DOI 10.34019/1980-8518.2022.v22.38186
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 22, n.1, p. 144-155, jan. / jun. 2022 ISSN 1980-8518
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A ABEPSS na internacionalização do Serviço
Social do Brasil
ABEPSS in the internationalization of Social Work in Brazil
Ramiro M. Dulcich Piccolo*
Resumo: Essa nova ofensiva do grande capital
na América Latina, dessa vez, apoia-se em
setores ultra-conservadores, defensores de
doutrinas e valores neofascistas e neonazistas.
O neoliberalismo “possível” na atual fase do
capitalismo na região, apresenta versões ultra-
conservadoras e fascistas como parte de seu
“cardápio”. Como nunca antes, a dominação por
meio do livre mercado e do consumo, da
ascensão de “status” social, já não conta de
manter a adesão ao sistema, pelo que é
complementada com doses cada vez mais altas
de repressão e violência. No capitalismo
contemporâneo, a dominação através do medo é
reforçada na medida que a hegemonia pelo livre
mercado se desidrata.
Esse contexto, particularmente em América
Latina, renova os desafios para o Serviço Social
crítico latino-americano e o avanço dos seus
projetos profissionais em cada país. O artigo
reflete sobre as linhas de trabalho e os desafios
contemporâneos das relações internacionais da
ABEPSS.
Palavras-chaves: ABEPSS. Serviço social
internacional, ABEPSS e internacionalização.
Abstract: This new offensive by big capital in
Latin America, this time, is supported by ultra-
conservative sectors, defenders of neo-fascist
and neo-Nazi doctrines and values. The
“possible” neoliberalism in the current phase of
capitalism in the region presents ultra-
conservative and fascist versions as part of its
“menu”. As never before, domination through
the free market and consumption, the rise of
social “status”, is no longer able to maintain
adherence to the system, which is why it is
complemented with increasingly high doses of
repression and violence. In contemporary
capitalism, domination through fear is
reinforced as free-market hegemony
dehydrates.
This context, particularly in Latin America,
renews the challenges for critical Latin
American Social Work and the advancement of
its professional projects in each country. The
article reflects on the lines of work and the
contemporary challenges of ABEPSS's
international relations.
Keywords: ABEPSS and Social Work;
International social service, ABEPSS and
internationalization.
Recebido em: 17/05/2022
Aprovado em: 10/06/2022
* Licenciado em Serviço Social na Faculdade de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade
Nacional de Rosario (UNR), Argentina; Doutorado em Serviço Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), Brasil. Professor Associado da Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil. Pesquisa sobre “questão
social” na América Latina no capitalismo contemporâneo e os fundamentos do Serviço Social. Extensão popular
junto a movimentos sociais do campo. Coordenador das Relações Internacionais da ABEPSS (2019-2022).
Educador do MST.
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“É no campo da resistência e da luta internacional, que se justifica o esforço
empreendido pela ABEPSS para a articulação e a organização política-acadêmica
dos assistentes sociais brasileiros, em torno da articulação e organização política-
acadêmica dos assistentes sociais na América Latina; sem se fechar nele, mas com a
clareza de seu significado estratégico face à necessidade da articulação estratégica
dos países do continente diante da ofensiva imperialista do capital transnacional”
(Texto balizador das Relações Internacionais da ABEPSS/2006)
O sistema mundial e a dinâmica capitalista na América Latina
Se temos alguma certeza nesses tempos nada fúteis é de que vivemos um mundo
altamente dinâmico e cambiante, que se transforma permanentemente. As correlações de forças
geopolíticas do capitalismo contemporâneo apresentam uma configuração diferente da que
marcou a segunda metade do século XX, após a Segunda Guerra Mundial e da “Guerra Fria”.
Da mesma forma, a conjuntura é diversa do período histórico subsequente, hegemonizado pelas
ideias do “Consenso de Washington”, que gozou de ampla hegemonia na América Latina
durante a década de 1990.
