DOI 10.34019/1980-8518.2022.v22.37121
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 22, n.2, p. 494-511, jul. / dez. 2022 ISSN 1980-8518
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Trabalho alienado na era das tecnologias
digitais no contexto da Covid-19
Alienation work in the age of digital technologies in the context of Covid-19
Angélica Luiza Silva Bezerra*
Milena Gomes de Medeiros **
Resumo: O artigo versa sobre os aspectos
contemporâneos do trabalho alienado na era das
tecnologias digitais no contexto da Covid-19.
Como procedimento metodológico, utilizou-se
uma revisão bibliográfica, com o auxílio de
alguns dados estatísticos, para evidenciar a
problematização das contradições advindas da
desestruturação do trabalho no Brasil. A
pandemia de Covid-19 tem demonstrado um
processo prolongado das contrarreformas, que
desnudou o drama da classe trabalhadora
destituída de proteção. Assim, a precariedade
que se estende e se universaliza, visivelmente
percebida no trabalho alienado, na era das
tecnologias digitais, não se deve apenas à
pandemia, mas ao movimento dos processos de
reestruturação do mundo do trabalho desde a
década de 1970, com a ativação da crise
estrutural do capital. Deste modo, o contexto
pandêmico apenas antecipa o que era uma
tendência: a ampliação do trabalho alienado sob
a gestão das tecnologias digitais.
Palavras-chaves: trabalho; alienação;
tecnologias digitais; Covid-19.
Abstract: The article deals with contemporary
aspects of alienated work in the era of digital
technologies in the context of Covid-19. From
the point of view of methodological procedure,
a bibliographic review on the subject was used,
with the help of some statistical data to
problematize the contradictions and expressions
posed by the capital vs. work relationship. It can
be concluded that the destruction and violation
in the field of labor and rights in Brazil, before
and after the Covid-19 pandemic, has
demonstrated a prolonged process of counter-
reforms, which has exposed the drama of the
unprotected working class. Precariousness
extends and becomes universal in the era of
digital technologies; although they are not due
to the pandemic, but to the movement of the
restructuring processes in the world of work
since the 1970s, with the activation of the
structural crisis of capital. In this way, the
pandemic context only anticipates what was
already a trend: the expansion of alienated work
under the management of digital technologies.
Keywords: work; alienation; digital
technologies; Covid-19.
Recebido em: 23/02/2022
Aprovado em: 29/06/2022
* Assistente Social. Doutora em Serviço Social. Docente do curso de Serviço Social Campus Arapiraca/Unidade
Palmeira dos Índios da Universidade Federal de Alagoas. (UFAL, Palmeira dos Índios, Brasil.
** Assistente Social. Doutora em Serviço Social. Docente do curso de Serviço Social da Universidade Federal de
Alagoas. (UFAL, Maceió, Brasil).
Trabalho alienado na era das tecnologias digitais no contexto da Covid-19
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Introdução
O artigo aborda alguns aspectos contemporâneos do trabalho alienado
1
na era das
tecnologias digitais, intensificado diante da crise estrutural do capital no contexto da Covid-19,
trazendo implicações deletérias para os/as trabalhadores/as, com a intensificação da exploração.
Do ponto de vista dos procedimentos metodológicos, utilizou-se uma revisão bibliográfica de
natureza quali-quantitativa sobre a temática, recorrendo-se a alguns dados estatísticos para
demonstrar a problematização das contradições e expressões postas pela relação capital x
trabalho na atualidade pandêmica. As implicações deste processo devem ser apreendidas sob
uma perspectiva crítica, aliada ao compromisso teórico-metodológico e ético-político, na
direção do desvelamento sócio-histórico da realidade social. Nessa direção, buscou-se
exemplificar os discursos e ações que fortalecem a exploração e a precarização do trabalho
alienado na era das tecnologias digitais.
Sobre o trabalho alienado, retomamos a teoria social de Marx ao trazer para a discussão
os fundamentos deste tipo de trabalho, que torna a relação do trabalhador de forma externa com
a natureza e consigo mesmo. Retomando o pensamento de Marx, száros destaca: “O
trabalho, que deveria ser uma propriedade interna, ativa, do homem, se torna exterior ao
trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser [...]” (MÉSZÁROS, 2006:146). Nos Manuscritos
Econômicos-Filosóficos, Marx (2006) indaga em que consiste a alienação do trabalho:
Em primeiro lugar, o trabalho é exterior ao trabalho, ou seja, não pertence à
sua característica; portanto, ele não se afirma no trabalho, mas nega-se a si
mesmo, não sente bem, mas infeliz, não desenvolve livremente as energias
físicas e mentais, mas esgota-se fisicamente e arruína o espírito. Por
conseguinte, o trabalhador se sente em si fora do trabalho, enquanto no
trabalho se sente fora de si. Assim, o seu trabalho não é voluntário, mas
imposto, é trabalho forçado. Não constitui a satisfação de uma necessidade,
mas apenas um meio de satisfazer outras necessidades. [...] finalmente, a
exteriorização do trabalho para o trabalhador transparece no fato de que ele
não é o seu trabalho, mas o de outro, no fato de que não lhe pertence, de que
no trabalho ele não pertence a si mesmo, mas a outro. (MARX, 2006:114)
Particular ao modo de produção capitalista, o trabalho alienado, sob as determinações
da imanente divisão do trabalho e da propriedade privada, evidencia a reificação humana ao
tornar a força de trabalho mercadoria e mecanizada conforme as necessidades do sistema do
capital, em que toda a produção torna-se estranha ao trabalhador e que o domina. Como
exemplifica Marx (2006), “[...] a existência do trabalhador torna-se reduzida às mesmas
1
A alienação é um fenômeno social que traz uma deformação da vida humana. Para Lukács (1981): “Em um certo
sentido se poderia dizer que toda a história da humanidade, a partir de um determinado nível da divisão do trabalho
(talvez já daquela da escravidão), é também a história da alienação humana. Assim, esta última tem objetivamente
uma continuidade histórica” (1981:11).
