DOI 10.34019/1980-8518.2022.v22.37901
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 22, n.2, p. 383-402, jul. / dez. 2022 ISSN 1980-8518
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Militarização e judicialização: resistências de
mulheres em favelas do Rio de Janeiro
Militarization and judicialization: women resistances in Rio de Janeiro’s
slums
Tatiana Dahmer Pereira*
Resumo: No acirramento da crise estrutural do
Capital (MÈSZÁROS, 2009), refletimos sobre
formas de resistência construídas por parte de
movimentos de mulheres em favelas na cidade
do Rio de Janeiro (RJ). Nosso estudo trata da
militarização em territórios de favelas na cidade
e suas conexões com a judicialização da política
como limites do acesso aos direitos no Brasil.
Com base na conexão entre acirramento da
militarização e incremento do genocídio da
população negra em comunidades faveladas na
cidade do Rio de Janeiro (RJ), o recurso à
judicialização tem-se apresentado como um
instrumento, se não de enfrentamento, ao menos
de visibilidade, de desnaturalização e de
contenção temporária em relação à violência
estatal. No entanto, ele se mostra insuficiente
para conter a violação dos direitos dessa
população e refletiremos sobre esse porquê. O
artigo consiste em reflexão teórica e
apresentação parcial de insumos de pesquisa em
curso, com dados encadeados com a
fundamentação teórico-conceitual.
Palavras-chaves: Militarização;
Judicialização; Favela; Questão Urbana.
Abstract: Due to the intensification of the
structural crisis of Capital (MÈSZÁROS,
2009), we reflected on forms of resistance
constructed by different paths by women's
movements from slums in Rio de Janeiro (RJ).
Our study deals with the militarization of slums
in this city and their connections with the
judicialization of politics as limits of access to
rights in the peripheral modernity of Western
capitalism, in this case, Brazil. Based on the
connection between the intensification of
militarization and the black population´s
genocide increasing in slum communities in the
city of Rio de Janeiro (RJ), the use of
judicialization has been presented as an
instrument, if not of coping, at least of visibility,
denaturalization and temporary containment in
relation to state violence. However, it proves
being insufficient in containing the violation of
the rights of this population and we will reflect
on this why. The article consists of a partial
presentation of ongoing research and presents
some data chained with the theoretical-
conceptual foundation.
Keywords: Militarization; Judicialization;
Slums; Urban Question.
Recebido em: 12/04/2022
Aprovado em: 01/08/2022
*Assistente social (ESS-UFRJ), doutora em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR-UFRJ), professora associada
da ESS-UFF e do quadro permanente do PPGSSDR-UFF. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa e Extensão em
Trabalho, Educação e Serviço Social - TEIA, apoiada pelo CNPq com bolsa de produtividade Nível 2.
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Apresentação
O trabalho em questão, com foco nas formas de resistência de mulheres em favelas, tem
por tema a militarização desses territórios na cidade do Rio de Janeiro (RJ) e suas conexões
com a judicialização da política, que se colocam como limites do acesso aos direitos na
modernidade periférica do capitalismo ocidental.
Em contexto de acirramento da crise estrutural do Capital (MÈSZÁROS, 2009),
refletimos sobre formas de resistência construídas por distintos caminhos por parte de
movimentos de mulheres de favelas. O ensaio consiste em uma apresentação parcial de pesquisa
em curso, com base em dados encadeados com a fundamentação teórico-conceitual, recurso a
fontes hemerográficas e documentais.
Em um primeiro momento, situamos a questão central com base nos conteúdos da
pesquisa. Problematizamos essas questões não a partir do que nos aparece atualmente, mas de
origens e marcas específicas da forma social do Capital na formação social brasileira. A seguir,
com base na conexão entre acirramento da militarização, incremento do genocídio da população
negra em comunidades faveladas na cidade do Rio de Janeiro (RJ), o recurso à judicialização
tem-se apresentado como um instrumento, se não de enfrentamento, ao menos de visibilidade,
de desnaturalização e de contenção temporária em relação à violência estatal. Entretanto, ele se
mostra insuficiente para conter a violação dos direitos dessa população e refletimos sobre este
limite.
No entanto, cabe ressaltar que parte dos desdobramentos desses estudos refere-se ao
período atual, em 2020 e 2021, momento em que nos encontramos imersos em pandemia
mundial causada pelo vírus SARS-Cov-2, que traz adoecimento e morte por Covid-19.
Entre tais caminhos, a judicialização, como instrumento histórico utilizado nos embates
entre esferas de gestão federal, estadual e municipal das políticas públicas, tem-se constituído
como instrumento tático para movimentos de mulheres no enfrentamento de violações do
Estado em relação às populações faveladas na cidade. Discorremos aqui que esse rumo não se
descola de uma tendência na dinâmica de acumulação capitalista: com o aprofundamento da
crise do valor, mediações da política subjugam-se crescentemente às ações institucionais
submetidas ao Poder Judiciário.
A reflexão trata da constituição histórica da formação social racialmente sexista e
generificada
1
, como determinação fundante da ocupação e do uso do espaço urbano e seus
1
Importante ressaltar que nossa perspectiva de leitura parte da crítica à formação da modernidade, especialmente
a partir de suas relações colonialistas e escravistas ocidentais. Essa compreensão considera como “era moderna”
extensão para o passado de determinações que instituem a universalidade do ideal de ser humano, marcado pelos
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reflexos na contemporaneidade brasileira em contexto de crise estrutural do Capital tendo
por caso emblemático a cidade do Rio de Janeiro (RJ), a partir de pesquisa acadêmica em curso
2
.
Considerando o limite de espaço, expomos premissas e fundamentos conceituais iniciais
sobre o impacto da militarização do espaço urbano no Rio de Janeiro sobre a vida das mulheres
negras
3
em favelas na cidade na contemporaneidade. Fazemos isso examinando uma
característica peculiar das últimas décadas: a intensificação do que é denominado de
“militarização” do espaço na cidade a despeito do término formal da ditadura civil-militar
brasileira e da redemocratização em curso no País, a partir dos anos 1980. É importante ressaltar
o quanto a visibilidade dessa questão emerge a partir das formas de resistência e denúncias
realizadas por aquelas diretamente impactadas por essa constituição.
