DOI 10.34019/1980-8518.2020.v21.32164
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 351-372, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
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Recrudescimento conservador no Brasil: bases
ontológico-concretas e expressões no Serviço
Social
Raquel Santos Sant’Ana
*
José Fernando Siqueira da Silva
**
Resumo: O presente artigo oferece alguns elementos para analisar as atuais expressões do
conservadorismo no Brasil no contexto de crise estrutural do capital. Sustentado na abordagem
ontológico-materialista, portanto histórico-crítica, o texto considera as particularidades da
América Latina na economia-política mundial e apresenta as bases materiais que oferecem
sustentação para o avanço do conservadorismo no Brasil. A estrutura socioeconômica
dependente e a desigualdade radical sustentam uma sólida formação social por onde teorias e
concepções conservadoras/reacionárias são reavivadas e se desenvolvem. Os impactos no
Serviço Social e no atual projeto ético-político profissional de orientação emancipatória
recolocam desafios concretos.
Palavras-chave: conservadorismo-reacionário; desigualdade social; serviço social.
Conservative recruitment in Brazil: ontological-concrete bases and
expressions in social work
Abstract: This article offers some elements to analyze the current expressions of conservatism in Brazil
in the context of the structural crisis of capital. Based on the ontological-materialist approach, therefore
historical-critical, the text considers the particularities of Latin America in the world political economy
and presents the material bases that offer support for the advancement of conservatism in Brazil. The
dependent socioeconomic structure and radical inequality support a solid social formation through
which conservative / reactionary theories and conceptions are revived and developed. The impacts on
Social Work and on the current professional ethical-political project with an emancipatory orientation
pose real challenges.
Keywords: conservatism-reactionary; human emancipation; social work.
*
Doutora em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista UNESP-Franca - Professora Associada do
Departamento de Serviço Social da UNESP-Franca.
**
Doutor em Serviço Social pela Pontifica Universidade Católica de São Paulo. Professor Associado do
Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual Paulista UNESP-Franca. Professor colaborador do
Programa de Pós-graduação em Serviço Social e Políticas Sociais da Universidade Federal de São Paulo
(UNIFESP).
Raquel Santos Sant’Ana, Jose Fernando Siqueira da Silva
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1. Introdução
O retrocesso civilizatório em curso não é obra do acaso ou de acontecimentos
desconexos incapazes de serem apreendidos pela razão crítico-objetiva que reconstrói
mentalmente complexos sociais presentes na própria realidade (MARX, 1989). Contrapondo-
se às diferentes formas de irracionalismo em curso (estruturalistas ou não) ou à razão formal
descritiva, ambos marcados por diferentes caminhos pela miséria da razão (COUTINHO,
2010), o conservadorismo e suas expressões atuais possuem explicações objetivas que podem
e devem ser trabalhadas criticamente pela razão não miserável, ontológica (LUKÁCS, 2012).
Não por acaso a eliminação da ciência crítica, comprometida com o ponto de vista da totalidade,
é um dos pontos centrais na pauta do atual conservadorismo.
Analisar a natureza desta ofensiva conservadora nas condições atualmente dadas exige
o seu debate a partir das particularidades da América Latina na ordem burguesa mundializada,
seus traços sócio-históricos, seu transformismo e sua dinâmica atual em nações historicamente
afetadas pelo capitalismo dependente (MARINI, 2008; FERNANDES, 2009) reorganizado na
ordem monopólico-imperialista do capital (LENIN, 2008). É evidente que neste artigo não será
possível aprofundar tais elementos, ainda que seja importante sumariá-los como componentes
da atual realidade. As diferentes expressões do que se denomina “neoconservadorismo” devem
ser concretamente elucidadas, historicamente situadas e socialmente referenciadas, ou seja,
devem ser explicadas como componentes de um complexo processo cuja gênese possui base
material concreta. Com outras palavras, envolvem uma ideologia (MARX e ENGELS, 2007)
que organiza pressupostos, pautas e ideias que sustentam e justificam, nas condições atuais, um
projeto societário altamente regressivo, orientações estas hegemonizadas por genuínos
interesses da classe burguesa e de suas frações sustentados em retrocessos civilizatórios
radicais. Ora, é a partir deste contexto que a expressão “neoconservadorismo” precisa ser
elucidada: de que espécie de conservadorismo se fala no Brasil atual? Como, resumidamente,
este processo tem impactado o Serviço Social brasileiro?
O que se pretende enfatizar neste artigo é que o conservadorismo em curso,
considerando seu legado e suas metamorfoses a partir do advento da Revolução Francesa há
mais de 230 anos, se recrudesce e se reorganiza a partir de bases estritamente reacionárias. Ou
seja, o conservadorismo-reacionário apresenta-se como avesso a qualquer espécie de reforma
útil à estabilidade da própria sociedade do capital. E seus ideais rapidamente tornam-se robustos
no atual contexto pois suas bases compõem a própria formação sócio-histórica brasileira
marcada por diversas formas de violência decorrentes de estruturas sociais sustentadas na
extrema exploração e em sistemas de opressão muito sólidos. Trata-se de um conservadorismo
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que não apenas refuta qualquer espécie de reforma dentro da ordem, como também estrutura
outro tipo de senso comum que imprime, nas diferentes esferas da vida social, formas de ser e
de pensar comprometidas com a destruição de conquistas civilizatórias que se constituíram sem
abalar substancialmente a propriedade privada e a reprodução ampliada do capital como relação
social que expropria e concentra/centraliza riqueza.
