DOI 10.34019/1980-8518.2021.v21.33043
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A arte como ferramenta para a comunicação
militante: um paralelo entre o projeto
“Funkeiros Cults” e o pensamento gramsciano
Art as a tool of militant communication: A connection between the
“Funkeiros Cults” Project and the gramscian thinking
Clara Barbosa de Oliveira Santos
*
Resumo: O artigo discute a atualidade das
reflexões de Gramsci para a construção da
militância revolucionária mundialmente.
Utilizando aspectos de seu pensamento, compara-
se com um exemplo da realidade latinoamericana,
no Brasil: o projeto “Funkeiros Cults”, criado por
estudantes e moradores da periferia, que tem
como objetivo disseminar, em uma linguagem
acessível e relacionado ao meio cultural do funk,
os livros acadêmicos e ficcionais considerados
mais complexos e, por isso, são automaticamente
associados a uma elite minoritária. Conclui-se
que o tal projeto é uma iniciativa de demasiada
importância para desmistificar a noção de
“intelectual” como algo elitizado e estritamente
acadêmico, entendendo que o projeto “Funkeiros
Cults”, bem como outros, devem estar atrelados a
um projeto societário de superação da ordem do
capital.
Palavras-chaves: Pensamento gramsciano;
comunicação militante; Funkeiros Cults;
intelectual orgânico.
Abstract: The article discusses the relevance
of Gramsci's reflections for the construction of
revolutionary militancy worldwide. Using
aspects of his thinking, a comparation with an
example of the Latin American reality, in
Brazil, is done: the “Funkeiros Cults” project,
created by students and residents of the ghetto,
which aims to disseminate, in an accessible
language and related to the cultural
environment of funk, academic and fictional
books considered more complex and,
therefore, are automatically associated with a
minority elite. It is concluded that this project
is an initiative of far too important to
demystify the notion of “intellectual” as
something elitist and strictly academic,
understanding that the “Funkeiros Cults”
project, as well as others, must be linked to a
societal project of overcoming capital order.
Keywords: Gramscian thinking; militant
communication; Funkeiros Cults; organic
intellectual.
Recebido em: 18/12/2020
Aprovado em: 26/04/2021
*
Bacharela em Serviço Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Especialista em Saúde Mental
pelo Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental do Hospital Universitário da Universidade
Federal de Juiz de Fora (HU/UFJF). Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional em
Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).
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Introdução
Na atual conjuntura de crise estrutural do capital (MÉSZÁROS, 2002), somada à
pandemia de Covid-19, que traz para esta crise um determinante sanitário (GOUVÊA, 2020),
faz-se necessário refletir com cuidado para atuar nesta realidade. Para isso, recorre-se ao
método materialista histórico dialético (MARX; ENGELS, 2007) que toma pressupostos reais
com a finalidade de analisar a realidade concreta, dominada pela ideologia burguesa. Mas não
isso: para além de recorrer ao pensamento marxiano, é de suma importância buscar outros
pensadores da tradição marxista, sendo Gramsci um dos mais destacados. Em sua obra, Gramsci
(2001) atualiza as elaborações de Marx analisando as condições materiais de seu tempo a
Itália fascista dos anos 1920. Hoje, com o recrudescimento de governos de caráter protofascista
o no Brasil, mas em âmbito internacional (PINHEIRO-MACHADO, 2019), é fundamental
realizar o mesmo movimento que Gramsci fez para entender os femenos sociais que
ocorreram em seu país.
Levando estes elementos em consideração, o seguinte trabalho pretende analisar
estratégias militantes para comunicar um projeto diverso à ordem burguesa, partindo de um
exemplo artístico de comunicação militante para transformar a realidade o projeto “Funkeiros
Cults”, criado por estudantes e moradores da periferia, que objetiva divulgar, de maneira
acessível e relacionada ao meio cultural do funk, os livros acadêmicos e ficcionais considerados
mais complexos e que, logo, são associados a produtores de conhecimento dos espaços
universitários, vistos como os reais “pensadores” e “intelectuais”.
Para concretizar o objetivo deste artigo serão explicitados, com muita brevidade e sem
intenção de esgotar o assunto, aspectos trabalhados no pensamento gramsciano, tais como o
papel dos intelectuais; a formação da consciência de classe; o binômio “grande política”/
“pequena política”; a literatura e o projeto nacional-popular.
