DOI 10.34019/1980-8518.2021.v21.36252
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 21, n.2, p. 727-735, jul. / dez. 2021 ISSN 1980-8518
As atuais condições da educação
Superior no Brasil
Entrevista com Roberto Leher*
Novembro de 2021
ENTREVISTADOR:
Rubens Luiz Rodrigues**
Rubens Luiz Rodrigues: Seus estudos e pesquisas ressaltam o processo de
mercantilização da educação superior brasileira por meio das ações da aparelhagem estatal
em favor dos interesses empresariais. Em que sentido as políticas para a educação superior
como o programa “Future-se” reforçam esse processo?
Roberto Leher: A mercantilização da educação no Brasil possui particularidades em
relação à verificada em outros países, mesmo naqueles em que a privatização alcançou imensa
proporção, como no Chile, por exemplo. No caso da educação superior brasileira mais de 75%
dos estudantes frequentam instituições privadas. O percentual em si mesmo denota uma escala
definidora do lugar ocupado pelo segmento no país; entretanto, apenas a consideração do
percentual é insuficiente para compreender o alcance do fenômeno. É importante salientar a
tendência das novas matrículas, se em favor do público ou do privado. Dentre as novas
matrículas, apenas 12% se dão nas instituições públicas, conforme estudo do INEP, percentual
que se encontra muito distante da meta de 40% das novas matrículas estabelecida no Plano
Nacional de Educação, definida em lei (lei 13.005/14). Desse modo, a tendência aponta
* Professor Titular da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro na linha Estado, Trabalho e Movimentos Sociais. Doutor em Educação pela Universidade
de São Paulo (1998), desenvolve pesquisa em políticas públicas em educação. Atua no Coletivo de Estudos em
Marxismo e Educação - COLEMARX. Pesquisador do CNPq.
** Professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal
de Juiz de Fora na linha Trabalho, Estado e Movimentos Sociais. Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (2006), desenvolve pesquisa em política, gestão e educação de jovens e adultos.
---------- Entrevista ----------
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inequivocamente para a ampliação da participação privada frente à oferta pública.
Entretanto, o que efetivamente particulariza a mercantilização da educação superior no
Brasil é a vertiginosa tendência de crescimento da modalidade a distância, a presença de fundos
de investimentos no controle das instituições de ensino e a abertura de capital das empresas-
líderes na bolsa de valores. Com efeito, grande parte dessas novas matrículas é ofertada na
modalidade de graduação a distância: entre 2012 e 2019 as matrículas nesta modalidade mais
do que dobraram, alcançando perto de dois milhões de estudantes. É relevante salientar que,
nos dias de hoje, a maioria dos novos estudantes que chegam ao ensino superior já ingressa em
cursos a distância. Mas o problema não se encerra nesses terríveis indicadores. Mais de 70%
dos estudantes que fazem cursos a distância estão contratualizados com corporações sob
dominância financeira, grupos que são parte do portfólio de negócios de fundos de
investimentos e, em escala única no mundo, em organizações de ensino com ações na bolsa de
valores.
Em resumo, a particularidade brasileira advém do fato de que a maioria dos estudantes
do ensino superior é cliente de grupos financeirizados e de capital aberto. Em decorrência da
representação dos acionistas (em geral, indicados pelos fundos de maior participação na
organização educacional) nos Conselhos de Administração, nenhuma decisão educacional
relevante é tomada sem a anuência dos agentes do mercado. Ao contrário, os representantes dos
acionistas alertam que mais e mais reestruturações nas empresas são necessárias para saciar as
expectativas de lucros dos investidores. Por isso, os cortes nos gastos com pessoal são sempre
de grande monta, em geral acompanhados da introdução de plataformas tecnológicas. O mesmo
é verdade em relação à extinção de cursos lucrativos e à proliferação de cursos com alto retorno
econômico, como Direito, Licenciaturas, Serviço Social, Administração e afins, por serem
cursos que podem ser ofertados com baixo custo. Isto está alterando em profundidade a
formação da maioria dos estudantes brasileiros que cursa algum tipo de graduação. O assunto
é tão relevante que a China, em julho de 2021, proibiu grupos de capital aberto e sob dominância
financeira de atuar nos cursos que compõem a formação básica e geral dos estudantes, seja na
educação básica, seja na educação superior.