1
A dissolução do “mundo bipolar” - simbolizado na queda do Muro
de Berlim no final da década de 1980 - abriu o passo para uma nova configuração do sistema
mundial: um mundo “unipolar”, sob amplo domínio dos EUA que, junto a um conjunto de
organismos internacionais, impulsionou a globalização neoliberal no planeta. A crise
geopolítica atual tem muito a ver com a crise dessa configuração unipolar de após Guerra Fria.
Observe-se que, transcorridas as primeiras décadas do século XXI, o capitalismo
apresenta variações importantes em sua forma de reprodução, mais problemática e de
confrontações relevantes, como a desenvolvida atualmente entre as forças da OTAN e a Rússia
na Ucrânia. Essa perda de hegemonia expressa uma nova geopolítica no mundo que reposiciona
áreas e regiões na dinâmica sistêmica. Hoje, o movimento desigual e combinado da acumulação
do capital e do poder articula-se em um mundo multipolar, com blocos regionais fortalecidos e
dispostos a se consolidar e disputar a hegemonia. Constata-se, porém, que a potência norte-
americana, embora com mostras de declínio econômico e político, continua com a hegemonia
no âmbito internacional e é responsável pelos principais gastos militares mundiais, dispondo de
centenas de bases militares localizadas em pontos estratégicos do planeta.
Todavia, o crescimento econômico persistente da China nas últimas décadas, com sua
maior participação no mercado internacional, alterou relativamente as correlações de força
entre os blocos. O “gigante asiático” instalou-se decisivamente no cenário mundial, abrindo
1
Lembremos a força com que as ideias e valores do neoliberalismo eram apresentados como o "único” pensamento
racional historicamente viável; proclamou-se o “fim das utopias”, “da história”, “das lutas de classes”, “do
trabalho”.
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relações comerciais e diplomáticas em novas regiões, como América Latina, por exemplo. O
principal parceiro comercial do Brasil em 2022 é a China, seguido pelos EUA. Da mesma
forma, outros países têm aumentado sua participação econômico-política no continente. A
Rússia, por exemplo, teve papel decisivo nos primeiros meses de 2019, quando os Estados
Unidos ameaçavam intervir militarmente na Venezuela. A potência euro-asiática tem construído
alianças políticas e parcerias comerciais importantes na América Latina, com Argentina, por
exemplo.
Evidentemente, isto não passa despercebido pelos EUA, que têm na América Latina sua
principal área de influência desde a Doutrina Monroe (1823). Há evidências nítidas de que para
manter o avanço dos objetivos da sua política externa no mundo, a principal potência capitalista
precisou adaptar sua estratégia de controle territorial mundial. Sobre esta questão, chama
atenção o pesquisador Andrew Korybko em seu livro: Guerras híbridas: das Revoluções
coloridas aos Golpes" (2015). Na hipótese do autor, a emergência da China e da Rússia no
cenário internacional preocupam as potências capitalistas (organizadas militarmente na OTAN),
especialmente aos EUA. O que se evidencia na guerra que atualmente se desenvolve na Ucrânia,
nas fronteiras da Rússia, pelo seu ingresso na OTAN.
Na tese de Koribko, a resposta estratégica do imperialismo norte-americano tem sido a
geração de “guerras híbridas”, usada ampla e repetidamente na América Latina durante a última
década, que se orienta pela tática do confronto “indireto”, buscando o desgaste do adversário
com o uso de “métodos desestabilizadores” nos países-alvos e em suas regiões de influência.
Processos de desestabilização e crise social e política planejados e operacionalizados como um
tipo não convencional de confronto político, que surpreende ao poder constituído. Destaca-se,
na nova estratégia, a maior relevância da batalha pela informação e o uso de sofisticadas
operações psicológicas de massas.
