DOI 10.34019/1980-8518.2021.v20.34169
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 21, n.1, p. 347-356, jan. / jun. 2021 ISSN 1980-8518
Gramsci: seu tempo e o nosso tempo
Entrevista com Guido Liguori
*
Abril de 2021
ENTREVISTADORAS:
Ivete Simionatto; Maria Lúcia Duriguetto
**
E- De forma simplificada, alguns analistas argumentam que Gramsci seria politicista,
entre outros elementos, por não trabalhar as determinações econômicas na estratégia
revolucionária de construção do socialismo. Como o professor analisa esse tipo de perspectiva?
GL- Seguramente Gramsci dedicou grande parte de sua reflexão ao "fator político", em estreita
ligação tanto com o "social" (nos anos dos Conselhos e do Biênio Vermelho
1
, mas não só) quanto
com o "cultural" (uma constante de sua reflexão, desde os anos de Torino e do artigo Socialismo
e cultura, de 1916, aos escritos do cárcere). A economia, porém, não é negligenciada e a
acusação de politicismo soa estranha. Em primeiro lugar porque Gramsci no Quaderni
*
Guido LIGUORI é professor de história do pensamento político na Universidade da Calábria e, atualmente, é
presidente da International Gramsci Society Italia (IGS Italia). É autor de Gramsci conteso: Storia di um dibattito
1922-1996 (1996) e Sentieri gramsciani (2006, - publicado no Brasil pela editora da UFRJ, em 2007, com o título
Roteiros para Gramsci), entre outros. Organizou juntamente com Pasquale Voza o Dicionário Gramsciano (1926-
1937), publicado em 2020 no Brasil pela Boitempo Editorial.
**
SIMIONATTO, I. (Professora titular aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina. Integra o Grupo de
estudos Antonio Gramsci da UFSC e o Núcleo de estudos - Estado, sociedade civil, políticas públicas e Serviço
Social do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da UFSC. DURIGUETTO, M. L.; (Professora Titular da
Universidade Federal de Juiz de Fora Pós-Doutorado pela Fundação Instituto Gramsci - Roma – Itália e integra o
Grupo de Pesquisa Serviço Social, Movimentos Sociais e Políticas Públicas da Faculdade de Serviço Social da
UFJF). Tradução e notas [NT] de Ronaldo Vielmi Fortes.
1
[NT] O Biênio Vermelho (Biennio Rosso) foi um período de dois anos, compreendido entre 1919 e 1920, ocorrido
logo após a Primeira Guerra Mundial, caracterizado por um intenso conflito social na Itália. No período, ocorreram
várias greves de massa, manifestações de trabalhadores, e experiências de autogestão que se deram por meio da
ocupação de fábricas e pela coletivização das terras. Nas cidades de Turin e Milão, conselhos de trabalhadores
foram formados e várias fábricas foram ocupadas sob a liderança de anarcossindicalistas. Ao período
revolucionário se seguiu, em 1922, a reação violenta dos camisas negras fascistas e pela Marcha sobre Roma sob
a liderança de Benito Mussolini.
---------- Entrevista ----------
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esclareceu, no entanto, que a hegemonia deve incidir na esfera política, social e cultural, mas
em ligação indispensável à econômica, escrevendo entre outras coisas: “se a hegemonia é ético-
política, não pode deixar de ser também econômica, não pode deixar de ter o seu fundamento
na função decisiva que o grupo dirigente exerce no núcleo decisivo da atividade econômica”
(Q 13, § 18). Em segundo lugar, porque nos Quaderni existem elementos de análise econômica,
no que diz respeito às categorias de "mercado determinado", "Homo oeconomicus", "queda
tendencial da taxa de lucro" etc. (para aprofundar todos estes conceitos, remeto ao Dicionário
Gramsciano 1926-1937, editado com Pasquale Voza e traduzido para o Brasil pela editora
Boitempo). Por fim, mas não menos importante, é preciso lembrar que a partir da década de
1970 foi revelado que Gramsci havia dedicado uma análise muito mais aprofundada à dimensão
política que outros marxistas e que o próprio Marx, pelo menos no que diz respeito aos países
mais desenvolvidos, preenchendo de certa forma um vazio. Eric Hobsbawm disse, na
Convenção de Florença de 1977 sobre "Política e História em Gramsci", que Gramsci
finalmente preenchera uma lacuna que existia em Marx e no marxismo, ou seja, uma análise
escassa da política e do Estado. Portanto, este aprofundamento das formas de política que
em Gramsci representa algo a ser apreciado e valorizado, não um limite.
