DOI 10.34019/1980-8518.2022.v22.36413
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 22, n.1, p. 254-273, jan. / jun. 2022 ISSN 1980-8518
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Contribuições da teologia da libertação para a
reconceituação do Serviço Social
Contributions of Liberation Theology to the Reconceptualization
of Social Work
Guilherme Costa dos Reis*
José Fernando Siqueira da Silva**
Resumo: Este artigo teve por objetivo estudar a
presença e as contribuições da Teologia da
Libertação (TL) para a Reconceituação do
Serviço Social. Para isso, ele se divide em três
partes. A primeira aborda o contexto do
continente latino-americano, especificamente o
debate sobre as causas do subdesenvolvimento,
suas diversas interpretações. Posteriormente,
debate o surgimento e desenvolvimento da TL e
do movimento de Reconceituação. Por fim, a
última parte, destaca a influência da teologia
latina nos processos de renovação profissional
dos países do continente, com destaque para o
Brasil. Importante destacar que a renovação
crítica desenvolvida na Igreja e na profissão se
deu atrelada e motivada pela conjuntura
dependente e desigual do continente latino-
americano. Essas renovações se relacionaram e
a esquerda católica latina, representada por
grupos católicos e pela TL, contribuíram
decisivamente para a Reconceituação do
Serviço Social, formando profissionais e
estudantes, promovendo intercâmbio com os
movimentos sociais e apresentando uma grande
literatura crítica.
Palavras-chaves: América Latina; teologia da
libertação; serviço social
Abstract: This article aimed to study the
presence and contributions of Liberation
Theology (TL) to the Reconceptualization of
Social Work. For this, it is divided into three
parts. The first approaches the context of the
Latin American continent, specifically the
debate on the causes of underdevelopment, its
various interpretations. Later, it discusses the
emergence and development of TL and the
Reconceptualization movement. Finally, the last
part highlights the influence of Latin theology
on the processes of professional renewal of the
countries of the continent, especially Brazil. It
is important to highlight that the critical renewal
developed in the Church and in the profession
was tied and motivated by the dependent and
unequal conjuncture of the Latin American
continent. These renewals were related and the
Latin Catholic left, represented by Catholic
groups and TL, contributed decisively to the
Reconceptualization of Social Work, training
professionals and students, promoting exchange
with social movements, and presenting a great
critical literature.
Keywords: Latin America; liberation theology;
social work
Recebido em: 25/01/2022
Aprovado em: 06/06/2022
* Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Mestrando no Programa de
Pós-graduação em Serviço Social e Políticas Sociais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
** Doutor em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor Associado do
Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual Paulista UNESP-Franca. Professor colaborador do
Programa de Pós-graduação em Serviço Social e Políticas Sociais da Universidade Federal de São Paulo
(UNIFESP).
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Considerações iniciais
[...] reconhecer as trilhas teóricas e políticas construídas pela esquerda e a
trajetória teórica do marxismo na América Latina - aqui apenas indicadas - é
um grande desafio à pesquisa, ainda pendente, para aprofundar, no presente, a
leitura crítica do Movimento de Reconceituação do Serviço Social e seus
desdobramentos (IAMAMOTO; SANTOS, 2021, p.42).
A Teologia da Libertação, enquanto uma formulação crítica latino-americana, compõe
essas trilhas teóricas que influenciaram a Reconceituação do Serviço Social na América Latina.
O aprofundamento sistemático desse importante movimento católico, a reflexão acerca de suas
fundamentações, a sua relação com o marxismo, dentre outras questões, são de fundamental
importância para entender o diálogo entre a profissão e a esquerda católica nesse importante
período histórico. Diálogo e aproximação que se constituíram no chão concreto latino-
americano, influenciados pela conjuntura social e política desta parte do Continente Americano,
cenário marcado por contradições e disputas em torno das razões do subdesenvolvimento e os
impactos do capitalismo na América Latina. É sob essas perspectivas que reafirmamos a
relevância do estudo sobre o Movimento de Reconceituação, que deixou um importante legado
para a profissão, em especial para o Serviço Social brasileiro e seu Projeto Ético-Político.
É a partir dessa fundamentação que se inscreve este presente estudo, que visa trazer de
maneira sintética as contribuições da Teologia da Libertação para a Reconceituação latino-
americana do Serviço Social. Este artigo é fruto de uma pesquisa bibliográfica, pesquisa que se
amparou em importantes referenciais das ciências sociais, da teologia e dos pesquisadores da
profissão. O resultado é uma articulação desses referenciais na tentativa de elucidar o objetivo
central do texto. Trata-se de pesquisa de mestrado, desenvolvida pelo primeiro autor deste artigo
com apoio do professor orientador (segundo autor), no Programa de Pós-graduação em
Serviço Social e Políticas Sociais da UNIFESP.
América Latina: imperialismo, subdesenvolvimento e dependência
O contexto que perpassa o processo de Reconceituação latino-americano do Serviço
Social é marcado pelo debate do que se convencionou caracterizar como subdesenvolvimento
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do continente latino-americano
1
. Esse processo não ocorreu isoladamente: foi travado no
contexto da guerra fria, da diversa resistência contra as ditaduras cívico-militares (armadas ou
não), dos projetos de desenvolvimento da região (tensionados pelo imperialismo norte-
americano, pelo nacional-desenvolvimentismo e pelas alternativas de ruptura revolucionária),
bem como por lutas sociais diversas (campesina, por igualdade de gênero, profundas alterações
socioculturais, entre outras), que aqueceram o processo de luta de classes na América Latina. É
nesse contexto que se insere o debate sobre a Teologia da Libertação (GUTIÉRREZ, 1984).
Sendo assim, é preciso, inicialmente, sumariar este processo, resgatando a observações
marxianas sobre a lei geral da acumulação capitalista, suas transformações na transição da era
concorrencial à monopólica, o imperialismo (sua marca explicitamente neocolonialista), bem
como o debate sobre as causas do subdesenvolvimento em sociedade dependentes
(FERNANDES, 1975).
Marx (2013), no capítulo 23 de O Capital, vai discorrer sobre a lei geral da acumulação
capitalista. O autor traz inicialmente a discussão acerca da composição orgânica do capital, a
qual possui um duplo sentido: valor (que apresenta dois níveis: capital constante e variável, ou
seja, o primeiro representando os investimentos do capital nos meios de produção e o segundo
nos investimentos a manutenção da força de trabalho); e matéria (que se divide em meios de
produção e força de trabalho). A composição orgânica se fundamenta no reinvestimento de parte
da mais-valia obtida no processo de valorização do capital, na forma constante e variável. Para
Marx, existe uma tendência geral do capitalismo em investir mais no capital constante (meios
de produção-tecnologia) em detrimento do capital variável (destinado à reprodução da força de
trabalho). Esse processo permite ao capital um aumento da produtividade e a redução da força
de trabalho (MARX, 2013, p. 835-870).