2
O princípio dessa abordagem, dirá o autor, é que basta semear o caos e criar forças
centrípetas que por si ameaçam dilacerar uma sociedade-alvo; não se pretende derrubar
um governo diretamente, precisa fazer que a sociedade se divida, e a incerteza em larga
escala, arauto do caos social, faz o resto” (Korybco, 2018; pág. 25). Na análise do autor, nessa
nova geração de guerras (a quarta, nas teorias militares) desse tipo específico de confronto, a
2
Métodos que correspondem a uma nova geração de guerras; as guerras da quarta geração, segundo o teórico
militar William Lind (1989). Afirma que seriam mais fluidas, descentralizadas e assimétricas que as guerras do
passado. Afirma Lind: "As operações psicológicas podem se tornar a arma operacional e estratégica dominante
assumindo a forma de intervenção mediática/informativa O principal alvo a atacar será o apoio da população
do inimigo ao próprio governo e à guerra. As notícias televisionadas se tornarão uma arma operacional mais
poderosa do que as divisões armadas (Lind, apud Koribko, 2018. pág. 26).
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desestabilização sócio-política do país-alvo é complementada com a instalação de uma dose
necessária de princípios caóticos; em seu âmago, a guerra híbrida é o caos administrado.
3
A
crise sanitária mundial provocada pelo COVID19 acirrou o conjunto de contradições existentes
e aprofundou os sintomas da crise.
Nesse sentido, tudo indica que o principal desafio dos EUA hoje, na medida que o
mundo vai se tornando cada vez mais multipolar e a Rússia recupera sua capacidade de afirmar
seus interesses junto aos seus vizinhos (da mesma forma que China e Irã), é praticar os
métodos de desestabilização das guerras híbridas ou de quarta geração. Assim, campanhas de
sabotagem geopolíticas indireta sob aparência de movimentos “democráticos” ou confrontos
civis apoiados desde fora o armas operacionais nesse cenário (que o autor chama de
“revoluções coloridas” - como ocorreram na Líbia (2011) e na Ucrânia (2014), e serve para
analisar a última década do Brasil e da América do Sul.
Qual o papel da América Latina neste particular contexto internacional?
O geógrafo crítico David Harvey (2005) sustenta que a acumulação do capital hoje se
vale dos métodos selvagens, predatórios e fraudulentos utilizados na sua fase chamada
“originária”. Segundo o pensador, esses nunca foram definitivamente abandonados pelo
sistema. Na geopolítica global, o “mito” do progresso social pelo desenvolvimento da livre
concorrência se revelou efêmero e foi substituído pela violenta interação entre potências inter-
imperialistas que lutam para reproduzir seu predomínio. Tal dinâmica constitui um processo de
regressão civilizatória, com valores emancipatórios substituídos por ultra-conservadores. A
destruição que resulta dos pontos mais críticos do sistema atinge especialmente a natureza,
destruindo o meio ambiente e degradando a vida no planeta, de forma particularmente intensa
nas regiões periféricas.
Os efeitos ambientais e sociais dessa reprodução “destrutiva” do capitalismo incluem
desde sempre a força de trabalho humana: desemprego crônico e precarização generalizada do
trabalho assalariado são realidades nacionais mundiais, também acirradas nas periferias. A
nossa região segue sendo uma das fontes de recursos naturais estratégicos mais importantes do
mundo. Reservas de água doce no Paraguai e no México; de petróleo na Venezuela, Brasil,
México e Argentina; de gás natural na Bolívia; a biodiversidade da Amazônia são estudados
3
Segundo Koribko, uma das correntes de pensamento que mais se aplica às guerras híbridas é a teoria do caos, de
Steven Mann. Em livro publicado em 1992, Teoria do caos e pensamento estratégico, o teórico entende o caos
como uma dinâmica não linear, aplicável a sistemas com números muito grandes de partes com constante
transformação. Segundo Mann, seria possível observar certa ordem padronizada em meio do caos, especialmente
em sistemas debilmente caóticos (Cf. Koribko, 2018, pág. 31)
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pelas grandes corporações internacionais, ramificadas em Estados nacionais que integram
blocos regionais.
