
*** Discente do Curso de Mestrado em Serviço Social na Universidade Federal do Pará/UFPA. Assistente Social.
Orcid: http://orcid.org/0000-0003-4033-1317.
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Palavras-chaves: relações de exploração e
opressão; cidade; campo; floresta; terra; Serviço
Social.
Keywords: relations of exploitation and
oppression; city; countryside; forest; land;
Social Work.
Recebido em: 30/08/2022
Aprovado em: 17/11/2022
Introdução
O Serviço Social brasileiro se ancora em uma perspectiva teórica crítica e dialética que
busca apreender os processos da vida social como uma totalidade de complexos. Por esse
motivo, a discussão sobre a luta pela terra, o direito à cidade e a questão ambiental no Brasil
possuem mediações próprias à sociabilidade burguesa em sua relação contraditória entre o
capital e o trabalho; isto é, possuem mediações referentes à lógica constituinte do modo de
produção capitalista que, conforme assinala Harvey (2005, p. 129) “tem a busca do lucro como
seu objetivo direto e socialmente aceito”.
Nas Diretrizes Curriculares da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço
Social (ABEPSS) encontra-se o cleo da fundamentação para o aprofundamento do estudo
das contradições da ordem burguesa, particularmente a apreensão sobre a Questão Social, em
termos teóricos e históricos. À medida que essas diretrizes se assentam na perspectiva do
todo do materialismo histórico e dialético, ela nos sustentação teórica para apreender o
conjunto das contradições sociais inscritas na particularidade histórica da vida social. Essa base
de sustentação permitiu que o Serviço Social avançasse nas discussões sobre a questão agrária,
urbana e ambiental, apresentando uma crítica radical aos processos de apropriação do território,
a destrutividade ambiental e a expropriação dos produtores diretos (trabalhadores assalariados
em formas cada vez mais precarizadas), processo este que se amplia continuadamente para os
povos e comunidades tradicionais.
A fundamentação teórica sobre a questão agrária, urbana e ambiental é da maior
importância para o trabalho profissional do Assistente Social em equipes de trabalho social
inseridas em políticas fundiárias, urbano-habitacionais e ambientais. Assim, se reatualiza o
desafio de apreendermos as modalidades de acumulação do capital em seu processo destrutivo
da natureza e de alta exploração da força de trabalho; os rebatimentos na vida concreta de
pessoas que, morando no campo ou na cidade, são atravessadas pelas contradições próprias da
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ordem burguesa; o posicionamento do Serviço Social brasileiro no apoio às formas de luta pela
terra, pelo direito à cidade e na defesa da vida.
O texto é dividido, além dessa introdução, em duas seções. A primeira trata da apropriação
do território pelo capital articulado à destrutividade ambiental, financeirização da natureza e
desigualdade no acesso à terra no Brasil. A segunda trata do posicionamento do Serviço Social
para o enfrentamento das relações de exploração e opressão presentes na cidade, no campo e na
floresta, constitutivas das dimensões de classe, gênero e raça. Ao final são apresentadas as
considerações finais.
Apropriação do território pelo capital: destrutividade ambiental, financeirização
da natureza e desigualdade no acesso à terra no Brasil
A análise sobre a questão da terra não pode ser feita sem a apreensão dos fundamentos
sócio-históricos. A disputa histórica pela terra sempre foi feita com expropriações violentas e
sangrentas por parte da classe dominante e essa disputa desigual se renova no tempo e no
espaço.
A teoria marxiana nos dá o caminho para a apreensão desse processo da desigualdade no
uso e ocupação da terra. Marx contribui para a explicação desses fundamentos quando
demonstra que existe uma unidade dialética da relação humanidade e natureza. Na obra “A
Ideologia Alemã”, Marx e Engels demonstram que toda produção material da vida humana é
mediada pelo trabalho, que é a relação ineliminável entre homem e natureza para satisfação de
necessidades, ou como afirmam os autores, “enquanto existirem homens, história da natureza e
história dos homens se condicionarão reciprocamente (...)” (MARX; ENGELS, 2007, p. 86-
87).
Entretanto, a ordem burguesa instaura uma divisão do trabalho onde a “toda a sociedade
tem de decompor-se nas duas classes dos proprietários e dos trabalhadores sem propriedade”,
como afirma Marx, nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844 (MARX, 2008, p. 79,
grifo do autor) ou nos dizeres de Lefebvre (1999), a divisão social do trabalho passa a ser
orientada para o atendimento das exigências do mercado. Nesta sociedade, ocorre a separação
do produtor dos meios de produção, estes que passam a ser controlados pela burguesia
2
.
Desse ponto de vista dos fundamentos, a teoria marxiana vai tratar da necessidade
imperiosa de resgate da relação humanidade e natureza na produção da vida humana na sua
2
“Na medida em que o trabalho estranhado 1) estranha do homem a natureza, 2. [e o homem] de si mesmo, de sua
própria função ativa, de sua atividade vital; ela estranha do homem o gênero [humano]. Faz-lhe faz da vida
genérica apenas um meio da vida individual. (...)” (MARX, 2008, p. 84, grifo do autor).
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forma complexa, tomando por base o conjunto das objetivações humanas e com base em um
trabalho humanizado e coletivo que se volte para a satisfação das necessidades humanas,
processo este que somente pode ser feito em oposição à ordem burguesa. Nesse sentido, essa
teoria valoriza a igualdade dos sujeitos pertencentes ao gênero humano, mas respeitando as
diferenças dos seres humanos, conforme assinala Marx (2012, p. 33): “De cada um segundo
suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!”. O Serviço Social brasileiro reafirma
esse princípio de sociabilidade humana para o enfrentamento das demandas ao trabalho
profissional em equipes de trabalho social que envolvam as políticas urbanas, agrárias e
ambientais.
Sinteticamente a sociedade capitalista se assenta, segundo Isabel Cardoso (2018, p. 50):
na exploração da força de trabalho, na apropriação privada da riqueza
socialmente gerada pelo trabalho, no processo exponencial de valorização do
valor, no desenvolvimento contínuo (e predatório) das forças produtivas, na
expropriação sempre renovada da terra e outros meios de vida dos
trabalhadores, através da propriedade privada da terra e da natureza, na
expropriação de direitos garantidores da reprodução social e sustentados em
políticas e recursos públicos, na dominação predatória da natureza, e em
diferentes formas de opressão e dominação de gênero e de raça.
A relação humanidade/natureza é cada vez mais tensionada pelos crescentes conflitos de
classe em rias escalas, pois o capital avança para a apropriação dos territórios com a
necessária destruição da natureza e a desarticulação dos modos de vida seja em área urbanas ou
rurais, a exemplo das comunidades tradicionais. Conforme assinalam Araújo e Silva (2021, p.