O papel do intelectual na transição para a consciência social
Uma das grandes inovações dos escritos de Gramsci (2001) tem relação com sua
compreensão do que é o intelectual. Fazendo uso do método materialista histórico dialético,
para este teórico e militante, todos os homens e mulheres o intelectuais, ou seja, são capazes
de difundir conhecimento. Junto a esta difusão, o intelectual tamm tem a habilidade de dirigir
e coordenar; de ser uma liderança política e, ao liderar, forma ética e politicamente os sujeitos
(GRAMSCI, 2001). Mas o que isso tem a ver com a construção da consciência de classe e com
o saber popular? O intelectual, diferente dos restritos grupos de elite, parte do pressuposto que
o senso comum – o nível acrítico da consciência possui importância e validade. É a partir do
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senso comum que o intelectual atua para extrair o que é chamado de bom senso, uma
consciência ético-política, que compreende a necessidade e urncia da transformão social.
Esta organização da consciência dos sujeitos, importante demarcar, parte de uma
inquietação de Gramsci em compreender como a burguesia exerce seu donio portanto, sua
hegemonia (DANTAS e PRONKO, 2018) e como os trabalhadores, conformados em classe
social organizada, devem entender este processo para, assim, construir um projeto societário
contra hegemônico. Por isso, Gramsci considera a hegemonia como um processo não algo
dado e em estabilidade , e o senso comum como um espaço de disputa política das classes e
frações de classe antagônicas. Inclusive, no Caderno 11 (GRAMSCI, 2001), ele enumera a
postura que deve ser tomada ao longo do processo de politização:
1) não se cansar jamais de repetir os próprios argumentos (variando
literalmente a sua forma): a repetição é o meio didático mais eficaz para agir
sobre a mentalidade popular; 2) trabalhar de modo incessante para elevar
intelectualmente camadas populares cada vez mais vastas, isto é, para dar
personalidade ao amorfo elemento de massa, o que significa trabalhar na
criação de elites de intelectuais de novo tipo, que surjam diretamente da massa
e que permaneçam em contato com ela para se tornarem seus ‘espartilhos’.
Esta segunda necessidade, quando satisfeita, é a que realmente modifica o
“panorama ideológico” de uma época (GRAMSCI, 2001: 110, grifo meu).
Neste trecho, aparece um elemento importante a respeito da formação desta consciência
de classe: não há um rebaixamento intelectual; uma inferiorização do conhecimento das
massas. Realiza-se a construção de um pensamento e de uma ação crítico-político junto às
massas, [...] para forjar um bloco intelectual-moral que torne politicamente possível um
progresso intelectual de massa e o apenas de pequenos grupos intelectuais” (GRAMSCI,
2001: 103).
desta forma, segundo Gramsci, uma corrente filosófica e seus intelectuais possuem
legitimidade, quando “[...] jamais se esquece de permanecer em contato com os ‘simples’ [...]”
(GRAMSCI, 2001: 100). Assim, constrói-se uma vontade coletiva (COUTINHO, 2008), em
que ocorre uma elevão da consciência das camadas populares junto a um convencimento do
horizonte revoluciorio e socialista, sendo um momento ontologicamente constitutivo da
realidade social” (COUTINHO, 2008: 36).
Logo, no pensamento gramsciano, para que uma revolução social ocorra a superação
do sistema capitalista e a instauração de uma sociedade socialista, como defendido pelo teórico
é necessário que haja concomitantemente, portanto sem secundarizar, uma reforma intelectual
e moral. Isso significa a construção de uma “nova cultura”, partindo das condições materiais e
históricas colocadas, que valorize os elementos calcados na cultura nacional, mas não de
maneira nacionalista, e sim dialogando com um processo de internacionalização desta
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revolução.