Este é um tema relevante para refletirmos sobre a natureza da formação do espaço
urbano em país capitalista periférico, no início do século passado, associada ao controle e à
ideia de ordem para integração subalterna à dinâmica monopolista da acumulação. Em nosso
caso, expressões fenomênicas, consequências de “marcadores” que distinguem seres humanos
nessa sociabilidade, sempre se fazem presentes, ainda que de formas distintas: a permanente
criminalização racializada
4
, que se materializa sobre pessoas negras e indígenas ressaltando
seu incremento por meio de extermínios em tempos recentes por parte da ação estatal, com
impactos classistas e generificados distintos
5
.
valores europeus do humanismo cristão. Essa instituição abstrata do “indivíduo universal” e de valores ideais de
humanidade escamoteia violações e alimenta tanto racismos quanto elitismos e sexismos nas suas mais diversas
expressões, à medida que a construção social de uma ideia de diferença, da noção de negro em relação ao branco,
por exemplo, é feita a partir de uma normatividade branca – construída com base na força bélica e na dominação
europeia. Essa diferença apresenta-se como hierarquizadora (KILOMBA, 2019) e eivada de discriminações, de
interdições e de violações de toda ordem no cotidiano. Utilizamos aqui a adjetivação “generificado”, relativa ao
conceito de gênero.
2
O presente trabalho conta com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
– Brasil.
3
Apresentamos parcial debate teórico fundado em pesquisas bibliográficas, análise de dados oficiais e observação
participante em reuniões e oficinas relacionadas à questão. Não tem por intenção “falar por” ou objetificar quem
mencionamos como foco de nossa reflexão: as mulheres negras atingidas pela militarização mas, sim, em
contribuir com a visibilidade para processos de lutas por existências e de resistências em curso, especialmente para
a formação acadêmica.
4
Marquese (2006) quanto aos fundamentos históricos, afirma que a escravidão não é algo uniforme em todos os
espaços da formação moderna em que ela ocorre. Tanto a sua instituição, quanto naturezas de relações e regimes
são constituídos a partir de particularidades regionais, dos enfrentamentos e das formas de resistência das pessoas
escravizadas e das que conseguiam aquilombar-se. Nessa linha, Almeida (2019) considera que o racismo, de forma
análoga, não é um fenômeno uniforme nem deve ser entendido de maneira puramente conceitual. Para ele “[...]
torna imperativo um olhar atento sobre as circunstâncias específicas da formação social de cada Estado” (pp.176-
177).
5
Em construções no campo dos feminismos sobre uma divisão sexual dos impactos da violência, associa-se a
violência urbana e seus impactos a partir de ações do Estado aos jovens negros. É importante reconhecer estudos
que demonstram a ampliação do conceito de violência urbana a partir de seus impactos distintos e desdobramentos
da violência na vida cotidiana, considerando a leitura sobre formação social do espaço.
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Tratamos, aqui, da noção de militarização das cidades não como um fenômeno atual
nem como processo evolutivo todavia, não é possível dissociá-lo da forma originária do
instituto moderno disciplinador de ordem e de progresso. Seus acirramentos e expressões
particulares advêm tanto do aprofundamento da crise do Capital, quanto das especificidades da
formação social de cada lugar. Com o endurecimento de limites para a extração de valor e o
incremento da violência espoliativa da forma neoliberal de valorização financeira e de
mercantilização de todas as dimensões da vida essa crise tem-se tornado central e impactado
particularmente a vida das mulheres negras.
O tema em foco traz desafios, por ser vital entender como a dinâmica societária atual
atinge distintamente diferentes seres humanos que integram segmentos de uma classe
trabalhadora que se forma com características específicas no País, complexificada pelo
movimento devastador do Capital.
Parte-se do reconhecimento que essa sociedade nunca se conformou com uma
identidade homogênea possui sexos, identidades de gênero, vivências de sexualidades e de
afetos, raças, é geracional e expressa valores regionais e culturais distintos. Além disso,
referimo-nos, na atualidade, a um contingente de pessoas que, a partir do acirramento da crise
do Capital e da lógica de desenvolvimento (como desdobramentos violentos da obsessiva busca
pela ideia de progresso), passa a ser acentuadamente tratada como contingente sobrante,
descartável, intensificando a histórica prática genocida do Estado capitalista contra essas
populações. Essa construção problematiza algumas questões.
A primeira, ainda que apareça como contraditória no plano das palavras, é a premissa
de que a estrutura militarizada e violenta é a forma civilizatória, portanto, é algo inerente à
dimensão coercitiva do Estado liberal capitalista. Contudo, ela extrapola em seu papel central
de reprodução espacial de relações desiguais, em seu elitismo, em suas características racistas
e sexistas, quando se manifesta em países periféricos.
A segunda é que, com a dinâmica de acirramento da crise do capitalismo, desde os anos
1990, a ofensiva neoliberal que tem na financeirização sua tentativa de extração de valor
impõe manifestações estatais opressivas e, em alguma medida, reguladas (ainda que não
legítimas), cada vez mais marcantes e crescentes na operacionalização no cotidiano contra
sujeitos específicos pretos(as), pobres, periféricos(as) e favelados(as), em especial nos centros
urbanos, recolocando-nos o desafio de reconhecer, no campo de produções acadêmicas e das
políticas públicas, a ampliação da ideia de violência (urbana) e seus impactos distintos (e
distintivos) sobre determinados sujeitos.
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Situamos, primeiro, o que entendemos por militarização do espaço urbano nas favelas e
nas periferias brasileiras na contemporaneidade relacionando essa forma atual às raízes de
nossa formação social, mas refletindo sobre o que de específico no agora. Em segundo,
apresentamos como essa violência do Estado, institucionalizada, enfrenta resistências e formas
de organização na cidade do Rio de Janeiro (RJ), tendo à frente essas mulheres que chamam
a atenção para a especial tônica racista dessa prática e a visibilidade que imprimem aos seus
devastadores impactos.
Por fim, sinalizamos como os caminhos institucionais construídos não expõem,
necessariamente uma finalidade, um planejamento no investimento dos recursos vinculando
essa prática genocida ao sentido do extermínio como parte do movimento predatório da crise
capitalista. Portanto, a construção de formas de resistência por parte dessas mulheres, em
articulação com entidades de defesa de direitos humanos, tem-se constituído como um caminho
bastante significativo para o enfrentamento dessas questões estruturais.
1. A permanente militarização da vida na cidade do Rio de Janeiro
A palavra “militarização” é amplamente utilizada e tem sido cada vez mais banalizada
no trato de questões relacionadas à dinâmica social cotidiana. Tem-se mostrado como um termo
bastante recorrente, que expressa uma realidade concreta de crescente ocupação dos espaços
por forças coercitivas, sob a justificativa de garantia da ordem e de provisão de segurança
pública.