160),
ganha relevo o caráter qualitativamente superior da destrutividade ambiental,
levada a termo pela atividade humana a partir da revolução industrial,
notadamente com o uso de combustíveis fósseis. Os impactos desse processo
teriam se acelerado e aprofundado consideravelmente desde meados do século
XX, alterando as condições naturais de reprodução da vida na Terra.
Conforme assinala Harvey (2005), o capital avança mediante um processo de mobilidade
geográfica para todas as regiões possíveis do mundo em busca de produção de mercadorias
visando o lucro, não importando qual mercadoria será produzida, reproduzindo as contradições
da lógica da desigualdade social entre o capital e o trabalho.
Uma das modalidades de busca de lucro pelo capital tem sido o processo de exploração
dos recursos naturais pela lógica da financeirização da natureza, particularmente nos países da
América Latina, reatualizando os processos de colonização e do racismo baseado na exploração
da força de trabalho e destruição da natureza. De acordo com Araújo e Silva (2021, p. 163), os
Estados nacionais de base ultraliberal têm contribuído com o “desenvolvimento, tanto da
exploração do trabalho e espoliação dos bens naturais, quanto da intensa mercantilização
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financeira da natureza”.
Segundo as autoras, nesse contexto, as corporações transnacionais de grande porte
controlam os recursos naturais por processos especulativos, mediante certificações, créditos,
ações e títulos. Os recursos naturais são transformados em commodities, onde produtos como o
trigo, arroz, minérios de ferro e lítio têm seu valor de troca definidos em escala global, sendo
os preços dessas mercadorias determinados pelo mercado financeiro a partir das bolsas de
mercadorias e bolsas de valores etc. Além disso, são criados ativos financeiros referentes a bens
e serviços ambientais com a separação de bens naturais, a exemplo da terra, ar, biodiversidade
e dos serviços ambientais (emissão de carbono e disseminação de sementes, entre outros).
Monerat (2021) chama a atenção para o fato de que o mercado de carbono é uma das
expressões da modalidade da financeirização da natureza. Por esse mecanismo as empresas de
grande porte, mediante as certificações podem continuar poluindo. Por essas transações,
afirmam Araújo e Silva (2021), as grandes empresas que desejam manter o nível de poluição
acima do estabelecido, podem comprar uma cota de outra empresa que tenha um menor nível
de poluição ambiental. Adquirem assim um crédito ou um “direito de poluir”. “Em síntese,
empresas lucram com a especulação dos créditos adquiridos enquanto exercem o ‘direito’ de
poluir, ao mesmo tempo em que países altamente poluidores também compram este direito”
(ARAÚJO; SILVA, 2021, p. 166).
Bárbara Unmüßig (2014), destaca que por trás do discurso e prática da economia verde
estão os interesses capitalistas pela demanda de “combustíveis fósseis, recursos minerais e
biológicos” (p. 05) e para tal, o capital cria soluções práticas para ampliação dos lucros das
empresas, e avança para a apropriação da terra em escala planetária, e essa apropriação coloca
cada vez mais em risco a produção de alimentos para os seres humanos, ampliando a
insegurança alimentar. Não é à toa que as empresas multinacionais, a exemplo da Monsanto,
Procter & Gamble, Chevron, BASF, Big Energy, B. I. G. Pharma, Big Food and Big Chemical
busquem controlar as cadeias de produção e a informação tecnológica e genética sobre métodos
de produção (energia, biomassa, sementes, água e terra). Enquanto isso, os pequenos
agricultores e trabalhadores rurais, que efetivamente protegem a floresta, têm menos poder de
decisão nas instâncias globais para defender seus interesses.
Oliveira (2021) destaca o papel do Estado e dos organismos internacionais para a
formulação dos acordos internacionais (como a COP 26/Conferência das Nações Unidas sobre
Mudança do Clima de 2021) na defesa dos interesses das grandes empresas capitalistas. Um
Exemplo concreto do papel do Estado na acomodação dos interesses capitalistas é o “Plano de
Recuperação Verde da Amazônia Legal” (PRV), de responsabilidade dos governadores dos
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estados da Amazônia brasileira. O Plano teria sido criado para impedir o desmatamento ilegal
e diminuir a emissão de gases de efeito estufa. Prevê a utilização de novas tecnologias para
produzir soluções sustentáveis na floresta, mediante investimentos em infraestrutura verde e
serviços básicos. O Plano resulta de um Consórcio Interestadual de Desenvolvimento
Sustentável da Amazônia Legal, formado pelos nove estados da região (Acre, Amapá,
Amazonas, Mato Grosso, Maranhão, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins).
Por trás dos objetivos declarados do referido Plano de combater o desmatamento ilegal,
dentre outros, esconde-se mais uma estratégia do Estado na modalidade de parceria público-
privada que envolve o endividamento dos estados nacionais na lógica da financeirização da
economia, visto que os recursos para financiar a carteira de projetos do PRV serão públicos e
privados, externos e internos e captados por meio do Mecanismo Financeiro do Consórcio,
sendo que o “Fundo Brasileiro para a Biodiversidade Funbio é o agente financeiro do
Mecanismo”, fundo este pactuado em dezembro de 2019, por ocasião da COP-25.
(CONSÓRCIO INTERESTADUAL DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DA
AMAZÔNIA LEGAL, 2021, p. 76).
Enquanto isso, avança o agronegócio no país, que, no ano de 2022, corresponde a 25,5%
do PIB brasileiro (CEPEA, 2022), com o total apoio do governo federal (Jair Bolsonaro), que
flexibiliza as obrigações socioambientais das empresas. A bancada Ruralista defende a
aprovação dos Projetos de Lei (PL), chamados de “Combo da Morte”, incluindo o PL do Veneno
(2.299/02), que diminui o controle, no processo de avaliação de agrotóxicos, pela Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente, além dos
PLs 490/07 e 191/2020, que estabelecem o marco temporal para demarcação de terras indígenas
e a legalização da exploração de minérios nestes territórios. (OBSERVATÓRIO DO
AGRONEGÓCIO NO BRASIL, 2022).
Durante o período mais avançado da pandemia, o Governo Federal avaliou as atividades
das mineradoras como essenciais, através da Portaria 135/GM do Ministério de Minas e
Energia (MME) e do Decreto 10.329/2020. Nesse contexto, no ano de 2020, o faturamento
total do setor extrativo mineral brasileiro foi de R$ 209 bilhões, o que corresponde ao aumento
de 36% em comparação aos R$ 153 bilhões faturados em 2019 (INSTITUTO BRASILEIRO
DE MINERAÇÃO, 2021, p. 3).
Os impactos socioambientais da mineração nos territórios em provocado uma série de
problemas para etnias que vivem em regiões impactadas pela mineração, como a contaminação
de rios, peixes e pessoas por mercúrio, além de ampliar os conflitos por terras. Parte
considerável destas populações apresentavam níveis de mercúrio acima de limites seguros.