Os capitais adicionais formados no decorrer da acumulação normal [...]
servem preferencialmente como veículos para a exploração de novos inventos
e descobertas, ou aperfeiçoamentos industriais em geral. Com o tempo,
porém, também o velho capital chega ao momento em que se renova da cabeça
aos pés, troca de pele e renasce na configuração técnica aperfeiçoada, em que
uma massa menor de trabalho basta para pôr em movimento uma massa maior
de maquinaria e matérias-primas. Evidentemente, o decréscimo absoluto da
1
Como destaca José Paulo Netto (2005 e 1992), o termo reconceituação se refere a um movimento de perfil latino-
americano, vivido entre 1965-1975 (não exatamente), que se propôs a romper com o Serviço Social tradicional (de
perfil essencialmente doutrinário) e com o Serviço Social clássico (composto por certa sistematização científica).
Dialogou com alternativas desenvolvimentistas e aquelas situadas mais à esquerda, revelando, ao mesmo tempo,
limitações teóricas, forte militância e avanços importantes contra o conservadorismo na profissão na América
Latina. O termo renovação, por sua vez, diz respeito mais diretamente ao Serviço Social brasileiro. Essa renovação
significou a reedição do conservadorismo na profissão (expressos nos documentos de Arae de Teresópolis ou
nos estudos de Ana Augusta de Almeida), como também expressou experiências mais progressistas e críticas ao
tradicionalismo, como renovação crítica (a experiência construída na escola de Belo Horizonte, conhecida como
método BH).
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demanda de trabalho, que decorre necessariamente daí, torna-se tanto maior
quanto mais estejam acumulados, graças ao movimento centralizador, os
capitais submetidos a esse processo de renovação (MARX, 2013, p. 854).
Uma consequência desse processo é o impacto causado na vida da classe trabalhadora.
Os (as) trabalhadores (as) ficam reféns das necessidades da acumulação do capital, ou seja, eles
são expulsos ou absorvidos conforme essas necessidades. A priorização do investimento em
capital constante, como sinalizado, adensa o exército industrial de reserva e uma diversa
superpopulação relativa, que nada mais são do que os (as) trabalhadores (as) que excedem as
necessidades de produção, consequentemente ficando sem emprego ou em situação de
instabilidade, parcialmente ou esporadicamente empregados (as). Essa massa de força de
trabalho adicional, sobrante, cumpre um papel que ajuda a acumulação do capital na medida
em que ela serve para pressionar os trabalhadores empregados. No tempo de Marx, nas
condições do capitalismo inglês do século XIX, a superpopulação relativa dividiu-se em
flutuante (trabalhadores (as) que ora estão empregados ora não), latente (os (as) que transitavam
entre o campo e a cidade) e estagnada (os (as) que exerciam ocupações irregulares). Por fim,
também se encontra o lumpemproletariado, como esfera do pauperismo, ou o “sedimento mais
baixo da superpopulação relativa” (MARX, 2013, p. 719), composta por força de trabalho apta
ao trabalho (entre eles, órfãos, filhos de indigentes - força de trabalho sobrante que aumenta
com as crises e diminui com o incremento dos negócios – candidatos ao exército industrial de
reserva) e a fração o apta ao trabalho (degradados, maltrapilhos e incapacitados),
representando os setores mais pauperizados da sociedade. A identificação e a análise criteriosa
do perfil da superpopulação relativa nos dias de hoje e nas condições do capitalismo
dependente, exigiria um estudo meticuloso, atual e particular, que seguramente adensaria a
análise marxiana atualmente e reafirmaria a lei geral da acumulação capitalista.
Outra consequência deste processo de apropriação privada da riqueza socialmente
produzida, orientada pela lei geral da acumulação, é a centralização do capital (que não se
identifica com a concentração), ou seja, a dinâmica em que a concorrência entre os vários
capitais lugar à uma centralização em poucos capitais maiores, sem necessariamente
aumentar a massa geral da riqueza. A concorrência é disputada pelo barateamento do preço das
mercadorias, barateamento esse que se no processo de produção, especificamente no
aumento da produtividade, articulando mais-valia absoluta (obtida por meio da extensão da
jornada de trabalho) e relativa (ampliada alterando os meios de produção, sem necessariamente
aumentar as horas trabalhadas). Como visto, a produtividade está atrelada a esse processo
crescente de investimento no capital constante (MARX, 2013, p. 835-870).
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A luta concorrencial é travada por meio do barateamento das mercadorias. O
baixo preço das mercadorias depende, caeteris paribus, da produtividade do
trabalho, mas esta, por sua vez, depende da escala da produção. Os capitais
maiores derrotam, portanto, os menores. Recordemos, ademais, que com o
desenvolvimento do modo de produção capitalista cresce o volume mínimo
de capital individual requerido para conduzir um negócio sob condições
normais. Os capitais menores buscam, por isso, as esferas da produção das
quais a grande indústria se apoderou apenas esporádica ou incompletamente.
A concorrência aflora ali na proporção direta da quantidade e na proporção
inversa do tamanho dos capitais rivais. Ela termina sempre com a ruína de
muitos capitalistas menores, cujos capitais em parte passam às mãos do
vencedor, em parte se perdem (MARX, 2013, p.851).
Entretanto esse processo de centralização do capital será incrementado na fase
subsequente do capitalismo, a do capitalismo monopolista, aprofundando e reafirmando
aspectos já atuantes na fase concorrencial. Essa fase, também denominada de imperialismo, foi
objeto de estudo de Lenin (2010). O autor afirma que um dos principais traços dessa nova fase
do desenvolvimento e fortalecimento dos monopólios, previsto por Marx, levou a uma fusão
entre os capitais, os quais foram se constituindo enquanto monopólios. Esses grupos, dado a
sua força, tinham papel central nas economias e exerciam pressões para controlar os pequenos
capitais. Outra característica do capitalismo monopolista é a fusão do capital industrial com o
bancário, que deu origem ao capital financeiro. O sistema de crédito passa a ser crucial para o
desenvolvimento dos monopólios, consequentemente fazendo com que os bancos adquiram um
novo papel nesse cenário. Eles deixaram de exercer um papel essencialmente técnico e, por
meio da concessão de crédito, começaram a exercer influência e controlar processos nessa
lógica monopolista, fato que levou a essa fusão. Criou-se então um capital financeiro que,
seguindo a lógica de centralização, se fortaleceu enquanto uma oligarquia financeira, exercendo
grande influência nos processos da época (LENIN, 2010).