A militarização não se associa meramente à explícita instituição formal de dinâmicas
belicistas na modernidade. Ela se consolida, no mundo ocidental moderno, como um recurso
primeiro de ordenamento e de imposição de valores anunciados como civilizatórios,
acompanhando o que reconhecemos como o movimento sociometabólico predatório do Capital
(MÉSZAROS, 2009) nessa forma social.
No campo das Ciências Políticas, em estudos relacionados à institucionalidade na
História brasileira, o termo se associa à preocupação com a extensão do poder e com o grau de
autonomia das forças armadas em relação à burocracia estatal e aos governos no Brasil
(ZAVERUCHA, 1999)
6
.
Entretanto, desde o primeiro quartel do século XX, observa-se a denúncia consistente
6
ZAVERUCHA (1998) remete à definição que militarização pode ser compreendida como “[...] um processo de
adoção e emprego de modelos, métodos, conceitos, doutrinas, procedimentos e pessoal militares em atividades de
natureza policial, dando assim uma feição militar as questões de segurança pública”, com base em Cerqueira,
“Questões preliminares para a discussão de uma proposta de diretrizes constitucionais sobre a segurança pública”,
Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 6, no. 22, abril junho, 1998:139-182.
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do caráter histórico de associação entre a produção social da forma e o controle do espaço
urbano que tem como cerne marcações importantes raciais, classistas e generificadas.
Em narrativas dissonantes
7
de uma ideia de história única e hegemônica, encontramos
elementos sobre a formação social brasileira real, que ocorre “para dentro”, como ajuste
violento e impositivo ao que se espera de um projeto colonialista de criação de uma nação, da
formação da ideia de Brasil moderno (IANNI, 1990). Essa dimensão coercitiva e violadora
estrutura permanentemente a formação social brasileira, à medida que nossa colonização e
conformação como país escravista têm por base as marcas racistas, a separação classista e os
sexismos como seus elementos identitários de nossa sociabilidade.
Batista (2003) expõe como a dimensão racializada de apartação e de violência contra as
pessoas negras escravizadas nutre a construção do medo e da naturalização dessa crescente
militarização das políticas de segurança pública como estratégia de resposta ao que ela nomeia
como a “construção social do medo na cidade”.
Nossa ocupação territorial foi marcada pelo belicismo comum ao período colonialista,
como expressão moderna de invasão de terras do então nomeado “Novo Mundo”
8
. Desde a
expansão marítima e da instituição do comércio triangular (WILLIAMS, 2012)
9
, a noção de
território se difunde e se associa a uma perspectiva de conquista e de domínio de terras,
necessária à expansão mercantil e base dessa globalização primeira que se iniciou em 1492
(HARVEY, 2004). A imposição colonialista, feita pelo poder bélico, desenha-se ao longo de
todo o litoral brasileiro na construção de fortes e de espaços portuários sob domínio do que
se conformaria como Marinha de proteção territorial contra invasões dos franceses (entre os
séculos XVI e XIX). Esse desenho demonstra, ao mesmo tempo, uma lógica arquitetônica
européia de proteção territorial em relação ao externo, mas centralmente visa a assegurar
7
MOURA (2014), GONZALES (1982), NASCIMENTO (2016), GORENDER (2016), IANNI (1998) entre
outros.
8
A ressignificação do uso da violência e do poder belicista a partir da ascendência de uma ideia civilizatória de
razão é algo relevante para pensarmos a Modernidade. Eilenberger (2019) expõe como, a partir do Renascimento,
ocorre, desde a Europa, uma mudança no modo de pensar, quanto não se atribui mais às forças cósmicas da
natureza a matriz explicativa do mundo e esta se volta ao indivíduo. Uma das conseqüências é a centralidade da
busca do controle e de domínio daquilo que apresenta “externalidade” ao sujeito: a redefinição da noção de
natureza, o que se nomeia como humano e como o “outro”. Tem por base a violência da colonialidade como o que
alimenta “[...] diversas teorias que fizeram do negro o meio do caminho no desenvolvimento do macaco até o
homem” (FANON, 2008, p.33). Esse controle é construído por meio de uma determinada forma colonialista de
conhecimento — e do incremento do fetichismo sobre os instrumentos e a tecnologia.
9
Nesse sentido, discordamos de Williams (2012), que considera o impulso colonizador como um movimento de
busca de valorização mercantil para, como conseqüência, impor a dominação racial. A noção de valor não pode
ser dissociada de uma questão originária de afirmação da centralidade de formas específicas “civilizatórias”,
daquilo que se afirma como cerne do que é reconhecido como humano, originário da própria formação
renascentista e, posteriormente, iluminista europeia que se impõe ao mundo ocidental.
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condições de integração mercantil desse lugar importador de mão de obra escravizada
10
e de
exploração extrativista em dimensões de controle interno e para fora. Sob o pretexto da
construção de um projeto moderno de nação, após a Abolição da escravatura no Brasil (1888)
11
,
é recorrente a ação de cunho belicista por parte do Estado em relação aos que ocupam os espaços
públicos pautados no pressuposto eurocêntrico do trabalho como disciplinador e civilizador,
como forma de “integração”. Sem construir uma noção trans-histórica de militarização, cabe-
nos reconhecer os elementos de controle sobre vidas tratadas de forma desumanizada, que
findavam por se constituir como ameaças às dinâmicas que aqui se instalavam.
Nesse sentido, chamamos a atenção para a distinção da noção de violência da de
militarização. Ainda que a militarização naturalize e estabeleça códigos de disciplina e de
guerra, impondo um cotidiano de ordem, ela pode ser entendida como uma expressão de
violência mas a leitura sobre essa categoria compreende contribuições mais amplas e
profundas
12
.
A militarização, como forma de expressão de domínio territorial, não ocorre por si e
com essa finalidade mas como elemento intrínseco dinamizador da produção de valor, que
possui materialidades particulares em cada lugar, mas em interconexão com blocos de poder
geopolíticos e com relações imperialistas. Envolve e dinamiza recursos e interesses não
convergentes que se atrelam à indústria da produção de armas, de munições, de estratégias de
controle e de dominação, a pretexto de uma noção idealizada e universalizada de segurança.