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Entre as consequências da contaminação pelo metal estão a formação em bebês, doenças
neurológicas, problemas de visão e audição e problemas de neurodesenvolvimento.
(FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ, 2022)
3
.
Essas atividades demonstram a força do capital na disputa violenta e desigual pelo
domínio e controle das terras (CPT, 2021), com a ampliação dos conflitos de terras que atingem
trabalhadores e trabalhadoras urbanos e rurais (com piora nas condições de vida dos negros),
agricultores e agricultoras familiares, comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas,
extrativistas e outros povos do campo, das florestas e das águas.
Esta conjuntura se aprofunda com a pandemia do novo coronavírus. Em 2020, o país, que
contava com um número expressivo de bilionários (45), ganhou mais dez (10) (OXFAM,
2022), o que demonstra a desigualdade de renda no Brasil. Os dados presentes no Relatório “A
Desigualdade Mata” (2022), indicam que o aumento da riqueza dos bilionários durante o
período pandêmico corresponde a 30% (US$ 39,6 bilhões), ao passo que 90% da população
teve uma redução de 0,2% entre os anos de 2019 e 2021. Os 20 maiores bilionários do país
concentram riqueza (US$ 121 bilhões) equivalente a 60% da população 128 milhões de
brasileiros. Enquanto isso, agrava-se a insegurança alimentar no Brasil. Em 2022, a fome está
ainda mais presente na vida dos brasileiros, pois apenas 4 entre 10 famílias conseguem acesso
pleno à alimentação no país.
A mesma tendência de produção de lucro pelo capital, vista no processo de
mercantilização da natureza, é verificada na atualização no processo de produção e reprodução
social do espaço, ampliando a desigualdade no acesso à terra pela dinâmica da lógica das
cidades mercadorias. Assim, a tendência do capital é a urbanização do território global para
atender os fluxos da produção capitalista (produção, distribuição e consumo de mercadorias)
(HARVEY, 2005). Por isso, a produção dos territórios urbanos e rurais expressa as necessidades
da produção e reprodução do lucro. Quanto mais as cidades estiverem vinculadas aos fluxos
produtivos, mais irão receber infraestrutura física e social para responder às necessidades do
capital, com a manutenção da estrutura de classes e da desigualdade social.
Por sua vez, o Estado que tem papel chave na urbanização, privilegia o financiamento aos
setores das frações dominantes do capital em detrimento ao trabalho, através da produção das
infraestruturas físicas (sistemas aéreos, ferroviários, rodoviários e aquaviários), que “sustentam
3
Além disso, cerca de 11,7 mil km² de floresta amazônica foi desmatada pela mineração entre 2005 e 2015. “Ao
longo de 2019 e 2020, o desmatamento causado pela atividade mineradora registrou recordes e avançou sobre
áreas de conservação. Em 2021 (…), a mineração devastou 125 km², a maior marca desde o início da série histórica
do sistema, uma alta de 62% em relação a 2018”, ano de eleição do atual Presidente da República (APIB;
AMAZON WATCH, 2022, p. 6).
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a circulação do capital.” (HARVEY, 2005, p. 130). Enquanto isso, as pequenas cidades
brasileiras, particularmente as que são menos atrativas ao capital, recebem poucos serviços
públicos, a exemplo das cidades no interior da Amazônia.
Questiona-se assim: por que nas áreas rurais, menos investimento em políticas
públicas? Sob a ótica do capital, qual a necessidade de escolas para trabalhadores rurais,
indígenas, quilombolas e ribeirinhos? Para que oferecer hospitais com alta infraestrutura em
pequenas localidades? Porque precisam de atendimento de políticas habitacionais, saneamento
ambiental e transporte adequado, indígenas, ribeirinhos, quilombolas, trabalhadores rurais se
não vendem sua força de trabalho ao capital? À medida que seus territórios forem incorporados
à dinâmica produtiva, gradativamente os territórios irão receber o mínimo de atendimento,
como parte do processo de reprodução social empobrecida da força de trabalho.
Assim, a partir dos fundamentos de Marx (2008) sobre o processo de alienação vinculada
à divisão do trabalho, concorda-se com a afirmação de Carlos (2015, p. 25/26) de que na
“cidade, a separação homem-natureza, a atomização das relações e as desigualdades sociais se
mostram de forma eloquente”. A propriedade privada da terra condiciona o acesso à moradia e
as condições de vida em geral como expressão da produção da riqueza e da pobreza (CARLOS,
2015). Nessa mesma direção, afirma Sposito (2014, p. 64): “(…) A cidade reúne qualitativa e
quantitativamente as condições necessárias ao desenvolvimento do capitalismo, e por isso
ocupa o papel de comando na divisão social do trabalho.”
A lógica do modo produção capitalista se espraia como tendência universal e avança em
diferentes territorialidades para a produção do lucro, havendo a necessidade de apreendermos
a particularidade histórica brasileira e as diferenciações regionais na produção da desigualdade
da vida social.
Enquanto o setor imobiliário totalizou, no ano de 2019, 288 bilhões de lucro (IBGE 2019),
as cidades são capturadas como mercadorias, onde a maioria dos trabalhadores não possui
acesso à terra para fins de moradia, ocupando as cidades e construindo suas moradias da
maneira que podem e quando podem, reproduzindo-se, geralmente, nos piores lugares, com alta
carência de infraestrutura urbana.
Para as famílias pobres o despejo é uma ameaça constante. De acordo com a Comissão
Pastoral da Terra (2022), mais de 180 mil pessoas vivem em situação de rua, 570 mil estão
ameaçadas de despejo de suas moradias e mais de 90 mil famílias estão acampadas lutando pela
terra. O IBGE apontou em 2019, que 21,6% da população brasileira residia em domicílios nos
quais havia ao menos uma inadequação domiciliar “isso significa que ao menos 45,2 milhões
de pessoas, residentes em 14,2 milhões de domicílios, enfrentavam algum tipo de restrição ao
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direito à moradia adequada, em seus elementos de acessibilidade econômica, habitabilidade ou
segurança da posse” (2020, p. 76).
O Brasil possui índices altíssimos de inadequação habitacional, com destaque para a
inadequação por carência de infraestrutura (serviço de coleta de lixo, abastecimento de água
por rede geral e ausência de esgotamento sanitário por rede coletora ou pluvial), nas residências
com famílias de menor renda, sendo que segundo os dados da PNAD Contínua do IBGE, a
precariedade no acesso ao esgotamento sanitário alcança 56,2% das famílias mais pobres, o que
é um dado muito grave (IBGE, 2019).
Nos territórios populares, são produzidas as resistências de luta pela terra; as resistências
no uso e ocupação dos espaços urbanos e rurais marcado pela moradia em lugares, na maioria
das vezes carentes de infraestrutura e serviços urbanos. No referente ao acesso à moradia,
assinala Maricato (2015, p. 20):
(…) a habitação dos trabalhadores não é problema para o capital e, na maior
parte das vezes, nem para o Estado. Por isso, os bairros de moradia dos
trabalhadores são construídos por eles mesmos, nos seus horários de descanso.
