DOI 10.34019/1980-8518.2021.v21.34872
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 21, n.2, p. 712-726, jul. / dez. 2021 ISSN 1980-8518
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Representações Sociais, Percepções e
Identidades da Comunidade LGBTQ+ em uma
Prisão portuguesa
Social Representations, Perceptions and Identities of the LGBTQ+
Community in a Portuguese Prison
Jacqueline Marques*
Inês Van Velze**
Resumo: A natureza autoritária da prisão potencia a
vulnerabilidade dos reclusos, sendo que para os
pertencentes à comunidade LGBTQ+ os níveis de
vulnerabilidade são maiores do que os seus pares
hetero/cisgénero. Este estudo procurou analisar
perceções e representações sociais da comunidade de
reclusos de uma prisão portuguesa acerca de pessoas
LGBTQ+. A parte de carácter descritivo-
correlacional foi realizada através da escala de Auto-
estima, Representações e Visões da Sexualidade
(MILLER, 2017) e da escala Apectos Cognitivos,
Comportamentais e Afectivos da Homofobia
(WRIGHT, ADAMS & BERNAT, 1999). Na parte
aprofundamos o caso de três reclusos. Os resultados
demonstraram a dificuldade de em um ambiente
heterocêntrico como as prisões preservar uma
identidade heterossexual, o que leva a uma cisão
entre orientação sexual e o comportamento
correspondente. As narrativas de reclusos que se
assumem como LGBTQ+ na prisão indicam
experiências marcadas pela discriminação e
homofobia.
Palavras-chave: LGBTQ+; comunidade reclusa
LGBTQ+; homofobia
Abstract: The authoritarian nature of prison
enhances the vulnerability of inmates, being that for
those belonging to the LGBTQ+ community the
levels of vulnerability are higher than their
hetero/cisgender peers. This study sought to analyse
perceptions and social representations of the inmate
community of a portuguese prison about LGBTQ+
people. The 1st part of descriptive-correlational
nature was carried out through the Self-esteem,
Representations and Views of Sexuality scale
(MILLER, 2017) and the Cognitive, Behavioural
and Affective Affects of Homophobia scale
(WRIGHT, ADAMS & BERNAT, 1999). In the 2nd
part we delved into the case of three inmates. The
results demonstrated the difficulty of in a
heterocentric environment like prisons to preserve a
heterosexual identity, which leads to a split between
sexual orientation and the corresponding behaviour.
The narratives of inmates who assume themselves as
LGBTQ+ in prison indicate experiences marked by
discrimination and homophobia.
Keywords: LGBTQ+; LGBTQ+clusive
community; homophobia
Recebido em: 15/07/2021
Aprovado em: 02/11/2021
* Doutorada em Serviço Social. Docente na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Instituto de
Serviço Social, Lisboa/ Portugal; Docente da licenciatura e mestrado.
** Assistente Social, licenciada pela Universidade de Coimbra, Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação,
Coimbra/ Portugal,
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Sexualidade em meio prisional e a comunidade LGBTQ+
A sexualidade pode ser compreendida como um conjunto de comportamentos e
orientações acerca da orientação sexual, que constitui uma dimensão importante da identidade
de um indivíduo. No entanto, na prisão, a vida sexual não se harmoniza com as noções
dominantes de sexualidade e, frequentemente, os atos entre pessoas do mesmo sexo não
conferem nem implicam uma identidade homossexual. É necessário reconhecer que, apesar das
atitudes e normas sociais dominantes serem cada vez mais tolerantes em relação a orientações
e identidades não heteronormativas, as representações sociais da sexualidade no meio prisional
são marcadas por dinâmicas e estratificações diferentes que devem ser interpretadas.
Para se compreender questões como a orientação, identidade e comportamentos
homossexuais na prisão é preciso separar que o comportamento sexual está relacionado com a
identidade sexual e perceber como a autonomia limitada de pessoas em situação de reclusão
contribui para variadas construções do conceito de sexualidade. Estando encarcerados, os
reclusos experienciam diversas formas de privação não estando, apesar disso, livres da
influência das normas sociais dominantes. No entanto, estas normas raramente se encaixam nos
contextos prisionais, dando lugar a uma renegociação da sexualidade, num ambiente
heterocêntrico e homofóbico que é composto por pessoas do mesmo género (SIT &
RICCIARDELLI, 2013).
Estudos documentam que atos entre pessoas do mesmo sexo na prisão podem ser
voluntários e involuntários ainda que a sua frequência seja difícil de estimar (GIBSON &
HENSLEY, 2013). As estatísticas que dizem respeito a assédio sexual e violação são baixas,
mas é necessário introduzir fatores como a coação e a estigmatização que justificam que
algumas situações não sejam reportadas. Gibson & Hensley (2013) referem que a generalidade
das investigações integram quase exclusivamente os comportamentos coercivos invisibilizando
o papel do desejo e intimidade em atos sexuais consentidos e, desse modo, assumem que
relações entre pessoas do sexo masculino na prisão são inerentemente baseadas na agressão e
vitimização. Observam, também, como os estudos raramente avaliam as inconsistências entre
a orientação sexual declarada dos reclusos e o seu comportamento na prática havendo, em vez
disso, uma tendência para se focarem quer nas características das vítimas e dos perpetradores,
quer nas circunstâncias hostis em que os relacionamentos ocorrem.