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condições que a existência de qualquer outra mercadoria” (MARX, 2006:66). Esta realidade só
aprofundou os antagonismos do sistema e impôs para o conjunto da humanidade uma das
expressões mais evidentes da contradição capitalista, que é a robotização da vida humana,
proliferada inclusive na era das tecnologias digitais mediante a intensificação da exploração do
trabalho humano, com o acirramento da concorrência e competitividade.
Assim, a escolha pela discussão é proveniente da apreensão do conhecimento no campo
da objetividade e subjetividade das repercussões deletérias, que o trabalho, na sua forma
alienada, tem se expressado pela via das tecnologias digitais, num contexto em que a pandemia
causada pelo novo Coronavírus Sars-CoV-2 intensificou no mundo do trabalho transformações
sem precedentes, atingindo toda a classe trabalhadora de formas diferenciadas, com o
acirramento das expressões da questão social sobre o desemprego, a pobreza, a fome, o trabalho
informal e a precarização das condições de vida e de trabalho.
No Brasil, a crise sanitária provocada pela atual pandemia, agravou as principais
características da crise estrutural do capital, sobretudo no aumento do desemprego, com
alterações profundas na regulação pública de proteção ao trabalho e dos direitos em todos os
níveis.
A partir da análise de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
sobre o mercado de trabalho no período pré e durante pandemia, da Rede Brasileira de Pesquisa
em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (RBPSSAN)/2020, da pesquisa sobre a
realidade do acesso as tecnologias digitais/2020, além do estudo da literatura pertinente, este
artigo aborda três dimensões: a primeira, implícita na introdução, contempla o objetivo das
discussões, os procedimentos metodológicos e a exposição do artigo; a segunda apresenta um
breve panorama sobre o contexto de crise sanitária e os rebatimentos sobre o trabalho alienado;
e a terceira trata do teletrabalho e das novas determinações do trabalho no contexto da
pandemia, sinalizando a intensificação da agenda ultra neoliberal nas últimas décadas.
Cabe considerar que a crise sanitária que potencializou, ainda mais, a frágil estrutura do
trabalho no Brasil, intensificando a alienação sob formas objetivas e subjetivas postas pelas
tecnologias digitais; atingiu, de forma diversa, a classe trabalhadora, quando se pensa nos níveis
de ocupação/desocupação e informalidade, como veremos no artigo.
Os termos da questão
O mundo foi surpreendido, em 2020, pela pandemia da Covid-19, que já dizimou mais
de 2.917.316 de pessoas. No Brasil, já se somam mais de 391.936 mortes. que ressaltar-se
que a pandemia, acirrada pela crise estrutural do capital num contexto de hegemonia do ultra
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neoliberalismo e do capitalismo financeirizado, trouxe, como consequência, uma profunda
recessão econômica e o aumento do desemprego e da desigualdade social. Ademais, esse
contexto pandêmico tem desafiado a sociedade, de um modo geral, e os trabalhadores, de forma
particular, quando se observam as acirradas mudanças nas suas condições de vida e de trabalho.
Por isso, pensar essa realidade num momento em que se exacerba a crise estrutural do capital
em suas expressões políticas, cultural, ética e sanitária, que cresce em seu caráter ultraliberal,
ultraconservador e desumano, significa dar-se conta de que se vivencia um ciclo em que se
perdem direitos e crescem vertiginosamente desproteções e as ameaças à vida, representadas
pelo coronavírus e pela fome, escancarando a desigualdade da sociedade brasileira, fruto das
contradições de um capitalismo em processo permanente de reestruturação produtiva, dirigido
sob a lógica das finanças sob a perspectiva do controle do capital sobre o trabalho.
Cabe explicitar que a reestruturação produtiva do capital não se restringe meramente às
inovações tecnológico-organizativas, mas se estende às inovações sociometabólicas: a
reestruturação da produção, acompanhada por mudanças legais, regulatórias e políticas
regressivas, transformou os padrões de emprego na maioria dos países e facilitou a imposição
de restrições aos salários, subsídios, benefícios, direitos sociais e outras proteções
extramercado, induzidas sob os sistemas de acumulação anteriores. Essas transformações
tecnológicas, econômicas, legais e políticas reduziram drasticamente o espaço para a resistência
contra o capitalismo ultra neoliberal. Esses elementos sinalizam mudanças, tanto no âmbito da
produção como na organização e gestão da força de trabalho, além das (re)funcionalizações do
papel do Estado e de suas estratégias de resposta à reprodução da classe trabalhadora.
Nesse sentido, a crise passa a ser enfrentada com a retração da intervenção do Estado
na regulação da economia, com o incentivo à iniciativa privada, além da redução no campo das
políticas sociais. Assim, cabe ao Estado: implementar a disciplina fiscal; a reforma tributária; a
redução dos gastos públicos e a abertura do mercado. Nesta direção, uma das funções do Estado
é manter a sua estrutura corretiva compatível com os parâmetros estruturais do capital como
modo de controle sociometabólico, atuando, na maioria das vezes, como pré-condição para o
funcionamento do sistema do capital. De acordo com Mészáros: “Marx compara ‘a força
pública organizada, o poder do Estado’ da sociedade burguesa a uma maquina política que
‘perpetua pela força a escravidão social dos produtores de riqueza pelos seus apropriadores, a
dominação econômica do capital sobre o trabalho’” (MÉSZÁROS, 2002:576. Grifos do autor).