Outro importante marco do imperialismo é a exportação de capitais, a qual difere da
antiga exportação de mercadorias. Essa exportação de capitais se fundamenta sob a lógica de
que os países desenvolvidos encontram dificuldades para se valorizar dentro deles mesmos. Por
isso, buscam outros países onde seja mais lucrativo, onde a mão de obra, a terra e as matérias
sejam mais baratas. Tal exportação permite o aumento da lucratividade dos países
desenvolvidos, os deixam com vantagens frente aos subdesenvolvidos e favorece o
desenvolvimento do modo de produção capitalista em todos os países. Esse processo faz com
que os monopólios e as nações busquem uma partilha do mundo. Reedita-se a antiga partilha
colonial, como neocolonialismo, porém agora sob bases da exportação de capitais, processo de
extrema disputa entre as nações. Como destacado, a conquista do território permite o
desenvolvimento do capital do país, a busca por matérias primas e por força de trabalho baratas,
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enfraquece os seus concorrentes e reforça a lógica de monopólios. É diante desse processo, e
estruturalmente articulado a ele, que surgem as grandes guerras mundiais (LENIN, 2010).
Em síntese as principais características do imperialismo são:
1.a concentração da produção e do capital levada a um grau tão elevado
de desenvolvimento que criou os monopólios, os quais desempenham um
papel decisivo na vida econômica 2. a fusão do capital bancário com o capital
industrial e a criação, baseada nesse capital financeiro da oligarquia financeira
3. a exportação de capitais, diferentemente da exportação de mercadorias,
adquire uma importância particularmente grande 4. a formação de associações
internacionais monopolistas de capitalistas, que partilham o mundo entre si,
5. o termo da partilha territorial do mundo entre as potências capitalistas mais
importantes. O imperialismo é o capitalismo na fase de desenvolvimento em
que ganhou corpo a dominação dos monopólios e do capital financeiro,
adquiriu marcada importância a exportação de capitais, começou a
partilha do mundo pelos trusts internacionais e terminou a partilha de
toda a terra entre os países capitalistas mais importantes (LENIN, 2010,
p.88).
Essa fase do capitalismo teve fortes impactos nos países latino-americanos, os quais
sofreram as investidas imperialistas descritas acima. Florestan Fernandes (1975), vai discorrer
sobre a trajetória dependente dos países da América Latina e sua relação com o imperialismo.
Segundo o autor, essa relação dependente remonta aos tempos da colonização, onde o
mercantilismo realizou um saqueio das riquezas do continente, contribuindo para a acumulação
primitiva do capital. Esse processo se reorganizou e, mesmo com a independência política de
países do continente, foram mantidos os traços coloniais, ou seja, uma economia essencialmente
agromineira exportadora e a criação de uma elite nacional dependente, descomprometida com
o desenvolvimento nacional. Chega-se, então, a fase monopólica do capitalismo e a exportação
de capitais, processo que modernizou alguns países do continente, porém reafirmando seu papel
de exportadores de matérias primas baratas, reafirmando a dependência. Por fim a fase do
imperialismo total, processo que solidifica a dominação estrangeira no continente,
incorporando a financeirização, a comunicação, as tecnologias e outros. As consequências desse
processo são a manutenção e acentuação do pauperismo no continente, como estratégia de
manter a lei geral da acumulação; a criação de uma burguesia que se vincula aos interesses
internacionais; e um desenvolvimento desigual e combinado (OLIVEIRA, 2003, p. 121-150),
por meio de uma modernização conservadora realizada pela “via colonial” e hipertardia
(CHASIN, 2000)
2
.
2
O uso das terminologias “via colonial” e hipertardia, foi proposto por José Chasin para pensar o caso brasileiro.
Embora estas características possam ser estendidas à realidade latino-americana, cuidados são necessários no
sentido de apanhar as particularidades dos países considerados. Ademais, é preciso ressaltar que muitas nações na
América Latina não viveram surtos industriais (como boa parte dos países centro-americanos, do Caribe e parte
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Marini (2013) também vai contribuir para a análise dessa relação dependente do
continente latino-americano. Para o autor, o imperialismo tinha como função “subtrair
abertamente uma parte da mais-valia criada dentro de cada economia nacional, o que aumenta
a concentração do capital nas economias centrais e alimenta o processo de expansão
imperialista” (MARINI, 2013, p.49). Diferente dos países centrais, a mais-valia dos países da
América Latina se realiza nessa relação comercial de exportação, onde, em alguns países essa
relação está na mão do capital estrangeiro, reforçando a dependência do continente. Tal
processo leva as classes dominantes locais a operar a superexploração da força de trabalho, ou
seja, o pagamento dela abaixo do valor necessário para sua reprodução como força de trabalho,
ampliando as taxas de mais-valia absoluta e ou relativa e compensando as perdas das classes
dominantes locais no mercado internacional (MARINI, 1973). Outros países que conseguiram
absorver parte da mais-valia e apostar numa indústria local também vão cair na lógica da
dependência. A aposta de um desenvolvimento autônomo não resistiu ao assédio do capital
estrangeiro, o qual entrou por meio de investimentos diretos e novas tecnologias (muitas delas
obsoletas nos países centrais). Um último e importante destaque levantado pelo autor é o papel
das ditaduras militares no continente, as quais tinham por função não a repressão aos
movimentos de massa, mas também garantir uma adesão ao imperialismo e à modernização
conservadora (MARINI, 2013)
3
.
Por fim, Marini (2013) destaca:
Nos marcos da dialética do desenvolvimento capitalista mundial, o
capitalismo latino-americano reproduziu as leis gerais que regem o sistema
em seu conjunto, mas, em sua especificidade, acentuou-as até o limite. A
superexploração do trabalho em que se funda o conduziu finalmente a
uma situação caracterizada pelo corte radical entre as tendências
inerentes ao sistema - e, portanto, entre os interesses das classes por ele
beneficiadas - e as necessidades mais básicas das grandes massas, que
da América do Sul), enquanto outros viveram experiências industriais dependentes (Brasil, Argentina e México,
por exemplo). Portanto, grande parte da América Latina, na sua ampla diversidade, permaneceu essencialmente
agrária e puramente exportadora de produtos primários (inclusive aqueles que viveram processos de
industrialização). Vale destacar, ainda, que o impacto da tradição colonial na composição da ordem burguesa
latino-americana, foi objeto de estudo realizado por diversos (as) autores (as), com destaque – nas décadas de 1960
e 1970 para Florestan Fernandes (1975) e para o grupo da Teoria Marxista da Dependência (MARINI, 1973 e
2013).
3
O debate sobre a teoria da dependência não deve se limitar e não se limitou ao contexto dos anos 1960 e
1970, particularmente aquele realizado pelo grupo liderado por Ruy Mauro Marini (Theotônio dos Santos, Vania
Bambirra e Andre Gunder Frank). Vale ressaltar, ainda, as análises realizadas por Cardoso e Falleto (1977) (que
trilharam caminhos muito diversos da teoria da dependência analisada pelo coletivo de Ruy Mauro), bem como o
registro das excelentes conferências realizadas por Florestan Fernandes nos anos 1960 (FERNANDES, 1975).