E também por isso, as favelas fazem parte da reprodução da força de trabalho
formal. Foi assim durante o processo de industrialização por substituição de
importações e é assim atualmente, nas cidades conhecidas como globais. As
favelas integram as cidades de países como o Brasil (…)
O Brasil é enorme e as desigualdades sociais estão espraiadas em diferentes
territorialidades. Temos que atentar para a vida concreta no dia a dia nas grandes, médias e
pequenas cidades. Atentar para os espaços que tem interação com a floresta e o rio, conforme
nos aponta Trindade Jr. (2021), a exemplo das “cidades da floresta”.
Conforme Isabel Cardoso (2012, p. 46-47):
(...) as formas de uso da cidade revelam modos de reprodução da vida, através
dos modos de apropriação do espaço. É através da análise da dinâmica
territorial das formas do morar, dos tipos de fruição do tempo livre como o
lazer, das formas do trabalho e das formas de apropriação da renda e da riqueza
socialmente gerada, dos padrões de acesso às inovações tecnológicas dos mais
diferentes tipos que se incorporam à vida cotidiana (internet, novos
medicamentos e tratamentos, etc.) do tipo de acesso aos serviços de
saneamento básico; dos tipos de deslocamentos habituais e dos transportes
necessários; das formas de acesso aos equipamentos públicos que garantem a
proteção social e a segurança pública, ou seja é através do conjunto destas
formas e modos de organização da vida que podemos avaliar a real dinâmica
de produção e reprodução de nossas cidades e das formas de uso e ocupação
do seu espaço.
Se registramos o avanço do capital sobre os territórios, também registramos as inúmeras
formas de resistência vistas em diferentes escalas pelos sindicatos, movimentos sociais
(movimento negro, mulheres, pessoas LGBTQIA+), indígenas, quilombolas, ribeirinhos,
camponeses/as, agricultores/as familiares, dos moradores na luta contra a segregação espacial,
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pelo direito à terra. Toda a movimentação de resistência interessa ao Serviço Social, repudiando
com todas as forças no atual momento político, as práticas fascistas que impulsionam a morte,
a violência e o obscurantismo ligado ao conhecimento.
Importante estarmos atentos/as às resistências dos modos de viver e produzir espaço.
Estarmos atentas/os às necessidades humanas que devem ser objeto de luta dos movimentos
sociais, dos pesquisadores/as e dos diferentes profissionais que atendem às pessoas. Conforme
Trindade Jr (2004), é importante estarmos atentos às mediações históricas e as diferentes
temporalidades existentes nas diferentes formas urbanas no país.
Parece fundamental que o trabalho profissional incorpore a apreensão da unidade
dialética da questão agrária, urbana e ambiental, articulando as situações singulares (postas em
diferentes particularidades históricas) às determinações universais da ordem burguesa. Por
isso, a interpretação teórica sobre as mediações que envolvem o trabalho profissional deve
atentar para a questão da divisão do trabalho, da alienação, da apropriação privada dos meios
de produção, tendo em vista que essas determinações atravessam a vida cotidiana e rebatem
de forma diferenciada (e desigual) na vida dos negros, mulheres, indígenas, quilombolas,
pessoas com deficiência, pessoas LGBTQIA+. Mas também nos interessa as formas de luta
presentes na sociedade, como um componente do trabalho profissional.
O Serviço Social e as formas de enfrentamento das relações de exploração e
opressão presentes na cidade, no campo e na floresta, constitutivas das dimensões
de classe, gênero e raça
Quando iniciamos esse texto, apontamos elementos da realidade sócio-histórica,
econômica e política sob a ordem do capital os quais, inseridos em um contexto materialista
histórico-dialético, possibilitam a apreensão das contradições e a “compreensão da atividade
social e das relações sociais por meio das quais os seres humanos interagem com a natureza ao
produzir as condições de vida” ou, em outras palavras, isso quer dizer que o mundo material
não é um dado natural, é um modo de atividade produtiva, um sistema de relações sociais, um
produto histórico (WOOD, 2010, p. 32). No mundo globalizado no qual todas as esferas da vida
estão submetidas ao capital, evidenciar no debate aqui proposto a relação humanidade/natureza,
implica dar visibilidade à lógica de expansão de um capitalismo que produz desigualdades
crescentes no mundo, e que sobrevive sob um paradoxo fundamental: “o capital foi capaz de
estender seu alcance econômico para muito além de qualquer nação-Estado, mas o capitalismo
está longe de prescindir da nação-Estado” (WOOD, 2010, p. 8).
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É este o pano de fundo dos estudos coletivos realizados no âmbito do Grupo Temático de
Pesquisa (GTP) Questão Agrária, Urbana e Ambiental e Serviço Social, nos quais temos como
premissa que as relações sociais estruturadoras e reprodutoras dos espaços urbano, agrário e do
ambiente na particularidade brasileira têm suas raízes nas relações sociais capitalistas. Tomando
Iamamoto (2007) como referência, sob esse registro revela-se um processo social global da
sociedade com suas tendências e normatividades com vistas à manutenção do sistema do
capital.
E mais, as relações sociais e suas temporalidades históricas devem ser analisadas sob uma
perspectiva de totalidade e indissociáveis do desenvolvimento do Brasil nos marcos de sua
inserção subordinada e dependente à ordem capitalista, “sob as representações ideais da
burguesia” (IAMAMOTO, 2001, p. 109), desde o período colonial e escravista, sem prescindir
dos estereótipos difundidos a respeito do povo negro a vadiagem citada por Kowarick (1994),
o que contribui nas não respostas às suas necessidades sociais, em termos de habitação, saúde,
educação etc.
Evocamos aqui as particularidades históricas que revelam como o desenvolvimento do
país, em que o “moderno” se constrói por meio do “arcaico” (IAMAMOTO, 2001, p. 101),
forjam relações patrimonialistas e racistas, assentadas na escravidão e alimentadas por
privilégios de classe e heranças colonialistas e escravistas, que revelam no cenário brasileiro
um “quadro de extrema desigualdade sociorracial” (DURANS, 2021, p. 23), seja na
superexploração do trabalho, seja na regressão dos direitos sociais e trabalhistas.
São constrangimentos que fazem crescer a pobreza e a miséria, aprofundando
desigualdades entre o desenvolvimento econômico e o desenvolvimento social, alijando parte
significativa da população brasileira de conquistas civilizatórias oriundas da riqueza
socialmente produzida.