Hoje, sua presença está condicionada aos processos de privatização e liberalização comercial.
Assim, é direcionado a reorganizar suas funções sob os influxos macroeconômicos ultra
neoliberais, anunciando uma nova fase do imperialismo/oligárquico, sob a regência do capital
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financeiro internacional, em que novas maneiras de acumulação são articuladas (HARVEY,
2007) às antigas formas de trabalho e sofisticadas tecnologias, com o auxílio de uma mão de
obra cada vez mais barata, precária e baseada em regimes de trabalhos mais flexíveis,
encontrados na maioria dos periféricos de economia dependente.
Mészáros (2002), em suas produções, vinha explicitando que o capitalismo
contemporâneo é globalizante e seu sociometabolismo evidencia formas mais bárbaras de
produção e reprodução social. Nesse contexto, a pandemia de Covid-19 trouxe a intensificação
da exploração do trabalho, acirrando as expressões da questão social com o crescimento do
desemprego, da informalização, da precarização do trabalho e da regressão dos direitos
conquistados pela classe trabalhadora. Assim,
[...] no início de 2020, a pandemia encontrou o país em meio a uma profunda
crise, caminhando para o retorno ao mapa da fome, com gastos públicos
congelados e, consequentemente, mais precarização das políticas sociais e
privatização de serviços, com uma reforma da Previdência que aniquila
direitos do trabalho. (YAZBEK, BRAVO, et al, 2021:07)
Se considerarmos que cerca 8,13 milhões foi o total de vagas de trabalho fechadas no
Brasil nos primeiros nove meses de pandemia, e que os mais afetados num primeiro momento
foram os trabalhadores informais como vendedores ambulantes, entregadores e motoristas de
aplicativos , esse movimento expôs à maior vulnerabilidade uma categoria que vinha
crescendo no Brasil desde a recessão de 2014 a 2016. Pois, das mais de 8 milhões de vagas
perdidas nos nove primeiros meses de pandemia, 4,6 milhões (56,5%) eram informais. A taxa
de informalidade antes da crise era de cerca de 40%
2
.
Se observada a tabela 01 abaixo, que apresenta a taxa de desocupação no Brasil de 2012
a 2020, é possível ver um crescimento pujante em que o processo de desproteção se amplia em
larga escala. Esse cenário do mercado de trabalho cujos indicadores sinalizam para a
degradação, nos últimos anos, é, em grande parte decorrente de um intenso processo vinculado
aos problemas econômicos advindos da nova dinâmica instaurada após 2016 com o governo de
Michel Temer e as contrarreformas, dentre elas: a Lei da Terceirização (n.13.429/2017) e, em
2017, a Lei da Reforma Trabalhista (n.13.467/2017), que representou um dos maiores
retrocessos do sistema de proteção do trabalho.
2
Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2021/01/28/O-emprego-no-Brasil-durante-a-
pandemia-em-3-pontos. Acesso em 27/04/2021.
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Tabela 1- Taxas de desocupação nos trimestres selecionados no período 2012 - 2019 (em %)
Trimestre
2012
2013
2014
2015
2016
2017
2018
2019
2020
1º trimestre
7,9
8,0
7,2
7,9
10,9
13,7
13,1
12,7
12.1
4º trimestre
6,9
6,2
6,5
8,9
12,0
11,8
11,6
11,0
13.3*
Fonte: BRIDI, 2020/IBGE-Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua.
* Segundo semestre de 2020.
Cabe considerar, ainda, que a ampliação da desproteção em larga escala ocorre em uma
sociedade marcada por profundas desigualdades de classe, raça/etnia e gênero. Assim sendo,
supostamente, fica claro que a crise sanitária não vem atingindo a todos da mesma proporção e
forma, pois os segmentos mais pauperizados da classe trabalhadora estão sendo os mais
impactados; os que, invariavelmente, pagarão com a própria vida, ou pela fome e/ou violência
ou devido à contaminação pelo vírus.
Por isso, é factível dizer que,
[..] o avanço da pandemia do novo coronavírus, a covid-19, denuncia a
superficialidade e o mito do argumento “todos estamos juntos, pois o vírus é
democrático e atinge todas as classes sociais” ao evidenciar as condições
objetivas de vida na sociedade brasileira, desvelando facetas da violência
estrutural. (YAZBEK e BRAVO, et al, 2021, p. 08)
Para constar a deterioração de vida dos brasileiros no contexto pandêmico, a pesquisa,
realizada em 2.180 domicílios das áreas urbanas e rurais nas cinco regiões do país, pela Rede
Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (RBPSSAN), no
período de 5 a 24 de dezembro de 2020, mostra que quase 116,8 milhões de brasileiros não se
alimentam como deveriam, com qualidade e em quantidade suficiente. Segundo a pesquisa, a
insegurança alimentar cresceu em todo país no ano de 2020, e as desigualdades regionais
seguem acentuadas.
Nessa contextualização, em uma realidade marcada pelo comando de um governo de
extrema direita, uma política de austeridade fiscal e de contrarreformas do Estado, em que os
efeitos da Covid-19 foram ignorados e acabaram agravados pelas medidas de ajuste fiscal, a
disputa pelo fundo público passou a ocupar lugar central. No campo dessas medidas, vê-se que
desde 2016 estava em curso um Novo Regime Fiscal (NRF), determinado pela Emenda
Constitucional (EC) 95, que, entre outras retrações, limita por 20 anos os gastos correntes do
governo com as políticas sociais; no ajuste fiscal, desde 1993, têm sido utilizados instrumentos
de desvinculações para retirar recursos exclusivos da seguridade social; e no eixo da
Desvinculação de Recursos da União (DRU), que passou a vigorar a partir do ano 2000, a EC
93 prorroga a DRU até 31 de dezembro de 2023 e amplia de 20% para 30% o percentual das
receitas de tributos federais que podem ser livremente utilizadas (SALVADOR, 2020).