Alguns autores, acórdãos judiciais e relatos descrevem o fenómeno dos “homossexuais
Acrónimo para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgénero e Queer. É uma fórmula em expansão (daí se remate a
sigla com um +) utilizada para designar não pessoas que se definam nestas identidades, mas também muitas
outras que não se insiram na normatividade heterossexual/ cisgénero: intersexo, assexuais, pansexuais e outras.
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predadores” na prisão, relacionado com situações de assédio e violação. No entanto, os reclusos
que se identificam como LGBTQ+, ou no caso como gay, enfrentam probabilidades muito mais
altas de ser vítimas de assédio e violação do que serem eles próprios os perpetradores
(RICCIARDELLI et al, 2016). Isto significa que, até um certo ponto, o termo homossexual é
enganador na medida em que ignora o facto de que a vasta maioria de agressores sexuais na
prisão não se a si próprio como gay e que a maior parte dos agressores considera-se
heterossexual e a vítima como substituição de uma mulher. Nesta perspetiva, o ato não é
objetivado como uma relação entre dois homens, mas sim uma dinâmica de agressão-
subjugação, em que se alguma das partes for percecionada como sendo gay será forçosamente
a vítima (ainda que a sua orientação sexual possa ser claramente heterossexual).
Este tipo de entendimento é válido, mas não pode ser generalizável, correndo-se o risco
de que os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo sejam vistos como sendo fruto de uma
situação de privação sexual, o que pode levar a um deslize conceptual em que toda a atividade
sexual na prisão se reduz a formas de coerção. A própria perceção dos reclusos acerca da
sexualidade esbate as fronteiras entre heterossexualidade e homossexualidade pela sua fluidez,
questionando as conceções modernas de sexualidade estática e demonstrando que a orientação
e identidade sexual não são necessariamente fixas nem estáveis ao longo da vida, mas sim
navegáveis, adaptáveis, e talvez não-binárias
.
Sit e Ricciardelli (2013) analisaram as atitudes e perceções de reclusos canadianos
acerca da sexualidade e comportamentos sexuais e concluíram que a heteronormatividade e a
homofobia estão muito difundidas na cultura prisional. No seu estudo observaram como os
conceitos de homossexualidade situacional e verdadeira são empregues pelos reclusos, que
expuseram maioritariamente narrativas gays versus hétero, nas quais a prevalência da
homofobia molda a forma como os reclusos negociam a sua identidade e comportamentos de
maneira a não incluir completamente uma identidade homossexual verdadeira. As autoras
chegam a esta conclusão a partir das incongruências e contradições nas respostas dos reclusos
entrevistados, em que muitos negam veementemente ter conhecimento de qualquer tipo de
atividade sexual na prisão (envolvendo os próprios ou outros) afirmando, no entanto, e ao
mesmo tempo, que atividades entre pessoas do mesmo sexo são uma componente incontornável
da vida na prisão. Deste modo, podemos separar o conceito de identidade sexual do de
orientação sexual, concebendo-se a primeira como uma identidade emergente e passível de
transição e aceitando-se que as duas podem não ser coincidentes quando visto à luz dos padrões
Termo que abarca várias identidades diferentes dentro de si, para identidades de género que não sejam integral e
exclusivamente homem ou mulher estando fora do conceito binário de género e da cisnormatividade.
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heteronormativos e cisgénero
.
Butler (2011) explica como as representações sociais se entrelaçam com questões
discursivas de poder, em que uma identidade LGBTQ+ é apresentada como desviante da
heteronormatividade. Nesta ótica, considera-se que a associação com qualquer subgrupo não
heteronormativo não é feita sem vergonha ou estigma associados. A vergonha, como emoção
negativa, deriva de um sentimento de responsabilização por falhar aos padrões pessoais e
sociais, internalizando-se como um sentido de desadequação da pessoa. Já o estigma, por outro
lado, é um conceito basilar e estruturador, que infere de forma negativa na identidade social de
uma pessoa dentro de um grupo, que é de forma sistémica desvalorizada. Ao lidar com uma
identidade estigmatizada reúne-se o estigma e a vergonha numa ambivalência identitária que
permite que o sentimento de vergonha seja utilizado como mecanismo regulatório, numa
tentativa de reduzir as barreiras sociais produzidas pelo estigma.