Do ponto de vista das estruturas sócio-produtivas sob os ditames neoliberais, a
intervenção do Estado se limita a enfrentar as manifestações mais críticas da “questão social”
por meio da generalização de programas assistenciais. A privatização de importantes funções
estatais, dentre elas as políticas sociais, é complementada pela mercantilização progressiva de
serviços sociais que eram de responsabilidade do Estado. Um conjunto de políticas e programas
sociais são supridos e ou lançados ao mercado, ao circuito da valorização do capital. A tendência
neoliberal de restringir a Seguridade Social à Assistência Social, junto à privatizações de
políticas públicas (como Saúde, Educação, Previdência), fazem com que a intervenção do
Estado se limite a um conjunto de ações emergenciais e pontuais de resposta às manifestações
da “questão social”, sem alterar em nada a estrutura do problema.
O final da década de 1990 na América Latina mostrou de forma contundente as
dimensões da catástrofe social resultante da aplicação ortodoxa do programa neoliberal no
território latino-americano. A irrupção da Revolução Bolivariana vence nas eleições nacionais
na Venezuela e chega ao governo desse país em 1998, com a figura do mítico Hugo Chávez à
cabeça. Ela, junto à irrupção Zapatista (EZLN) no sul do México em 1994, foram os
movimentos sociais e políticos contra-hegemônicos mais significativos registrados durante a
década de 1990 na América Latina de hegemonia neoliberal dura. No contexto dessa catástrofe
social produzida pela aplicação de políticas neoliberais, ocorreram vitórias eleitorais
fundamentais em importantes países da região, que buscam desenvolver trajetórias mais
soberanas para os países latinoamericanos. Um amplo leque de experiências se espalha pela
região, tornando-a um grande laboratório (o maior do planeta no período) de produção de
contra-hegemônia ao neoliberalismo e ao imperialismo na periferia.
A alvorada do século XXI na América Latina é crítica e contra-hegemônica. A vitória
eleitoral de forças progressistas e socialistas se espalha pela América Latina na primeira década
do século XXI e inclina a balança política para a esquerda no continente, trazendo um conjunto
de políticas e programas, inclusive sociais, para serem postos em prática e testados. Um balanço
crítico desse “ciclo de governos progressista” na América Latina é necessário, atendendo ao
contexto geopolítico e às condições particulares da nossa região.
4
Todavia, nada é para sempre
na história social. O “ciclo progressista”, que sucedeu a década neoliberal na América Latina e
4
Governos progressistas no Brasil (2003), Argentina (2003), República Dominicana e Panamá (2004), Uruguai
(2005), Bolívia (2005), Chile (2006), Honduras (2006), Equador, (2007), Nicarágua (2007), Paraguai (2008),
Guatemala (2008), El Salvador (2009), Perú (2011).
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reposicionou o debate sobre o imperialismo e necessidade de resistir, começou a mostrar sinais
de esgotamento e entrou em declínio.
Entretanto, a pauta neoliberal se renovou, junto com seus métodos e dispositivos. Como
foi dito, a América Latina vive a aplicação da “guerra híbrida” (principal estratégia de
intervenção do imperialismo norte-americano, aliado aos grupos dominantes locais). Golpes
parlamentares foram registrados em Honduras, Paraguai e Brasil; países sofrendo ameaça de
intervenção militar e sanções financeiras (Cuba, Venezuela, Bolívia); perseguição, assédio e
assassinato de lideranças populares (Colômbia, Brasil, Chile), com disseminação de notícias
falsas, apologia dos discursos de ódio, do terror e do medo; da intolerância de todos os tipos
(religiosa, étnica, racial, sexual, etária, etc.).
Essa nova ofensiva do grande capital na América Latina, dessa vez, apoia-se em setores
ultra-conservadores, defensores de doutrinas e valores neofascistas e neonazistas. O
neoliberalismo “possível” na atual fase do capitalismo na região, apresenta versões ultra-
conservadoras e fascistas como parte de seu “cardápio”. Como nunca antes, a dominação por
meio do livre mercado e do consumo e do ascenso de “status” social não dá conta de manter a
adesão ao sistema, pelo que é complementada com doses cada vez mais altas de repressão e
violência. No capitalismo contemporâneo, a dominação através do medo é reforçada na medida
que a hegemonia pelo livre mercado se desidrata.