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Ressalte-se que a captura de recursos para o pagamento de juros e amortização da dívida
pública está diretamente relacionado à financeirização da riqueza e às mudanças na proteção
social no capitalismo contemporâneo, que, por sua vez, passam a disputar cada vez mais
recursos do fundo público. Para tanto,
[...] a EC 95 conseguiu viabilizar o congelamento das despesas primárias e
priorizar o pagamento das despesas financeiras com juros, encargos e
amortização da dívida pública com primazia no orçamento público. Enquanto
isso, o orçamento fiscal e da seguridade social apresentou um crescimento real
de somente 2,6% acima do IPCA. No período de 2016 a 2019, as despesas
com juros e encargos da dívida pública cresceram 8,5 vezes mais.
(SALVADOR, 2020:06)
Em meio às prioridades dadas ao capital, cabe lembrar que o governo editou 35 Medidas
Provisórias (MP) que tratam de ações para o enfrentamento da emergência de saúde pública,
em que a MP 929 permitia o governo ampliar os recursos para o Programa Bolsa Família (PBF)
com “autorização de gastos de até R$ 3,04 bilhões” com objetivo de “garantir a segurança
alimentar das famílias em condições de pobreza e extrema pobreza de forma mais rápida e
eficaz. Contudo, o nível de execução dos recursos foi de apenas R$ 369,29 milhões, ou seja,
12,16%” (SALVADOR, 2020:10-13).
Em contraposição aos questionamentos desses valores, deve-se lembrar do valor
destinado pelo fundo público aos rentistas, que foi 40,22% superior ao montante do orçamento
destinado ao combate da pandemia do Covid-19 (R$ 165,89 bilhões), revelando as prioridades
no orçamento público brasileiro.
Se considerarmos que o trabalho constitui um dos eixos estruturais da sociabilidade, e
que este foi atingido duramente pela crise do capital; e que nessa conjuntura, o mesmo tem se
expressado ainda mais alienado com a captura das determinações de um sistema perverso
que torna a força de trabalho humana em mercadoria cada vez mais barata , o que se coloca
para o destino da humanidade é um aumento incontrolável da exploração do homem pelo
homem sob a regência e domínio do sistema do capital. Sob tais circunstâncias, os antagonismos
de classes se agravam, pois as relações de trabalho tornam o homem cada vez mais alienado do
produto do seu trabalho pela valorização do capital em detrimento das reais necessidades da
humanidade. Esta realidade condiciona a subordinação do trabalho ao capital em que: “O
trabalhador não tem apenas de lutar pelos meios físicos de subsistência; deve ainda lutar por
alcançar trabalho, isto é, pela possibilidade e pelos meios de realizar a sua atividade” (MARX,
2006:67).
Atualmente, essas possibilidades e os meios para realizar a sua atividade são alterados
pela necessidade de readaptação do sistema do capital. Mediante a isso, a competitividade dos
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trabalhadores é ainda mais acelerada e com isso baixa o preço dos salários, ocorrendo ainda
mais o ajustamento do trabalho às determinações do sistema. O trabalhador neste processo
vende sua própria humanidade num cenário em que vida e trabalho se confundem na luta pela
sobrevivência. Assim, o trabalhador é aperfeiçoado pelo progresso tecnológico, enquanto que
o homem é degradado e esvaziado de sua condição humana para servir a sua vida privada ao
processo produtivo ou de serviços. Entre o trabalho e a vida privada, o tempo para o seu trabalho
torna-se ininterrupto mediante as necessidades de valorização do sistema do capital.
Deste modo, só reafirmamos as indicações de Marx: “Com a valorização do mundo das
coisas, aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens” (MARX,
2006:111). Se para Marx o trabalho na época da primeira revolução industrial é um martírio,
imagine com os novos modelos de trabalho, como é o caso do home office. Para Marx, o
trabalhador “[...] não se afirma no trabalho, mas nega-se a si mesmo, não se sente bem, mas,
infeliz, não desenvolve livremente as energias físicas e mentais, mas esgota-se fisicamente e
arruína o espírito. Por conseguinte, o trabalhador se sente em si fora do trabalho, enquanto
no trabalho se sente fora de si” (MARX, 2006:114).
Nesta perspectiva, as tecnologias digitais vêm ao longo dos anos se destacando em todo
o mundo como umas das formas de diminuir custos no setor produtivo e dos serviços. Este tipo
de modalidade de trabalho ganhou destaque no contexto pandêmico do século XXI, mediante
as necessidades prementes em manter as atividades laborais e, ao mesmo tempo, manter o
isolamento e o distanciamento social para o controle da disseminação do novo Coronavírus
SARS-CoV-2. Assim, o trabalho remoto passou a ser uma das formas de trabalho que
potencializou uma maior interseção de forma digital na produtividade, além de diminuir tempo
e reduzir custo. Conforme a Agência Brasil
3
, em novembro de 2020 houve uma diminuição
nesta modalidade de trabalho. Apesar disso, o Brasil contabiliza cerca de 8,25 milhões de
pessoas que trabalham de forma remota. O setor formal continua predominando no teletrabalho,
contabilizando 6,2 milhões de pessoas, e o setor informal cerca de 1,1 milhão de pessoas.
As diferentes modalidades de trabalho inseridas na divisão social e técnica do trabalho
demonstram a intensificação da subordinação do trabalhador. Surgem parecendo ser algo
benéfico ao trabalhador por ter uma maior flexibilidade na jornada de trabalho e ter uma maior
interação entre empregado e empregador.