E- Muitos estudos culturalistas utilizam o pensamento de Gramsci como aliado na luta
contra o "determinismo" econômico, na defesa da celebração das diferenças culturais e
subjetivas, na defesa de que as classes sociais não seriam organizadas segundo a mesma
posição na estrutura produtiva, mas por indivíduos e por seus particularismos étnicos,
culturais, sexuais etc. Para o professor, como Gramsci responderia a esses "usos" de seu
pensamento?
GL - Gramsci é um defensor de um marxismo anti-determinista. Essa impostação veio a ele
desde sua formação cultural juvenil, que ocorreu nos anos de reação ao positivismo e o
renascimento do tema da subjetividade, graças à afirmação do bergsonismo, do pragmatismo,
do neo-idealismo, todas as filosofias "do sujeito" em contraste com o "objetivismo" positivista.
Tais influências, que levaram o jovem Gramsci a momentos de hipersubjetivismo idealista,
foram então reduzidas, relativizadas, a partir da Revolução Russa e do estudo da obra de Lênin,
graças aos quais Gramsci se tornou verdadeiramente um marxista. Mas não desapareceram, e o
sujeito, a cultura, a política continuaram a desempenhar um papel importante em seu marxismo,
ainda mais na época da redação dos Quaderni del carcere. Hoje, os estudos culturais muitas
vezes erram ao acreditar que veem em Gramsci o abandono total de uma ótica tipicamente
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marxista, esquecendo que ele parte de sua leitura da realidade caracterizada pela luta de classes.
que sua visão não é a do "economicismo" ou do "materialismo vulgar", é muito mais
complexa. Porque Gramsci não nega, implícita ou explicitamente, que outros fatores (culturais,
étnicos, sexuais, justamente) também entram na constituição da subjetividade, mas acredita que
eles sempre se combinam com a determinação econômico-social, sem cancelá-la. Nesse
sentido, Gramsci recorre à metáfora do esqueleto para representar seu conceito de "bloco
histórico", que é uma relação de influência mútua entre estrutura e superestruturas: "entre
estrutura e superestruturas existe um nexo necessário e vital, assim como no corpo humano
entre a pele e o esqueleto: seria um despropósito se se afirmasse que o homem se mantem ereto
sobre a pele e não sobre o esqueleto, todavia isso não significa que a pele seja uma coisa
aparente e ilusória, tanto mais que não é muito agradável a situação do homem esfolado”(Q 4,
§ 15). O esqueleto é a estrutura, os fatores econômico-sociais, que permanecem fundamentais.
Mas também a "pele", ou todos os outros fatores que não são imediatamente econômicos,
contribuem para determinar os seres humanos como eles realmente são, sua vida efetiva, suas
necessidades. Lembramos que Gramsci nos convida a uma "filologia vivente" (Q 11, § 25), isto
é, a prestar muita atenção ao que as mulheres e os homens realmente são, não a como certos
esquemas teóricos (incluindo os marxistas) gostariam que fossem.
E- Um dos temas importantes e persistentes na reflexão de Gramsci é sobre a “crise
político-social do pós-guerra”. Também vivemos hoje uma crise orgânica - política e
econômica - de grandes proporções. Em sua opinião, como Gramsci nos ilumina para
pensar a respeito da atual crise capitalista acentuada pela pandemia?
GL- Podemos pensar a crise atual como uma "crise orgânica", e também como uma "crise de
hegemonia", que também é um conceito gramsciano (Q 13, 23), ou pelo menos como o início
de uma crise de hegemonia, porque a pandemia mostrou como o egoísmo capitalista, a
privatização da saúde e as indústrias farmacêuticas não nos permitem responder à ameaça de
morte frente a qual a humanidade se encontra. De que vale, por exemplo, que apenas as pessoas
mais ricas possam ser vacinadas? Isso não significa que o vírus deixará de ameaçar a todos. E
o que a economia neoliberal pôde e estava disposta a fazer, diante de uma economia de joelhos
por causa de Covid? Em muitos campos (econômico, social, sanitário), pelo menos em rios
países, como os Estados Unidos ou a Europa, foi necessária uma intervenção massiva do Estado
e da coletividade. Muitas certezas do neoliberalismo também desapareceram no "senso comum"
de massa. A crise é econômica, mas minou ainda mais o "senso comum" sobre o qual a
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burguesia capitalista apoia seu poder. E muitas certezas do mercado ou da iniciativa econômica
privada foram profundamente abaladas.