Para tanto, produz alvos, enuncia inimigos constituídos como motes que justifiquem essa
dinamização destrutiva do valor. Por uma forma própria eurocêntrica e marcada pela imposição
de uma supremacia da branquitude, sua marca central da dinamização econômica tem sido a
10
Apoiamo-nos na reflexão de Kilomba (2019, p. 20) sobre o uso do termo escravizado (a), em vez de escravo (a),
à medida que este primeiro “[...] descreve um processo político de desumanização, enquanto escravo (a) descreve
o estado de desumanização como identidade natural das pessoas que foram escravizadas”.
11
Pregressamente ao advento da abolição, vale ressaltar que diversos regimes de escravidão coexistiam,
marcados pelas diferenças econômicas e culturais regionais (Cardoso, 2008). Isso trazia formas e dinâmicas
distintas de relações sociais e de trânsito e ocupação dos espaços. Cardoso expõe essas diferenças e demonstra
como “[...] na cidade do Rio de Janeiro, os escravos tinham muita liberdade de movimento,já que boa parte de
seus senhores vivia justamente de seu trabalho como vendedores ambulantes, condutores de palanquins,
carregadores de água ou de dejetos para as famílias e toda sorte de serviço compatível com sua condição de
“escravos de ganho” ou “de aluguel”, muitos dos quais conseguiram comprar sua alforria com o pecúlio
acumulado”. Essas distinções expressam, inclusive, formas bastante dissidentes da narrativa oficial em torno da
Abolição da Escravidão no Brasil e a elas opostas.
12
Sobre essa especificidade e sua relevância na teoria social crítica, Marx, nas suas leituras sobre a formação da
sociedade burguesa, expõe formas naturalizadas de violência sob o conceito de exploração a partir de relações
desiguais que se instituem socialmente tendo por base a centralidade da mercadoria como mediação social. Walter
Benjamin é incisivo quanto à denúncia, em sua construção sobre o conceito de História, de como a ideia de cultura,
necessariamente é uma ideia de barbárie, de aniquilação. Em Fanon (1968) a violência é elemento essencial
imposto pelo colonialismo, penetrando na vida e mente dos colonizados, mas deve ser apreendida como o que
enfrenta a ordem e traz a desordem como elemento libertador e de resistência por parte dos colonizados.
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questão racial
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em uma forma específica de constituição patriarcal.
Quanto à ordem como base para o progresso e a necessária disciplinarização de pessoas
ex-escravizadas ou descendentes para integração forçada ao “trabalho livre”, impuseram-se
tanto claras ações de coerção pela via da militarização, a exemplo da condicionalidade da
alforria aos negros que se voluntariassem a lutar na Guerra do Paraguai (1864-1860), quanto da
criminalização por meio do aparato legal
14
.
Essa dimensão coercitiva, que em lapsos de períodos democráticos republicanos
autoriza o uso discricionário da repressão contra determinados grupos, sempre esteve presente
em nossa trajetória, associada a recurso importante da modernização. Em tempos recentes,
Zaverucha (1998) expõe, em seu estudo, uma análise detalhada dos artigos constitucionais
(1988) que permitem a militarização do espaço público, mesmo após o fim da ditadura civil-
militar.
A “guerra aos vagabundos” (BOTELHO, 2018) reforçamos, como algo permanente
em nossa trajetória assume formas distintas, mas possui em comum sempre o mesmo foco
de quem aqui é assim socialmente nomeado a população preta e indígena, tipicamente de
povos originários latino-americanos e (ex-escravizados) africanos, empobrecida, aqueles(as)
que não são tratados como humanos, reforçando seu lugar de inferioridade e de integração
subalterna, “à margem” do acesso e do usufruto do que se produz socialmente como riqueza.
Tanto no campo jurídico como na materialidade das ações institucionais, o controle
coercitivo da vida social se faz cada vez mais presente, e noções de “democracia” e de “Estado
de Direito” são algo bastante esvaziado de sentido para aqueles (as) que vivem nas favelas da
cidade do Rio de Janeiro, por exemplo.
As raízes do neoliberalismo a partir de incrementos tecnológicos impulsionados pelas
guerras mundiais, que obtiveram êxito em investir no crescente aniquilamento de postos de
trabalho (vivo), expandindo a subjugação ao trabalho morto combinam o descolamento do
valor da dimensão produtiva e a necessária flexibilização de leis trabalhistas (à medida que se
esgarça a possibilidade de existência de trabalho) e abertura para o fluxo de capitais combinada
à forte repressão de movimentos de trabalhadores (as). Exemplos pioneiros nos são dados tanto
13
É importante aqui demonstrar que uma identidade no sentido que a centralidade do foco destrutivo da indústria
bélica tanto em grandes guerras quanto na sua conformação nos primórdios do colonialismo escravista, como
tempos inaugurais da era moderna, convergem para uma perspectiva racializada e de registros étnicos de distinção
do “outro” – o “negro” (cuja nomeação é uma construção europeia, segundo Mbembe, 2018), os judeus, ciganos,
os muçulmanos (na contemporânea “guerra” contra o terror), são exemplos claros disso.
14
Do século XIX para o XX o governo de Floriano Peixoto criou, por decreto legislativo, mecanismo para a
repressão de capoeiras, “vagabundos” e ébrios, com a instalação da Colônia Correcional em Ilha Grande, no atual
município de Angra dos Reis. Sucedem-se ao longo dos anos, diversas leis de controle e de punição da
vagabundagem, com alvo claro sobre pessoas ex-escravizadas (SANTOS, 2004).
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no Chile do ditador Augusto Pinochet (1973-1990) sob os ensinamentos da Escola de Chicago
(EUA), mais especificamente nos Estados Unidos de Richard Nixon (1969-1974) e de Ronald
Reagan (1981-1989), quanto na Inglaterra de Margaret Tatcher (1979-1990).
Essa mesma tecnologia, que permite “saltos” produtivos de intensificação na produção
de mercadorias sem a correspondente absorção de mão de obra, passa a ser utilizada
crescentemente, sob o pretexto positivo da integração, como mecanismos de controles sobre as
vidas, que derrubam barreiras entre o público e o privado, naquilo que Zuboff (2015) nomeia
como o “grande outro” (the big other). Os processos de monitoramento territorial, dos padrões
de consumo, das relações políticas0020de repressão e de coerção construídos em esforços de
gestão da crise mundial na qual mergulhamos nos anos de 1970, fazem-se mais presentes e
fortes desde os anos 1990, como algo endógeno e relacionado à necessidade de assegurar “paz”
e ordem para a produção de espaços atrativos para investimentos e para especulação
(ARANTES, 2002) como forma de extração de valor.