2. Conservadorismo reacionário e retrocesso civilizatório: a particularidade
brasileira
Analisar a realidade no contexto de aprofundamento da crise sócio-econômica adensada
pela pandemia instaurada pelo Sars 2, ou novo corona vírus, é algo que gera muitas inquietações
e incertezas. Historicamente é possível constatar uma questão importante: a relação entre
contextos marcados por agudas crises sociais, econômicas e políticas (BARROCO, 2011;
SOUZA, 2016) e o adensamento de teorias conservadoras/neoconservadoras/reacionárias, o
embrutecimento do senso comum e retrocessos civilizatórios significativos. Seria este um sinal
da barbárie anunciada por Mészáros (2002) no início deste século? A afirmação de Rosa
Luxemburgo (1999) “socialismo ou barbárie” e o complemento de Mészáros “barbárie se
tivermos sorte” (2002, p. 108-109), se confirma tragicamente. É verdade que a humanidade já
passou por momentos extremamente regressivos – e o século XX é prova disto –, mas o cenário
atual revela alta destrutividade associada a incapacidade crescente de gerenciamento de uma
crise estrutural do capital. E não se trata, aqui, de um esforço retórico. A análise cuidadosa dos
dados econômicos dos últimos 40 anos sobre o Produto Interno Bruto mundial e da América
Latina portanto, após o fim dos 30 anos gloriosos de crescimento e o adensamento da
voracidade do capital sobre o trabalho a partir da ofensiva neoliberal que varreu o globo ,
reafirma outra tese defendida por Mézáros (2002): crescimentos tímidos, mantidos por um curto
espaço de tempo, seguidos de crises cada vez mais profundas e não circunscritas às regiões
marcadas pelo capitalismo dependente.
Dados disponibilizados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) sobre o PIB mundial
e latino-americano nos últimos 40 anos
1
, revelavam um quadro impactante. De 1980 para cá, a
economia mundial vem apresentando um crescimento modesto seguido por crises constantes,
ou seja, profundas instabilidades que não permitem recuperações econômicas consistentes,
cenário esse estimulado por crises seguidas (especialmente na periferia da economia mundial).
Ademais, estas profundas instabilidades também têm impactado o centro do capitalismo
1
Fonte de dados administrada pelo próprio capital. Consultar: Silva (2021 prelo).
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mundial, como aconteceu em 2008 nos Estados Unidos (uma crise estrutural-financeira
disfarçada de crise imobiliária). A análise dos números registrado pelo FMI não mentem: um
crescimento mundial, entre 1980-2020, de não mais de 5,6% (2006), com baixas expansões,
quedas seguidas, forte crise em 2008 e tendência geral de queda intensificada pela pandemia
(com previsão negativa de -3) (REAL GDP growth, [2020]).
Na América Latina e no Caribe o cenário é mais drástico: um crescimento, entre 1980-
2020, de não mais de 6,2% (2004-2010 – parte da recuperação da crise de 2008 – ascensão não
sustentada), avanço este baseado essencialmente em commodities, com quedas seguidas e mais
intensas, baixos índices de expansão, forte depressão entre 2010 e 2016 (de 6,2% a -0,6%),
pequena recuperação entre 2016-2017 (1,3%) e nova queda constante agravada com a pandemia
com previsão negativa de 5,2%. Os dados do mesmo FMI sobre o desemprego nos últimos 40
anos em 7 países da América do Sul (Brasil, Uruguai, Argentina, Bolívia, Colômbia, Chile e
Equador), indicam crescimento nos momentos de crise e retomadas nos períodos de expansão
econômica (especificamente a partir de 2003). Todavia, estes dados não fazem referência a um
aspecto importante: os tipos de empregos criados, em condições de absoluta informalidade,
precarização, desregulamentação e desproteção social (ANTUNES, 1999 e 2018) (REAL GDP
growth, [2020]).
Como afirma Barroco (2015), a reprodução do ideário conservador é resultado de uma
combinação múltipla de determinações conjunturais e estruturais que envolvem fatores
socioeconômicos, políticos-culturais e a própria dinâmica da luta de classes. A autora destaca
que o conservadorismo se reatualiza e passa a incorporar os princípios econômicos neoliberais.