E- Um dos conceitos centrais da obra de Gramsci é o conceito de Estado, que compreende
a sociedade política e a sociedade civil. Estamos vivenciando um processo crescente de
autonomia da sociedade política em relação à sociedade civil, que aprofunda a separação
entre “governantes e governados”, entre “dirigentes e dirigidos”. Como enfrentar esse
problema hoje na perspectiva da construção de uma "contra-hegemonia"?
GL- No tempo de Gramsci, ele viu a unidade dialética da sociedade política e da sociedade civil
realizar-se sob a hegemonia da sociedade política, ou na presença de um forte fortalecimento
do Estado, muito diferente do Estado liberal do século XIX que Marx enfrentou. Essa
onipresença do estado nos primeiros 70 anos de 1900 teve aspectos fortemente democráticos,
mesmo no Ocidente (o estado de bem-estar), sob a pressão da "ameaça" de popularidade dos
países do "socialismo real". Hoje às vezes parece que o protagonismo do Estado assume cores
"bonapartistas", quando as classes em luta dependem de um indivíduo, de uma "grande
personalidade", muitas vezes não real, mas artisticamente construída pela televisão, pelos mass
media, pela mensagem extremamente simplificada que veiculam, reduzindo a política à escolha
de um belo rosto ou de uma bela voz. Acredito que a estrada para uma "contra-hegemonia" (se
quisermos usar este termo, que porém não é gramsciano: prefiro falar de uma hegemonia
diferente, em luta com a existente) ainda é o da política como uma organização de massa, de
baixo, não apenas de massmedia ou de lideranças. Os líderes também podem desempenhar
papel progressista também importante, como frequentemente tem sido na história do
movimento socialista e comunista, mas somente se são a expressão de um partido, um sindicato,
uma democracia de massas, e o vice-versa. Acredito que devemos ainda almejar a construção
de uma democracia ampla e articulada a partir de baixo, mesmo que a despolitização da
sociedade certamente não ajude a perseguir esse objetivo.
E- Gramsci atribui aos intelectuais um papel decisivo na construção da hegemonia. Como
o professor analisa o papel dos intelectuais na resistência cultural e na luta política na
realidade contemporânea?
GL- É verdade, Gramsci confere grande importância aos intelectuais. No entanto, não penso
que ele alguma vez tenha acreditado na possibilidade de um “protagonismo dos intelectuais”,
como às vezes muitos parecem acreditar hoje. Gramsci sempre acreditou no papel fundamental
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dos intelectuais, mas apenas no âmbito de uma organização política (um partido comunista, por
exemplo), ou mesmo em uma relação forte com as organizações de auto-organização de classe
(os conselhos operários, no tempo da L’Ordine Nuovo
2
, época em que, no entanto, o partido
político também estava bem presente no pensamento gramsciano). A luta por uma hegemonia
diferente foi vista por Gramsci como centrada em torno de um partido político, especialmente
após a fundação do Partido Comunista da Itália, e então na reflexão do Quaderni (a temática
do "Príncipe moderno", a qual é dedicada o Quaderno 13). Hoje esta condição de centralidade
de um partido político revolucionário das classes populares, educador e guia das massas, é
muito mais rara e difícil. E é uma dificuldade enorme para nós aplicarmos a lição de Gramsci
hoje. Em todo caso, seja qual for a solução que se queira dar ao problema da crise do partido
político, não creio que os intelectuais possam ser em si os protagonistas da luta política: podem
ajudar (enormemente) a luta política, mas deve centrar-se nas classes trabalhadoras, na
organização das classes populares, numa relação dialética com os intelectuais revolucionários,
mas não como centrada nestes últimos. Se quisermos permanecer fiéis a uma perspectiva
gramsciana, obviamente.
E- As disputas culturais e ideológicas hoje têm relação direta com a construção da
hegemonia, na medida em que influenciam a opinião pública e constroem um modo de
pensar. Como você interpreta o papel da social network, da Internet e das novas
tecnologias em geral na formação de uma determinada concepção de mundo? Qual o
papel da social network na construção do discurso hegemônico, em particular, no atual
contexto da recrudescência do pensamento ultraneoliberal e das tendências neofascistas
em várias partes do mundo?