Ao contrário do senso comum, tal expansão propriamente mercantil, engajada em
satisfazer a ordem de grandeza e a rapidez da lucratividade esperada pelos operadores do
mercado financeiro, não foi possível em virtude da mão invisível do mercado; ao contrário, foi
a indução estatal que possibilitou tal crescimento. Sem a indão estatal do ProUni que
concedeu isenções tributárias generosas ao segmento mercantil, em troca de uma reduzida
contrapartida em termos de vagas e, o que é indissociável desta indução, o redimensionamento
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do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) em 2010, é certo que a expansão privado-
mercantil não teria tido a mesma escala. O crescimento do montante é ilustrativo. Em 2010, o
Fundo mobilizou algo como R$ 2 bilhões; em 2016, a incrível soma de R$ 34,4 bilhões. Neste
período, os grupos de capital aberto chegaram a ter mais da metade de seus estudantes
auspiciados com o fundo público. Todos os analistas do mercado financeiro, como CreditSuisse,
BofA, Itaú-BBA, Bradesco BBA, indicaram o mercado educacional como atraente porque
justamente possuíam o lastro do fundo público. A ordem de grandeza pode ser mais bem
dimensionada quando lembramos que, em 2016, as 63 universidades federais juntas tiveram
menos de R$ 10 bilhões em recursos de custeio e investimentos. Desse modo, a pujança do
repasse do fundo público para o setor mercantil agravou a penúria das instituições federais. Daí
a relevância dos projetos do Future-Se para o aprofundamento da mercantilização e da
mercadorização das universidades e institutos federais.
Para compreender o significado do Future-Se é necessário colocar em cena a devastação
do orçamento público decorrente da Emenda Constitucional no 95/2016, aprovada
imediatamente após a efetivação do Golpe que afastou do governo a presidenta Dilma Rousseff.
Com esta Emenda inexiste possibilidade de assegurar orçamento público para garantir, nos
termos da Constituição, o dever do Estado no provimento de direitos sociais. Por inviabilizar
dispositivos constitucionais, novas gerações de reformas constitucionais são necessárias. Por
ter se comprometido com tais reformas, o bloco no poder apoiou a candidatura de Bolsonaro
que está efetivando todo um grande arcabouço de reformas constitucionais para manter
desidratado o orçamento social, a exemplo da Emenda Constitucional n. 109 e da PEC 32. O
exame acurado de todas as versões do Future-Se não deixa margem a dúvidas sobre o intento
de projetar a desobrigação do Estado em custear o desenvolvimento institucional das
universidades e institutos federais. No entanto, o projeto não incide apenas no orçamento das
instituições. Existe uma forte motivação do núcleo duro do bolsonarismo de refuncionalizar as
universidades, extinguindo as atividades de ensino, pesquisa e extensão balizadas pela liberdade
de cátedra e comprometidas eticamente com os problemas dos povos. O intento claro é
converter as instituições em organizações referenciadas pelo ethos do empreendedorismo
temperado pelo capitalismo dependente. Entendo que este objetivo é parte da estratégia
neofascista em curso no Brasil. A conversão das universidades em loci de inovação tecnológica
(a rigor, uma agenda que inexiste estruturalmente nas cadeias produtivas existentes no país,
excetuando as áreas em que o Estado assegurou capacidade de pesquisa e desenvolvimento,
como a Petrobras) e de empreendedorismo objetiva o silenciamento das interpelações críticas
da ciência e o sufocamento da cultura e da arte.
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Rubens Luiz Rodrigues: Como os ataques do Governo Bolsonaro ao desenvolvimento
da ciência e da tecnologia atingem as universidades e os institutos federais?
Roberto Leher: A questão é crucial! Se examinarmos de modo amplo os ataques à
ciência e ao desenvolvimento autônomo de tecnologias que fortalecem o bem-viver e a
soberania do país, concluiremos que, nesses marcos, é impossível a existência de universidades
públicas pujantes, autônomas e fortemente engajadas na construção de um projeto
autopropelido de nação, como destacava Florestan Fernandes.
Examinar os números é importante para salientar o caráter material da ideologia, no
caso, da guerra cultural contra a educação e a ciência. O orçamento de custeio das 63
universidades federais efetivamente existentes em 2021 é da ordem de R$ 5,6 bilhões, em 2014
era de R$ 9,2 bilhões e expressava uma situação de penúria. Os recursos de investimentos
em 2021 não ultrapassarão R$ 150 milhões, cerca de 7% do orçamento de investimento
existente em 2014. O orçamento da CAPES despencou de R$ 7,7 bilhões em 2015 para R$ 2,9
bilhões em 2021. Os recursos discricionários do Fundo Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico despencaram de modestos R$ 6,8 bilhões em 2015 para irrisórios
R$ 2,7 bilhões.