Antecedentes históricos do projeto de um Serviço Social crítico latinoamericano
Sem dúvidas, o Serviço Social não é alheio a esse contexto. tempo que a profissão
se indagou sobre seu significado social e sua inserção na divisão social e técnica do trabalho da
sociedade capitalista. Um acúmulo crítico de várias décadas dá conta disto e cabe começar
destacando o papel central do Centro de Estudos Latinoamericano de Trabalho Social
(CELATS)
5
, criado no marco do movimento de Reconceituação do Serviço Social. De nítida
vocação latinoamericanista, em um contexto de politização social e profissional, na busca de
aprimoramento teórico prático, de capacitação, pesquisa e intercâmbios, direcionados à
construção de um Serviço Social latinoamericano, o CELATS/ALAETS desempenhou um
papel fundamental na constituição de um Serviço Social crítico, contribuindo decisivamente
para criar as bases teóricas e político-organizativas para sua difusão no continente. No Brasil, a
esse projeto profissional crítico denominamos projeto ético-político da profissão.
5
Segundo Iamamoto, o contexto de guerra fria e a luta contra o imperialismo permitem entender o financiamento
alemão. dito apoio é indissociável da disputa entre os países centrais pela hegemonia na América latina, naquele
período de expansão capitalista (2004; pág. 106).
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Segundo Iamamoto (2004)
6
, a pauta de investigação do Centro nas décadas de 1970 e
1980 estava voltada ao conhecimento dos setores populares da América Latina: camponeses,
operários, grupos populacionais e indígenas. Debatia-se sobre o papel das políticas sociais
públicas, particularmente, Saúde e Habitação; sobre a necessidade do conhecimento das
realidades institucionais onde opera o profissional, suas associações profissionais e os perfis;
também, desenvolviam-se estudos e pesquisas sobre a história do Serviço Social na América
Latina. No processo, foram surgindo necessidades de capacitação continuada para o trabalho
profissional que fortaleçam a organização no continente e a comunicação mais intensa e
orgânica, através da publicação de livros, revistas, cadernos, etc., que constituíam os principais
desafios. Esse período foi de auge da produção crítica do Serviço Social latinoamericano.
Durante a década de 1980, em um contexto de ofensiva imperialista na região, com a
chamada “guerra suja” frustrando o projeto socialista na Nicarágua, o programa neoliberal
ascendeu na região. Registros indicam que a participação política do Serviço Social brasileiro
foi fundamental para sustentação da ALAETS nessa conjuntura, exercendo a vice-presidência
da entidade, apresentada pela professora Josefa Batista Lopes.
A década de 1990 do CELATS foi marcada pelo fim do financiamento externo que
sustentava. Esse foi um período de grande crise do projeto originário e desestruturação
organizativa do movimento. Um período de fortes impactos do pensamento neoliberal e de
dispersão política das forças críticas, que vão de dividir em diversas correntes teóricas e
políticas, com novas articulações, discursos e perspectivas teórico-metodológicas. Para fins da
década de 1990, a ferramenta organizativa ALAETS/CELATS encontrava-se severamente
fragilizada, quase sem funcionamento e esvaziada de seu conteúdo crítico.