Existe uma larga tradição na sociologia brasileira e latino-americana – mais ou menos recente que desenvolveu
um importante debate crítico sobre o Brasil e a América Latina (parte dela citada nesse texto). Preservada a
importância desse legado, é necessário ressaltar a importância de atualizar esse debate nas condições impostas pelo
século XXI (o que não é objetivo desse artigo). Uma referência nesta direção encontra-se registrada nos estudos
de Katz (2020), particularmente na parte terceira de sua obra.
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se manifestam em suas reivindicações por trabalho e consumo. A lei
geral da acumulação capitalista, que implica a concentração da riqueza
num polo da sociedade e o pauperismo absoluto da grande maioria do
povo, se expressa aqui com toda brutalidade, colocando na ordem do
dia a exigência de formular e praticar uma política revolucionária, de
luta pelo socialismo (MARINI, 2013, p.63).
O que interessa ressaltar, aqui, é que a Teologia da Libertação (TL) foi gestada a partir
de condições materiais muito precisas que atravessaram e seguem atravessando a América
Latina: a tensão entre os projetos imperialistas, nacional desenvolvimentistas (liderados pela
CEPAL) e aqueles com explícita inspiração socialista e comprometidos com a ruptura ou, pelo
menos, com transformações mais radicais na ordem do capital aqui gestada. Isso se objetivou a
partir de um processo que intensificou a luta de classes na segunda metade do século XX, com
especial destaque para a década de 1960 e primeira metade dos anos 1970. O pauperismo tecido
sob a amarras da dependência e as múltiplas opressões que atingiram os mais pobres,
demarcaram as bases materiais da Teologia da Libertação em solo latino-americano.
Subdesenvolvimento, igreja católica e Serviço Social
Esse processo de subdesenvolvimento crônico, interpretado por diferentes tradições
teórico-políticas, gerou uma série de discussões no continente latino-americano. O crescente
aumento da desigualdade e da dependência econômica frente às grandes potências, tornaram-
se assuntos centrais em diversos espaços na América Latina. Tais discussões possibilitaram o
surgimento de diversos movimentos sociais que lutavam pela libertação nacional, tendo como
principal exemplo o triunfo da Revolução Cubana em 1959. Paralelo a esse processo, nota-se
também uma renovação do pensamento em diversas áreas, como as universidades, os
movimentos culturais, a igreja, o Serviço Social, dentre outras. Como sinaliza Iamamoto
(IAMAMOTO, 2003, p.206) o “pensamento social latino-americano busca reconciliar-se com
sua própria história. Serão objetos deste texto os impactos dessas discussões e suas
consequências na renovação na Igreja Católica e no Serviço Social.
A Igreja Católica latino-americana é um dos principais setores que sofrerá impactos
nesse processo. É nos anos de 1960 que a igreja mundial passa por um importante processo
promovido pelo Concílio Vaticano II, em que, sinteticamente, o catolicismo abre-se para a
modernidade. Essa abertura, somada à uma crescente mobilização popular no continente, vai
levar ao surgimento de diversos movimentos sociais católicos, os quais buscavam justificativa
no evangelho e na doutrina católica para protagonizar importantes lutas contra as desigualdades
e na busca pela libertação nacional. Esses movimentos, denominados por Lowy (2000) de
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Cristianismo da Libertação, estavam presentes em todo o continente
4
. Destacam-se as
juventudes católicas no Brasil e no Chile
5
; a contribuição de Padre Camilo Torres
6
para o
Exército de Libertação Nacional (ELN) na Colômbia; os movimentos católicos camponeses na
América Central, dentre outros. Todos esses movimentos, se apoiando na católica, lutaram
frente às contradições do subdesenvolvimento do continente (LOWY, 2000).
Movimentos católicos laicos, tais como a Juventude Universitária Católica, a
Juventude Operária Católica e a Ação Católica, ou os movimentos populares
educacionais (Brasil), comitês para a promoção da reforma agrária
(Nicarágua), federações de camponeses cristãos (El Salvador) e, acima de
tudo, as comunidades de base, eram, no início dos anos 60, a arena social na
qual os cristãos se comprometeram ativamente com as lutas populares,
reinterpretaram o Evangelho à luz de sua prática e, em alguns casos, foram
atraídos pelo marxismo (LOWY, 2000, p. 71).
Todo esse processo impactou também as formulações teológicas produzidas na América
Latina. Destaca-se, inicialmente, que a abertura promovida pelo Concílio Vaticano II
possibilitou que os teólogos do continente dialogassem mais com as ciências sociais. Outro
ponto é o impacto da discussão do subdesenvolvimentismo nas produções teológicas, onde
parcela dos teólogos estavam sintonizados com perspectivas teóricas críticas e a dependência
latino-americana. E por fim, a influência do Cristianismo da Libertação, movimento que
demandou importantes reformulações na teologia tradicional. Esse processo vai mobilizar um
grupo de teólogos que, por meio de congressos e artigos, vão esboçar uma nova teologia que
abordava o papel da igreja frente a desigualdade do continente e o seu compromisso com os
oprimidos. Essas são as bases para o surgimento da Teologia da Libertação (LOWY, 2000).
A nova teologia latino-americana cria-se oficialmente a partir publicação do livro
Teologia da Libertação, perspectivas, do teólogo peruano Gustavo Gutiérrez, onde o autor
apresenta duas principais característica desta teologia: a crítica e superação da teologia
tradicional, trazendo a discussão de uma unidade entre a história material e o divino,
4
Destaca-se aqui a diferença, formulada por Lowy (2000), entre o Cristianismo da Libertação e a Teologia da
Libertação. Segundo o autor, o primeiro corresponde aos grupos e movimentos que antecederam as primeiras
formulações da TL, ou seja, católicos que desenvolviam uma prática libertadora e crítica dentro do continente
antes mesmo que qualquer nova teologia tivesse sido escrita, como por exemplo a JUC. a Teologia da
Libertação, para Lowy, nada mais é do que as publicações e obras de autores como Gutierrez, Boff, Dussel e
outros, que inspirados e motivados pelos grupos anteriormente citados, formularam uma nova teologia latina,
sendo esta libertadora e comprometida com a classe trabalhadora, nomeada de Teologia da Libertação.
5
São marcos no Brasil as juventudes JAC, JEC, JIC, JOC e JUC e no Chile o MAPU, movimentos que serão
detalhados posteriormente, mas que segundo Lowy (2000) são pioneiros do Cristianismo da Libertação, pois
desenvolveram uma formação crítica dos jovens a partir da fé, além de posteriormente romperem com a instituição
para formarem partidos e movimentos de esquerda.
6
Camilo era padre na Colômbia. Ele organizou um movimento popular militante, após isso entrou no Exército de
Libertação Nacional (ELN). Camilo Torres morreu em combate em 1966. Sua morte e legado motivou lutas
populares no país, além de mobilizar outros sacerdotes colombianos (LOWY, 2000).