Este é o novo traço que caracteriza o neoconservadorismo pois seus adeptos fazem uma
“apologia conservadora à ordem capitalista”, combatem o Estado social e os direitos sociais,
almejam uma sociedade sem restrições ao mercado, reservam ao Estado a função coercitiva de
reprimir violentamente todas as formas de contestação à ordem social e aos costumes
tradicionais. (BARROCO, 2015, p. 02-03)
Daí a necessidade de, mesmo que sumariamente, demarcar alguns aspectos que
estruturam a América Latina o Brasil como parte dela –, elementos estes decisivos para
explicar esta parte do continente americano e o recrudescimento do conservadorismo nos
tempos atuais. A “via colonial” da revolução burguesa nesta parte da periferia do capitalismo
mundial (FERNANDES, 1987), orientada pelo imperialismo na era monopolista do capital e
suas transformações ao longo do culo XX, sempre se sustentou em um tipo de economia
exportadora de produtos primários, de cariz agro-minerador, fato que estruturou o perfil das
elites locais sob duas bases essenciais: a) classes sociais e relações sociais subservientes a um
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“desenvolvimento dependente”, associado e combinado aos interesses econômicos externos
(IANNI, 2019; OLIVEIRA, 2003), ou seja, burguesias descomprometidas com reformas
democráticas civilizatórias, reprodutoras do genocídio europeu anglo-espano-lusitano dos
povos originários, nativos, elites defensoras da escravidão, fortemente patriarcais e
patrimonialistas no uso dos recursos e dos espaços públicos; b) profundas oscilações
econômicas que impediram o estabelecimento de padrões de desenvolvimento sólidos,
persistentes, fortemente desindustrializadores ou simplesmente não industrializadores,
marcados pela superexploração da força de trabalho (MARINI, 2008), reeditado nas condições
da modernização conservadora, da precarização e da flexibilização laboral, do desemprego
estrutural reavivados a partir de bases sexistas, racistas e absolutamente antilatinoamericanas.
Impossível apanhar a concretude histórica do recrudescimento do
conservadorismo/neoconservadorismo e suas diversas expressões (aqui sempre com requintes
reacionários), sem tais elementos. Em outras palavras, o processo em curso, altamente
regressivo, possui explicações e raízes históricas ainda que recodificadas a partir de condições
atuais.
Escorsim (2011), ao analisar o conservadorismo clássico, destaca seu caráter
antirrevolucionário presente na Revolução Gloriosa inglesa (1688) e mais intensamente a
partir da Revolução Francesa (1789). A defesa irrestrita do antigo regime, do clero e da nobreza
fundiária no século XVIII proferida por Edmund Burke (2012), ou as posições do Conde
Joseph-Marie de Maistre explicitamente contrárias à modernidade burguesa e às camadas
populares no século XIX, são exemplos clássicos do conservadorismo-reacionário da época e
de suas bases materiais.
Todavia, as alterações impostas no final do século XVIII e início do século XIX,
momento em que a burguesia consolida seu domínio econômico também como poder político
de classe, generalizando suas ideias como as ideias dominantes (MARX; ENGELS, 2007),
reconfigurou a relação entre o pensamento conservador e os princípios liberais-burgueses.
Como classe dominante a burguesia constitui sua ideologia como dominante, ou seja, generaliza
como verdade para todas as outras classes sociais as suas próprias ideias que expressam sua
dominação de classe. Passou, com isso, gradativamente, sobretudo entre 1830 e 1848, a
combater quaisquer iniciativas que pudessem se opor a sua própria orientação. Esse arranjo
teórico-doutrinário entre conservadorismo e liberalismo se esboçou, por exemplo, nas ideias de
Augusto Comte voltadas contra qualquer resquício revolucionário burguês oriundo de 1789: o
positivismo positivo, livre de tensões negativas. Tocqueville (2003 e 2011) e Le Play (1941),
também na primeira metade do século XIX, alertaram para os perigos revolucionários: o
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primeiro anunciou a necessidade de uma “democracia administrada” e o segundo, com toque
religioso, ressaltou a importância da educação dos indivíduos – pobres na gestão do
orçamento familiar em plena eclosão do movimento operário de 1848. Marx sentiu o peso das
posições burguesas desde sua experiência como editor-chefe do Jornal Gazeta Renana (MARX,
2010) quando foi demitido ao opor-se à repressão oficial dos pobres que “roubavam” lenha,
posições estas reforçadas e adensadas junto com Engels após o desfecho das lutas de 1848
(MARX; ENGELS, 1998). O francês Émile Durkheim (2014), pai da sociologia positivista
articulou firmemente nas primeiras décadas do século XX –, conservadorismo, interesses da
burguesia industrial e produção técnico-científica. O conservadorismo é explicitamente
assumido pelo autor de “As regras do método sociológico”, para quem as revoluções eram tão
“impossíveis quanto os milagres”. Ademais, desenvolveu a análise dos fatos sociais como
coisas exteriores (como método extraído das ciências naturais), conceitos vinculados à
sociedade e ao trabalho (DURKHEIM, 2010): solidariedade mecânica, solidariedade orgânica,
disfunção social, patologias sociais, entre outras.