O fim do ciclo crítico do Serviço Social latinoamericano coincide com a retirada do
financiamento que dava suporte material à organização acadêmico-profissional
continentalmente. Segue-se a dita crise, a busca de novas fontes de financiamento, a partir de
Organizações não Governamentais (ONGs) internacionais, reorientando a mirada do centro
para programas focalizados, fora da órbita do Estado e do campo das Políticas Públicas. Criou-
se, também, uma tendência à mercantilização dos serviços prestados pela entidade e fomento
de técnicas voltadas à gestão empresarial, a partir de critérios de eficácia, eficiência e
6
Nos referimos ao ensaio intitulado: Serviço Social brasileiro e a articulação latinoamericana, publicado na
revista Temporalis Nº 7 da ABEPSS, que reúne reflexões de importantes referências do Serviço Social brasileiro
e latinoamericano em seu conjunto, publicada sob o título: Articulação latinoamericana e formação profissional,
contemplando o conteúdo da ampla discussão da Oficina Nacional da entidade em julho de 2003, em Porto Alegre,
cumprindo a indicação levantada no VIII ENPESS, em dezembro de 2002. O processo culminou com a
participação de sua presidenta, a Profa. Jussara Mendes, na Junta Reorganizadora de la Asociación
Latinoamericana de Escuelas de Trabajo Social - ALAETS.
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rentabilidade (Iamamoto, 2004).
Na análise de Iamamoto, trata-se da fase de decadência do projeto original da
ALAETS/CELATS, como expressões político-acadêmicas mais avançadas do movimento
latinoamericano de Reconceituação do Serviço Social. O projeto fundador, com hegemonia do
pensamento crítico, foi se esvaziando e perdendo hegemonia face um novo projeto político
profissional que adere aos imperativos do mercado e dócil aos influxos neoliberais; um projeto
profissional débil teoricamente e dotado de fortes traços pragmatistas e empiristas. O Serviço
Social passa a atuar sobre fragmentos isolados da questão social, perdendo a dimensão da
totalidade da luta de classes: redundou em um quadro de representação frágil da categoria
profissional na América Latina, desvinculada dos desafios políticos do nosso tempo é
atravessada por posturas individualistas", afirma.
Todavia, a história recente das últimas três décadas, registra momentos importantes do
seu processo de construção e refundação. No Chile, em 2006, é refundada com seu atual nome:
ALAEITS, novamente com uma participação decisiva do Brasil na condução dos trabalhos,
debates e plenárias, re-colocando em perspectiva a necessidade da organização do Serviço
Social crítico latinoamericano. A partir de então, uma nova fase é caracterizada pela sua
reconstrução enquanto ferramenta organizativa de assistentes sociais latinoamericanos
orientados princípios éticos e políticos de emancipação humana.
Alguns desafios da internacionalização do Serviço Social brasileiro hoje
Em torno da política de articulação internacional da ABEPSS, uma questão fundamental
que está colocada é a crise da ALAEITS como organismo de articulação do Serviço Social na
América Latina. Reafirmar-se como organismo acadêmico-político articulador do Serviço
Social na América Latina, consolidando o perfil crítico que estava na sua origem, continua
sendo o maior desafio da política internacional da ABEPSS e do movimento de articulação
acadêmico-político do Serviço Social no continente no momento.
No texto balizador das relações internacionais da ABEPSS: Notas para pensar a
política de articulação internacional da ABEPSS na Gestão 2005/2006: a prioridade
estratégica da articulação latino-americana”, explicita-se a perspectiva de articulação e de
organização internacional defendida pela entidade, que passa pela “análise crítica e o debate
sobre o internacionalismo, sobre as particularidades da América Latina no movimento de
mundialização do capital e sobre a luta social como referências para o ensino, a pesquisa e a
extensão na formação acadêmica, bem como para o exercício profissional do assistente social
e sua organização como trabalhador. E uma vez estabelecida a estratégia de prioridade da
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articulação latino-americana impõe-se uma exigência de aprofundamento da consciência
crítica sobre a América Latina no atual movimento de mundialização, sobre as tendências
atuais do internacionalismo e o significado atual do Brasil no continente e no mundo com base
na qual construirá um programa de trabalho a ser atualizado sistematicamente de acordo com
os movimentos da realidade”.