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reafirmando a importância de uma libertação no tempo presente; e indicando o pobre como
sujeito da sua própria libertação, rompendo com a ideia do pobre como objeto de caridade.
(LOWY, 2000). A Teologia da Libertação se apoia numa metodologia em que a realidade social
é lida a partir das ciências sociais, incorporando teses de autores (as) marxistas e da teoria da
dependência. Posteriormente ela reinterpreta essa realidade a partir das reflexões do evangelho,
trazendo um olhar de compromisso com o pobre. E finaliza apontando reflexões que serviram
de motivação para os movimentos católicos envolvidos nas lutas populares, justificando suas
ações pela teologia (BOFF; BOFF, 1986).
É também na obra fundadora da TL que se nota não a influência, como também a
relação, da nova teologia com a discussão em relação à teoria da dependência. É justamente a
partir dessa discussão que Gutierrez (2000) vai entender que a necessidade histórica de uma
teologia latina é a libertação. O autor posiciona-se sobre esse debate no seu livro:
Apenas uma análise de classe permitirá ver o que está realmente em
jogo na oposição entre países oprimidos e povos dominantes. Ter em
conta somente o enfrentamento entre nações dissimula e finalmente
suaviza a verdadeira situação. Por isso a teoria da dependência equivocaria
seu caminho e levaria a engano se não situasse sua análise no marco da luta
de classes que se desenrola em âmbito mundial. Tarefa indispensável, se
quisermos tomar efetiva uma hipótese fecunda, e evitar pseudo-interpretações
e soluções fáceis. A percepção do fato da dependência e de suas conseqüências
permitirá uma nova tomada de consciência da realidade latino-americacana.
Além dos fatores políticos, a teoria do desenvolvimento deve considerar a
situação de dependência e as possibilidades de livrar-se dela; nesse contexto
pode ter sentido e encontrar possibilidade de realização. Mas os estudos feitos
nesta perspectiva levaram a concluir que o desenvolvimento autônomo latino-
americano é inviável no quadro do sistema capitalista [...] Caracterizar a
América Latina como um continente dominado e oprimido leva, naturalmente,
a falar de libertação e, sobretudo, a participar no processo que a ela conduz.
De fato, trata-se de um termo que exprime uma nova postura do homem latino-
americano. O fracasso dos esforços reformistas acentuaram essa atitude. Hoje,
os grupos mais atentos, nos quais se impõe o que chamamos nova consciência
da realidade latino-americana, crêem que pode haver desenvolvimento
autêntico para a América Latina na libertação da dominação exercida pelos
grandes capitalistas e, em especial, pelo país hegemônico: os Estados Unidos
da América do Norte. O que implica, aliás, o enfrentamento de seus aliados
naturais: os grupos dominantes nacionais. Torna-se cada vez mais evidente
que os povos latino-americanos não sairão de sua situação a não ser mediante
uma transformação profunda, uma revolução social que mude radical e
qualitativamente as condições em que vivem atualmente (GUTIERREZ,
2000, p.144).
Essa nova teologia teve contribuição decisiva para importantes lutas na América Latina,
sendo influência de diversos movimentos sociais do período. As Comunidades Eclesiais de
Base (CEBs), que desenvolveram importantes processos de mobilização popular, tiveram e
ainda têm forte relação com a Teologia da Libertação, sendo ela a base de fundamentação do
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grupo católico. As práticas de educação popular também possuem forte vinculação com os
movimentos inspirados pela nova teologia latina. A Revolução Sandinista contou com fortes
inspirações cristãs, consequentemente também em sintonia com os princípios da TL (LOWY,
2000).
[...] As brechas abertas neste muro graças ao surpreendente processo de
convergência entre cristianismo e marxismo que se deu na América Latina no
curso dos últimos 30 anos - em particular, mas não unicamente, através da
teologia da libertação - tem sido um dos fatores importantes na história
moderna do continente. Alguns dos principais eventos sociais e políticos das
décadas recentes - como a revolução nicaraguense, a insurgência popular em
El Salvador e o novo movimento operário e popular no Brasil - são
incompreensíveis e inexplicáveis se não levar em consideração a profunda
modificação da cultura católica latino-americana resultante da integração, por
importantes setores da Igreja, de alguns temas essenciais do marxismo
(LOWY, 1989, p. 5).
O Serviço Social também sofrerá impactos de toda essa discussão comprometida com
projetos que debatiam a superação do subdesenvolvimento. Todo esse debate que problematiza
a dependência da América Latina e os movimentos sociais que lutaram frente essas
problematizações, se tornaram fatores que contribuíram para a erosão de um Serviço Social
tradicional. O tradicionalismo profissional estava sendo colocado em xeque devido a crise
do capital e o avanço de vários movimentos contra a ordem em escala mundial. Entretanto, essa
conjuntura de dependência particulariza a erosão latino-americana, erosão que se expressará no
Movimento de Reconceituação. O movimento surge a partir das inquietações profissionais
sobre as respostas que o Serviço Social estava dando frente a lógica do subdesenvolvimento
(NETTO, 2005). A TL é uma das referências estimuladoras deste debate que também afetou o
Serviço Social e sua renovação (inclusive o seu debate mais progressista).
A Reconceituação foi a maior e ampla revisão da história da profissão, sendo um
movimento que reconfigurou o Serviço Social e rompeu com suas bases tradicionais. Situada
geograficamente ao território latino-americano, o rompimento com o tradicionalismo era o que
unia esse movimento que estava longe de ser homogêneo. Diversos grupos, sintonizados por
esse critica ao Serviço Social tradicional, divergiam teórica e metodologicamente, mas
compunham o movimento e apresentavam eixos em comum, tais como: a criação de um projeto
profissional que representasse as particularidades latinas; a discussão a respeito do
desenvolvimento e da dependência do continente latino-americano; as discussões acerca de um
estatuto científico e a importância dos seus rebatimentos; e a explicitação da dimensão política
profissional (IAMAMOTO, 2003).
O movimento, iniciado em 1965, contava com uma frente heterogênea e ampla contra o
tradicionalismo profissional. Destaca-se que nessa frente existiam dois principais grupos, um
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com forte sintonia ao processo de subdesenvolvimento, se adaptando às novas demandas da
conjuntura; e outro com perspectivas mais críticas e radicais. Entre 1971 e 1972 ocorre a divisão
dessa frente, surgindo então dois grupos: “o reformista-democrata (rigorosamente
desenvolvimentistas) e os radical-democratas (para os quais o desenvolvimento supunha a
superação da exploração-dominação nativa imperialista)” (NETTO, 2005, p.10). O Movimento
de Reconceituação se apresentou nos países conforme às particularidades locais de cada um
deles, ou seja, devido às condições históricas e culturais, cada país vivenciou o processo de
reconceitualização a partir de suas particularidades, mais ou menos renovadoras, com maior ou
menor radicalidade (NETTO, 2005).