Sendo a homossexualidade, muitas vezes, vista como um estilo de vida aberrante, Herek
(1986) considera que muitos indivíduos vêm esta orientação como uma ameaça ao seu conceito
de identidade. Em consequência, esta crença ideológica na masculinidade heterossexual leva a
que pessoas heterossexuais, especialmente homens, desenvolvam uma espécie de ansiedade
perante a possibilidade de não corresponder a essas expectativas sociais. Esta ansiedade leva à
rejeição veemente de homens gay como meio de reafirmar a masculinidade do rejeitador, aquilo
que Herek apelida de função defensiva da homofobia. E enquanto a rejeição se pode expressar
de várias formas, desde a manifestação de repulsa ou desaprovação, aos abusos físicos e verbais,
a homofobia exprime-se como uma identificação das pessoas homossexuais como um símbolo
do que as pessoas heterossexuais não são (HEREK, 1993).
Outros estudos sobre homofobia corroboram a teoria de Herek (1986) de que a
masculinidade heterossexual pressupõe um preconceito anti-gay: Black & Stevenson (1984) e
Sinn (1997) referem que os indivíduos do sexo masculino, especialmente aqueles que quando
evocam o conceito de uma pessoa homossexual visualizam um homem gay (e não uma mulher
lésbica), têm reações de rejeição mais vincadas e que os indivíduos mais homofóbicos tendem
a ter crenças mais fortes nos papéis de género tradicionais.
Na prisão, reclusos LGBTQ+ reportam frequentemente que não recorrem nem
participam em programas ou serviços de reabilitação por receio de sofrer abusos físicos e
psicológicos por parte de outros reclusos e até do staff prisional (MASCHI, REES, KLEIN &
LEVINE, 2015). Num estudo que descreve as experiências de ex-reclusos LGBTQ+ todos os
Pessoa cujo género é o mesmo que o designado em seu nascimento, configurando uma concordância entre a
identidade de género e o género associado ao seu sexo biológico e/ou designação social.
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participantes reportaram que o estigma social negativo sempre foi uma constante na sua vida
(MASCHI, REES & KLEIN, 2016) e retratam diferentes estratégias de coping, nomeadamente
a utilização de um discurso e postura seletivos que variam de acordo com o interlocutor e
circunstâncias.
Se a hostilidade e a violência são transversais e comuns no ambiente prisional o caso da
transfobia reveste-se de características específicas. Estudos sobre violência na prisão,
nomeadamente na Califórnia, apresentam que mulheres transsexuais (M2F
) em prisões
masculinas têm uma probabilidade 13 vezes maior de serem vítimas de violência sexual por
parte dos seus pares (JENNESS, MAXON, MATSIDA, & SUMNER, 2007). O relatório This
is Prison, Glitter is not Allowed (EMMER, LOWE & MARSHALL, 2011), que voz a pessoas
trans e gender-variant nas prisões da Pensilvânia, considera que os abusos físicos e psicológicos
deste grupo específico não o exclusivos do meio prisional. Com efeito, nos EUA, a taxa de
homicídios de pessoas trans é 17 vezes maior que a média nacional e a violência não fatal contra
pessoas trans ou gender-variant tende a ser sub-reportada. Estas estatísticas refletem a atitude
geral de uma sociedade para com esta comunidade, atitude que se propaga ao meio prisional e
é amplificada pelas vulnerabilidades da reclusão.
Também a nível médico as necessidades de reclusos transsexuais/transgénero são
frequentemente tratadas como um assunto administrativo e não como questões de saúde, com
políticas institucionais que não contemplam, ou mesmo impedem, a administração adequada de
terapias hormonais ou outros cuidados de saúde relacionados com o processo de transição. A
terapia hormonal é apenas uma das dificuldades com as quais os reclusos deste grupo se
deparam, mas pode ser vista como indicador da vulnerabilidade acrescida com que lidam as
pessoas da comunidade LGBTQ+ na prisão.
Metodologia
O estudo dividiu-se em duas partes. A primeira, de carácter quantitativo e descritivo-
correlacional, procurou identificar as perceções e representações sociais da comunidade geral
de reclusos, de um Estabelecimento Prisional do centro de Portugal, acerca de pessoas
LGBTQ+. Para o efeito, utilizamos duas escalas: i) a escala Auto-estima, Representações e
Visões da Sexualidade (MILLER, 2017, tradução e adaptação por van Velze, 2018), de modo a
identificar se a auto-estima, discrepâncias nos papéis de género e atributos sociais relacionados
M2F/ F2M - Male to female/ female to male: pessoa transgénero que fez (ou está em processo de fazer) a transição
de homem para mulher, ou de mulher para homem.
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com o conceito de masculinidade hegemónica
compreendem em si fatores preditivos de
homofobia e; ii) a escala Apectos Cognitivos, Comportamentais e Afectivos da Homofobia
(WRIGHT, ADAMS, & BERNAT, 1999, tradução e adaptação por van Velze, 2018), para
analisar em que moldes essa homofobia está internalizada, estabelecendo uma análise em três
vertentes: a) cognições negativas relativas à homossexualidade, b) reações emocionais
negativas e evitamento de indivíduos homossexuais e, c) reações emocionais negativas e
agressão dirigida a indivíduos homossexuais.