GL- No que diz respeito à “batalha de ideias”, à influência da opinião pública, a social network
o geralmente superestimadas na construção de um discurso hegemônico. Na realidade
falamos (sobretudo no facebook, que é o único que conheço o suficiente) sobretudo com quem
está mais ou menos de acordo conosco, com a nossa "bolha", como dizem, com quem se
escolheu como "amigos" e que muitas vezes estão próximos de nós como "visão de mundo".
Em vez disso, ainda é o discurso "unidirecional" que forma a opinião pública, ou seja, o discurso
da TV, do rádio, dos jornais e até dos sites da internet, onde se dão as informações com base
nas quais uma opinião é criada. Nisso, porém, devemos ter muito cuidado, pois muitos sites
2
[NT] Periódico semanal italiano, fundado em 1°. de maio de 1919, por Antonio Gramsci e outros jovens
intelectuais socialistas de Turim, dentre eles figuravam Palmiro Togliatti, Umberto Terracini e Angelo Tasca (na
época dirigentes da Federazione Giovanile Socialista).
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estão "contaminados", difundem ideias falsas e enganosas. No entanto, os custos reduzidos de
um jornal on line, de um site web em comparação com uma emissora de TV ou um grande
jornal também oferecem potencial, também oferece às organizações político-culturais das
classes populares a possibilidade de terem seus próprios "meios de comunicação". Claro, a
Internet também é um terreno em que ocorre a luta pela hegemonia. Mas mesmo nesse campo,
quem tem mais recursos econômicos acaba fazendo com que sua voz seja mais ouvida. A
construção de um poder alternativo ao das classes dominantes não pode e não deve se limitar à
internet para tentar se organizar e crescer: é uma ilusão. A Internet, por outro lado, pode
desempenhar um papel importante no que concerne ao "boca a boca", à mobilização, à
comunicação rápida, à organização de manifestações. É um instrumento, não pode substituir a
realidade concreta do conflito de classes, feito de mulheres e homens de carne e osso.
E- Para Gramsci, o partido político tem papel fundamental no processo de luta pela
hegemonia. Atribui ao partido a tarefa de construir o terreno necessário para a formação
de uma vontade coletiva capaz de realizar a reforma intelectual e moral. Hoje, porém,
vivemos uma crise da democracia representativa, que envolve também uma crise dos
partidos políticos. Como avalia a perda da centralidade dos partidos na agregação dos
diversos interesses da sociedade e no contato com as massas? Teriam os partidos perdido
o papel de agregadores da vontade coletiva, como pensava Gramsci?
GL- Como mencionei acima, a crise do partido político é um dos elementos que mais nos
distanciam da época de Gramsci. Não sei como responder a isso. Provavelmente é preciso ter
muita criatividade, ser menos "ortodoxo". Não pensar em criar formas de partido iguais às dos
partidos comunistas clássicos, por exemplo. Embora eu acredite que o partido político como
“parte” que se junta para mudar o “estado atual das coisas” é sempre necessário. No entanto, eu
distinguiria a crise do partido político e dos partidos políticos da crise das instituições
representativas. No fundo, o próprio Gramsci viveu um período em que os comunistas não
confiaram na "democracia representativa", no parlamentarismo, pelo contrário, se opuseram a
ele. Talvez sem renegar a democracia parlamentar e liberal, da qual entendemos a importância
quando se instalaram as ditaduras fascistas fosse necessário pôr à prova a possibilidade de
fazer nascer, ou fazer renascer, ou desenvolver, uma democracia "de base", do tipo dos
conselhos. Hoje não baseada na fábrica, como nos tempos de Gramsci, mas de diferentes
formas aderindo à vida quotidiana das classes populares, dos trabalhadores e dos sem trabalho,
no auge do nosso tempo, em que não é sempre e em toda parte difundido o modelo da grande
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fábrica que caracterizou a Turim de Gramsci e as outras cidades industriais de sua época e de
quase todo o século XX. Uma democracia constituída por representantes que sempre podem ser
revogados, com um “mandato imperativo”, expressão de grupos sociais que tendem a ser, na
medida do possível, homogêneos, que sustentam se não substituem a democracia
parlamentar, a condiciona, se entrelaça com ela, favorecendo a participação popular e a luta ao
elitismo político.
E- Construir a revolução foi a meta perseguida por Gramsci ao longo de sua vida. E esse
ainda é o objetivo que perseguimos hoje, mesmo diante de condições mais adversas e
complexas relativas à ofensiva do capital. Como Gramsci nos ajuda a pensar a revolução
hoje?