O “nacional-popular”, a discussão de literatura em Gramsci e a luta política
No Caderno 21, parágrafo 5, Gramsci (2002) coloca que, na Itália, a noção de “popular”
é muito restrita ideologicamente, uma vez que esta construção foi feita com ausência do povo,
nomeando este femeno de uma “tradição de casta, que jamais foi quebrada por um forte
movimento político popular ou nacional vindo de baixo” (GRAMSCI, 2002: 42). Gramsci traz
como exemplo a produção da literatura do período, desconectada da realidade do povo e que
disseminava produções estrangeiras livrescas e “antinacionais”, ou seja, que o valorizavam
aspectos do povo italiano. Para este teórico, isso demonstrava o caráter cosmopolita da Itália,
que encarnava um modo de vida burguês e uma padronização desterritorializada e
desculturalizada, sem vínculo real com o “povo-nação”. Mais: sem produzir intelectuais
realmente populares/do povo. Nas palavras dele:
Os intelectuaiso saem do povo, ainda que acidentalmente algum deles seja
de origem popular; não se sentem ligados ao povo (à parte da retórica), não o
reconhecem e não sentem suas necessidades, suas aspirações e seu
sentimentos difusos; mas são, em face do povo, algo destacado, solto no ar,
ou seja, uma casta e não uma articulação (com funções orgânicas) do próprio
povo. A questão deve ser estendida a toda cultura nacional-popular e não se
restringir apenas à literatura narrativa: o mesmo deve ser dito do teatro, da
literatura científica em geral (ciências naturais, hisria, etc.). [...] Esses livros
estrangeiros, quando traduzidos, o lidos e procurados, obtendo
freqüentemente enorme sucesso. Tudo isso significa que toda a "classe culta",
com sua atividade intelectual, está separada do povo-nação, o porque o
povo-nação não tenha demonstrado ou não demonstre se interessar por esta
atividade em todos os seus níveis, dos mais baixos (romances de folhetim) aos
mais elevados, como o atesta o fato de que ele procura os livros estrangeiros
adequados, mas sim porque o elemento intelectual nativo é mais estrangeiro
diante do povo-nação do que os próprios estrangeiros (GRAMSCI, 2002: 43).
O inmodo de Gramsci com a questão da literatura justificava-se por este aspecto estar
conectado à construção de uma hegemonia nova (MUSSI, 2010), algo que não se dava
mecanicamente pois, como fora dito, ele entendia hegemonia como fruto de um processo
determinado pela correlação de forças entre classes, assim como a atividade literária relaciona-
se com a forma como o mundo da cultura se forjou até então. Desta maneira, a literatura não é
uma questão menor no pensamento de Gramsci: essa era considerada como uma atividade, que
possuía papel fundamental no novo equilíbrio de forças o momento “nacional-popular”
(GRAMSCI, 2002). Neste sentido, a construção de uma literatura popular era necessária, que
traria concretude para a formação intelectual das massas, tratando-se de uma produção literária
que dialogasse, descrevesse e espelhasse o modo de vida das camadas populares. Assim, “os
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heróis da literatura popular, quando entram na esfera da vida intelectual popular, se separam de
sua origem literária e adquirem a validade de personagem histórico(Gramsci apud MUSSI,
2010: 140).
O nacional-popular seria um anseio das pprias camadas populares, constituído por
uma série de aspectos – dentre eles, a literatura – que conformam características fundamentais
e particulares de uma determinada não, porém, o somente isso: também os elementos
constitutivos da classe trabalhadora deste país, unida e disposta a construir uma hegemonia que
o se restrinja às fronteiras territoriais de uma nação, se expandindo internacionalmente. O
nacional-popular não é sinônimo, portanto, de um ufanismo/nacionalismo: caminha para a
construção estratégica de um projeto societário internacionalista alternativo ao capital.
Cabe ressaltar a importância do debate sobre “grande política” e “pequena política”,
uma vez que possui associação com as elaborações de Gramsci acerca da construção de uma
contra hegemonia por parte da classe trabalhadora. Aliaga (2013), em seu texto acerca da
objetividade científica no pensamento de Gramsci, coloca que o objeto por excelência da
ciência política não pode consistir meramente nas formas superestruturais, nas disputas
parlamentares e na ‘pequena política’, ela deve se referir a terrenalidade da política e por esta
razão descer ao mundo das relações sociais de forças” (ALIAGA, 2013: 21, grifos meus).
Partindo daí, reafirma-se que a construção da política, para Gramsci, tem o intuito de
compreender a relação estabelecida entre dominantes e dominados. Por isso, grande
política/pequena política são indissociáveis e inelimináveis de sua obra.
É no âmbito da pequena política que se localiza o cotidiano político, o “corriqueiro”, as
disputas pontuais parlamentares, alianças eleitorais etc. Estas disputas m sua importância,
entretanto, o contêm o potencial de transformar a sociedade em sua totalidade. a grande
política é a dimeno em que há a possibilidade da construção de uma nova sociabilidade,
mudando radicalmente e pela via da luta dos trabalhadores, a base da formação social.
Assim, quando Aliaga (2013) traz sobre a terrenalidade da política, a autora dimensiona
sobre a importância de não abandonar a prioridade da grande política, tendo-a na ordem do dia.