Tal binômio de combinação entre guerra e ocupação territorial, no que dinamiza o econômico
o bélico e a terra reatualiza-se com vistas à extração do valor, à medida que o Capital se
defronta com seu limite lógico de crescimento (KURZ, 2004). Batista (2003) nos mostra como
a construção da justificativa de “guerra às drogas” traz tais emblemas de extermínio e de
construção de “inimigos” da sociedade como seu modus operandi.
O que problematizamos aqui é o quanto esse processo de militarização da vida se
intensifica não como uma estratégia clara com determinados fins, mas como expressão de um
processo caótica e irracionalmente destrutivo como expressão do aprofundamento da crise do
Capital, potencializando algo que sempre lhe foi inerente: sua dimensão predatória seletiva em
cima do que é passível de desumanização.
2. Alvos no urbano: sínteses parciais relacionadas à generificação e à racialização
no espaço
Como sinalizamos, essa reflexão apoia-se em resultados parciais de pesquisa sobre o
tema do impacto de políticas de militarização do espaço urbano sobre a vida das mulheres
negras moradoras de favelas e periferias
15
. Nesse segundo momento, sinalizamos para uma
questão relevante, que emana desses movimentos denunciando invisibilidades históricas
15
No caso específico, o recorte considera originalmente “[...] as formas de resistência de mulheres, em sua maioria
negras, vitimadas pela militarização promovida pelo Estado em territórios de favelas e periferias na cidade do Rio
de Janeiro (RJ) e de São Gonçalo (RJ) em 2018-2019. Consideramos aquelas ocupadas por forças policiais e
militares, tais como as de Manguinhos (nestes, de forma institucionalizada pelo Programa das UPPs, desde 2012)
e na atuação existente na periferia da cidade de São Gonçalo (RJ)” (Projeto Pesquisa, 2018).
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relacionadas a essa forma constitutiva da sociedade brasileira. Nas chaves de pensamento e de
qualificação em estudos de gênero e mesmo de relações sociais de sexo no Brasil, prevalecem
como referências para as políticas públicas abordagens que nomeiam a violência de gênero
como algo bastante específico, e a distinguem conceitualmente da violência urbana.
A construção histórica de estudos que assimilam o impacto da violência urbana a um
determinado perfil de ser humano jovens, negros, moradores de favelas e de periferias, é um
elemento importante para se visibilizar que não é algo casual a morte violenta de jovens negros
como algo estruturante dessa sociabilidade. Indicadores em séries históricas
16
demonstram essa
permanência, em crescente política de extermínio, de morte nas palavras de Mbembe (2018),
uma necropolítica. Essas mulheres, em significativa maioria mulheres negras, articulam-se
tempos em movimentos de redes, com assessoria de entidades de defesas de direitos humanos
e de organizações ligadas aos movimentos de mulheres negras, bem como em instituições
acadêmicas
17
.
O propósito de integração e de fortalecimento dos movimentos existentes é
impulsionado pela constatação de invisibilidade (ou da baixa visibilidade) na produção e na
formação acadêmica, de uma forma geral, quanto à questão e mesmo à frágil compreensão da
centralidade da questão racial e de gênero na nossa constituição de classes sociais na formação
social brasileira.
Surge desse processo a compreensão de como as violências, ainda que possuam acentos
específicos na sua leitura em torno de quem são os sujeitos que as sofrem, não podem ser
consideradas de forma simplista apenas por causa de dados quantitativos. Referimo-nos,
especificamente, ao quanto se adquire visibilidade, a partir de pressões e lutas por parte de
movimentos negros e de mulheres negras, sobre o quanto a violência possui especificidades em
sua forma de materialização ela não é universal nem tampouco indistinta. Se na assegurou o
registro e o reconhecimento de que a violência urbana atinge mais homens jovens negros e a
violência doméstica e sexual cresce significativamente entre mulheres negras nos últimos anos.
No entanto, gostaríamos de reforçar algo importante para que essas conquistas não estacionem
nessas formulações.
Importante estudo de Flauzina (2017) demonstra como os movimentos negros e de
16
Atlas da violência (edições 2017, 2018, 2019)
17
Acompanhamos, de forma participativa, desde 2016, por meio de oficinas, de encontros e de reuniões, as
atividades desenvolvidas a partir da organização o governamental, construindo a adesão para, a partir da
universidade, contribuir com formação discente e com o levantamento de dados e produção de artigos e de
reflexões, voltadas para a visibilidade, qualificação e problematização da violência de Estado e suas características
em relação à população que vive em áreas criminalizadas, como favelas e periferias.
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mulheres negras, “[...] em caminho semelhante ao que trilha o movimento de mulheres na
contemporaneidade” [vêm] denunciando a existência de racismo na sociedade brasileira,
‘conquista’ o que Vera Andrade (2010, p. 91) nomeia como publicização-penalização do
privado”.
Portanto, essa inflexão volta a problematizar, a partir dos feminismos hegemônicos, a
construção histórica realizada entre distinções das esferas pública e privada a partir de sua
configuração baseadas nas determinações raciais, sociais e de gênero. O que gostaríamos de
problematizar é que, a partir do acompanhamento desta pesquisa, a forma militarizada de
ocupação do espaço urbano impõe à população negra, especialmente (mas o apenas) mais
empobrecida, violações que se relacionam justamente com a demonstração da frágil (ou
inexistente) fronteira entre o público e o privado, explicitando os impactos históricos e
permanentes do extermínio, do encarceramento e da criminalização gerados pelo racismo.
Concretamente, referimo-nos a como a ocupação militarizada de favelas, bem como das
periferias tem, histórica e cotidianamente, imposto controle sobre corpos de homens e de
mulheres, em sua maioria negros(as), impondo extermínio e violações com requintes de
crueldade e de tortura
18
. Ainda que as mulheres negras se encontrem expostas tanto à violência
doméstica quanto à sexual, também se veem diretamente subjugadas à urbana ao terem suas
casas invadidas e seus filhos e entes queridos assassinados e encarcerados e suas filhas violadas
ou mortas.