O que nos leva a um segundo registro, ou seja, à base histórica e econômica que
sustentação à permanência de lugares determinados para brancos e para negros na sociedade
brasileira (OLIVEIRA, 2021) e contribui para dificultar ou impedir a mobilidade social de
segmentos da população negra, sob um racismo urbano antinegro (PASSOS, 2021). Dessa
forma, legitima-se a desconfiança na presença de pessoas negras em territórios brancos, o que
justifica deter e abordar com violência, aquele que Wacquant denomina como o deslocado,
reproduzindo cotidianamente a hostilidade generalizada e materializada no genocídio de jovens
negros, pobres e periféricos, numa “revivescência intemporal da associação de homens e
mulheres negros e negras com a criminalização” (WACQUANT, 2005, p. 11-14).
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A materialidade da produção e reprodução social nos marcos das relações sociais e formas
de propriedades e estrutura fundiária estabelecidas no Brasil (IASI, 2019), legitimam essas
desigualdades que são sociais e raciais. São desigualdades que se aprofundam nas
hierarquizações construídas na escravização de corpos negros trazidos cativos da África para o
uso da força de trabalho, de 1550 até a Lei Eusébio de Queiróz e a proibição do tráfico negreiro,
e na espoliação da terra, bem natural de uso coletivo dos povos indígenas tornada mercadoria
pela Lei de Terras, ambas as leis de 1850. São eventos significativos, que datam do período
colonial e que contribuem para a apreensão de aspectos da formação histórica brasileira e,
referindo-nos em Gonzalez (2018, p. 127), de ideias e valores brasileiros que se sustentam em
um racismo por denegação, isto é, “um processo pelo qual o indivíduo, embora formulando um
dos seus desejos, pensamentos ou sentimentos, até recalcado, continua a defender-se dele,
negando-lhe que lhe pertença”.
A sociedade brasileira e suas dinâmicas urbana, agrária e ambiental que articulam o
progresso sob a ordem capitalista, ainda que sob heranças escravistas e racializadas, expressam
a forma do desenvolvimento assumido pelo Estado no Brasil, cuja lógica interna tem raízes no
período colonial agroexportador, na dependência da economia brasileira com o capital
internacional, nos processos tardios de industrialização e na superexploração da força de
trabalho, na raiz autoritária de privilégios de classe e concentração de riqueza e nas várias
formas de discriminação e violência.
As relações de opressão são construídas na cidade, no campo ou nas florestas, nas formas
diversas de uso e ocupação da terra, são constitutivas das dimensões de classe, gênero e raça e
reatualizam a manutenção da ordem do capital “que encontra legitimidade nos estreitos limites
daqueles que dela se beneficiam, restando aos demais a imposição violenta dos meios
coercitivos e a intensificação dos mecanismos explicitamente ideológicos que encobrem e
justificam a ordem social existente” (IASI, 2019, p. 425).
Nesses tempos de mundialização do capital, o que se observa é a incapacidade de o capital
enfrentar as situações de crise atuais. São crises que resultam dos meios que o capital tem
recorrido para ultrapassar os limites que lhe são imanentes, explorando as duas forças de onde
jorra toda a riqueza, a terra e o trabalhador. Vivemos tempos de acumulação e lucros sem fim e
sem limites do capital portador de juros que se valoriza sem sair da esfera dos mercados de
títulos e ativos fictícios. Para conter as crises e para a continuidade do processo de acumulação
e estabilidade econômica, o Estado brasileiro oferece ao capital possibilidades de lucro pela via
das privatizações e abre a ele setores protegidos socialmente, atento à pressão dos mercados
que impõem políticas de austeridade, pelo medo do não pagamento da dívida.
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Com esses mecanismos, o Estado brasileiro, ao contribuir com o processo de valorização
ou reprodução do capital nas suas diferentes formas (capital industrial, capital bancário, capital
financeiro), gera um grau de exploração com consequências incontornáveis para a maioria da
população (IASI, 2019), seja pela coerção, nas relações de opressão e exploração sexuais e
raciais, seja por meio do consenso, nos discursos ideológicos na defesa da legitimidade do
sistema (SILVA, 2016).
Ou seja, nas questões de cunho econômico, político e social, as relações sociais
capitalistas refletem a permanência da lógica da colonização, da escravidão, da propriedade
privada, do capitalismo dependente e periférico, na personificação dos coronéis nos
empresários, banqueiros e nos caciques políticos, que forjam esse Estado o qual, segundo Marx,
é a “forma pela qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses
comuns” (MARX, 2007, p. 76).
Nesse processo, nenhuma saída da crise se desenha para o capital no plano mundial. As
condições de reprodução social das classes populares estão ameaçadas. Assistimos hoje a um
largo processo de desmonte das políticas sociais destinadas à reprodução social dos
trabalhadores e das trabalhadoras. As exigências normativas neoliberais defendem o mercado,
a privatização e o empreendedorismo competitivo, abandonam a concepção de democracia e de
um tecido social participativo, diminuem a proteção social e reduzem os serviços públicos.
As particularidades desse processo evidenciam consequências diferentes para homens e
mulheres, brancos e brancas e negros e negras, constituindo uma indissociabilidade das relações
sociais de classe, raça e gênero no Brasil.
Quando se colocam todos esses elementos apontados anteriormente dentro de uma
totalidade histórico-social concreta, quando se estabelece um projeto político profissional com
nítida direção social orientando o exercício profissional e quando o conhecimento necessário
para capturar o cotidiano na história e nas suas contradições é apropriado para construir críticas
radicais aos fundamentos da estrutura da sociedade capitalista brasileira, emergem
possibilidades pelas quais se constroem as articulações políticas.
Nesse sentido, é importante pontuar algumas ideias que podem ser associadas ao que
denominamos de “compromisso político do trabalho de assistentes sociais”.
É fundamental identificar as mediações que sejam capazes de reverter tendências e
contratendências nas respostas políticas e sociais e que garantam, recomponham e ampliem
direitos com o subsídio de elaborações e análises críticas das expressões da questão social e das
respostas institucionais.
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É fundamental entendermos o quadro social no qual nos movemos, pois com
conhecimento conseguiremos identificar os limites que nos são impostos pelo sistema
capitalista atual, que produz processos de desigualdade social e econômica intensos, e acreditar
nas possibilidades que temos de transformar a realidade. Isto requer um treino permanente
porque outros mecanismos trabalham no sentido de impedir que tenhamos uma compreensão
real dos fatos e acontecimentos. A mídia atua a partir de interesses nítidos de manutenção do
instituído, e a imagem manipulada, as notícias recortadas são maneiras de impedir e deturpar
essa compreensão.
Fanon é uma referência para as análises sobre a oposição entre as cidades para os ricos e
as favelas e áreas periféricas, e Lippold, (2016, p. 208), baseado no autor, desenvolve suas
reflexões, “para mergulhar nas raízes da violência brasileira, encontrar o seu fundamento...
Como se articulam as relações entre sociedade de consumo e crime, riqueza e pobreza, a
repartição geográfica das cidades em áreas de brancos ricos e favelas onde a maioria é negra?”