Nos dez anos de efervescência reconceituadora, o movimento expressou
também as condições nacionais em que se processava. No Brasil, onde rebate
com a vigência da ditadura implantada em 1964, a renovação (exceto a
experiência de que derivou o famoso “Método Belo Horizonte”) traduziu-se
especialmente como modernização profissional (Netto, 1991: 151-164);
noutros países do Cone Sul, notadamente no Chile e na Argentina (com
ressonância no Uruguai), e ainda na Venezuela e na Colômbia, ademais de
tendências modernizadoras, a Reconceituação desenvolveu alternativas de
ruptura com o tradicionalismo nos planos metodológico-interventivo e
político-ideológico (NETTO, 2005, p.11).
Entretanto, potenciado por suas contradições internas (suas potencialidades e limites) e
pelos golpes cívico-militares patrocinados pelos EUA (apoiado, inclusive, pelas frações mais
conservadoras da Igreja Católica), a Reconceituação do Serviço Social estancou-se em 10 anos
(1965-1975 no geral). Mesmo com curto período de existência, o movimento contribuiu
decisivamente para o Serviço Social: a) permitiu uma articulação da profissão com as ciências
sociais; b) contribuiu para uma explicitação da sua dimensão política; c) favoreceu o surgimento
de uma pluralidade profissional, dentre outras contribuições. Netto (2005) vai sinalizar que a
principal conquista da Reconceituação, porém, parece localizar-se num plano
preciso: o da recusa profissional de Serviço Social de situar-se como um
agente técnico puramente executivo (quase sempre um executor terminal de
políticas sociais). Reivindicando atividades de planejamento para além dos
níveis de intervenção microssocial, valorizando nas funções profissionais o
estatuto intelectual do assistente social (abrindo, pois, a via para a inserção da
pesquisa como atributo também do Serviço Social), a Reconceituação
assentou as bases para a requalificação profissional, rechaçando a
subalternidade expressa na até então vigente aceitação da divisão consagrada
de trabalho entre ciências sociais (os “teóricos”) e assistentes sociais (os
profissionais da “prática”) (NETTO, 2005, p.12).
Por fim, como sinalizado, destaca-se a relevância da discussão do
subdesenvolvimento latino-americano e de como ele contribuiu decisivamente para importantes
processos de renovação, como na Igreja Católica e no Serviço Social. A renovação da Igreja,
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representada pela Teologia da Libertação, fomentou e influenciou importantes movimentos
sociais que protagonizaram diversas lutas no continente. O Serviço Social, por meio da
Reconceituação, fez a crítica de suas bases tradicionais e deixou um legado importante para a
profissão. Esses dois processos, da profissão e da igreja, assim como tantos outros que brotaram
no continente no processo de intensificação da luta de classes, irão se cruzar, promovendo
diálogos e trocas de influências, processo que será objeto do terceiro e último item deste artigo
7
.
Teologia da libertação e reconceituação do Serviço Social
A histórica vinculação entre Serviço Social e a Igreja Católica passa, assim, a
contar com novas bases de legitimação, o que abre um campo de
possibilidades em relação à construção de uma crítica ao ethos tradicional (...)
A Teologia da Libertação influencia a negação da concepção tradicional do
Serviço Social, possibilitando a compreensão das determinações de classe,
como diz Lowy, a solidariedade com o ‘pobre’, que não é mais vista como
‘objeto de caridade e assistência’, os ‘oprimidos’ passam a ser concebidos
como sujeitos de sua própria libertação (BARROCO, 2010, p. 107 e 174).
É a partir dessas duas citações que fundamentamos o objeto de análise desse último
item. A Teologia da Libertação, enquanto um pensamento social latino que pautava essa
contradição do subdesenvolvimento, influenciou esse processo de ruptura com o
tradicionalismo no Serviço Social, influência que se deu junto às particularidades do
Movimento de Reconceituação. Nos atentaremos principalmente ao processo
reconceitualizador do Brasil e sua relação com a esquerda católica, destacando brevemente
algumas interlocuções da TL com as renovações profissionais desenvolvidas em outros países
da América Latina.
O Brasil vivenciou um processo específico no período da Reconceituação latino-
americana, particularidade marcada pelo golpe cívico-empresarial-militar de 1964. A ditadura
possibilitou uma condição favorável para a hegemonia de uma vertente modernizadora, vertente
que teve centralidade em parte significativa da renovação profissional brasileira. Entretanto,
outras vertentes, uma trazendo a reatualização do conservadorismo e outra com fortes traços
críticos e marxistas, também coexistiram nesse processo. A vertente crítica, nomeada por Netto
(2005) de “intenção de ruptura”, vertente mais progressista inspirada no marxismo e nas
produções da Reconceituação de outros países, se fortalece com o enfraquecimento do regime
ditatorial e começa a ocupar importantes espaços profissionais. Uma vanguarda profissional
que compunha essa vertente, que já havia produzido literaturas críticas acerca da renovação do
7
O estudo denominado “A História pelo avesso a reconceituação do Serviço Social na América Latina e
interlocuções internacionais”, organizado por Marilda Iamamoto e Claudia Mônica dos Santos (2021), oferece
excelente debate nesta direção.
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Serviço Social no Brasil, a partir da aproximação com os movimentos sociais, vai ocupar os
espaços formativos, jurídicos e organizacionais da profissão, ocupação que permitiu que ela
implementasse uma direção social crítica no Serviço Social, direção que é hegemônica até os
dias atuais (NETTO, 2005).
O Brasil foi um dos pioneiros do Cristianismo da Libertação, além também de ter sido
o país onde a Teologia da Libertação teve influência significativa na hierarquia católica e nos
trabalhos pastorais. O país foi palco de importantes movimentos católicos progressistas, tais
como a atuação das juventudes católicas, a JAC (Juventude Agrária Católica), JEC (Juventude
Estudantil Católica), JIC (Juventude Independente Católica), JOC (Juventude Operária
Católica), JUC (Juventude Universitária Católica). Essas juventudes, a partir de literaturas
francesas, adotaram uma postura crítica e em determinados caso até anticapitalista,
transformando o simples trabalho de evangelização em trabalho de formação política e luta
contra a ditadura. Outro importante grupo foi o Movimento de Educação de Base (MEB),
movimento que não só trabalhou a alfabetização, mas também discutia a formação política e a
participação cidadã. Além deles, ganha destaque também as Comunidades Eclesiais de Base
(CEBs), comunidades que, inspiradas pelas formulações da TL, promoviam um espaço de
vivência em comunidade, partilha de vida e principalmente de mobilização popular, motivando
seus integrantes a lutar por direitos sociais (LOWY, 2000).