A naturalização de uma ideia do Estado como um mediador da ordem, ente
implementador de políticas públicas (outrora tratadas como seletivas, compensatórias,
necessariamente capitalistas e as anunciamos marcadas por contradições), pouco tem
contribuído para uma percepção clara de como, historicamente, esse Estado capitalista
periférico sempre exerceu funções que materializam cotidiana e reiteradamente o racismo
estrutural (ALMEIDA, 2019) e o ordenamento patriarcal específico dessa sociedade classista,
marcada pelo ódio ao “diferente”, ao branco considerado como padrão hegemônico. Como
vimos, não à toa e muito menos por atrasos civilizatórios, que essa “natureza” de ação torna-
se mais explícita em sociedades periféricas, historicamente marcadas pelo colonialismo
escravocrata.
Essas marcas não pertencem a um passado se desenvolvem no movimento de
18
Dados de 2019 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública demonstram que “[...] 75% das vítimas da violenta
letal no Brasil são negras. Jovens negros morrem mais do que jovens brancos; policiais negros, embora constituam
37% do efetivo das polícias são 51,7% dos policiais assassinados; mulheres negras morrem mais assassinadas e
sofrem mais assédio do que as brancas” (FBSP, novembro de 2019 acessível em
http://www.forumseguranca.org.br/publicacoes/a-violencia-contra-negros-e-negras-no-brasil/.
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sociabilidade do Capital como a sua marca civilizatória, a sua cicatriz e ferida permanente
aberta. Como enuncia Kilomba (2019), o “[...] colonialismo é uma ferida que nunca foi tratada.
Uma ferida que dói sempre, por vezes infecta e outras vezes, sangra”. Em um contexto de
acirramento da crise estrutural (MÉSZAROS, 2009), expressam-se no incremento da
criminalização sobre as pessoas negras e indígenas (majoritariamente as mais empobrecidas,
dado esse legado da escravidão, de genocídios e da despossessão) e naquilo que Souza (2012)
problematiza como a crescente naturalização da “militarização do espaço urbano” (2012).
Nessa dinamização de transformação histórica das formas de ocupação do território, é
importante ressaltar a consolidação do descrédito, por parte das populações mais empobrecidas,
especialmente por parte das mulheres em favelas e periferias, quanto à dimensão protetiva do
Estado sobre suas vidas, por meio da ação cotidiana da polícia, cujas violações proferidas
fomentam permanente sentimento de não pertencimento ao lugar em que vivem. Com essa
argumentação, Souza (2012) expõe, em tempos não muito distantes do presente, que
[...] Em face das ‘milícias’, é de se perguntar: no caso de espaços controlados
não por criminosos em sentido mais corriqueiro, mas sim por (ex-) policiais
corruptos e criminosos, o que resta, aos olhos da população pobre, de
credibilidade do Estado, a não ser sua face repressora? O que esperar, no longo
prazo, caso a instabilidade” do varejão venda a retalho do tráfico
semiorganizado (constantes e sangrentas disputas territoriais, na verdade
disputas por mercado e pontos logisticamente estratégicos) seja substituída
por uma razoável “estabilidade de uma “paz miliciana” flanqueada por
diversos arranjos e acumpliciamentos com a face formal do Estado capitalista?
(SOUZA, 2012, p.120)
Essa tem sido uma questão relevante e reconhecida no trabalho de pesquisa, como o
sentimento de pertença e de formulação particular de identidade de grupo, de fortalecimento
que parte da dor, mas não se limita a ela, demanda diálogos e construções sobre cuidado mútuo.
São elementos enriquecedores e fortes, que se transformam no cerne de uma construção
cotidiana de sobrevivência à dor por parte de mulheres que têm seus filhos assassinados pelo
Estado. Andrade (2010) nos traz elementos que qualificam essa questão. Para a autora
[...] Aqui, radica a construção, pelo sistema penal, dos velhos e novos inimigos
internos e externos da sociedade e que se dá em torno da (velha) pobreza e da
(nova) exclusão, da droga, do terror e das nacionalidades (ladrões,
seqüestradores, estupradores, sem terra, sem teto, desocupados, vadios,
mendigos, flanelinhas, limpadores de para-brisas, criminosos ‘organizados’,
traficantes, terroristas, imigrantes, etc). Estruturalmente, a construção social
da criminalidade permanece centrada nas ilegalidades dos bens e dos corpos
(ANDRADE, 2010, p. 257).
Assim, a reflexão coletiva e a construção da noção de cuidado decorrem dessa condição
objetiva, nesse caso, de ser negra neste mundo. Chamamos a atenção para isso, considerando a
vivência e a percepção nas narrativas quanto às dificuldades objetivas impressas pelo racismo
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por intermédio de violências institucionais claramente perceptíveis nos limites aos recursos
institucionais de justiça, de proteção e mesmo de serviços de saúde e de possibilidades de
acolhimento social, ampliando e especificando o que podemos nomear como violência urbana
e sua clara distinção nos impactos raciais e de gênero.
Com base na especificidade histórica de nossa formação social e na formação
estruturalmente racista dessa sociabilidade, que se materializa nas formas de ação do Estado,
expusemos como, mediante a conformação de formas de resistência, mulheres negras não
apenas denunciam, mas investem na construção qualitativa de ações para o enfrentamento dessa
permanente violação e, especialmente, de permanência e de direito à existência nesse mundo.
A construção de articulações e de redes de suporte, a partir de movimentos existentes
em favelas, tem sido a forma de continuar a existir, a resistir e a denunciar o cotidiano de
ameaças, de opressões e de violações; expõe a particularidade (e a invisibilidade) do cotidiano
impingido às populações faveladas e periféricas na cidade do Rio de Janeiro. Esse aspecto é
abordado ao final do artigo ao apresentarmos alguns caminhos a partir do enfrentamento dessas
formas nas instituições sociais. Essa questão não é menos importante, à medida que
[...] A ordem produzida pelo racismo não afeta apenas a sociedade em suas
relações exteriores como no caso da colonização – mas atinge, sobretudo,a
sua configuração interna, estipulando padrões hierárquicos, naturalizando
formas históricas de dominação e justificando a intervenção estatal sobre
grupos sociais discriminados, como se pode observar no cotidiano das
populações negras e indígenas [...] (ALMEIDA, 2019,p. 177).
A partir da leitura sobre essa origem, estudos (BATISTA, 2003; MENEGAT, 2019;
ZACCONE, 2016) demonstram como é clara a intensificação da ação criminalizadora do
Estado nos últimos anos, em relação aos(às) moradores(as) de favelas e de periferias e essa
situação descola-se da histórica prática mediadora de controle e disciplinamento sobre as
nomeadas ‘classes perigosas’ (CHALHOUB, 1996), passando a abertamente assumir práticas
punitivas de controle ou simplesmente exterminadoras com corte classista, mas particularmente
racial, com impactos específicos de gênero como elemento desta ‘nova cultura de gestão
urbana’ (ARANTES, 2000).