A validade concorrente da escala original foi estabelecida utilizando o Index de
Homofobia (HUDSON & RICKETTS, 1980) e as respostas foram preenchidas segundo uma
Escala de Likert de 5 pontos.
Este estudo partiu de uma amostra de 60 reclusos, de um universo de 535, o que
corresponde a cerca de 11%. Os participantes foram selecionados aleatoriamente, pelo seu
número de recluso, chamando-se 10 números de cada centena, em dezenas previamente
definidas. O único critério de exclusão foi a não-alfabetização por se considerar que
condicionaria fortemente a autonomia e privacidade da resposta. Foram excluídas 6 respostas
pois as escalas não foram corretamente preenchidas. Foi realizado um pré-teste com o primeiro
grupo (7 participantes), constatando-se que todos preencheram o questionário sem dificuldades
de maior, após uma breve explicação sobre a Escala de Likert. Todos os participantes foram
informados de que a sua participação seria anónima e completamente voluntária podendo
desistir a qualquer momento.
Os dados foram tratados estatisticamente no seu conjunto utilizando o IBM
SPSSStatistics 23. Foram determinadas as estatísticas descritivas de tendência central das
variáveis sócio-demográficas, das subescalas da primeira parte da escala e do conjunto de itens
da segunda escala. Da análise do conjunto de dados obtidos, e para cada uma das subescalas
dos instrumentos, foram encontrados os seguintes valores de consistência interna (Alpha de
Chronbach):
I. Escala para Auto-estima, Representações e Visões da Sexualidade: A)
Informação Sócio-demográfica: 3 itens: idade, escolaridade, orientação sexual;
B) Auto-estima pessoal: 8 itens, α= .76 comparação a α= .88 na de Miller; C)
Auto-estima na visão de género: 3 itens, α= .76 comparação a α= .73 na de
Miller; D) Papéis Sociais Masculinos: 14 itens, α= .83 comparação a α= .76 na
Por masculinidade heterossexual entende-se a pressão cultural exercida sobre os indivíduos do sexo masculino
no sentido de corresponderem aos padrões sociais de masculinidade hegemónica e rejeitarem características
femininas como socialmente inaceitáveis.
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de Miller; E) Sexualidade e Auto-estima: 6 itens, α= .77 comparação a α= .93
na de Miller; F) Homofobia: 10 itens, α= .92 comparação a α= .95 na de Miller.
II. Escala para Aspectos Cognitivos, Comportamentais e Afectivos da Homofobia:
25 itens, α = .965. desconhecem-se os resultados obtidos no estudo dos autores
da escala.
Aplicando o teste de Kolmogorov-Smirnov constatou-se que a distribuição de todas as
subescalas da parte I e da parte II são normais pelo que se utilizou o coeficiente de correlação
de Pearson para o estudo das correlações entre as diversas variáveis e subescalas.
A segunda parte do estudo de carácter qualitativo consistiu na entrevista narrativa de 3
reclusos que se apresentaram como pertencentes a comunidade LGTBQ+. As entrevistas
decorreram no estabelecimento prisional em uma ou duas fases, dependendo do caso, das
limitações de espaço e tempo e de acordo com um guião. Procurou-se fazer um breve percurso
pela história de vida e experiência na prisão. Os três entrevistados foram informados acerca dos
objetivos do estudo e concordaram que os seus dados fossem apresentados sob um nome
fictício.
Resultados
No que respeita à idade, 38% dos participantes têm entre 30 e 39 anos, seguindo-se o
intervalo de idades entre os 40 e 49 anos (25%) e 18-29 anos (23%). Cerca de 11% dos
participantes têm mais de 50 anos. Quanto à orientação sexual 81% dos participantes
declararam ser heterossexuais (49 casos), 3% assumiram ser homossexuais (2 casos), 3%
declararam ser assexuais
(2 casos) e 12% assinalaram as opções “outra/prefiro não responder”
(7 casos). Na escolaridade observa-se que cerca de 37% dos participantes possuem ou
frequentam o ano do ensino básico (22 casos), seguidos de perto do ensino secundário com
35% (21 casos); 13 participantes assinalaram possuir ou frequentar o 6º ano (cerca de 22%), 2
participantes possuem o 4º ano (3%) e 2 frequentaram o ensino superior (3%).
A subescala B diz respeito à Auto-estima, indicando que quanto menor a pontuação
maior a auto-estima. Situando-se a média das respostas nos 2.27 σ= .685 os resultados sugerem
uma boa auto-estima. A subescala C trata da Auto-estima e Visão de Género, indicando que
quanto menor a pontuação maior a auto-estima. Situando-se a média das respostas nos 1.55 σ=
.665 os resultados sugerem haver uma forte auto-estima de acordo com a visão de género. A
Inexistência de atração sexual por qualquer pessoa ou pequeno ou inexistente interesse nas atividades sexuais
humanas.