O fechamento ou descaracterização de 75% dos Conselhos de assessoramento do
Estado, por meio de decreto com este fim que, embora barrado pelo STF, levou o governo
Bolsonaro a manter formalmente abertos determinados Conselhos previstos em lei, mas
inteiramente descaracterizados - a exemplo de espaços com a importância do Conselho
Nacional do Meio Ambiente, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente,
do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência e do Conselho Nacional de
Educação, este último reduzido a espaço em que prevalecem olavistas, representantes de grupos
econômicos, agentes de igrejas e assim por diante.
A desvalorização da ciência tem como propósito difundir o negacionismo de modo que
as linhas demarcatórias entre fatos e versões, verdade e falsidade, ciência e ficção sejam
inteiramente apagadas. Isso envolve questões da importância das mudanças climáticas, da
pandemia de Covid, do uso descontrolado e desregulamentado de agrotóxicos, os ataques aos
povos indígenas e aos seus territórios, tudo, literalmente tudo, em qualquer domínio, está sob
imperativos governamentais negacionistas, porém não como um fenômeno difuso, mas como
parte da guerra cultural.O futuro do bolsonarismo depende do sucesso desse intento.
Rubens Luiz Rodrigues: As representações sindicais e acadêmicas têm denunciado a
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proposta de Reforma Administrativa apresentada pelo Governo Bolsonaro e em discussão no
âmbito do Congresso Nacional. Por que a Reforma Administrativa ameaça o sistema público
de educação superior?
Roberto Leher: Caso a PEC 32 seja aprovada não mais será possível a existência de
universidades e institutos federais (e públicas em geral, pois vários dispositivos passam a ter
repercussão em todos os entes subnacionais). São três ordens de problemas advindos da
reescrita da Constituição:
i) A universidade somente pode ser um espaço de liberdade de cátedra se seus servidores
possuírem estabilidade e contratos por tempo indeterminado, permitindo a coexistência de
gerações e o regime de dedicação exclusiva. A PEC 32 impede a existência de docentes e
técnicos e administrativos com prerrogativas do serviço público. Teremos docentes e técnicos
e administrativos vulneráveis. A maioria terá contrato por tempo determinado e mesmo os
poucos que terão contratos por tempo indeterminado poderão ser demitidos em virtude da
concepção de Estado Orgânico que perpassa toda a referida PEC. O cleo do Estado Orgânico
é a mudança no caput do Art. 37 da Constituição que, na prática, passa a exigir obediência das
instâncias inferiores do Estado às determinações de suas chefias superiores. Desse modo, os
que refutam o uso de cloroquina como fármaco eficaz para prevenir e curar a Covid, assim
como os que denunciam o desmatamento da Amazônia, o genocídio de indígenas e o aumento
do desemprego, todos poderão ser facilmente demitidos por estarem em desacordo com a
“Verdade Oficial”.
ii) A PEC 32 introduz novo dispositivo que permite que as instituições públicas possam
ser geridas por entes privados de cariz mercantil. Isso significa que todo ente público poderá
ser objeto de cessão com fins mercantis. Doravante, tudo que não é concebido como exclusivo
do Estado, a exemplo das universidades, institutos de pesquisa, órgãos ambientais etc., poderão
ser geridos por agentes privados, especialmente por empresas e corporações estritamente
mercantis.
iii) Em sintonia com a doutrina e os objetivos da guerra cultural (e aos fins do Estado
Orgânico), a PEC 32 atribui ao presidente da República o poder de, por Decreto, extinguir
órgãos públicos, realizar fusões entre órgãos públicos, alterar carreiras, em suma, um poder
imperial. Atribuir tal escopo de poder a um presidente da República é incompatível com a
democracia e o Estado de Direito Democrático. Ainda mais preocupante é imaginar Bolsonaro
com tal âmbito de poder. Universidades poderão ser desmembradas, campi de instituições
diferentes podem ser remanejados para outros órgãos públicos ou mesmo extintos, cargos
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poderão ser descaracterizados e assim por diante.