Em relação às contribuições da CEBs, Lowy (2000, p. 148) destaca
Mas é preciso deixar claro que as comunidades de base ajudaram a criar uma
nova cultura política no Brasil, “a democracia de bases”, em oposição não só
ao autoritarismo militar, como também às três tradições políticas principias do
país: o clientelismo - praticado tradicionalmente nas áreas rurais pelos
proprietários de terra e nos centros urbanos por políticos profissionais que
distribuem favores (empregos, dinheiro); populismo que, sob Vargas e seus
seguidores, permitiu que o governo criasse “de cima” o movimento sindical e
popular; e o verticalismo, muitas vezes utilizado pelas forças principais da
“velha” Esquerda, seguindo o exemplo soviético ou chinês. Graças a essa nova
cultura, os militantes das CEBs, com o apoio de teólogos e bispos radicais,
contribuíram para construir o movimento trabalhista de massas maior e mais
radical de toda a história do Brasil.
A vertente “intenção de ruptura” sofreu uma série de influências nesse processo, dentre
elas destaca-se a forte presença da esquerda católica. Batistoni (2019) aponta que a Escola de
Belo Horizonte, escola onde a vertente se expressou com maior intensidade, tinha a “presença
de forças progressistas da hierarquia católica, oferecendo, aos docentes e discentes, espaço de
resistência intelectual e política” (BATISTONI, 2019, p. 543). Além disso, a autora também
destaca a participação de estudantes e assistentes sociais em movimentos da esquerda católica,
tais como o MEB e a JUC, que traziam suas experiências com trabalho de base e sua formação
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política crítica. Um exemplo desse processo é a figura de Leila Lima dos Santos, importante
liderança da vertente, que foi membro atuante da JUC. É válido para pontuar também a presença
do Padre Henrique Cláudio de Lima Vaz, membro da escola mineira, que estudava Marx e
produzia uma literatura crítica a partir do humanismo cristão, consequentemente influenciando
as primeiras produções da vertente. Destaca-se, assim, a presença significativa da esquerda
católica na gênese e no desenvolvimento da vertente Intenção de Ruptura (BATISTONI, 2019).
A influência desse “marxismo” na proposta da Escola de Serviço Social de
BH se efetiva pelo protagonismo de docentes (não só assistentes sociais, mas
também de outras áreas disciplinares, como filósofos e economistas) e
discentes que tiveram atuação na esquerda católica. Destaca-se, mais uma vez,
Leila Lima, que em vários depoimentos concedidos assinala os caminhos de
sua aproximação ao marxismo pela via do “humanismo cristão”, tendo
recebido formação e orientação diretamente de “cursos” com o padre Vaz,
desde 1961, como dirigente da JUC em Minas Gerais e estudante de Serviço
Social na Universidade Católica (BATISTONI, 2019, p.550).
Entretanto, essa relação não se restringe apenas à gênese da vertente: ela vai se estender
para o processo de redemocratização do país, processo em que a vanguarda profissional vai se
aproximar de importantes movimentos sociais. Abramides (2016) ressalta essa aproximação
destacando alguns exemplos: a relação com o novo sindicalismo, que fortaleceu a organização
da categoria; a aproximação com o Movimento Custo de Vida e outros grupos que também
reivindicavam direitos sociais; além da luta “contra o pagamento da dívida externa; pela anistia
ampla, geral e irrestrita; luta por uma Assembleia Nacional Constituinte livre, soberana e
democrática e eleições diretas” (ABRAMIDES, 2016, p.467). Todos esses movimentos,
segundo Moreira (2012), possuíam estreita relação com a esquerda católica. Segundo o autor,
parcela significativa das lideranças do novo sindicalismo eram trabalhadores formados pela
CEBs e pela Pastoral Operária. O Movimento Custo de Vida foi formado com apoio de Dom
Evaristo Arns
8
e da CEBs. Ademais, a igreja católica no Brasil, representada na Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), também encampou as lutas pela nova constituição e
pela anistia ampla, geral e irrestrita.
A relação entre esquerda católica e Serviço Social não só se apresentou no Brasil, mas
em outros países. A Reconceituação do Serviço Social argentino, por exemplo, diferente de
outros países, contou com fortes traços críticos, os quais combatiam tendências modernizadoras
do desenvolvimentismo. Ela foi “um processo comandado pelo debate progressista com certa
8
Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo na década de 1970, travou importantes lutas contra a ditadura,
contribuiu para o desenvolvimento de diversos trabalhos das CEBS na sua diocese e teve fortes relações com a
Teologia da Libertação (LOWY, 2000).
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literatura situada à esquerda, embora não necessariamente marxista e marxiana” (MOLJO;
SILVA; ZAMPANI, 2017, p.127). Todo esse processo passou muito por organizações como o
Instituto de Serviço Social e o Grupo Ecro, organizações que surgiram a partir de propostas
modernizadoras, mas que logo se radicalizaram, graças à aproximação com movimentos sociais
e pelo intercâmbio com outros países. Destaque deve ser dado, aqui, à revista “Hoy en el
Trabajo Social”, “Selecciones del Servicio Social” (em menor proporção)
9
, bem como a alguns
importantes atores: os peronismos, a Teologia da Libertação e as influências de Paulo Freire
(MOLJO; SILVA; ZAMPANI; PAGAZA, 2020). Dentre esses atores sociais destaca-se,
portanto, militantes da esquerda católica, que junto de outras influências, possibilitaram que as
organizações se tornassem as propulsoras da Reconceituação na argentina (MOLJO; SILVA;
ZAMPANI, 2017).
(...) embora o instituto e o Grupo Ecro tenham surgido com inspiração
desenvolvimentista, será no intercâmbio com outras experiências
(fundamentalmente chilenas e uruguaias), assim como no encontro cotidiano
nas comunidades e com outros atores sociais (trabalhadores, militantes
políticos, grupos cristãos influenciados pela teologia da libertação etc.), que o
Grupo Ecro vai radicalizando as suas ideias (MOLJO; SILVA; ZAMPANI,
2017, p.127).
Outro país que também apresentou algumas relações com o catolicismo crítico foi o
Chile. A Reconceituação neste país, como demonstra Duriguetto e Marro (2019), contou com
uma profunda relação com o cenário político do país, marcado pela efervescência do governo
da Unidade Popular e sua luta pela construção do socialismo. Nesse cenário, alguns grupos
também se somaram a esse processo, consequentemente também se relacionando com a
profissão, dentre eles destaca-se o MAPU (Movimento de Ação do Povo Unido), movimento
que, segundo Lowy (2000), foi criado pela juventude da Democracia Cristã, os quais romperam
com o partido e criaram uma organização de viés marxista, sendo um dos representantes do
Cristianismo da Libertação. Outro fato a se destacar na Reconceituação chilena, como apontado
por Martínez (2017), é a presença do intelectual brasileiro Paulo Freire
10
no país (que também
esteve presente na Argentina), o qual contribuiu com um processo de crítica ao tradicionalismo
profissional nas escolas de Serviço Social, intelectual que guarda profundas relações com a
9
Que alteraram seus nomes no final dos anos 1960 influenciadas pelo Movimento de Reconceituação:
anteriormente denominadas “Hoy en el Servicio Social” e “Selecciones de Social Work”, respectivamente.