GL- Em minha opinião, ainda existem muitos ensinamentos Gramscianos válidos, alguns deles
mencionamos nas respostas precedentes. Por exemplo, uma concepção dialética do
marxismo, não economicista-determinista, em que a economia seja determinante apenas "em
última instância", como disse Engels, ou em que também temáticas não imediatamente
econômicas, mas ético-políticas. civis, culturais, de gênero, de raça etc. Ou, outro exemplo,
uma relação entre intelectuais e trabalhadores que seja de escuta e ensinamento recíprocos,
como nos tempos da L’Ordine Nuovo. Gramsci foi definido por um dos dirigentes dos operários
comunistas da FIAT durante Biênio Vermelho 1919-1920: "um dirigente que soube ouvir". Uma
bela imagem, que significa que os políticos-intelectuais não devem apenas liderar as massas,
mas devem aprender com elas, ouvir, compreender suas exigências, suas necessidades, partir
de seu "senso comum" para não o aceitar como é (assim como, por vezes, os Cultural Studies
fazem hoje). Existem, portanto, muitos fundamentos gramscianos ainda úteis hoje. Na
condição, no entanto, de compreender que não se trata de "imitar" Gramsci, mas de "traduzi-
lo" (categoria fundamental de Gramsci, a da "tradução"), de introjetar sua lição sabendo que
estamos atuando em um tempo histórico muito diverso, em que é preciso voltar a propor alguns
pilares do ensinamento de Gramsci, tornando-os atuais, reinventando-os por completo, por
vezes, tendo em conta o novo contexto em que se inserem.
E- Em sua obra Gramsci conteso
3
, o professor traça um panorama das publicações e
interpretações de Gramsci no mundo, de 1922 à primeira década dos anos 2000. Em sua
3
[NT] LIGUORI, Guido; Gramsci conteso. Interpretazioni, dibattiti e polemiche 1922-2012; Roma: Editori
Riuniti, Univ. Press, 2012.
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análise, a pesquisa e o interesse por Gramsci continuam com a mesma vitalidade no
momento atual? Como você essa tendência no Brasil, na América Latina e em outros
países?
GL- O Gramsci conteso (que tem duas edições, uma de 1996 e outra de 2012) é um livro que
faz a história das interpretações gramscianas especialmente na Itália: uma história longa e
complexa, ligada à vida política e cultural do país. Uma história que continua e talvez ainda
mereça ser estudada. Depois, o grande tema do destino de Gramsci no mundo, que na
segunda edição está sobretudo presente, mas não desenvolvida. É um tema cuja relevância
começamos a compreender apenas na década de 90 do século XX. Nasceu então a International
Gramsci Society (IGS), cujas “seções” mais relevantes hoje são a italiana e a brasileira. Através
do IGS, a densa rede de contatos, relacionamentos, amizades que nele surgiram, acompanho o
desenvolvimento do destino do pensamento de Gramsci no mundo. E vi como a América Latina
é talvez a área geocultural mais interessante até hoje, na qual Gramsci está muito presente. No
Brasil, em particular, tenho visto um enorme desenvolvimento da influência de Gramsci
(começando com o ensinamento de Carlos Nelson Coutinho), que passou por várias fases,
incluindo o declínio relativo. Mas há campos de estudo e militância política em que o marxista
e comunista sardo ainda está muito presente. Não é por acaso que Bolsonaro e seu governo
tentaram desde o início cancelar a presença de Gramsci em universidades e escolas. Espero e
acredito que esta tentativa falhou e fracassará também no futuro e que Gramsci dará uma forte
contribuição para a retomada e o desenvolvimento da cultura crítica e da democracia no Brasil
e no resto da América Latina. Quanto ao Brasil, acredito que em primeiro lugar o exemplo e a
memória de um intelectual tão rigoroso e apaixonado como Carlos Nelson Coutinho servem de
exemplo para continuar o estudo de Gramsci e sua "tradução" (no sentido mencionado acima)
no mundo e no Brasil de hoje.
E- A chamada virada filológica nos estudos gramscianos nos últimos anos tem suscitado
debates, controvérsias e dúvidas entre o Gramsci teórico e o Gramsci político. Como você
analisa essas tendências de pesquisa e estudo?