A combinação dessas três vertentes inviabiliza, por completo, a existência da
universidade pública. Examinado o conjunto dessas medidas, avalio que a PEC 32 é um forte
movimento de harmonização do Estado com a concepção do Estado Orgânico do fascismo, o
que, combinado com o fim da estabilidade e a mercantilização do outrora serviço público, abre
enormes avenidas para o projeto neofascista que está em implementação no país.
Rubens Luiz Rodrigues: Qual o lugar que os movimentos sociais, estudantis e sindicais
ocupam na construção de uma proposta educacional e, especificamente, de educação superior
no Brasil?
Roberto Leher: A questão possui dois planos interligados, mas que não se confundem:
na conjuntura atual é imperioso forjar frentes de entidades acadêmicas, sindicais, estudantis (e
coletivos de juventude), movimentos sociais diversos e partidos políticos para enfrentar, resistir,
dizer NÃO à destruição da educação pública e aos campos de ciência e tecnologia e da cultura
pelo governo Bolsonaro. Frentes de unidade de ação são urgentes em virtude da ofensiva
sistêmica apontada anteriormente. Nenhuma força política, por si só, possui capacidade
convocatória para assegurar lutas em grande escala em curto intervalo de tempo. A variável
tempo é decisiva. Aqui, a máxima “a longo prazo todos estaremos mortos” é dramaticamente
verdadeira. Quando me refiro à escala penso nas mobilizações em prol da educação pública e
gratuita no Chile: grandes massas, ativas e protagônicas. Isso inexiste no Brasil de hoje.
Essas lutas, contudo, não se sustentam indefinidamente sem ter objetivos próprios,
objetivos de classe, abrangendo dimensões econômico-corporativas e propriamente políticas.
Ao forjar lutas de massas, nos moldes das lutas com unidade de ação, será imperativo discutir
a agenda da classe trabalhadora: o que, coletivamente, reivindicamos como os germes da
educação pública, da ciência e da cultura do futuro. Essa dimensão requer a existência de
coalizões, de lutas, de movimento de fazimento da classe. Contudo, sem mirar objetivos
estratégicos pode perder fôlego facilmente ou sequer lograr o necessário caráter de massa.
Constituir objetivos estratégicos exige síntese, a constituição ativa de consensos, rigoroso
diagnóstico da situação da correlação de forças na educação. No Brasil, temos uma situação
peculiar. Ainda não logramos lutas com escala para mudar a correlação de forças e, a despeito
de convergências em pontos importantes da agenda educacional, ainda não fomos capazes de
construir agendas comuns “mobilizantes”. É necessário que as entidades, partidos e
movimentos estejam em maior interação, mas é preciso um salto qualitativo na organização das
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lutas e na formulação de agendas convocantes! A grande política exige a construção de um novo
ponto de partida nas lutas pela educação pública, tal como preconizou Florestan Fernandes.
Rubens Luiz Rodrigues: Tendo em vista uma avaliação das orientações da política
educacional brasileira no século XXI, qual a sua análise acerca da educação superior?
Roberto Leher: A humanidade está diante de desafios dilacerantes, perigosos e que,
por suas contradições, podem abrir novas vias para o futuro dos povos. É preciso mudar as
matrizes energéticas, incidir sobre as mudanças climáticas, proteger a biodiversidade, assegurar
alimentos saudáveis para todos os que possuem um rosto humano, prover, como dever do
Estado, educação pública referenciada na ciência, na arte, na cultura, e interpeladora das
tecnologias e do mundo do trabalho; garantir imensa capacidade de pesquisa para efetivar
complexos industriais de saúde públicos; desenvolver novas miradas para as cidades, sobre os
patrimônios culturais dos povos e realizar reforma agrária voltada para a soberania alimentar e
assim por diante. São dilemas definidores da vida no planeta Terra e que incidem mais
fortemente na classe trabalhadora.
É difícil imaginar alternativas que não envolvam as universidades como instituições
cruciais dos povos. É evidente que não estamos falando em universidades em abstrato, mas em
instituições comprometidas com o bem-viver dos povos.
As pesquisas que tenho realizado e, por suposto, a relevante produção acadêmica de
outros grupos, assim como a elaboração preciosa de movimentos estudantis, sindicatos, partidos
vinculados à classe trabalhadora, entidades acadêmicas, permitem delinear alguns tópicos
importantes, embora longe de serem exaustivos.