10
Paulo Freire foi um filósofo e educador brasileiro que influenciou a pedagogia mundial, tendo um renome
internacional. Sua obra, “Pedagogia do Oprimido”, foi amplamente debatida no período da Reconceituação,
ressaltando a relação entre oprimido e o opressor, a importância de uma prática educacional libertadora e a
conscientização e autonomia dos oprimidos. O autor, que não escondia sua cristã, guardou profundas relações
com TL, citando-a em comentários, além de influenciar diretamente na produção de Tlogos como Leonardo Boff
(PEREIRA, 2015).
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Teologia da Libertação. A autora também destaca a renovação crítica da universidade de
Valparaíso e suas formulações que colocavam a profissão na práxis da libertação e no
compromisso com os grupos dominados, discussões que perpassaram necessariamente “la
relación entre marxismo y cristianismo” (MARTINEZ, 2017, p.112).
A Reconceituação do Serviço Social, como já destacado, não foi unânime e homogênea
em todos os países. Alguns não viveram esse processo renovador ou passaram por ele mais
tardiamente, como é o caso do Paraguai. O processo reconceitualizador do país se deu diferente
das experiências dos outros países. A reconceituação paraguaia, por exemplo, segundo Agüero
(2019, p.220) “es la serie de cuestionamientos teóricos y metodológicos que se desarrolló a lo
largo de la década del 90, con búsquedas, caminos y propuestas distintas y diversas a las que
los textos sobre la Reconceptualización nos muestran como la experiencia de los demás países”.
Para a autora, esse processo ocorre pela aproximação de estudantes e profissionais aos
Movimentos Sociais, em especial aos movimentos rurais, aproximação que os motivou a
problematizar as universidades acerca da implementação de perspectivas teóricas críticas e
práticas, visando entender melhor a realidade do país. Parcela desses movimentos sociais rurais,
que influenciaram a contestação crítica do Serviço Social, tiveram fortes influências da Teologia
da Libertação, principalmente a partir da articulação de movimentos católicos, como as
Comunidades Eclesiais de Base, além de outras organizações católicas progressistas
(AGUERO, 2019).
(…) la historia de las organizaciones campesinas que desde 1960 habían
confrontado al régimen dictatorial con las Ligas Agrarias Cristianas (LAC),
las Juventudes Agrarias Cristianas (JAC) y las Comunidades Eclesiales de
Base (CEBs), que si bien se extendieron casi a todos los departamentos del
país y habían sido disueltas en el año 1976 con grandes represiones,
desapariciones y asesinatos de sus 221 principales dirigentes (AGUERO,
2019, p. 221).
Constata-se, assim, o forte diálogo entre a Teologia da Libertação e o Movimento de
Reconceituação do Serviço Social. A análise do processo brasileiro e suas particularidades
permitiram um olhar mais detalhado sobre a contribuição dessa corrente progressista católica
para a ruptura com o conservadorismo na profissão. Entretanto, ainda que limitado e sintético,
os estudos sobre as realidades da Argentina, do Chile e do Paraguai também colaboraram para
esse processo, permitindo entender o alcance dessa teologia, a qual é fruto da América Latina e
desenvolveu-se por ela, influenciando importantes mobilizações sociais. Por fim, é importante
frisar que esse movimento de renovação profissional contou com uma série de influências, não
só a da TL. Diversos outros movimentos, partidos e correntes teóricas também influenciaram a
crítica ao tradicionalismo profissional.
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Considerações finais
Por fim, é importante destacar alguns pontos centrais das reflexões propostas por esse
artigo. O primeiro diz respeito à dinâmica contraditória do capitalismo, onde, por meio do
primeiro item, pôde-se observar as consequências da brutal lei geral da acumulação. Esse
processo, central para o funcionamento desse modo de produção, gerou uma enorme
pauperização do proletariado, em especial no continente latino-americano, onde a situação se
agravou devido aos ataques imperialistas. Por outro lado, as investidas imperialistas e o
aumento da exploração criaram as bases materiais para um forte movimento contestatório na
América Latina. A enorme desigualdade e a dependência foram motivações para diversos
grupos sociais se rebelarem e se mobilizarem frente ao tema da libertação nacional.
O segundo ponto a se observar é justamente o impacto dessas mobilizações e os reflexos
delas na Igreja Católica e no Serviço Social. É nessa particularidade do continente latino-
americano, - dependente, desigual-combinado e de luta -, que se dará o chão concreto das
renovações do catolicismo e da profissão. A renovação católica, particularmente latino-
americana e liderada pela Teologia da Libertação, deixou profundas marcas no continente,
influenciando importantes movimentos sociais, além de mobilizar e articular as próprias ações
da Igreja. O Movimento de Reconceituação latino-americano, deixou um legado extremamente
rico para o Serviço Social, possibilitando renovações profissionais em diversos países do
continente, rompendo com o tradicionalismo profissional.
Um terceiro e último ponto a ser destacado é a relação estabelecida entre a
Reconceituação latino-americana, a renovação do Serviço Social brasileiro e a Teologia da
Libertação criada na relação com o Cristianismo da Libertação. Como apontado anteriormente,
a esquerda católica teve contribuição decisiva para o movimento de Reconceituação. Essa
contribuição antecede inclusive as próprias formulações da Teologia da Libertação, onde notou-
se que os movimentos do Cristianismo da Libertação já colaboravam por meio da formação de
estudantes e profissionais e por meio de um intercâmbio nas lutas sociais junto aos
trabalhadores. A TL, em si, como demonstrado, também colaborou nesse intercâmbio de
lutas, muito por sua influência junto aos movimentos, mas também trouxe uma literatura crítica,
em determinados casos com fortes inspirações marxistas, literatura que também influenciou a
renovação profissional.
Em tempos de recrudescimento do conservadorismo-reacionário (SANT’ANA; SILVA,
2020), de crise do capital e de adensamento do pauperismo relativo e absoluto (nas condições
particulares da América Latina), é crucial resgatar esse legado histórico da profissão. O
fundamentalismo religioso e o neoconservadorismo têm articulado críticas e ataques à direção
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social estratégica conhecida como Projeto Ético Político profissional assumida pelo Serviço
Social brasileiro, ameaçando essa hegemonia na atualidade. Igualmente têm atuado no sentido
de expurgar as experiências progressistas no interior da Igreja Católica, entre elas qualquer
legado deixado pelo Cristianismo da Libertação e pela Teologia que dele derivou. Sendo assim,
entende-se importante esse resgate teórico da Reconceituação e da TL, o qual se torna uma
ferramenta de defesa à um projeto profissional crítico e comprometido com níveis crescentes
de emancipação social.
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