GL- Gramsci deve primeiro ser estudado e compreendido. Ele não é um autor fácil. Sobretudo
a sua obra principal, os Quaderni del carcere, é muito complexa por vários motivos: pela
autocensura carcerária, porque são notas não destinadas à publicação e que foram publicadas
sem que o autor pudesse prepará-las para publicação, por se tratar de leituras póstumas, lidas
muitos anos após sua redação etc. Portanto, a "virada filológica" dos estudos gramscianos foi,
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sem dúvida, muito importante e positiva, nos ajudou e nos ajuda muito a realmente compreender
Gramsci, a lê-lo de forma não superficial e muito imediatamente político, atual. Esta última
tendência está errada, de fato. Gramsci deve ser compreendido, deve ser colocado em seu tempo
histórico, em relação aos livros que leu, aos fatos históricos sobre os quais refletiu. Os Quaderni
são um work in progress, no qual Gramsci até muda de opinião sobre alguns julgamentos, ou
os desenvolve de forma significativa. Para isso, precisamos de uma leitura diacrônica dos
Quaderni, que a "virada filológica" (iniciada por Valentino Gerratana e continuada por
Gianni Francioni) torna possível. As afirmações de Gramsci nos Quaderni devem ser sempre
inseridas em um contexto, uma leitura filológica cuidadosa deve ser feita. A única citação
isolada tomada em si mesma, repetida como um slogan, pouco significa. O próprio Gramsci
afirma que "a busca do leitmotiv, do ritmo do pensamento em desenvolvimento, deve ser mais
importante do que as afirmações casuais individuais e aforismos destacados" (Q 16, § 2). Uma
vez que Gramsci seja compreendido, pode-se tentar "traduzi-lo" para o mundo de hoje e também
para a luta política e de classes de hoje. Traduzir significa para Gramsci, como recordei, não
transpor mecanicamente, mas reformular um juízo, um conceito, mas repensá-lo como um todo.
Se alguém busca ensinamentos muito imediatos nos textos de Gramsci, sem primeiro o
necessário estudo filológico e hermenêutico, sua lição é mal compreendida.
E- Carlos Nelson não se deteve a analisar profundamente, do ponto de vista da economia
política, o desenvolvimento do capitalismo brasileiro, porém, conhecia a literatura clássica
sobre o assunto e tinha um posicionamento claro sobre as determinações de nossa
formação social. É com sua concepção do desenvolvimento do capitalismo brasileiro que
o marxista baiano defende a proposição do "reformismo revolucionário" como processo
de democratização da sociedade brasileira e construção socialista. Alguns analistas
concebem essa formulação coutiniana como politicista. Como você analisa essa questão do
reformismo revolucionário proposto por Coutinho?
GL- Não estou em condições de entrar nos méritos do desenvolvimento político-econômico
brasileiro, embora muitas vezes tenha ouvido e discutido com Carlos Nelson também sobre
o Brasil, sua história e sua situação política. O conceito de "reformismo revolucionário", no
entanto, se o entendi bem, sobretudo quando falei sobre ele com Carlos, parece-me uma
concepção muito gramsciana. O que isto significa? Isso significa que é necessário considerar a
fundo a revolução do conceito de revolução (eu a defino assim) que Gramsci avança diz ele
a partir de Lênin em meados da década de 1920 (em 1923-1924, para ser exato, depois de sua
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permanência de um ano e meio na Rússia Soviética da NEP, o "frente única"
4
etc.) e que a seguir
retoma nos Quaderni. Isso significou para Gramsci que era finita a época da revolução-
insurreição, da "guerra de movimento" do século XIX, da qual a Revolução Russa foi o último
episódio em 1917, e começou uma luta revolucionária pela transformação gradual da
sociedade, com a conquista de “fortalezas” e “casamatas” e a formação de um novo “senso
comum das massas” (Q 8, § 213). Sempre com o objetivo de sair do capitalismo (essa é a
diferença com a social-democracia clássica, com o reformismo clássico). E usando e
expandindo a democracia. "Reformismo revolucionário" tem para mim o significado de uma
retomada do ensinamento mais importante, talvez, de Gramsci, vinculado ao conceito de
hegemonia e de "reforma intelectual e moral". E da revolução do conceito de revolução.
4
[NT] Instituída logo após o III Congresso do Comintern (1921), a política de frente única buscou estabelecer a
unidade de ação entre os partidos comunistas e socialistas, como medida tática cujo objetivo era fortalecer as
organizações comunistas e favorecer possíveis processos revolucionários.