3
Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2021-02/numero-de-trabalhadores-em-home-
office-diminuiu-em-novembro-de-
020#:~:text=Ao%20todo%2C%207%2C3%20milh%C3%B5es%20trabalhavam%20remotamente%20no%20per
%C3%ADodo&text=O%20percentual%20de%20pessoas%20em,em%20rela%C3%A7%C3%A3o%20ao%20m
%C3%AAs%20anterior. Acesso: 01. Maio. 2021.
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Dentre os novos modelos para o trabalho, o que mais está em evidência na atualidade é
o que chamamos de Home Offece ou teletrabalho, previsto na lei Nº 13.467, de 13 de julho de
2017, que adequa a legislação as novas relações de trabalho. Este novo modelo possibilita ao
trabalhador executar suas atividades fora do ambiente de trabalho, mas é diferente do trabalho
externo e precisa constar em contrato tal modalidade. Essa informação deve conter quem terá a
responsabilidade pela aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos
e da infraestrutura necessária à prestação do trabalho remoto, bem como ao reembolso de
despesas arcadas pelo empregado.
O teletrabalho, por se tratar de um trabalho flexível, pode permitir uma maior
comodidade ao trabalhador e está sendo bem aceito por uma maior parte dos profissionais. A
nosso ver, isso só reafirma a intensificação do caráter místico da mercadoria, em que o produto
daquela mercadoria, seja na produção ou nos serviços, exige uma maior capacidade de
desenvolvimento intelectual e manejo de tecnologias cada vez mais sofisticadas e adequadas às
necessidades do mercado. Muitas vezes não aparece na forma social desta modalidade de
trabalho a intensa exploração com um dispêndio da força de trabalho ainda maior. Toda
atividade humana sob as condições do trabalho alienado é também “[...] dispêndio de cérebro,
nervos, músculos, sentidos etc. humanos” (MARX, 1983:70). Portanto, este trabalho também
adquire uma forma social, em que homens e mulheres trabalham uns para os outros por meio
da tecnologia, mas no qual não é eliminada a exploração originária do capitalismo, que agora
se apresenta redimensionada sob novas condicionalidades e normas.
Destarte, a alienação a que nos referimos atinge todas as formas de consciência, o que
passa a forjar uma cultura que se espraia na população. É nesse contexto que as políticas sociais,
o trabalho e os direitos experimentam uma maior intensificação da mercantilização,
desestruturação e privatização, que têm se expressado nos sucessivos cortes orçamentários.
Assim,
A política alienante do capital quer impor uma nova cultura, naturalizando um
“novo normal” que não encontra sentido nem mais na qualificação da força de
trabalho. Afinal, em um mercado de trabalho cada vez mais desestruturado,
com cerca de 27 milhões de pessoas, que, segundo o IBGE, não estão
trabalhando nem procuraram emprego no último período, com crescente
número de desempregados e subempregados, com mais de 50% da força de
trabalho inserida no mercado informal, “uberizados”, terceirizados ou
lançados à própria sorte no mercado do empreendedorismo liberal, parece não
ter sentido investir em formação. (FARAGE, 2021:49-50)
Sob tais problematizações, iremos desenvolver a temática da alienação do trabalho sob
o teletrabalho influenciado pelas tecnologias digitais dessa nova modalidade. Com isso, nosso
interesse é refletir sobre as mudanças no chamado mundo do trabalho, que recoloca em
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evidência o fetiche cada vez maior na produção e nos serviços com uma roupagem de vantagem
para alguns trabalhadores.
O teletrabalho e as novas determinações do trabalho
Até os anos 1990, o trabalho flexibilizado, temporário e a domicílio eram vistos como
algo inadequado para o emprego, entendido como informal e vulnerável. Todavia, com o
desenvolvimento das próprias forças produtivas do trabalho no contexto tecnológico e a nova
fase do desemprego, novas modalidades de ocupação começam a surgir e deixam de ser
modalidades desusadas e ocupam o centro da intervenção dos Organismos Internacionais, como
é o caso da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que passa a investir em convenções
e produções que buscam estrategicamente minorar os efeitos do desemprego com
normatizações para a terceirização, o trabalho por conta própria e eliminar qualquer tipo de
discriminação entre emprego e ocupação. Neste sentido, o trabalho fora das dependências da
empresa ou da instituição começa a ganhar expressividade no século XXI.
O ano de 2020 foi o período em que foi intensificado o avanço das tecnologias de
comunicação, sobretudo pelo investimento no trabalho remoto ou teletrabalho. A Lei de
07/2009, que aprova a revisão do código de trabalho, destaca no seu artigo 165º que o
teletrabalho é considerado “[...] prestação laboral realizada com subordinação jurídica,
habitualmente fora da empresa e através do recurso a tecnologias de informação e de
comunicação” (BRASIL, 2009:56). Por se tratar de um trabalho fora das dependências da
empresa, a mesma lei também garante no seu artigo 170º a privacidade do trabalhador sob o
regime do teletrabalho, no qual o empregador deve respeitar a hora de descanso e o repouso da
família, bem como proporcionar boas condições de trabalho tanto fisicamente quanto
psicologicamente.
A ampliação do trabalho remoto é uma tendência, pois muitos brasileiros ainda não
possuem uma estrutura adequada para a sua inserção nesta nova modalidade de trabalho.