Nesse sentido, na internacionalização do Serviço Social brasileiro permanece em
destaque a necessidade de consolidar a construção regional, especialmente no Cone Sul, cuja
expressão política e organizativa é a ALAEITS. Como foi dito, o país foi, desde os inícios do
movimento de Reconceituação, um protagonista decisivo nos destinos desse processo e um pilar
de sustentação e funcionamento da entidade desde finais da década de 1970. Dialeticamente,
são muitos os frutos colhidos pelo Serviço Social crítico brasileiro desse diálogo com o
movimento de Reconceituação do Serviço Social na América Latina; diálogo que se remonta à
década de 1960, com os Seminários Regionais em Rio Grande do Sul.
No início do século XXI, no contexto do ciclo de governos progressistas mencionados,
as articulações para reerguer o movimento criam ALAEITS, dando continuidade ao processo
organizativo iniciado com ALAETS. Desde então até agora o desafio segue sendo a
reconstrução do projeto crítico, mantendo seu funcionamento regimental e a legalidade dos
procedimentos e decisões políticas. Do ponto de vista formal/legal, a ALAEITS mantém um
funcionamento institucional relativamente estável, com suficiente representatividade no
continente. Todavia, a construção de um projeto crítico a nível latinoamericano, que seja
expressão da integração e da síntese da diversidade de perspectivas e vivências críticas da nossa
região, continua frágil. Da mesma forma, os esforços para coordenar uma formação profissional
crítica na graduação e na pós-graduação ainda precisam crescer.
Outro desafio relacionado é avançar na agenda de pesquisa do Serviço Social crítico na
América Latina, organizá-la e colocá-la em diálogo, em debate. Essa é uma tarefa fundamental
da associação, posto que fortalece a própria organicidade de ALAEITS. Atualmente não uma
pauta comum de investigação, através da qual poder debater e dialogar; existem redes de
pesquisadores articuladas produzindo conhecimentos críticos muito potentes, porém com pouca
organicidade na ALAEITS; não se conta com um CELATS, para tratar da atualização
permanentemente a formação profissional; muita pesquisa de qualidade que é pouco
conhecida, ou pouco divulgada, perdendo sua potência.
Da mesma forma, são necessários avanços substantivos na política de comunicação da
ALAEITS, que enfrenta o desafio da extensão territorial e a enorme diversidade cultural que
nos identifica como latino-americanos. Nesse sentido, hoje mais do que nunca, é clara a
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importância de uma política de comunicação para a entidade, que reforce a própria organização:
uma comunicação para além da propaganda e da publicidade.
Um momento importante para avançar nesses desafios, sem dúvidas, será o próximo
Seminário Latinoamericano da ALAEITS. Sob o título: Radicalização do neoliberalismo e
pandemia; contradições, resistências e desafios para o Serviço Social, na garantia de direitos”,
a XXIII edição do Seminário latinoamericano
7
será no Cone Sul, em novembro de 2022, no
Uruguai. Terá os seguintes blocos temáticos: 1) Manifestações da questão social na América
Latina, - pré e pós-pandemia -, as respostas do Estado e da Sociedade; 2) Articulações e
experiências acadêmicas e profissionais. Desafios da formação profissional face o embate
neoliberal, a mercantilização da educação superior e as condições de trabalho. Articulações e
experiências desde a investigação, a extensão e a formação de Graduação e Pós-graduação; 3)
Desafios políticos para o Serviço Social latinoamericano e para a ALAEITS; 4) Espaço para a
articulação política; 5) Processos e experiências organizativas e gremiais, profissionais e
estudantis na América Latina; 6) Avanços e retrocessos; 7) Projeção profissional; 8) Encontros,
confluências e lugares comuns; 9) Fortalecimento colectivo profissional continental e da
participação institucional.
Todavia, a internacionalização do Serviço Social brasileiro não se esgota na construção
no Cone Sul da Nossa América. Possui, ademais, fortes vínculos com instituições científicas da
Europa e da África, com as que mantêm pesquisas conjuntas e intercâmbios variados. De acordo
com o texto balizador das Relações Internacionais da ABEPSS
8
, produzido na gestão
2005/2006, uma meta a ser alcançada é uma aproximação com a Comunidade Europeia, que
discute, também, possibilidades de unidade curricular para os cursos de Serviço Social de nível
superior. Nesse sentido, parcerias com universidades de Portugal, Espanha, Itália, Moçambique
e Angola são mantidas e renovadas, estabelecendo um canal sistemático de diálogo com aquelas
regiões e suas particularidades.