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subescala D diz respeito aos Papéis de Género, indicando que quanto menor a pontuação maior
a adesão a papéis de género masculinos tradicionais, sendo um indicador de masculinidade
hegemónica/ heterossexual. Situando-se a média de respostas nos 3.65 σ= .747 os resultados
indicam uma adesão tendencialmente negativa aos papéis de género masculinos tradicionais. A
subescala E trata da Auto-estima e Percepções da Sexualidade, indicando que quanto menor a
pontuação maior a auto-estima. Situando-se a média de resposta nos 1.74 σ= .652 os resultados
sugerem haver uma forte auto-estima no que diz respeito à sexualidade. A subescala F avalia a
Homofobia, indicando que quanto menor a pontuação maior a homofobia. Situando-se a média
de respostas nos 3.05 os resultados sugerem haver uma visão medianamente homofóbica. No
entanto, esta foi a dimensão em que se verificou uma maior variabilidade nas respostas com um
σ = 1.077. A segunda escala de Homofobia (G) avalia aspetos cognitivos, comportamentais e
afetivos da homofobia, indicando que quanto maior a pontuação maior a homofobia. Situando-
se a média de respostas nos 2.37, os resultados indicam uma tendência negativa na homofobia
internalizada. No entanto, semelhante à F, foi também nesta escala que se verificou uma maior
variabilidade nas respostas com um σ = 1.053.
No que diz respeito às diversas variáveis da amostra em estudo, não se encontrou
correlação estatisticamente significativa entre as variáveis “Idade” e “Escolaridade” com as
diversas escalas e subescalas.
Encontrou-se correlação estatisticamente significativa entre a variável “Orientação
Sexual” e as seguintes escalas e subescalas: “Auto-estima e Visão de Género” (F= .298 com
p0.05), “Homofobia” (F=.307 com p0.05) e “Aspectos Cognitivos, Comportamentais e
Afectivos da Homofobia” (F= -. 298 com p0.05). Não se encontrou uma correlação
estatisticamente significativa entre as três variáveis “Auto-estima”, “Auto-estima e Visão de
Género” e “Auto-estima e Percepções da Sexualidade” e a “Aspectos Cognitivos,
Comportamentais e Afectivos da Homofobia”. Encontrou-se uma correlação negativa forte (F=
-.733 com p 0.01) entre a variável “Papéis de Género” e a Escala G, o que indica que quanto
maior a adesão aos papéis de género tradicionais masculinos maior a homofobia. No que
respeita à subescala F e a escala G encontrou-se uma forte correlação entre ambas (F= -.899
com p 0.01), o que indica uma sólida validade concorrencial na pesquisa dos conceitos em
causa. O facto de a correlação ser negativa nos dois pontos anteriores deve-se ao sentido das
respostas ser oposto entre dois questionários.
Avaliando a relação entre padrões sociais de masculinidade hegemónica e a sua
transposição como preditores de homofobia pode-se concluir que nem todos os descritores
avaliados se podem considerar preditores de homofobia. Os resultados mostram que, nesta
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população, a idade e a escolaridade não se correlacionam com comportamentos homofóbicos,
que por sua vez também não aparentam ter uma correlação com fatores como a auto-estima.
Há uma correlação estatisticamente significativa entre a orientação sexual assumida e a
homofobia, havendo uma tendência para que homens heterossexuais sejam mais homofóbicos
que aqueles que manifestam outras orientações, ou preferem não responder, correspondendo às
expectativas. Os resultados sugerem que a homofobia está relacionada com o grau de adesão
aos papéis sociais tradicionais masculinos, mostrando que uma tendência para homens que
sejam mais homofóbicos aderirem também mais fortemente aos papéis de género tradicionais.
Isto vai de encontro a estudos anteriores de Miller (2017), Kilianski (2003) e Keiller (2010) que
encontraram uma correlação significativa entre adesão à masculinidade hegemónica e
heterossexual e a homofobia. Kilianski (2003) teoriza que a maior adesão a papéis sociais
tradicionais masculinos em homens seja, provavelmente, resultado de uma masculinidade
inconscientemente frágil: um receio de encontrar características femininas em si mesmos,
sugerindo que muitos homens heterossexuais estereotipam homens homossexuais como sendo
mais femininos para que possam rejeitá-los e confirmar a sua própria masculinidade.
Sendo a média dos valores obtidos nas respostas ao descritor D – Papéis de Género - de
3.65, sugere uma adesão tendencialmente baixa aos papéis sociais tradicionais masculinos. Põe-
se a hipótese de o meio prisional influenciar a atribuição e identificação com os papéis de género
tradicionais, na medida em que todas as tarefas e profissões (incluindo as tradicionalmente
atribuídas a mulheres) são desempenhadas por homens. Deixa-se em aberto a hipótese de
averiguar se estes constrangimentos, incontornáveis num universo exclusivamente masculino
como a prisão, não produzirão alterações naquilo que são consideradas características
masculinas e femininas, modificando os padrões sociais respeitantes ao conceito de
masculinidade hegemónica.