Por tudo o que foi dito, não futuro para a educação pública sem impedir a
mercantilização da educação. É preciso estabelecer medidas que assegurem um rigoroso
controle sobre o setor privado, proibir grupos de capital aberto na bolsa na área de educação,
especialmente na educação básica e na educação superior, incluindo a pós-graduação, o mesmo
para os grupos sob controle de fundos de investimentos e, mais genericamente, os grupos que
tenham como objetivo o lucro. Objetivamente, é imperioso desmercantilizar a educação, o que
requer interromper o generoso repasse do fundo público para as corporações mercantis. Sem
isso, teremos o domínio de grandes grupos educacionais que simplesmente não irão produzir o
conhecimento e formar as novas gerações com o rigor e a complexidade que a situação do
mundo requer.
Ao mesmo tempo, será indispensável, desde o presente, viabilizar um ambicioso
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Programa de Desenvolvimento Institucional das universidades e institutos públicos que
contemple: i) concursos que assegurem a estabilidade, a dedicação exclusiva e a aposentadoria
integral de todos os servidores; a requalificação das instalações, da infraestrutura e a realização
dos investimentos interrompidos ou não efetivados; iii) a redefinição, em profundidade, da
metodologia de financiamento do custeio e do capital das universidades, assegurando
previsibilidade e o efetivo gozo da autonomia de gestão financeira e patrimonial, meios para
contrarrestar a depreciação das instalações e equipamentos, assim como para requalificar de
modo abrangente o patrimônio histórico, os hospitais universitários, laboratórios de uso
múltiplo e assim por diante. Desse modo, será possível retomar a expansão interrompida a partir
de 2015, reposicionando o lugar das universidades nas prioridades da nação.
É imperioso que o fortalecimento das universidades seja realizado contemplando seus
nexos com a educação básica, especialmente na formação de professores como intelectuais
organizadores da cultura, discutindo e apoiando reformas curriculares, ampliando a circulação
de docentes e estudantes da educação básica nos laboratórios e demais espaços universitários,
assim como nos seus programas de pós e de extensão.
A incipiente, mas importantíssima, mudança no perfil socioeconômico e racial dos
estudantes, possibilitado pela democratização do acesso, exige a ampliação consistente e
planificada de vagas públicas e gratuitas, assim como mudanças na forma de acesso buscando
conexão mais estreita com a educação básica pública. Entretanto, a democratização do acesso
exige robustas políticas de assistência estudantil que ultrapassem a ‘bolsificação’ da assistência
estudantil. De fato, moradias estudantis dignas, transporte, infraestrutura para estudo,
restaurantes universitários são condição obrigatórias para a democratização. Desse modo, o
atual decreto do Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) deve dar lugar a uma
generosa lei com tal fim, assegurando recursos específicos.
Finalmente, a universidade somente poderá ter uma função construtiva com substanciais
mudanças nas políticas de fomento à Ciência e Tecnologia, valorizando a autonomia
universitária, o fortalecimento das instituições universitárias e cientificas, por meio de
orçamentos que contemplem a infraestrutura básica de pesquisa, e o estabelecimento de
diretrizes para o fomento científico que impeçam que a ciência, a arte e a cultura sejam
fagocitadas pelo inovacionismo. Com isso, aberturas epistemológicas poderão ganhar força, por
meio de diálogos interculturais e com os sujeitos que, coletivamente, buscam e praticam o bem-
viver dos povos. Todas essas frentes, embora específicas, são cruciais para a derrota da perigosa
aliança entre o neoliberalismo extremo abraçado pelos setores dominantes com o neofascismo
que busca moldar a autocracia burguesa no tempo presente. Com as lutas em defesa da educação
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pública, da ciência, da tecnologia e da cultura, contribuímos para a luta em prol de uma
democracia constituída pela democracia econômica e pela democracia política: somente com
as duas dimensões teremos, de fato, a democracia que retoma nos Quaderni. Isso significou
para Gramsci que era finita a época da revolução-insurreição, da "guerra de movimento" do
século XIX, da qual a Revolução Russa foi o último episódio em 1917, e começou uma luta
revolucionária pela transformação gradual da sociedade, com a conquista de “fortalezas” e
“casamatas” e a formação de um novo “senso comum das massas” (Q 8, § 213). Sempre com o
objetivo de sair do capitalismo (essa é a diferença com a social-democracia clássica, com o
reformismo clássico). E usando e expandindo a democracia. "Reformismo revolucionário" tem
para mim o significado de uma retomada do ensinamento mais importante, talvez, de Gramsci,
vinculado ao conceito de hegemonia e de "reforma intelectual e moral". E da revolução do
conceito de revolução.