Segundo a pesquisa Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) Domicílios de 2018, o
país tem cerca de 4,5 milhões de brasileiros sem acesso à internet banda larga; a maior parte
das famílias pobres, das classes D (famílias que possuem os rendimentos entre dois e quatro
salários mínimos) e E (famílias com rendimentos de no máximo dois salários mínimos), cerca
de 85%, quando acessam a internet, o fazem pelo celular. De modo que 50% dos domicílios da
área rural não possuem acesso à internet. Além disso, 38% das casas o possuem acesso à
internet; 58% das casas não têm computador no Brasil e 59% das pessoas das chamadas classes
D e E não navegam na internet. Portanto, a nova era das tecnologias digitais reafirma a
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contradição da sociedade capitalista, na qual nem todos conseguirão ser absorvidos pela
realidade tecnológica das transformações do mundo do trabalho, agravando ainda mais os
números do desemprego. no contexto pandêmico, cerca de 12,9 milhões de pessoas estão
desempregadas, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de
2020, além de 29 milhões de trabalhadores informais.
Enquanto alguns trabalhadores se adaptam às tecnologias digitais, o trabalho remoto
está em potencial no Brasil naquelas ocupações que são permitidas e compatíveis com a
atividade desempenhada. A discussão sobre o trabalho remoto foi mais evidente no contexto
pandêmico, que trouxe uma série de mudanças em todos os setores da sociedade. Como bem
afirma Antunes (2020, p. 19): “não faltam evidências, então, sobre a direção que o capital e
seus gestores vêm indicando, inclusive nos setores em que o trabalho digital, on-line, se
desenvolve”. Algumas práticas se convertem em verdadeiros laboratórios de experimentação,
de que são exemplos o home office, o teletrabalho e, no universo educacional, o EAD (Ensino
à Distância).
De acordo com Antunes (2018), o período da indústria 4.0 inaugura uma fase do
“privilégio da servidão” que, combinando o arcaico e o moderno, tem impulsionado o período
da “uberização” do trabalho no mundo das plataformas digitais.
As denominadas indústrias 4.0 tratam-se de uma exponencial expansão das tecnologias
digitais, com suas consequências no espaço do trabalho. A denominada indústria 4.0 nasce na
Alemanha em 2011, e se extrai pelo mundo, em que as novas tecnologias de informação e
comunicação se desenvolvem rapidamente, provocando a intensificação de processos
produtivos automatizados em toda a cadeia produtiva controlada digitalmente. A principal
consequência para o mundo do trabalho será a ampliação do chamado trabalho morto, tendo no
aspecto digital o dominante e condutor de todo o processo produtivo, havendo uma redução do
trabalho vivo, que será substituído por ferramentas automatizadas e robotizadas sob o comando
informacional digital. Teremos mais robôs e máquinas digitais que invadirão a produção numa
nova fase de subsunção real do trabalho ao capital, inclusive no setor de serviços. Assim, um
novo quadro na divisão internacional do trabalho se fomentará, anunciando uma tragédia em
termos de desemprego, subempregos, condições desumanas de trabalho, nessa lógica
destrutiva, flexibilizada, desregulamentada, sem as devidas proteções ao trabalho.
Esta realidade só reafirma o que Farage já evidenciou:
[...] aliando-se as contrarreformas à perspectiva anticiência, fundamentalista,
miliciana e militarizada, impulsiona-se uma verdadeira onda regressiva que
impõe um retrocesso civilizatório pautado na perseguição, em fake news e no
autoritarismo, que recuperam elementos da particularidade social brasileira,
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como o colonialismo, a escravização, a europeização cultural, o machismo, o
sexismo e as opressões, de diferentes tipos. (FARAGE, 2021:53)
Cabe considerar que essa reconfiguração do mundo do trabalho, que tem por base as
inovações tecnológicas, abre um período de trabalho digital, teletrabalho, de expansão do
mundo dos autônomos, do processo de “pjotização”, de horistas através do trabalho
intermitente, criando-se, nos termos de Antunes (2018), o escravo digital.
Assim, a crise de saúde pública mundial provocada pela pandemia do novo coronavírus
antecipou o que era uma tendência nas adaptações das empresas para o trabalho remoto,
mediante a necessidade de cumprir as recomendações da Organização Mundial da Saúde
(OMS), com o distanciamento e isolamento social a fim de minorar a proliferação da doença.
Com isso, houve um empenho para um novo ajustamento do trabalho nos setores que não
puderam parar. Empresas e setores produtivos e dos serviços adaptaram suas atividades
presenciais e as transformaram em atividades digitais com o uso da tecnologia, criando
condições para uma maior experiência neste ramo ascendente. Na Carta de Conjuntura 47
do IPEA, os autores Góes, Martins e Nascimento evidenciam que, conforme as particularidades
do mercado de trabalho: “[...] O Brasil [...] possui, na média, um percentual de pessoas em
potencial de teletrabalho de cerca de 22,7%, que corresponde a 20,8 milhões de pessoas”
(GÓES, et al, 2020:1).
Cabe considerar que,
Entre oito e nove milhões de trabalhadores, tanto do setor público quanto do
privado, passaram a trabalhar na modalidade do teletrabalho (remoto/home
office) em suas residências. A pesquisa PNAD-Covid-19 revelou que, em
julho de 2020, em torno de 10% da população ocupada estava trabalhando
remotamente, e os indicadores variavam semana a semana, com o menor
patamar de 8,184 milhões na terceira semana de julho e o maior na primeira
semana de junho com quase nove milhões de pessoas trabalhando
remotamente, distribuídos desigualmente entre as diferentes regiões
brasileiras. A maior fração foi concentrada no Sudeste, com 13% da população
ocupada, e a menor fração (em torno de 4%), na Região Norte do país. (BRIDI
2020:151)
A propósito, o quadro 01, traz alguns dados sobre os afastamentos por ocupação,
Quadro 01 - Afastados do trabalho: por ocupação
Afastados do trabalho/ocupações
%
Empregados do setor público sem carteira assinada
17,4 %
Trabalhadores domésticos sem carteira assinada
14,2 %
Militares e servidores estatutários
13,9 %
Empregados do setor público com carteira assinada
11 %
Trabalhadores domésticos com carteira assinada
10 %
Empregados do setor privado sem carteira assinada
8,8 %
Conta-própria
7,5 %
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Afastados do trabalho/ocupações
%
Empregados do setor privado com carteira assinada
6,6 %
Empregadores
3,8 %
Trabalhadores familiares auxiliares
2,3 %
Fonte: BRIDI, 2020/PNAD-COVID-19/IBGE.