Considerando-se a amostra generalizável ao resto da população prisional constata-se
que apesar de, no geral, não ser um meio assumidamente muito homofóbico, existem casos de
posições extremadas, facto confirmado pela análise dos dados qualitativos.
Na segunda parte do estudo, efetuado a partir das entrevistas narrativas, procuramos
analisar a experiência e vivência de reclusos da comunidade LGBTQ+ em uma prisão
portuguesa.
O primeiro caso é do Lucas, com 20 anos e uma pena de 140 dias de multa por furto
simples. É o segundo mais novo de uma fratria de 5 irmãos, tendo os dois mais velhos falecido
cerca de 10 anos, perdas que muito o marcaram. O Lucas fez um percurso escolar normal,
ingressou na universidade aos 18 anos, mas desistiu no primeiro semestre para tentar uma
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carreira como modelo. Diz que desde criança percebeu ser homossexual tendo-se assumido
perante a família um ano. A mãe aceitou de forma natural, mas o pai reagiu de forma
agressiva e relutante. Mantém uma relação muito próxima com a mãe e com os irmãos que
aceitaram a sua sexualidade assumindo uma postura protetora, embora se tenham distanciado
um pouco desde a sua prisão.
Na prisão optou por assumir a sua orientação sexual numa postura aberta e declarada.
Foi alvo de chacota nas primeiras semanas, mas refere que depressa a relação com os outros
reclusos se normalizou. Na primeira semana, foi agredido por um outro recluso, situação que
atribui a preconceitos homofóbicos, devido à sua maneira de ser:
“Mal cheguei levei uma “sova de cinto” de um cigano, que disse que eu era
uma bicha nojenta, um pecado e uma maldição, mas a seguir mudaram-no de
ala. Também havia outro que me estava sempre a roubar a comida que a minha
mãe trazia e eu deixava porque ainda não conhecia ninguém e tinha medo dele.
Mas, entretanto, esse também se foi embora, e nunca mais ninguém me
incomodou. Na minha camarata às vezes fazem piadas e chamam-me princesa
ou floribela, mas é na brincadeira e eu não levo a mal. Com os guardas nunca
houve problema, pelo contrário sempre foram muito atenciosos e simpáticos
e às vezes acho que até são mais tolerantes comigo. No outro dia o guarda
apanhou-me à conversa na camarata do meu namorado e disse «Ó
borboleta, já para a tua cela!». Se fosse outro recluso qualquer já tinha levado
uma participação
O Lucas é um jovem delicado, educado e sensível, e apesar da hostilidade inicial que
experienciou na prisão as suas características de personalidade têm funcionado como fator de
proteção. Optou por assumir a sua sexualidade justificando que lhe seria impossível escondê-
la. No entanto, refere ter conhecimento de outros reclusos que escolheram não se assumir, por
receio de maus tratos, e sublinha que deveria haver um cuidado acrescido, especialmente da
parte dos guardas, de o partilhar informação pessoal e jurídica dos reclusos por os colocar
em risco. Refere que um outro recluso com quem trocava correspondência se queixava de
abusos físicos e psicológicos e que na prisão “não segredos”, especialmente no que toca a
situações de abuso e assédio sexual:
“No início há duas pessoas que sabem, a vítima e o abusador, certo? Só que
depois se a vítima se queixa e pede proteção passam a saber os guardas
também. Daí até toda a gente saber é um instante. E depois é aquela coisa dos
homens que têm a mania que são muito machos – parece que têm mais medo
que os outros achem que eles são bichas, do que de continuar a ser abusados.
O medo e a vergonha são coisas muito fortes”.
O segundo relato é do Minou, com 42 anos, uma pena de 1 Ano e 8 Meses por furto
qualificado e invasão de propriedade. Minou identifica-se como uma mulher transsexual,
lésbica, com “certas doses subtis de masculinidade, condicionada pelo meio ambiente”, factos
com que justifica a sua aparência andrógina e juvenil. Como Minou não iniciou ainda o seu
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processo de mudança de sexo faz referência a si próprio no masculino, por essa razão e devido
à inexistência de um pronome neutro mais adequado optou-se por descrever a sua narrativa no
masculino. Minou nasceu fruto de uma relação extra-conjugal e aos 2 anos foi retirado do
cuidado da mãe biológica, tendo crescido no agregado familiar do seu pai, irmãos e madrasta,
que apelida também de mãe. Esta é uma família de classe média-alta com quem refere que os
relacionamentos afetivos foram difíceis desde a infância:
“Desde que me lembro, as pessoas olhavam para mim como se eu fosse
diferente. Com 6 anos comecei a fugir de casa, a polícia ia buscar-me mas
nunca ninguém da minha família se sentou comigo, olhou para mim, e me
perguntou porquê. Aos 7 anos a minha mãe levou-me ao pedopsiquiatra, que
disse que eu era inadaptado e sobredotado. Não mudou nada. Nunca ninguém
me percebeu. (…) Tiveram um pirilampo nas mãos, mas não o souberam fazer
brilhar”.