A partir da primeira metade do século XIX a associação entre conservadorismo,
liberalismo e ordem do capital se manteve firme, ainda que essa aliança não tenha sido
homogênea. Os conflitos objetivamente dados a partir de interesses imperialistas reais
estabelecidos na transição do século XIX para o século XX, geraram divergências dentro do
próprio campo do conservadorismo/reacionarismo que sustentou a ordem do capital. O nazi-
fascismo e as posições liberais lideradas pelo imperialismo inglês e norte-americano,
expressaram fissuras no interior dos interesses burgueses-imperialistas que geraram ideologias
que sustentaram o genocídio e o extermínio bélico e étnico.
Ora, a América Latina é parte desse processo que se adensou a partir do fim da Segunda
Guerra Mundial, como capitalismo dependente que se moldou com base em traços coloniais
muito consistentes. O Brasil, como particularidade latino-americana, possui elementos
estruturais que permanecem como fundamentais para pensar o avanço destas ideias
conservadoras, neoconservadoras, reacionárias que sustentam os diferentes grupos à direita que
estão cada vez mais presentes no cenário político atual. O que se defende, aqui, é que um país
marcado estruturalmente pela violência e pela concentração extrema e privada da riqueza
socialmente produzida, requisitou para sua consolidação ideias capazes de legitimar tais
disparidades. Estas concepções, historicamente justificadas por ideologias depreciadoras e
justificadoras de diferentes formas de opressão (o racismo, o patriarcalismo, o machismo, o
genocídio de povos originários, entre outras), foram e são fundamentadas em concepções
conservadoras/reacionárias que se estabeleceram a partir do legado histórico pouco
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sumariado, ou seja, a partir do lugar estabelecido pelo capitalismo dependente e das ideias que
se consolidaram como formas de ser e de pensar nesta realidade concreta. O acirramento deste
quadro tem gerado, historicamente, a “democratização da violência”, sua generalização, seja
em função das disparidades econômicas, seja em função do desmonte das parcas conquistas
civilizatórias obtidas pela classe trabalhadora. Esse contexto se altera, se ajusta, se recodifica
e desenvolve crescentemente o ideário neoconservador. Crises econômicas tecidas a partir de
crises estruturais do capital (de sua incapacidade cada vez mais crescente para reproduzir-se
considerando a gestão da lei geral da acumulação capitalista – MARX, 1984), exigem governos
locais genuinamente vinculados aos interesses do capital, armados, autoritários ou pelo menos
formalmente democráticos e economicamente submissos. Os golpes cívico-militares ou
jurídico-parlamentares impostos à América Latina nos últimos 60 anos - inclusive aqueles
implementados na última década –, sempre tiveram a marca da “contrarrevolução preventiva”
que impediram reformas civilizatórias e ou processos de ruptura revolucionária (FERNANDES
1987).
O governo brasileiro eleito em 2018 é um complexo produto que articula, de forma
explosiva, o conservadorismo-reacionário historicamente edificado a partir da base colonial-
dependente, instabilidades permanentes na periferia do capitalismo mundial e a atual crise
estrutural do capital cada vez mais incapaz de gerenciar suas próprias contradições. A
voracidade pelos fundos públicos necessários à acumulação carece de governos de
direita/ultradireita que fortaleçam a impunidade, a truculência e o desrespeito no âmbito das
relações sociais, promovendo uma devastação econômica, social, política e cultural. De perfil
protofacista (FONTES, 2019), sustentado no lema “Deus, Pátria e Família”, o atual governo
brasileiro articula autoritarismo, militarismo, obscurantismo, fundamentalismo religioso,
irracionalismo e mídias sociais (como fontes informais e formais de desinformação), processo
este financiado por setores de extrema direita, declaradamente neoliberais e submissos ao
imperialismo norte-americano. O velho-novo “fascismo brasileiro” deve ser elucidado
associando marcas históricas brutalmente opressoras e sua modernização a partir de condições
até então inéditas.
É preciso mencionar que este governo tem se sustentado a partir de uma estrutura social
extremamente violenta historicamente constituída. Algumas de suas particularidades explicam
a forte base conservadora previamente existente, o que favoreceu seu rápido crescimento. Um
destes elementos deriva do processo de construção da sociedade brasileira que teve como um
dos seus pilares o escravismo. Um dos últimos países a abolir a escravidão, o Brasil não teve
qualquer política que pudesse favorecer as pessoas negras (SANTOS , 2009), aliás, pelo
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contrário: aprovou a Lei de Terras em 1850 impedindo o acesso legal às terras por parte desta
população após a abolição; manteve e reforçou o mandonismo e as relações extremamente
hierárquicas entre as classes em favor dos grandes proprietários rurais e das elites; promoveu
um processo de branqueamento do país por meio da política de imigração no início do século
XX (MOURA, 1988); e, através do mito da democracia racial, não enfrentou o debate da
questão racial reforçando, com isto, o racismo estrutural (SANTOS, 2015).