Quem são esses sujeitos? Como construímos com eles a formulação coletiva da vida sob uma
perspectiva anticapitalista?
A desigualdade social no Brasil se apresenta na média de rendimento dos 10% mais ricos
que é de aproximadamente 25 vezes maior que a dos 40% mais pobres, cujo salário não chega
a 1 salário-mínimo; está na ocupação informal que hierarquiza os trabalhadores e os dados
registram que 34,6% de pessoas declaradas brancas estavam em ocupações informais enquanto
entre as pessoas declaradas pretas ou pardas este índice alcança 47,3%. A desocupação, o
desemprego, a subutilização da força de trabalho, o trabalho sem vínculos formais, atingem
mais fortemente a população negra no Brasil. E os piores resultados estão nas regiões Norte e
Nordeste, cujo índice de pessoas pretas e pardas no mercado informal atinge 60% (IBGE, 2019).
O que coaduna com os dados sobre o rendimento familiar, importante determinante para
identificar a capacidade do acesso a alimentação das famílias: 25% dos domicílios das regiões
Norte e Nordeste vivem com rendimentos abaixo de um quarto do salário-mínimo, comparados
com 10% nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. A fome está presente em 43,0% das famílias
com renda per capita de até 1/4 do salário-mínimo, e atinge mais as famílias que têm mulheres
como responsáveis e/ou aquelas em que a pessoa de referência (chefe) se denomina de cor preta
ou parda (REDE PENSSAN, 2022).
Além desses dados, registra-se o lugar que a violência ocupa nas manifestações das
desigualdades no Brasil, onde a taxa de homicídios foi 16,0 entre as pessoas brancas e 43,4
entre as pretas e pardas a cada 100 mil habitantes, em 2017. Isto é, uma pessoa negra tem muito
mais possibilidades de ser vítima de homicídio intencional do que uma pessoa branca. Além
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disso, em um país que detém o 3º lugar em número de pessoas aprisionadas, a política penal e
a política social não são mais do que as duas vertentes de uma mesma política da pobreza na
cidade (WACQUANT, 2014).
Em outras palavras, a riqueza socialmente produzida por todos é privadamente apropriada
por poucos, e esta desigualdade da distribuição faz persistir situações de pobreza e de
desigualdades econômicas e sociais, que refletem no agravamento das condições de acesso às
políticas públicas, atravessadas pelas dimensões de raça/cor e sexo.
São expressões e representações que reforçam a ideologia da escravidão, “através da qual
se manifesta o racismo nas suas diversas gradações” (MOURA, 2021, p. 63). O autor reflete
sobre o longo processo vivido pelas pessoas negras no Brasil, nas situações de subemprego,
desemprego e marginalização crescente, de peneiramento e compressão que as expulsam para
a periferia da produção capitalista do espaço, seja no campo, na cidade ou na floresta.
Na formação das cidades e não podemos nos esquecer que o Brasil é eminentemente
urbano, com suas metrópoles, cidades de médio porte e cidades pequenas, periurbanas e rurais
a integração das pessoas negras na urbanização e industrialização se fez sob o que o autor
denominou ideologia de barragem das possibilidades, impondo um lugar para segmentos da
população negra à margem do desenvolvimento do país. Plasmada pelas classes dominantes,
essa barragem das possibilidades que ocorre nas relações inter e intrafamiliares, nas escolhas
de empregos, nas instituições públicas e privadas, na competição entre as classes sociais, está
presente na forma marginal de assimilação do povo negro, como ocorreu em São Paulo, ou na
sua integração sob uma economia da miséria, à exemplo de estados da região Nordeste, como
Bahia, Pernambuco e Sergipe.
Afirma o autor (MOURA, 2021, p. 57), “por tudo isso compreendemos por que até hoje,
especialmente nas grandes cidades, as favelas, os cortiços, mocambos e alagadiços são
ocupados pelas populações negras ou mestiças de um cruzamento direto com o negro”. As
desigualdades econômicas e sociais que tem lugar nessa organização espacial se fazem
presentes nas formas de segregação e tensões territoriais, como respostas racistas a conflitos
étnicos, religiosos e migratórios (HARVEY, 2013).
São áreas das cidades que demarcam uma desigualdade social que é a negação da cidade,
nas condições de vida, na distribuição espacial e nas características individuais dos domicílios,
no acesso a serviços. Para uma força de trabalho cuja reprodução não inclui a moradia, essas
são as condições de sobrevivência: sem coleta de lixo (12,5%, contra 6,0% da população
branca), sem abastecimento de água por rede geral (17,9%, contra 11,5% da população branca),
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e sem esgotamento sanitário por rede coletora ou pluvial (42,8%, contra 26,5% da população
branca). (IBGE, 2019).
Diante da crise global da sociedade contemporânea, alimentada no ideário do capitalismo
neoliberal empreendedorista e rentista, que tem no Estado as garantias da taxa média de lucro
e as possibilidades da acumulação do capital, vemos novas formas de dominação e de práticas
conservadoras que retornam com outro perfil, pela via de construções ideológicas que
interditam a política, que deslocam reflexões conceituais, que questionam a ordem capitalista
para uma pauta de comportamentos e costumes que invisibilizam a segregação.
A apreensão das determinações sociais, econômicas e políticas que compõem a história
da formação social e econômica brasileira vai nos apontar as contradições que estão na base
das desigualdades e antagonismos que constituem a questão social no Brasil (IANNI, 1992).
A história nos revela os inúmeros eventos de expropriações da terra que se impõem às
ocupações e à ausência da reforma agrária, às migrações internas campo-cidade em busca de
melhores condições de vida e trabalho, à expulsão dos indígenas de suas terras, ao apagamento
e ao embranquecimento da população negra. São temas da realidade social que alimentam os
movimentos sociais nas suas lutas e formas de resistências, manifestações sociais que emergem
do campo, da cidade e das florestas, que se veem frente a frente também com os movimentos
repressivos, com a organização dos aparelhos do Estado para criminalizar e oprimir, orientados
por valores heterônimos, patriarcais, racistas e patrimonialistas.
A coexistência planetária entre a riqueza e o pauperismo mostra-nos uma realidade que
deve ser pensada a partir de suas contradições no âmbito do capitalismo. A pobreza social é
relativa, cultural, histórica e gradual. Isto significa que pode variar entre os países, em diferentes
momentos de um mesmo país, como também variar na sua graduação em um mesmo momento.
Na segunda década do século XXI, essas contradições aprofundam a pauperização dos
trabalhadores e, portanto, a reprodução das desigualdades sociais. Em consequência, o que
observamos hoje são as manifestações da pobreza terminar por serem apartadas de suas
determinações. Trata-se de uma armadilha teórica e ideológica, porque desistoriciza e
descontextualiza a problemática que funda a existência da questão social, deslocando seu
enfrentamento para o nível dos fenômenos a ela conectados, alimentando a desqualificação do
trabalho e a criminalização dos movimentos sociais.