Cabe sinalizar que as pessoas que continuaram ocupadas também foram impactadas com
a queda da renda. Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/IBGE)
Covid-19 revelam “que os rendimentos médios habitualmente recebidos foram no valor de R$
2.320,24, enquanto os rendimentos médios efetivamente recebidos foram de R$ 1.898,86, ou
seja, somente 82% dos rendimentos habituais” (BRIDI, 2020:155). Desse modo, as maiores
quedas têm relação com o tipo de vínculo de trabalho, dado que as maiores perdas foram
registradas para os trabalhadores por conta própria e informais.
Mediante o momento de calamidade pública provocado pela crise sanitária do novo
coronavírus, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para monitorar as
transformações ocorridas no chamado mundo do trabalho, evidencia os dados experimentais da
PNAD Covid-19. Neste sentido, em recente pesquisa, o IBGE divulgou microdados sobre a
desocupação, renda, afastamentos, trabalho remoto e outros efeitos da pandemia no trabalho.
No que se refere à taxa de ocupação, o mês de setembro de 2020 chegou a 14 milhões de pessoas
em atividade laboral e 15,3 milhões de pessoas que desistiram de procurar trabalho, mediante
a pandemia ou por falta de trabalho em sua localidade.
Devido ao distanciamento social, são 2,7 milhões de pessoas afastadas do trabalho,
entre os trabalhadores por conta-própria e empregados do setor privado com carteira assinada.
A maior proporção de pessoas afastadas são os militares e os servidores estatutários. Em
novembro de 2020, a contagem dos trabalhadores que deixaram de receber remuneração somou
cerca de 879 mil pessoas. Para reduzir os níveis de desemprego, o investimento no trabalho
remoto foi incontestável, conforme a PNAD Covid-19 do IBGE, apontando que os números já
chegaram a 7,9 milhões. E destes dados, o nível de instrução de maior porcentagem em trabalho
remoto foi o nível superior completo e pós-graduação com 27,1 %; o de pessoas com curso
superior incompleto compatibilizou 4,4%, enquanto o das pessoas com fundamental completo
ao Médio incompleto foi de 0,9 %, seguido de 0,3 das pessoas sem instrução fundamental
completa. Tal panorama leva-nos a crer que o trabalho remoto, apesar de sua disseminação, foi
restrito a atividades específicas.
Trabalho alienado na era das tecnologias digitais no contexto da Covid-19
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O levantamento ''Juventudes e a Pandemia do Coronavírus
4
'', que entrevistou jovens de
todo o país, entre 15 e 31 de maio/2020, revelou que 28% dos jovens de 15 a 29 anos pensam
em deixar os estudos quando as escolas e universidades reabrirem, o que leva-nos a crer que,
mesmo antes da pandemia, a juventude enfrentava grandes desafios. Neste contexto, a taxa
média de desemprego entre a população de 18 a 24 anos de idade era de 27,1%, o que significa
mais que o dobro da taxa média de desemprego da população em geral, que era de 12,2%, de
acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A mesma pesquisa mostra que: o acesso à internet em computador durante o isolamento
é menor entre os jovens negros (54%) do que entre os brancos (78%); os mais jovens dependem
financeiramente da família 72% na faixa dos 15 aos 17 anos de idade; os mais velhos, por
sua vez, são mais independentes financeiramente 34% entre 18 e 24 anos de idade e 27%
entre 25 e 29 anos; 50% trabalhavam antes da pandemia, sendo 40% com trabalho remunerado
e carteira assinada; que a renda pessoal diminuiu com a pandemia para 33% dos jovens; e, por
fim, que a renda familiar caiu para 49%.
Assim, o teletrabalho tem se mostrado como uma alternativa para diversas empresas e
setores para não terem suas portas totalmente fechadas. Todavia, como diz a Lei Geral de
Acumulação Capitalista de Karl Marx, quanto mais avançam os meios para produzir e gerir
riquezas, mais ampliará a superpopulação relativa. Contudo, a modalidade de trabalho de forma
remota não pôde garantir que todos os trabalhadores ativos continuassem na produtividade.
Houve uma redução massiva de força de trabalho ativa.
O trabalho remoto na modalidade do teletrabalho confunde o ambiente da empresa e o
ambiente doméstico, fazendo prolongar o tempo do trabalho. Se na época de Marx a maquinaria
foi considerada o mais poderoso meio de elevar a produtividade do trabalho no setor da
produção, o que diremos da robótica e dos meios da tecnologia digitais nos setores em que são
possíveis de realização?
Para os trabalhadores que ainda permaneceram inseridos no campo da produção lhes
restou o sobretrabalho, sob condições ainda mais intensas, devido à articulação orgânica entre
a vida privada e o trabalho. Desse modo, a sobrecarga de tarefas condensadas em uma atividade
que somente o trabalho remoto foi capaz de intensificar, em alguns ramos da produção e dos
serviços, impulsionou novas habilidades e construiu novos nichos de produtividade, enquanto
4
[...] O Conselho Nacional da Juventude (CONJUVE), em parceria com Fundação Roberto Marinho, Rede
Conhecimento Social, Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), Em
Movimento, Visão Mundial, Mapa Educação e Porvir, lança a pesquisa Juventudes e a Pandemia do Coronavírus,
com o objetivo de produzir evidências para pautar e influenciar o debate público e a ação dos tomadores de decisão,
públicos e privados, na construção de políticas voltadas para a juventude.