O resultado deste processo se evidencia hoje na situação vivenciada pela população
negra no Brasil que historicamente vem sendo vítima de violências permanentes que vão desde
às condições de vida e de trabalho que inviabilizam o acesso digno à riqueza socialmente
produzida, até o assassinato contínuo e permanente dos segmentos mais jovens por parte do
Estado brasileiro. Os dados a seguir representam um pequeno fragmento desta desigualdade:
O Atlas da Violência de 2018 indica que, no Brasil, 62.517 homicídios foram
registrados em 2016 pelo Sistema de Informações sobre Mortalidade, do
Ministério da Saúde (SIM/SM), o que implica uma taxa de 30,3 mortes por
100 mil habitantes (Cerqueira, et al., 2018). Entre 1980 e 2014, segundo
Waiselfisz (2016), houve uma expansão progressiva, sistemática e ininterrupta
desse tipo de violência no país.
Nesse quadro, os homicídios de adolescentes e jovens ganham destaque.
Segundo o levantamento de Waiselfisz (2016), o aumento desse tipo de
vitimização foi de 699,5% entre 1980 e 2014. o 11º Anuário Brasileiro de
Segurança Pública sinaliza que 99,3% das pessoas assassinadas em 2016 eram
do sexo masculino; 81,8% tinham entre 12 e 29 anos e 76,2% eram negras
(Fórum Brasileiro de Segurança Pública). (BENÍCIO, et al., 2018, p.1).
Esta situação extrema coloca o Brasil com mais mortes por homicídio se comparado
com países em guerra
2
. Por outro lado, esta violência escancarada e cotidiana, assentada no
racismo estrutural e no controle dos meios de comunicação de massa por parte das classes
dominantes, vai sendo justificada pelo discurso da segurança no seu sentido estrito. Uma série
de representações sociais vão sendo criadas de maneira a constituir ideologicamente a imagem
daqueles grupos vistos como perigosos (DURIGUETO, 2017), em que pretos e pardos pobres
podem ser executados sumariamente em nome da defesa e da ordem. A ideologia conservadora-
reacionária difunde o discurso de que a segurança identifica-se com a construção de presídios,
com a redução de maioridade penal, com a defesa da pena de morte e com a maior intervenção
policial principalmente nos territórios povoados pela classe trabalhadora mais empobrecida
onde os negros são maioria (BARROS et al., 2017). O racismo estrutural contribui com a
2
Segundo o jornal O Globo, em 2015, 58 mil pessoas foram assassinadas no país. É como se a cada nove minutos
uma pessoa fosse morta de forma violenta. [...] Na Síria, por exemplo, em quatro anos, morreram 256 mil pessoas.
No Brasil, no mesmo período, quase 279 mil. Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-
nacional/noticia/2016/10/numero-de-homicidios-no-brasil-e-maior-do-que-o-de-paises-em-guerra.html>.
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construção e a sustentação desta ideologia, o que dificulta a solidadriedade de classes, naturaliza
a violência contra os negros e arma um discurso beligerante e criminalizador das substâncias
psicoativas (BRITES, 2017). Cada vez mais os diferentes setores da burguesia e as classes
médias urbanas se veem ameaçadas pelas suas condições objetivas frente à crise do capital,
estimulando ações autoritárias à recondução de suas condições de existência sem a ameaça que
os pobres representam. Por outro lado, entre os segmentos mais pobres, a ideologia dominante
avança por diferentes mecanismos que associam seitas religiosas e ilusão de prosperidade
financeira-social diante da insegurança geral e da crise econômica real.
Cria-se e generaliza-se, nesta sociabilidade, uma representação da segurança não como
acesso à saúde, à educação, como direito à cidade ou à terra; a segurança é vista como “portar
armas” e salvar-se na sociedade meritocrática e competitiva. Eliminar o outro faz parte do jogo
(SILVA, 2018). Portanto, quando no processo de formação social as estruturas racistas,
heteronormativas e machistas formam a base constitutiva dos valores (CISNE e SANTOS,
2018), a morte de mulheres, de negros/as e de todos aqueles que não são heterossexuais passa
a ser contingência da vida e até culpa daquele/a que foi violentado/a. Com outras palavras, a
“anormalidade” justifica o extermínio.
Como complexo social, o machismo e a heteronormatividade são particularidades
fundamentais que compõem a realidade brasileira para alicerçar este quadro desigual e violento.