A pequena política o pode ser anulada pois o cotidiano é incomprimível, porém, é tarefa da
maior importância para a classe trabalhadora não perder de vista a construção da grande
política, não mergulhando estritamente na pequena política, uma vez que não é nesta última que
se alcança a emancipação humana. O horizonte desta classe não pode ser a redução da luta
política à esfera de meras disputas parlamentares. Entretanto, constitui-se como grande política
da burguesia submeter organizativamente e praticamente os trabalhadores nesta lógica – a
pequena política seria, para a classe dominante, umagrande política da conservação”:
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Portanto, é grande política tentar excluir a grande política do âmbito interno
da vida estatal e reduzir tudo a pequena política [...]. Ao contrário, é coisa de
diletantes pôr as questões de modo tal que cada elemento de pequena política
deva necessariamente tornar-se questão de grande política, de reorganização
radical do Estado. Os mesmos termos se apresentam na política internacional:
1) a grande política nas questões relacionadas com a estatura relativa de cada
Estado nos confrontos recíprocos; 2) a pequena política nas questões
diplomáticas que surgem no interior de um equilíbrio já constituído e que não
tentam superar aquele equilíbrio para criar novas relações (GRAMSCI, 2017:
22-3, grifos meus).
Considerando estes breves apontamentos, parte-se para a análise de um exemplo, à luz
do pensamento de Gramsci, de concretização do papel do intelectual na contemporaneidade: o
projeto “Funkeiros Cults”.
Os “Funkeiros cults”, a politização da literatura e o intelectual orgânico
Criado em maio de 2020, em meio à pandemia da Covid-19, o projeto brasileiro
“Funkeiros Cults” foi uma idealização de Dayrel Azevedo, jovem de 21 anos e residente de
Manaus. Fazendo uso de memes, do sarcasmo e de imagens de alguns artistas famosos do funk,
decidiu levar adiante a ideia do trabalho político unido ao humor: “Desejava mostrar mesmo
pessoas reais do cotidiano da periferia. Foi quando resolvi postar uma foto minha lendo o livro
'A Metamorfose' e a gina viralizou" (UOL, 2020)
1
. A página no Instagram, neste período,
cresceu, o projeto se expandiu para outras plataformas e, hoje, possui mais de 47000 seguidores
no Facebook
2
. Seguem algumas imagens já feitas:
1
Disponível em: https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2020/06/22/funkeiros-cults-faz-humor-com-memes-de-
pensadores-e-girias-da-quebrada.htm.
2
Consulta realizada no dia 19 de novembro de 2020.
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Fonte: página do Facebook Funkeiros Cults
Na matéria, Dayrel coloca que, apesar de fazer uso do humor para divulgar o projeto, a
crítica por trás desse parte de experiências de racismo vivenciadas por ele, assim como a
dificuldade de uma maioria não compreender que funkeiros e moradores da periferia podem ser
considerados símbolos e referências de cultura (UOL, 2020). Uma das figuras do meio do funk
utilizadas em seu projeto, Thiago Soares (conhecido como Chavoso da USP”), disse: “Ver
pessoas com a minha aparência, com o meu estilo, falando sobre literatura e ciências humanas
é muito importante. O meme é fácil de viralizar porque tem uma linguagem simples, uma
mensagem curta e direta. É um ótimo jeito de divulgar esses livros e suas ideias centrais” (UOL,
2020).
Além da página no Facebook, foi criado um grupo dos Funkeiros Cults” na mesma
rede social, tendo a democratização da educação como um de seus norteadores. Vários são os
relatos de moradores e estudantes jovens da periferia que conseguem fazer uso do grupo como
uma forma de estudar e compreender obras consideradas complicadas e concebidas como
“clássicas” (UOL, 2020). Apesar do tempo histórico distinto, vale demarcar que a preocupação
com a atividade literária é ainda tão atual quanto no tempo de Gramsci, pois a cultura não
emerge como algo natural, mas sim a partir de um conjunto de relações sociais determinadas
pelo devir histórico.
Tomando as especificidades da formação sócio-histórica brasileira, país de capitalismo
periférico, a marca da dependência não se explicita apenas na dimensão político-econômica,
mas também na dependência cultural aos grandes centros. O Brasil construiu uma política
cultural em torno de uma lógica imperialista, distanciando-se dos países latinoamericanos e
moldando uma proximidade com as produções norte-americanas (BETHELL, 2009). Estes
aspectos ideológicos fundamentam a vida dos sujeitos brasileiros ideologia refere-se, aqui, no
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sentido negativo, tal como em Marx e Engels (2007) e a superestrutura impõe este modo de
vida ao conjunto da sociedade.