No âmbito mundial, cabe mencionar o trabalho da Associação Mundial de Escolas de
Serviço Social (AIETS), a primeira instituição internacional da categoria. A mesma, nos últimos
anos, tem voltado mais seu interesse para as regiões periféricas, abrindo espaços de participação
da América Latina e da África nos debates e na tomada de posição da entidade. Debates sobre
7
Trata-se de um evento de grande relevância académica e projeção internacional. Se espera a participação de mais
de 1.000 pesquisadores, docentes, estudantes e profissionais de Latinoamérica. Consulçtar a Web:
https://www.alaeits.uy/
8
A criação do Grupo de Trabalho GT de Relações Internacionais como mecanismo de implementação das ações
da ABEPSS neste campo reforça a perspectiva de uma política para além da articulação do Serviço Social em
torno do ensino, da pesquisa e da pós-graduação e para além da articulação latino-americana, mas reafirmando
esta articulação como referência estratégica.
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o papel dessa organização mundial, do projeto ético-político que é defendido, e da
representatividade que possui a entidade são complementados na atual conjuntura pela
insegurança alimentar, ou seja, a fome e a violação dos direitos humanos e da natureza. A
particularidade latinoamericana, com seu acúmulo recente de experiências críticas ao
neoliberalismo e ao imperialismo norte-americano, chamam atenção na geopolítica.
A compreensão da realidade de outros continentes, especialmente os periféricos, assim
como o debate e a construção coletiva com os segmentos críticos do Serviço Social fora do
Brasil, são princípios da política internacional da ABEPSS. Princípios esses hoje favorecidos
pela tendência de ampliação da AIETS às periferias, que faz brotar a necessidade de aprimorar
o debate sobre a participação política da ALAEITS na associação mundial. Da mesma forma,
precisamos aprofundar a nossa visão sobre o significado e tendências das relações
internacionais do Serviço Social brasileiro, que contemple as diferentes formas e vias de
articulações internacionais do Serviço Social existentes, realizadas por uma ampla rede de
organismos mundiais, continentais, nacionais, estaduais e locais que envolvem profissionais e
estudantes.
Nesse sentido, os principais eixos históricos da internacionalização da ABEPSS
encontram-se nas relações mantidas com a América Latina, Europa e, mais recentemente,
África. Nos diálogos e construções com o Serviço Social crítico dessas regiões, configurou-se
a política internacional da entidade. Do ponto de vista da articulação institucional, o trabalho
na ALAEITS, na construção junto à AIETS e nas iniciativas conjuntas com o CFESS/CRESS
para participar como Brasil nos debates da Federação Internacional de Trabajo Social (FITS),
particularmente sobre questão étnico e racial; a política internacional tem priorizado a
construção de ditas ferramentas organizativas.
Para concluir, na atual conjuntura, onde se espera a manutenção da ofensiva imperialista
América Latina e um provável aprofundamento das estratégias de “guerra híbrida” na região,
torna-se necessário posicionar política e academicamente a ALAEITS no debate público,
especialmente sobre aqueles temas e questões que dizem respeito ao fazer profissional do
Serviço Social no âmbito das políticas em que atua. Da mesma forma, é imprescindível contar
com o apoio regional e da comunidade internacional, em cenários onde se espera um
recrudescimento, não apenas do neoliberalismo, mas do ultra-conservadorismo.
BIBLIOGRAFIA:
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Profissional. Porto Alegre, 2004.
A ABEPSS na internacionalização do Serviço Social do Brasil
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KORIBKO, Andrew: Guerras Híbridas: das revoluções coloridas aos golpes. Expressão
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