Historicamente as mulheres foram invisibilizadas, violentadas e exploradas nos âmbitos
doméstico e laboral. No Brasil, os dados atuais da desigualdade de gênero, especialmente
envolvendo a mulher negra, explicitam um fenômeno que compõe estruturalmente a formação
do povo brasileiro e o racismo que segue em curso até os dias atuais. Os dados do IBGE são
bastante emblemáticos para evidenciar a disparidade: em 2016, as mulheres gastaram 73 horas
a mais que os homens cuidando de pessoas ou dos afazeres domésticos; ganham ¾ do que os
homens ganham, embora hoje tenham maior escolaridade. Os índices de representação
política também evidenciam que o poder é do homem: as mulheres representam 11,3% do
Congresso Nacional e 16,1 % no Senado. Nos cargos gerenciais também: 60,95% são homens
e 39,1% são mulheres (IBGE, 2018). As mulheres negras estão ainda em maior desvantagem
em todos os índices com relação à mulher branca, mas é no nível de escolaridade que a situação
é bastante emblemática: as negras possuem 2,3 vezes menos acesso ao ensino superior. A
mulher negra trabalha mais, ganha menos, tem menor acesso à saúde e à educação (IBGE,
2019). Em 2018, dentre os 6,2 milhões de pessoas que exerciam atividades domésticas
remuneradas, 92% (5,7 milhões) eram mulheres, das quais 3,9 milhões eram negras (AGÊNCIA
BRASIL, 2019)
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Ainda no âmbito de debate de gênero e sexualidade, a negação da diversidade sexual
hoje torna-se quase uma obsessão destes grupos de direita não só no Brasil como no mundo. É
importante frisar, no entanto, que muitos anos os crimes contra as pessoas não heterossexuais
no Brasil são os mais frequentes e violentos do mundo. O avanço do conservadorismo
reacionário acirra ainda mais este quadro de violência. Segundo o Grupo Gay da Bahia, citado
por Cisne e Santos (2018), em 2016 foram 343 casos de assassinatos contra gays, lésbicas,
bissexuais, travestis e transexuais. Em 2017 houve um aumento em 30% de assassinatos. Em
2017 foram registrados recordes de mortes: 445 assassinatos por LGBTfobia, o que revela,
portanto, que “a cada 19 horas um LGBT é barbaramente assassinado ou se suicida vítima de
LGBTfobia, o que faz do Brasil o campeão mundial de crimes contra as minorias sexuais”
(MOTT; MICHELS; PAULINHO, apud CISNE E SANTOS, 2018, p.130).
Outro elemento fundamental que compõe o avanço do ideário do conservadorismo-
reacionário é a manutenção de uma estrutura agrária extremamente concentrada, em que menos
de 2% dos proprietários seguem mantendo sob seus domínios, metade das terras agriculturáveis
brasileiras
3
. A modernização da agricultura foi feita às custas da expulsão de milhares de
camponeses da terra e voltada para um modelo de produção mocultural com uso intensivo de
agrotóxicos e sementes geneticamente modificadas, opção esta que ameaça a soberania
alimentar da nação (TEIXEIRA, 2015). As consequências deste processo se expressam na luta
pela terra que ocorre desde a invasão portuguesa neste continente: inclui sem terras, indígenas,
quilombolas, ribeirinhos, pescadores artesanais, quebradeiras de coco (SAUER E PERDIGÃO,
2017) e diversos outros segmentos que juntos compõem grande diversidade de movimentos
sociais rurais. Esta luta permanente também contabiliza milhares de conflitos e centenas de
mortos (SANT’ANA e MASSON, 2018). No entanto, é uma realidade que não mobiliza o
conjunto da classe trabalhadora e dos setores progressistas para uma ação mais contundente
contra tal situação. Contribui para isto o urbanocentrismo, a ideologia do capital que reafirma
a retificação das relações sociais, do trabalho alienado-estranhado, promove a fragmentação do
real e a criminalização de todas resistências instituídas
4
. A grande agricultura capitalista, sob a
roupagem ideológica do agronegócio, constrói um conjunto de representações sobre o rural
onde o moderno é composto por atividades monocultoras de larga escala. Para isto, investe
3
A este respeito conferir: https://www.oxfam.org.br/publicacao/menos-de-1-das-propriedades-agricolas-e-dona-
de-quase-metade-da-area-rural-brasileira/ Acesso em 10 de set. de 2020.
4
Segundo BRITES (2017), a reificação é necessária para que o capitalismo se reproduza sobre os seus próprios
pressupostos e faz isto estabelecendo uma relação entre indivíduo e gênero de maneira a inibir ou negar a
possibilidade de afirmação da generacidade humana impulsionada pelo desenvolvimento das forças produtivas (p.
60-1).
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bilhões em propaganda dizendo que o “o Agro é pop, o agro é tech”
5
e, para criar empatia e
adesão, inclui pequenos agricultores e se apresenta como o responsável pela nossa alimentação.
Idelogicamente vai sendo instituído um processo de padronização alimentar que desvaloriza a
diversidade e constrói o adoecimento em massa com produtos ultraprocessados. Estes
mecanismos ideológicos garantem a aceitação deste modelo de produção agrícola que é
absolutamente irracional do ponto de vista ecológico, pois contraria a regra mais básica da
natureza que á a diversidade (ROMEIRO, 2007). No entanto, passa a ser naturalizado pela
esmagadora maioria da população e coloca o conjunto dos trabalhadores/as, especialmente os
mais pobres, em situação de insegurança alimentar e nutricional.
O Brasil é um país marcado pela concentração da terra urbana e rural, da riqueza e da
renda. Embora tenha mais de 80% da população em centros urbanos, não permite o acesso à
cidade por parte de um grande contingente de pobres e negros/as que são condenados a viver
em ambientes insalubres, sem infraestrutura, sem acesso às políticas públicas.