Como vimos, essas ações afirmam facetas históricas estruturais do Estado moderno, em
especial deste na sua conformação periférica do capitalismo. Menegat (2019, p.162) demonstra
o quanto “[...] a História desse processo constitutivo da situação originária de um Estado de
exceção à brasileira tem sua força definidora no início da cada de 1990”. Pondera que esse
processo de afirmação daquilo que Loïc Wacquant nomeia como “Estado Penal”,
[...] não é, portanto, o resultado dos azares eleitorais em que uma ‘direita
reacionária’ pôde mobilizar conjunturalmente seu rancor contra o arranjo
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social dos trinta anos gloriosos (....) No Brasil a escalada prisional começa
nos anos FHC e prosseguiu sem tréguas nos governos petistas (MENEGAT,
2019, p.69).
Essa reflexão quanto ao acirramento dessas formas de coerção como algo que se torna
a tônica da materialização da ação do Estado na gestão das contradições, não se refere apenas
ao incremento da população prisional, mas, ao longo dos últimos anos, nos investimentos em
estruturas de controle sobre o território, de repressão quanto ao direito de ir e vir e,
especialmente, nos altos números de assassinatos de jovens negros em ações policiais, em claro
“genocídio do povo negro” (CARVALHO, 2016), substanciado na “forma jurídica da política
de extermínio de inimigos” (ZACCONE, 2015) na cidade do Rio de Janeiro (RJ), demonstrando
a anuência social e a aparência de legalidade jurídica quanto a essas ações.
A forma atual dessas ações visa tanto à eliminação de uma população tratada como
sobrante, mas, como vimos, sua raiz está na origem de um não reconhecimento como
merecedora de vida. Em contexto de esforços do Capital pela valorização especulativa do
espaço, na clara significação dos territórios segundo a perspectiva belicista de ocupação como
esforço de dinamização do valor, os impactos não poderiam ser mais destrutivos.
Algumas sínteses parciais no acompanhamento desses processos podem ser enunciadas
aqui para continuidade dos estudos e reflexões.
A primeira refere-se à impulsão para a articulação a partir do desamparo que vivenciam
e da construção advinda do racismo estrutural de responsabilização social no contexto de perda
de seus filhos. Discursos presentes demonstram como, para essas mulheres, a quem lhes é
interrompida abrupta e violentamente a vivência da maternidade a partir do extermínio os seus
filhos, também lhes é imputada contraditoriamente, nos moldes tradicionais da
responsabilização idealizada de maternidade sobre as mulheres, culpabilizações pelo que
nomeiam como “ausência” no cuidado, a “negligência” como mães e no acompanhamento
desses meninos ocasionando que “[...] se perdessem”, que se envolvessem em “paradas
erradas” (sic).
Essas práticas ferem como açoite misógino, elitista e racista permanentes sobre feridas
abertas dessas populações específicas. Elas apresentam demanda socialmente construída e,
muitas vezes, desqualificada, a partir de posturas e de cobranças institucionais. Como exemplo,
mencionamos a idealização da maternidade, pautada em premissas de uma dada divisão sexual
do trabalho oriunda de formatos cristãos originários de família, sem a clara consideração de
como essa formação ataca e destrói na raiz (DAVIS, 2016) o direito ao pleno exercício da
maternidade e, tampouco, consideram condições estruturais e obstáculos impostos a essas
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mulheres no cotidiano de relações familiares. Exige-lhes formalmente, apenas, a adequação às
normas, a compatibilização do que lhes é demandado socialmente na construção do cotidiano.
Outro elemento relevante é o quanto de formas distintas (por serem profundamente
diferentes entre si como seres humanos), as mulheres passam a integrar-se às articulações.
Ainda que em comum invistam na visibilidade da dor e na reconstrução afetiva da memória de
seus filhos, enfrentando os mecanismos sociais, judiciais e midiáticos de criminalização deles,
dentro da lógica de desumanização do racismo, vivem de formas distintas as potencialidades e
os limites dessas organizações e os dilemas que daí emergem. O que nos parece claro é a
integração pela dor, realizada por vínculos de vizinhança, a partir de outras mulheres em
situações semelhantes. Se elas partem do sentimento comum de dor, de desamparo e da revolta
com a criminalização e a violência sofridas, têm sido fundamentais essas articulações em rede,
no sentido de construir e de ressignificar suas vidas e enfrentar a culpabilização socialmente
construída.
São comuns as falas enérgicas e firmes quanto às ameaças e tentativas cotidianas de
silenciamento, à medida que muitas dessas mulheres continuam a viver no mesmo espaço em
que tiveram seus filhos assassinados convivendo com aqueles que são seus algozes. Além da
ameaça e da imposição do medo e desse silenciamento, em função da estrutura de relações
sociais e, especialmente, que se materializa na mídia dinamiza-se no cotidiano a
criminalização social, generificada e racializada, que impõe permanentes tentativas de
desqualificação de suas narrativas.
Todavia, cabe sinalizar que, como construção própria de resistência em rede, a partir de
relações de fortalecimento mútuo, de cuidado e de articulação política para reivindicar justiça
e reparação, tem sido um horizonte importante no cotidiano das mulheres atingidas pela
violência do Estado.
No acompanhamento que realizamos de parte de grupo de mulheres
19
, para além das
reuniões permanentes como espaços de troca e oficinas de reflexão e de formação coletivas,
chegou-se a um ponto estratégico sobre o quanto, a partir das violências iniciais sofridas, essas
mulheres vivenciam o cotidiano de violações a partir das instituições que as deveriam apoiar e
orientar.
Nesse sentido, a construção coletiva a partir dessa articulação de um mapeamento
19
Aqui referenciamos, sem identificar pessoas nominalmente, grupos de mulheres que se organizam a partir da
perda de seus filhos e demais entes em situações claras de extermínio por parte da polícia militar e do exército nos
espaços de favelas na cidade do Rio de Janeiro. Por questões éticas e de proteção das pessoas, consideramos
importante não identificar tais redes e pessoas integrantes.