O seu percurso de vida tem sido sinuoso e marginal, ausente de qualquer experiência
laboral, com vínculos afetivos ténues e escassos. Esteve preso várias vezes incluindo no
estrangeiro onde passou períodos consideráveis num hospital psiquiátrico. A família nunca
aceitou a sua identidade de género, que desvaloriza e atribui à personalidade desviante, e a
patologias do foro psiquiátrico:
“Soube aos seis anos, quando me olhei ao espelho e tive consciência de mim
próprio, e da dissonância no meu corpo. Quando disse à minha mãe que por
dentro sou mulher, ela disse que eu era um degenerado. O meu irmão dizia
que eu o perturbava. São medíocres e ignorantes. Às vezes as pessoas ditas
normais demonstram ser mais monstruosas e intolerantes que aqueles a quem
chamam de aberrações. (…) Aqui dizem que sou esquisito. O olhar das
pessoas na prisão é desconcertante e invasivo, e eu tenho dificuldade em
interagir com muitas pessoas à minha volta (…) Apesar de tudo, na prisão
raramente tive problemas. Sou naturalmente educado e culto, e as pessoas
tratam-me de maneira adequada. E eu sou discreto, nunca fui «bicha», embora
na minha vida tenha sido frequente confundirem-me com uma mulher.
Mantenho uma postura de «macho» em certas circunstâncias, forçado pelo
contexto. É por isso que ainda falo de mim no masculino (…) Cheguei a pedir
acompanhamento médico para a terapia hormonal, mas disseram-me que aqui
não seria possível. Quando estiver em liberdade tudo vai ser diferente, e vou
poder sair do casulo e apresentar-me como sempre quis ser”.
Minou descreve-se como “tendencialmente egocêntrico e maravilhoso” e a sua
autoimagem elevada parece constituir um fator protetivo funcionando como um escudo no
relacionamento com os outros reclusos, ou pelo menos assim aparenta. Aquando da segunda
entrevista no gabinete ao lado, separado por um vidro, um outro recluso exprimia a sua aversão
e comentava ostensivamente referindo-se a ele como “uma aberração”. Minou permaneceu
imperturbável sorrindo timidamente.
O terceiro caso refere-se ao Abel, de 52 anos, com uma pena de 16 anos por homicídio
qualificado. O Abel perdeu o pai na adolescência. Menciona a perda de um irmão como um
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acontecimento difícil de ultrapassar. Aos 27 anos casou-se com uma mulher, relacionamento do
qual nasceu um filho e que terminou ao final de cerca de 10 anos. Após o divórcio regressou à
casa materna, situação que se foi mantendo, sendo também com a mãe que passa as medidas de
flexibilização da pena. Refere manter bom relacionamento com o filho, apesar de este ainda
não o ter visitado em reclusão. Após ter assumido a homossexualidade, viveu com um
companheiro, vítima do crime, durante 9 meses. Abel deu entrada no Estabelecimento Prisional
cerca de 10 anos, e descreve a evolução da sua experiência na prisão como uma luta constante
por fazer valer os seus direitos, especialmente o direito a ser respeitado. Conta que no início
sofria abusos físicos e psicológicos constantes e que nenhum outro recluso queria partilhar cela
consigo:
“Quando entrei foi horrível. Só de pensar nisso dá-me vontade de chorar. Era
discriminado por toda a gente, batiam-me, insultavam-me, faziam-me de tudo.
Houve um dia em que se juntaram uns quantos, me agarraram, e tentaram
violar-me com um pau de vassoura. sobrevivi porque apareceu um outro
recluso que eu conhecia da outra cadeia e os impediu de fazer isso mesmo no
último momento. Tinha medo de dormir, tinha medo de acordar, tinha medo
de respirar. Cheguei a pensar em por termo à vida, achei que não ia sobreviver
a tanto ódio e a tanta homofobia. Falei com os guardas, falei com o Director,
falei com os médicos, mas ninguém sabia onde me por. A coisa melhorou
quando entrei para a ala C. comecei a trabalhar na cozinha, e a minha
situação começou a acalmar. Mas até isso, no início, foi difícil: quando
comecei ninguém sabia que eu trabalhava na cozinha. Tinham nojo de mim,
os outros reclusos não queriam um «paneleiro» a servir comida. Uma vez
atiraram-me um prato à cabeça. Estavam-me sempre a ameaçar. Ganhei
respeito a muito custo, e com muita ajuda de uma Chefe, que disse que não
deixava que ninguém me agredisse no refeitório, nem saia do meu lado. E não
saiu! Devo-lhe a minha vida. Eu dizia-lhes “Fui eu que fiz o jantar, se quiseres
comer, comes. Se não quiseres, sai-me da frente.” A pouco e pouco foram-me
ganhando respeito”.