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grandes massas de trabalhadores são desempregadas ou têm seus contratos de trabalhos
suspensos. Enquanto isso, a pandemia do novo coronavírus acelerou o processo de digitalização
e virtualização do mundo do trabalho, e, junto com os grandes conglomerados tecnológicos,
todo o serviço de mediação para o trabalho.
Destarte, a sutileza dos possíveis benefícios do teletrabalho oportuniza o agravamento
da exploração do trabalho, pois uma impossibilidade no equilíbrio entre a vida profissional
e pessoal, tendo em vista que os dois aspectos se confundem no processo de trabalho, em que
o tempo dos homens e das mulheres enquanto seres genéricos os priva de suas potencialidades,
porque seu tempo é destinado a aprimorar suas habilidades enquanto trabalhadores e
consequentemente para a valorização do sistema do capital. O trabalhador é, portanto, nada
mais que força de trabalho, e todo o seu tempo pertence à valorização do capital. O capital
usurpa o tempo necessário para o crescimento e desenvolvimento do homem e impulsiona o
trabalhador como mero meio de produção, na sua ânsia desmedida por lucro. Estes
antagonismos geradores de alienações se intensificam na proporção em que esta sociedade se
desenvolve.
Ademais, na pandemia, apesar da crise estrutural do capital, o sistema continua
acumulando, pois vários setores da produção não pararam. Enquanto isso, milhares de pessoas
sucumbem na pobreza e na fome, no cumprimento das bases que legitimam a Lei Geral da
Acumulação Capitalista. A manutenção do trabalho supérfluo, ou superpopulação relativa, e da
pobreza é mantida pela respectiva Lei que ocasiona uma acumulação de miséria correspondente
a acumulação de capital (MARX, 1984). Uma das tendências da valorização do capital é o
agravamento da questão social evidenciado no acirramento da pobreza, em especial da fome.
Deste modo, a nova modalidade de trabalho materializada no teletrabalho aprofunda o
esvaziamento do homem de si mesmo; porque ele é valorizado pela produção e o que
desempenha fora desta função fica à mercê da “caridade pública”. Resgatando um trecho da
Maquinaria e Grande Indústria de Marx (1984), podemos citar duas grandes repercussões sobre
o material humano com o advento do desenvolvimento da maquinaria, para ilustrar que a nova
estrutura de produção que temos hoje não eliminou tais características, mas as intensificou. A
saber: o prolongamento da jornada de trabalho e a intensificação da exploração do trabalho.
Na atualidade, após a reforma trabalhista, uma das modalidades atenienses que indicam
esse prolongamento e intensificação do trabalho -se pela introdução do contrato de trabalho
intermitente, que consiste: na prestação de serviços de forma não contínua; na terceirização
ampla e irrestrita, na medida em que a estende para todas as atividades da empresa; e na figura
do trabalhador autônomo exclusivo, que passou a permitir a contratação de trabalhadores
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autônomos de forma exclusiva e contínua, condições vedadas pela Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT) antes da reforma (BRIDI, 2020). De modo que, [...] a participação do trabalho
parcial e intermitente nesse resultado alcança 26,7% até maio de 2019. Contudo, as vagas
formais mantidas com tais contratos são ínfimas face à variação de arranjos semelhantes na
informalidade” (FILGUEIRA, 2019:38).
À vista disso, as desigualdades, em suas expressões, têm se estabelecido de várias formas
e intensidades. Com a pandemia de Covid-19, vemos o quão necessário e urgente são as
políticas de emprego e renda para se amenizar o fenômeno do pauperismo, que tem na sua
versão desumana, a fome, a mais expressiva e dura contradição do sistema capitalista, além de
parcelas de trabalhadores subempregados, terceirizados e informais que se avolumam.
Além disso, as dificuldades da população, no que se refere ao acesso à renda, aos
benefícios alimentares e aos serviços básicos, demonstram a necessidade da permanência e da
ampliação dos programas, projetos e benefícios sociais que confiram e assegurem uma ampla
proteção social. Nesta perspectiva, há a necessidade de se reafirmar a luta de classes, de forma
mais intensa, para que o trabalho, as políticas sociais e os direitos, ainda que permeados por
contradições, possam minorar as assimetrias sociais, preservando a vida e o trabalho em
detrimento dos lucros.
Considerações finais
Pelo exposto, é presumível que toda a desestruturação somada à violação dos direitos no
Brasil, antes e depois da pandemia de Covid-19, têm demonstrado, aos desavisados, que o
processo intenso e prolongado das contrarreformas submeteu o país a uma condição sem saída
imediata, na medida em que não apenas constrange, mas impede o Estado de adotar políticas
que possam construir alternativas para dinamizar a economia e criar políticas de emprego e
renda, o que permite antever-se o caos social.
Desse modo, fica claro que a pandemia antecipou o desnudo do drama da classe
trabalhadora destituída dos direitos sociais e do trabalho. Além de que as formas de trabalho
desprotegido, do ponto de vista do direito, se globalizaram; a precariedade se entendeu e se
universalizou; as formas de trabalho mercantilizadas tiveram um desnudamento, embora este
não se deva tão somente à pandemia, mas também ao movimento dos processos de
reestruturação do mundo do trabalho, ativados desde a crise estrutural do capital na década de
1970. Portanto, a necessidade imperiosa de fortalecer a regulação pública do trabalho é central
para minimizar as desigualdades e a precariedade das condições de vida e de trabalho na era
das tecnologias digitais.
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