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institucional e de pessoas nas instituições capazes de se abrirem ao diálogo e ao acolhimento
das demandas, lidando internamente com as fortes dinâmicas de racismo institucional e das
estruturas patriarcais, apresentou-se como um importante passo coletivo. O primeiro
movimento foi o de identificar violências sofridas no cotidiano e, entre lista numerosa, cinco
centrais foram consideradas estratégicas por engendrarem dimensões do público e do privado
e demonstrarem a sorte de opressões impingidas a partir do controle social por parte do Estado
e das instituições sobre essas mulheres. As cinco violências sinalizadas, intimamente
determinadas pelas estruturas racistas, classistas e patriarcais dessa sociedade, servem como
mote para se pensar as orientações sobre como buscar apoio.
Junto a isso, mapeou-se o fluxo de atendimento na cidade do Rio de Janeiro e em cidades
da Região Metropolitana, como São Gonçalo e alguns municípios da Baixada Fluminense.
Articulou-se, em encontros, seminários e reuniões, pessoas nas instituições para a construção
de compromissos éticos de acolhimento, de fortalecimento, de conduta e de enfrentamento de
seus problemas.
Esse movimento se realizou a partir da definição coletiva prévia das cinco violências
presentes no mapeamento: (i) Mulher que sofre violência doméstica e sexual; (ii) Pessoa que
precisa de serviços para alteração e fortalecimento da identidade de gênero; (iii) Mulher com
familiar no sistema prisional; (iv) Mulher com familiar assassinado em decorrência da
intervenção policial; (iv) Mulher vítima de violência obstétrica.
Ressaltamos o quanto cada conjunto de violações presentes na nomeação dessas
violências assenta-se sobre o que refletimos na primeira parte do artigo quanto à formação
racista, sexista e classista dessa sociedade periférica e da tônica da necropolítica por parte do
Estado e de suas instituições.
Sinalizamos aqui que, para além da construção coletiva do registro final dessa
articulação realizada por relações pessoais, institucionais por meio de oficinas, de reuniões, de
sensibilizações, o "Mapeamento de fluxos de atendimento para Mulheres: estratégias e ações
contra a violência institucional no rio de Janeiro” (FASE, 2019), torna-se relevante não apenas
pelo seu produto final, mas pelo processo que engendra em sua construção.
Ressaltamos que a relevância dessa construção, coordenada e sistematizada na escrita
final por educadoras populares da FASE
20
, ONG compromissada com a defesa de direitos
humanos, expressa um posicionamento-chave em tempos de destituição das responsabilidades
20
Rachel Barros e Suellen Guariento foram as coordenadoras e responsáveis pela escrita e elaboração final do
Relatório. A FASE é um organização de defesa de direitos humanos que existe desde de 1961. Para conhecer
melhor, acesse seu sítio eletrônico www.fase.org.br.
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e funções estatais quanto à proteção social e aos direitos: seu pressuposto não consiste na
simples conformação de uma rede que pretenda substituir as atribuições estatais, mas, sim, que
pressione as instituições a cumprirem o seu papel.
Para além, esse processo consiste em uma delicada e permanente avaliação e no
reconhecimento sobre limites e particularidades das instituições nessa sociabilidade no
enfrentamento das suas próprias contradições constitutivas e sobre como investir coletivamente
para um processo de transformação interna e articulada.
3. Indicações de continuidade
Ao utilizar essa abordagem e enfrentar o desafio do tema, obrigatoriamente o fizemos a
partir de um perfil de cidade específica em uma forma social particular: a cidade urbano-
industrial de país periférico, acelerada e tardiamente industrializado, capitalista dependente em
sua formação, mas que adquire contornos na sua formação social a partir da violência.
As cidades hoje, no Brasil, devem ser lidas a partir dessa premissa histórica, de
recuperação do sentido da urbanização imposta pela dinâmica violenta do tal desenvolvimento
na sua faceta periférica, de subordinação do campo à cidade imposta por nossa eterna lógica de
integração subalterna às dinâmicas mundiais da acumulação capitalista mas enxergando as
particularidades de sua dinamização interna e personalizando objetivamente os seus impactos.
A primeira, é o acento na destruição imposta pela globalização neoliberal no mundo,
quando, de fato, em contexto contemporâneo, intensifica-se a hegemonia do Capital financeiro
e a necessidade de assegurar o caráter especulativo de todas as dimensões da vida social.
Mesmo sendo essa afirmação genérica, não como negar o quanto as cidades, a vida
urbana, são bastante impactadas por essa dimensão, assegurando a prevalência da racionalidade
que defende a “cidade-empreendimento” (ARANTES, 2000), combinando as transformações
recentes ocorridas no seio do neoliberalismo com as marcas permanentes de nossa formação
social e a pactuação da pequena política que marca a nossa cultura. Aqui sobra espaço para o
controle penal e a violação e extermínio de vidas que importam menos ou não importam na
construção das condições de valorização do Capital, como vimos.
A segunda questão vincula-se à compreensão de como se constrói na nossa
sociabilidade, marcada pela convivência dialética entre arcaico e moderno, a naturalização de
barbáries cotidianas, em especial se envolvem aqueles que são, como canta Caetano Veloso em
Haiti, “pretos e quase pretos, tratados como pretos” e perversamente naturalizadas. Essa
sociabilidade, marcada pelo racismo e pelo sexismo nesse modo de produção, encontra na
sociedade brasileira caldo bastante fértil para sua disseminação. Nesse aspecto, refiro-me
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explicitamente às relações racistas, sexistas, homofóbicas e patriarcais que estruturam nossa
sociedade, reproduzem e amplificam desigualdades estruturais.
Por fim, sinalizamos, a partir da compreensão que as políticas públicas de uma forma
geral, crescentemente orientam-se para reforçar a perspectiva de criminalização e de
estigmatização racializada e generificada da pobreza, que a noção de militarização deve ser
apreendida não apenas nas manifestações das ações no “setor” da segurança pública, mas na
convergência de ações estatais em diferentes campos. É com base nessas premissas,
fundamentadas com limites espaciais de um artigo, que pensamos tais dinâmicas sobre as
mulheres em questão.
Explicitamos o quanto tempos presentes explicitam, sem maquiagem, a faceta de morte
dessa sociabilidade. E, ainda, o quanto a construção dos racismos, dos sexismos e do elitismo
classista na modernidade se constituem como projetos estruturadores daquilo que define quem
tem direito ao quê, se, aonde, quando e como infringindo basicamente, no direito à vida, à
existência no mundo moderno.
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Tatiana Dahmer Pereira
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