O consentimento e a adesão dos trabalhadores tornam-se objetivo das empresas, para
viabilizar um projeto que é desenhado e concebido segundo os fundamentos exclusivos do
capital (ANTUNES, 1995).
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São formas de opressão e de dominação que se manifestam por meio de diferentes
estratégias, que além de criminalizarem, estigmatizam, restringem e reprimem as ações dos
movimentos sociais. Isso acontece com os movimentos de mulheres, LGBTQIA+, indígenas,
quilombolas e negros. Ocorre com os/as trabalhadores e trabalhadoras urbanos de inúmeras
categorias que, ao realizarem manifestações blicas, têm se deparado com dois tipos de
argumentos reiteradamente utilizados. Primeiro, contrapondo a população em geral ao exercício
da manifestação, apontando-a como constrangedora do direito de ir e vir, causadora de
empecilhos à vida social e ameaçadora à vida e à saúde. Em segundo lugar, acusa-se os
manifestantes de causarem prejuízos financeiros à população, em função das dificuldades que
produzem ao tráfego, contabilizado o número de veículos parados num determinado período.
Portanto, devemos entender dialeticamente os fenômenos que emergem das relações
sociais capitalistas, desde sua singularidade no contexto da acumulação capitalista no Brasil,
até suas expressões nas lutas de classes no sentido mais geral, numa perspectiva de totalidade
(OLIVEIRA, 2021).
E, nessa direção, a atuação profissional na direção do fortalecimento da liberdade
democrática, tendo em vista as possibilidades da eliminação da alienação econômica e política
e a efetivação dos mecanismos para o acesso às políticas sociais, aos direitos e justiça social,
pode contribuir para romper com uma visão particular da lei no Brasil: a lei obedece a uma
lógica de classe.
O desafio é desenhar uma agenda política e articular alianças estratégicas que venham ao
encontro do que defendemos.
Trata-se de idealizar um projeto de sociedade e buscar no cotidiano de nossas ações as
condições de concretizá-lo. Isto significa compreender que as mudanças têm que ser contínuas
e permanentes e que os limites que existem são mutáveis. Isto significa entender que nem o
Estado, nem o governo que está no poder hoje, nem a sociedade e as instituições que fazem
parte dela são homogêneas, ao contrário são espaços de confronto e de conflitos, que têm que
ser enfrentados.
Vivemos na atualidade, mudanças importantes no mundo do trabalho, no esgotamento de
um arranjo sociopolítico no âmbito da ordem do capital e o desenho de formas atualizadas da
acumulação capitalista e produtividade, o que vem revertendo, a passos largos, na precarização
intensa das condições de trabalho.
As políticas sociais, como uma das mediações para os direitos, não têm no horizonte a
igualdade de condições, mas a igualdade de oportunidade, não se preocupam em combater a
pobreza e não atuam na redução das desigualdades sociais. Com o esvaziamento do caráter
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universalizante das políticas sociais, tornam-se focalizadas, numa defesa da racionalização dos
gastos sociais e pretensa justiça no atendimento aos mais necessitados, sem deixar de exigir a
contrapartida dos mesmos.
Desse modo, o trabalho exercido no campo do Serviço Social deve ser pautado pela
garantia dos direitos a todos os cidadãos, pela transformação das necessidades sociais em
demandas a serem atendidas pelo Estado, pelo acesso às condições de vida necessárias não
para sobreviver, mas para viver, tendo assegurado as condições políticas, materiais e mentais.
E será realizado sob uma perspectiva de classe, por meio de ações de caráter
socioeducativo, de caráter organizativo e de mobilização popular, de assessoria, supervisão e
formação, de planejamento, gestão e coordenação.
O exercício cotidiano da participação coletiva tem apresentado dificuldades, que vão “do
esvaziamento das responsabilidades públicas do Estado, de desqualificação das instâncias de
representação coletivas, de fragmentação do espaço público e de despolitização da política”
(RAICHELIS, 2009, p. 110), todavia não tiram a importância dos fóruns, plenárias, audiências
públicas, mesas de concertação, redes e outras formas de articulação para democratização dos
espaços públicos.
Essas reflexões sobre o tema da participação nos impõem considerá-la nas suas
contradições, ou seja, não se trata de discutir as perdas que se opõem às conquistas de espaços
participativos, mas sim, de adensar um debate que conduz as reflexões a partir das lutas sociais
que envolvem a sociedade como um todo, e que depende, para a sua compreensão e explicação,
da pauta de reivindicações que direciona as ações desta mesma sociedade e das mediações que
são feitas para apreender a sua direção.
Nesse sentido, cabe-nos enfrentar a participação assistencialista, baseada no ideal de
ajuda, movida pela compaixão, pelo altruísmo e pela caridade, que não tem como fundamento
a luta por direitos de cidadania; a participação corporativa, dedicada à defesa de interesses
específicos de determinados grupos sociais, subordinando os interesses mais gerais da
coletividade; a participação eleitoral que, ainda que permita ao cidadão (eleitor) fazer escolhas,
não faculta a participação do eleitor nas escolhas políticas dos eleitos; a participação política,
que se realiza como uma prática ético política, tendo em vista a comunidade como um todo e a
organização da vida social em seu conjunto, ou seja, o Estado (NOGUEIRA, 2004) .
Ainda segundo o mesmo autor, em uma crítica elaborada com relação aos processos
participativos esvaziados e construídos sob uma perspectiva disciplinadora, “às pressões do
mercado tem-se respondido com a privatização e às pressões da sociedade civil, com a
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participação” (NOGUEIRA, 2004, p. 128). Neste contexto, a participação assume um perfil
formal, de predomínio dos privilégios que naturalizam as desigualdades econômicas e sociais.
A atuação junto com os movimentos sociais e organizações populares no fortalecimento
das lutas sociais, sob a lógica da superação dos processos de dominação, possibilita emergirem
as contradições que advém das construções ideológicas e programáticas do projeto do capital,
dos ambientes e espaços segregados.
Trata-se de um exercício político que deve acontecer, a par das atividades cotidianas de
mobilização, reivindicações e pressões sociais por conquistas dos direitos. São estratégias que
convergem para descaracterizar a construção de consensos promovida pela hegemonia
neoliberal e requer a intervenção concertada dos diferentes sujeitos coletivos nas iniciativas de
resistência, numa perspectiva de totalidade.
A ameaça à democracia e à liberdade não vem da falta de institucionalização das formas
de organização, nem tampouco da ausência de mecanismos de disputas e de conquistas dos
direitos. São outros os obstáculos à democracia social. Decorrem da despolitização provocada
pela fragmentação das lutas e do encolhimento do espaço público, cedendo lugar,
pragmaticamente, às respostas voltadas aos interesses particulares em torno de pactos sociais.