Abel refere que o apoio dos guardas, e principalmente de duas Chefes de Guardas, foi
fundamental na sobrevivência à discriminação na prisão. Considera que se sente mais protegido
atualmente, mas sublinha que teve um papel preponderante na mudança do paradigma da cadeia
na medida em que lutou muito para se fazer respeitar e para mudar a mentalidade dos outros
reclusos.
Maschi et al (2016) distinguem as várias estratégias de lidar com violência e abuso na
prisão. As transcrições de entrevistas ilustram como os reclusos optam por assumir uma de três
identidades auto-protetoras: fight, flight, ou keeping out ofsight, em que fight é descrito como
assumir-se abertamente gay e defender o direito a sê-lo se necessário com recurso a uma postura
agressiva; flight assume-se como um afastamento e ocultação da identidade LGBTQ+ motivado
por razões de segurança e; keeping out ofsight traduz-se como assumindo a sua identidade e
orientação seletivamente com quem se considere ser seguro. No entanto, no caso de reclusos
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transsexuais/trangénero ou two-spirit/ intersexo/ gendervariant, cujas características sejam
evidentes, manter-se discreto não é uma opção propriamente viável.
Com base nos dados recolhidos, pode-se afirmar que a discriminação e a homofobia
continuam presentes nas experiências de pessoas LGBTQ+ na prisão. Apesar disso, verifica-se
uma evolução acompanhando, provavelmente, a evolução da sociedade portuguesa. A
mentalidade na prisão é importada do exterior adquirindo, porém, especificidades próprias de
acordo com as dinâmicas do interior. Com efeito, também no ambiente prisional se estará a
assistir a uma maior tolerância a identidades e comportamentos não-heteronormativos.
Considerações finais
A prisão é um ambiente constrito e isolado, mas ao mesmo tempo exposto ao mundo
exterior, exigindo aos reclusos uma negociação das suas experiências que por vezes podem ser
conflituantes com as identidades que trazem do exterior. Os reclusos reivindicam a sua agência
através da construção de identidades e práticas discursivas, que diferem substancialmente de
como a sexualidade é compreendida em meio livre. Reconhece-se que a sexualidade é
conceptualizada de maneira diferente num meio predominantemente masculino: apesar da
heterossexualidade na prisão se articular com as narrativas e representações sociais dominantes,
importadas do exterior da prisão, estar-se preso é uma realidade que não se coaduna com os
padrões sociais do exterior, exigindo que a sexualidade seja, de certo modo, repensada de
acordo com o contexto penal. Num ambiente heterocêntrico como as prisões preservar uma
identidade heterossexual, repensando a sexualidade, leva a uma cisão entre orientação sexual e
o comportamento correspondente: observa-se que é possível que os reclusos construam uma
definição da sexualidade que permite comportamentos homossexuais dentro de uma identidade
heterossexual. Apesar de, pelas noções normais, isto ser contraintuitivo, dentro de um ambiente
tendencialmente homofóbico, heterocêntrico e, quase exclusivamente, masculino o
comportamento e a identidade podem ter correspondências diferentes, sem questionar as
estruturas epistemológicas heteronormativas que edificam a cultura prisional.
As narrativas de reclusos que se assumem como LGBTQ+ na prisão indicam que as suas
experiências no sistema penal português continuam a ser marcadas pela discriminação e
homofobia, especialmente da parte dos seus pares. O meio prisional apresenta insuficiências
estruturais ao nível do acompanhamento e intervenção no percurso dos reclusos. O medo da
discriminação e exclusão condiciona ainda mais a acessibilidade a serviços de si
reduzidamente disponíveis, podendo levar a um subdiagnóstico das necessidades reais. No que
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respeita ao staff prisional seria útil formação específica, nomeadamente no que diz respeito à
educação para o reconhecimento e intervenção em situações de agressão, violência sexual e
abusos físicos e psicológicos. É referido haver uma tendência para percecionar a vitimização
como “prova” de homossexualidade, permitindo a continuidade de situações de abuso e
violação.
Um percurso mais justo e humano das pessoas LGBTQ+ pelo sistema prisional é uma
necessidade premente. Parte-se da convicção de que a conjuntura sócio-política nacional e
internacional, cada vez mais, reconhece e valoriza os direitos LGBTQ+ como direitos humanos
e repudia que pessoas sejam vítimas de violência e discriminação por causa de quem amam ou
por causa de quem são, incluindo na prisão. Esta é a altura ideal para pressionar para a mudança
e exigir leis e políticas institucionais que protejam a dignidade de todos.
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