Estes elementos dialogam com a resistência (pejorativamente) em relação ao funk como
uma produção de cultura nacional e popular, no sentido de fazer parte da construção de um
projeto de não, portanto, da consolidação de uma identidade específica, além de evidenciar
que a “intelectualidade” é associada a espaços de produção acadêmica, ainda elitistas algo
que pode ser relacionado à crítica de Wood (1999) aos s-modernos, sobre como esses
depositam nos acadêmicos uma centralidade; um papel de vanguarda na ação histórica,
demonstrando que a luta política é algo para pequenos grupos “que pensam cientificamente”,
que “os velhos políticos (o movimento trabalhista, em particular) foram ‘dobrados’ para
sempre pelo consumismo capitalista” WOOD, 1999: 15). Gramsci (2001) representa uma
oposição a esta militância exclusiva ao espaço acadêmico:
Autoconsciência ctica significa, histórica e politicamente, criação de uma
elite de intelectuais: uma massa humana não se “distinguee não se torna
independente “para si” sem organizar-se (em sentido lato); eo existe
organização sem intelectuais, isto é, sem organizadores e dirigentes, ou seja,
sem que o aspecto teórico da ligação teórico-prática se distinga concretamente
em um estrato de pessoas “especializadas” na elaboração conceitual e
filosófica. Mas este processo de criação dos intelectuais é longo, difícil, cheio
de contradições, de avanços e de recuos, de debandadas e de reagrupamentos
e, neste processo, a “fidelidade” da massa (e a fidelidade e a disciplina são
inicialmente a forma que assume a adesão da massa e a sua colaboração no
desenvolvimento do fenômeno cultural como um todo) é submetida a duras
provas. [...] mas todo progresso para uma nova amplitude” e complexidade
do estrato dos intelectuais esligado a um movimento análogo das massas
dos simples, que se eleva a níveis superiores de cultura e ampla
simultaneamente o seu círculo de influência, com a passagem de indivíduos,
ou mesmo de grupos mais ou menos importantes, para o estrato dos
intelectuais especializados (GRAMSCI, 2001: 104-105).
A politização da literatura, como atividade e ferramenta da militância, no entanto, vem
ocorrendo mesmo com a situação vivenciada de recrudescimento do conservadorismo
nacionalmente (PINHEIRO-MACHADO, 2019) e internacionalmente, sendo que isso não é
novo: ganhou visibilidade por conta das redes sociais as experiências de educação popular e
o próprio trabalho de Paulo Freire (1987 e 1996) o exemplos de iniciativas como essa. Isso
significa que o “funkeiro cult” é uma figura com presença e relencia histórica: existe, resiste,
e seu status de cult”, na realidade e na minha percepção –, é redundante, uma vez que, de
acordo com o próprio Gramsci, “todos os homens são filósofos.” (GRAMSCI, 2001: 93).
A popularização dos intelectuais tem como premissa a necessidade de formar quadros
políticos advindos das massas, que não desprezam a democracia e o colocam freios às
mobilizações de cunho transformador. Associar política à uma elite, em Gramsci (2001), é
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reducionismo da ciência política, além de desconsiderar essa como algo intrínseco à produção
e reprodução da vida humana a nomenclatura mais coerente, para o teórico, seria intelectuais
orgânicos, em oposição aos intelectuais tradicionais: “‘Orgânicos’, ao contrário, o os
intelectuais que fazem parte de um organismo vivo e em expansão. Por isso, estão ao mesmo
tempo conectados ao mundo do trabalho, às organizações políticas e culturais mais avaadas
que o seu grupo social desenvolve para dirigir a sociedade” (SEMERARO, 2006: 377). Além
disso, não estaria interligado às massas, mas vive e considera o seu tempo histórico, junto ao
modo de produção em que se insere. Por isso, o intelectual orgânico tem este papel atuante em
todos os espos que ocupa, possuindo uma relação dialética com a construção do nacional-
popular”.