Contra o pragmatismo e o conservadorismo, contra o esvaziamento e a transformação da
política em espetáculo, colocam-se a resistência e o compromisso profissional por trabalho,
direitos e liberdade (SANTOS; BOSCHETTI, 2011) e, na particularidade do nosso debate, da
atuação do Serviço Social pela defesa do acesso aos direitos sociais que contemplem a
diversidade social e econômica da população brasileira, no apoio aos movimentos sociais na
luta contra a mercantilização da terra, na defesa da terra para morar e da terra para plantar.
Produzir conhecimento e debates sobre experiências contra hegemônicas desenvolvidas
pelos movimentos sociais e profissionais comprometidos com mudanças sociais, como a
autogestão, o cooperativismo, entre outros, é fundamental para ampliar alternativas, mesmo no
contexto capitalista.
As políticas sociais implementadas no Brasil resultaram no contexto urbano desigual e
precário, no contexto agrário que responde, prioritariamente, aos interesses da industrialização
e da circulação do capital, desprezando as necessidades sociais dos trabalhadores, no contexto
das florestas devastadas com a população indígena expropriada de suas terras.
É evidente que esses processos decorrem das crises sistêmicas do capital e de seus
arranjos econômicos e políticos necessários para a manutenção da ordem burguesa que
impulsiona mudanças profundas com vistas ao desenvolvimento tecnológico-científico que,
todavia, se faz sob valores conservadores que sustentam relações de opressão e exploração.
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Expressa em alterações diversas nas legislações, as desfigurações políticas e redução do espaço
público, com o reforço da ideologia do favor e do clientelismo, são estimuladores de
competições e do enaltecimento da filantropia e do voluntariado.
Portanto, é preciso, pois, atuar nas contradições, dar visibilidade a outras formas de uso e
ocupação da terra, acolher as demandas sociais dos segmentos oprimidos, formular estratégias
de enfrentamento a essa estrutura da sociedade capitalista junto com sujeitos coletivos como
movimentos sociais, sindicais, ONGs, fóruns e redes, que se insurgem, contrapõem e formulam
uma concepção de bem comum, constitutiva de uma outra sociabilidade coletiva e solidária,
anticapitalista.
Considerações finais
O Serviço Social brasileiro, tomando por base a fundamentação das Diretrizes
Curriculares da ABEPSS, tem se dedicado a buscar as mediações da interpretação das questões
agrária, urbana e ambiental e o faz no sentido de contribuir com o trabalho profissional do
assistente social e com todas as formas de luta social que se posicionem contra as relações de
exploração e opressão existentes na cidade, no campo e na floresta.
Os renovados processos de apropriação do território pelo capital – expropriação da terra;
exploração da força de trabalho; destrutividade ambiental; desarticulação dos modos de vida
dos povos e comunidades tradicionais; processo de financeirização da natureza; altos níveis de
desmatamento; produção de alimentos com agrotóxicos que trazem à mesa o veneno em lugar
da alimentação saudável; o apoio irrestrito do Estado brasileiro às empresas mineradoras e à
produção do agronegócio, para citar alguns rebatem na vida concreta dos trabalhadores e
trabalhadoras urbanos/as e rurais, agricultores e agricultoras familiares, comunidades
indígenas, quilombolas, ribeirinhas, extrativistas e outros povos do campo, das florestas e das
águas.
Nas cidades, lugar de maior concentração de trabalhadores e trabalhadoras pobres e
pretos/as, a desigualdade social é expressiva, com destaque para as condições de moradia com
alta carência de infraestrutura, altos valores de aluguéis e práticas de despejos de famílias.
Ao mesmo tempo em que se coloca a necessidade de apreensão das determinações
universais da produção da desigualdade na ordem burguesa, coloca-se a necessidade de
aproximação aos diferentes territórios no Brasil para apreender as particularidades regionais
como por exemplo, os povos e comunidades tradicionais e a vida em pequenas cidades –, a
desigualdade étnico-racial e de gênero.
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Assim, é importante recuperarmos os processos de lutas sociais, da luta de classes em
presença, da produção do espaço urbano pelos sujeitos que vivem a cidade. Para o Serviço
Social, os estudos e o trabalho profissional precisam atentar para a relação da questão social
entrelaçada à questão urbana, agrária/disputa pela terra, ambiental, de gênero, racial e étnica
como uma totalidade em movimento. Pensar como a urbanização modela a vida das pessoas
da classe trabalhadora, e todos os que sofrem qualquer tipo de dominação nos espaços urbanos,
mas também como são produzidas as resistências nos diferentes territórios no Brasil. São
importantes as resistências dos movimentos que fazem a crítica à propriedade privada e ao uso
e ocupação do solo, como o movimento sem-terra no campo e dos trabalhadores sem teto na
cidade. Desta forma, o Serviço Social se vincula à luta ampliada pelo direito à cidade que se
articula ao atendimento das necessidades humanas.
Diante disso, a interpretação das diversas formas de relações de opressão no campo, na
cidade e na floresta são da maior importância para o Serviço Social, que tem historicamente
buscado alcançar as mediações e as determinações das contradições inerentes à sociabilidade
burguesa. Como afirmam Bezerra et al. (2018), apenas a busca aos fundamentos das ênfases
particulares (urbano, agrário e ambiental) a partir de uma perspectiva que considere a
totalidade, “poderá contribuir para a articulação entre elas, rompendo a fragmentação entre as
demandas sociais, demandas institucionais, requisições institucionais e respostas
profissionais” (p. 79).
Este cenário de profundas regressões apontam a importância da organização política das
massas trabalhadoras, dos movimentos sociais, da luta dos povos originários, quilombolas,
indígenas, ribeirinhos, dos trabalhadores sem-terra e sem teto, LBTQIA+, dentre outros.
Entende-se que o trabalho do/a assistente social é polarizado por interesses de classes
antagônicas, conforme Marilda Iamamoto (2019) e, por isso, participa tanto dos mecanismos
de exploração e dominação, quanto de respostas às demandas da classe trabalhadora, o que
possibiliza um terreno aberto à construção de respostas profissionais articuladas aos interesses
da classe trabalhadora e contra todas as formas de relações de opressão.
Nessa quadra histórica em que vivenciamos um alto processo de destrutividade ambiental
e índices alarmantes de exploração da força de trabalho, sendo esta exploração intensificada
em mulheres e pessoas negras, mais do que nunca, reafirmam-se os projetos profissionais e os
projetos societários anticapitalistas, antirracistas e antipatriarcais, com a defesa da humanidade
e da natureza.
Joana Valente Santana; nia Maria Ramos de Godoi Diniz; Leonardo Costa Miranda
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 22, n.2, p. 359-382, jul. / dez. 2022 ISSN 1980-8518
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