Para justificar esta sociabilidade de se construir fortes aparatos ideológicos com o
objetivo de legitimar e de justificar o instituído, eliminando possibilidades concretas de alianças
entre os setores mais explorados que, de diferentes maneiras, se tornam vítimas dessa estrutura
social violenta. Daí a contínua e permanente criminalização dos sujeitos coletivos que
constroem as diferentes formas de resistência à ordem do capital.
Esta estrutura social, marcadamente violenta, atinge fundamentalmente a classe
trabalhadora e a expropria da riqueza socialmente construída; atinge sobretudo os negros/as, as
mulheres e a população LGBT. Esta é a realidade ontológico-concreta que sustenta o avanço do
neoconservadorismo neste país, ou seja, é uma condição historicamente construída e sustentada
por fortes aparatos ideológicos que o capital disponibiliza para seu projeto de barbárie.
3. Serviço social e defesa civilizatória
O Serviço Social brasileiro construiu, nos últimos 40 anos, um aporte teórico-prático
comprometido com níveis crescentes de emancipação social. A direção social estratégica
sintetizada na segunda metade dos 1990, conhecida como projeto ético-político profissional,
significou o ápice de um longo processo de resistência civilizatória tecida na luta contra a
ditadura cívico-militar que perdurou por pelo menos 21 anos no Brasil (1964-1985). Ela é
caudatária das lutas originadas fora das fronteiras da profissão, como resistência anti-
5
Campanha lançada pela rede globo em 2016. Para acessar o contraponto a esta falácia conferir CARDOSO et all
(2019)
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imperialista, genuinamente democrática e latino-americana. Recupera um leque heterogêneo de
tendências progressistas que transitam da crença em reformas democráticas mais radicais no
interior do capitalismo (o que se mostrou historicamente insustentável nas realidades marcadas
pelo capitalismo dependente), a propostas revolucionárias diversas. O Serviço Social brasileiro
mais crítico foi alimentado e tecido na ampla e histórica resistência latino-americana contra as
diversas opressões cometidas no contexto do capitalismo dependente e das profundas
desigualdades aqui concretizadas por uma revolução burguesa realizada pela via colonial. Trata-
se de um tipo de Serviço Social
(...) comprometido com a realidade particular da América Latina, anti-
imperialista, que sofreu influências progressistas diversas não isentas de
problemas e frequentemente ecléticas a tradição freiriana, aquela oriunda
da teologia da libertação; as comprometidas com a luta contra opressões de
diferentes tipos, articulada pelos diversos grupos de esquerda, armados ou
não; movimentos sociais libertários; projetos defensores da redemocratização
política latino-americana e de diversos processos de liberação nacional,
inseridos ou não na tradição marxista mundial e latino-americana, com
diferentes apropriações teóricas e suas fontes originais (...) (SILVA, 2019:
112)
No âmbito da profissão no Brasil o Método BH (SANTOS, 1983) representou a gênese
da vertente mais crítica Serviço Social. Não por acaso foi gestado no auge da resistência contra
a ditadura cívico-militar brasileira (início dos anos 1970), na relação direta com o movimento
operário e junto aos segmentos progressistas da Igreja Católica (BATISTONI, 2017). O legado
crítico latino-americano/belo-horizontino, alimentado pelas lutas democrático-populares e a
organização operária no último quarto dos anos 1970, se expressou no conhecido Congresso da
Virada (1979), construção esta que foi sendo aprimorada nos anos 1980 e 1990. Na década de
1990, considerada o ponto máximo dos anos gloriosos do Serviço Social brasileiro (PAULO
NETTO, 2017), o Código de Ética dos Assistentes Sociais foi aprimorado e aprovado (Lei
8.662/93), bem como diretrizes curriculares sólidas e progressistas foram construídas
coletivamente e aprovadas pela Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social
em 1996
6
. Ao longo de pelo menos 20 anos (1980-2000), o Serviço Social se consolidou no
cenário nacional como área de conhecimento e como profissão demandada socialmente no
campo dos direitos e das políticas sociais reformistas-civilizatórias (IAMAMOTO, 2017)
7
.
6
Na época a ABEPSS era denominada Associação Brasileira de Ensino de Serviço Social (ABESS) e foi a
entidade responsável pela condução do processo em conjunto com o Centro de Documentação e Pesquisa em
Políticas Sociais e Serviço social (CEDEPSS); depois a entidade passou a ter denominação atual e incorporou o
CEDEPS na sua composição. Na construção das diretrizes curriculares contaram com o apoio e mobilização do
Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) e da Executiva Nacional de Estudantes de Serviço Social (ENESSO).