Semeraro (2006) traz em um dos seus trabalhos o desafio do intelectual orgânico em
um momento histórico marcado pelo ideário pós-moderno, com o esvaziamento do trabalho de
base ético-político e de projetos encabeçados por sujeitos coletivos. Aos intelectuais ornicos
especialmente aos partidos políticos socialistas, que encabeçam um projeto de coletivo de
transformação radical , hoje, cabe se apropriar das novas ferramentas e plataformas trazidas
com a revolução tecnológica, saber “manejar a arte da aparência”, porém, em serviço da
organização dos subalternos, não se restringindo à pequena política, à burocracia, aos cargos e
à esfera da luta sindical, se atualizando para responder à atual crise política, como aponta o
autor:
Hoje, as novas ferramentas à disposição dos intelectuais não devem ser
menosprezadas. Embora Gramsci esteja aberto ao novo, não o aceita
acriticamente. Assim como o trabalhador deve se modernizar, tornando-se
cientificamente especializado e tecnicamente habilidoso até as fronteiras mais
avançadas do conhecimento e da produção, sem cair na mecanização e na
escravidão do sistema, também o intelectual deve estar atualizado e
desenvolver pesquisas inovadoras, sem se deixar “taylorizar” e comprar. Mas
não é suficiente se defender do risco de revolução passiva inerente a toda
modernização. O intelectual orgânico popular, para Gramsci, deve alcançar
as fronteiras mais avançadas do conhecimento e da tecnologia sem nunca
perder a referência às lutas hegenicas da sua classe. Além disso, também
para não estagnar em um marxismo dogmatizado, [citando Baratta] é
necessário promover a sua “traducibilidade [...]. Os intelectuais orgânicos
aos dominados, ao contrário, estão convencidos de que “a verdade é
revolucionária”. Portanto, não abdicam a formar consciências críticas e a
construir um bloco histórico” (uma articulação dialética) entre estrutura e
superestrutura (economia e cultura), entre sociedade civil e sociedade política,
de maneira a superar a relação vertical entre governantes e governados e a
separação entre intelectuais e massa (SEMERARO, 2006: 384-5, grifos
meus).
Frisar o papel de intelectual desempenhado por estes jovens, como no exemplo
mencionado dos Funkeiros Cults”, decorre da importância de demonstrar que existe cultura
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construída pelas camadas populares, sendo que essa tem como objetivo apresentar a realidade
deste setor para, enfim, mudá-lo. É uma cultura que não rebaixa intelectualmente a classe,
compreendendo a determinação social destes sujeitos circunscrita ao capital. É tarefa nossa
da classe trabalhadora em seu conjunto usar esta arte como ferramenta para aproximação;
para comunicar e estabelecer vínculos com estes sujeitos, assim como devemos aliá-la a um
projeto revolucionário.
Considerações Finais
Apesar de breve, este trabalho buscou demonstrar a continuidade da pertinência do
marxismo para a reflexão e atuação na realidade social. Fazendo uso do pensamento de Gramsci
e de alguns dos elementos mais importantes de sua obra – tamm explicitados de forma sucinta
–, objetivou-se traçar uma relação entre arte, militância e a construção do projeto socialista. A
partir da iniciativa dos Funkeiros Cults”, projeto cultural brasileiro que tem disseminado obras
da literatura com didática e humor, fazendo alusão ao meio do funk, percebeu-se paralelos com
aspectos das elaborações de Gramsci, atualizados ao momento histórico, bem como a reiteração
do papel intelectual desempenhado por todos os sujeitos, sem um caráter seletivo. Como disse
Semeraro (2006: 388): “Em tempos pós-modernos, os intelectuais ‘ornicos’ não se tornaram
obsoletos, mas encontram-se diante de novas tarefas”.
Mesmo sendo um projeto novo, o “Funkeiros Cults” vem mobilizando uma quantidade
enorme de usuários nas redes sociais, em sua maioria jovens, para debater arte e política em
consonância com a concretude da vida nas periferias do país – circulando informações de suma
importância para organização dos subalternos fora dos grandes conglomerados de comunicação
–, contradizendo o estereótipo do jovem como um sujeito apolítico e acrítico (CASSAB, 2010).
Demonstra-se, assim, que a construção da “grande política”; a luta por uma
sociabilidade que supere o capitalismo, é feita conjuntamente à “pequena política”, devendo ser
constantemente relembrada e somada à intransigência com a ordem vigente (Gramsci apud
SADER, 2012), tendo como estratégia o socialismo, que também permaneceem constante
modificação, como disse Gramsci em O Relojoeiro (1917): “Não seremos conservadores, nem
mesmo sob o socialismo, mas queremos que o relógio da revolução não seja um fato mecânico,
um estranhamento, e sim a audácia do pensamento que cria mitos sociais sempre mais elevados
e luminosos” (GRAMSCI, 2020, s/p).
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