7
O termo “reformas” é aqui entendido como avanços progressistas-civilizatórios que absolutamente afetam a
reprodução ampliada do capital. Ao contrário, no campo de certo tipo de conservadorismo aberto ao diálogo (hoje
em extinção), entende que as reformas são funcionais ao bom funcionamento do sistema. Mesmo reconhecendo
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No entanto, as dificuldades anunciadas na transição desde último século se acentuaram
brutalmente com a crise estrutural do capital e o recrudescimento do conservadorismo-
reacionário. O adensamento da crise capitalista deflagrada em 2008 (sumariada no item
anterior) mostrou suas garras no final do segundo governo Lula e adensou-se de 2011 em diante.
A crise atingiu a América Latina e o conservadorismo-reacionário ampliou-se pelas diferentes
esferas da vida social, afetou significativamente os governos de Dilma Rousseff (em que pese
as opções políticas de seu governo), bem como sustentou a falácia do golpe jurídico-
parlamentar de 2016
8
. Pontualmente é preciso afirmar que inúmeras contrarreformas foram
adensadas, ou pelo menos não foram paralisadas, nos governos petistas (em especial a
previdenciária e a trabalhista). Todavia, depois do golpe de 2016, a devastação laboral,
previdenciária, dos direitos, das diversas políticas de gestão da desigualdade social, dos espaços
básicos para o exercício democrático (conselhos e comissões de participação social, por
exemplo), acelerou-se e aprofundou-se como poucas vezes se viu na história do país. É na
esteira destes retrocessos que se explica a particularidade do recrudescimento conservador
brasileiro, seu perfil estritamente reacionário, reavivando traços culturais que sempre
compuseram a ideologia burguesa dependente em condições históricas específicas. O ódio
classista, então, objetivou-se por meio do desprezo por segmentos sociais vistos como onerosos,
perigosos e ou “anormais” (pobres em geral, negros (as), povos originários, mulheres e
comunidade LGBTI), recrudescendo a histórica articulação entre opressão de classe, de
gênero e étnico-racial. Qualquer política ou gesto capaz de obstaculizar o individualismo e a
voracidade da expropriação e da acumulação capitalista (por mais tímidos que fossem), passou
a ser objeto explícito da violência, da criminalização social e da reprovação moral (processo
este sempre presente no país, mas profundamente adensado nos últimos anos). Foi exatamente
este contexto que sustentou a eleição de Jair Bolsonaro e tem justificado uma profunda
devastação no país.
O impacto do conservadorismo-reacionário no Serviço Social brasileiro tem sido amplo
e diverso. Isso tem afetado as bases materiais da profissão e refratado negativamente no trabalho
e na formação profissional. Ora, isso inevitavelmente impacta a direção social estratégica do
as contradições inerentes a este contexto (o que é absolutamente importante para não endossar a política reformista
como fim), é preciso reconhecer que o acúmulo de forças revolucionárias também carece de avanços civilizatórios
que garantam a vida das pessoas. O sentido aqui adotado é precisamente esse.
8
Não cabe, neste espaço, debater o direcionamento político e os erros cometidos pela coalisão comandada pelo
Partido dos Trabalhadores desde o primeiro governo Lula. Importante ressaltar que seria desonesto atribuir tais
erros unicamente aos governos da presidenta Dilma. Embora tenha acrescentado marca própria à sua gestão, Dilma
governou a partir do legado de Lula e em um contexto social e econômico bastante adverso se comparado com os
a conjuntura dos dois primeiros governos petistas.
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final dos anos 1990, altera e debilita as condições materiais para sua objetivação. Graves
problemas anteriormente existentes têm adquirido maior complexidade atualmente.
No campo do trabalho profissional, a devastação laboral tem impactado negativamente
as relações e as condições de trabalho dos (as) assistentes sociais, como parte da classe
trabalhadora, processo este já em curso há pelo menos 10 anos. O agravamento deste contexto
tem adensado a precarização do trabalho e a flexibilização da compra da força de trabalho dos
(as) assistentes sociais: realização de pregões eletrônicos que visam contratar força de trabalho
por menor preço; terceirizações por meio de organizações não governamentais (ONGs),
Organizações Sociais (OS) e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip),
que substituem os concurso públicos nas esferas governamentais; o estímulo para a criação de
bancos de peritos na área sociojurídica; o teletrabalho instituído no Instituto Nacional de Seguro
Social (resolução INSS nº 681, 2019, p. 8-9); e inúmeras formas de contratação terceirizada na
área da assistência social que afetam o complexo CRAS-CREAS e os Centros Pops
(RAICHELIS, 2020, p. 25-28). A novidade é que esta tendência tem deixado de ser exceção
para se constituir na regra para a compra da força de trabalho profissional. As tradicionais
formas de contratação laboral sustentadas em concursos públicos responsáveis por contratos de
trabalho mais sólidos e protegidos, têm sido substituídas por formas que radicalizam a
precarização e a flexibilização em todas as esferas da vida social: intensificação da terceirização
e da contratação temporária por projeto/atividade na direção de prestação de serviços cada vez
mais “uberizados”, fragmentados, com péssimas condições de trabalho, mais impessoais, mal
pagos e sem direitos.
Quanto à formação profissional o quadro é também devastador. O crescimento da rede
privada presencial e do ensino a distância presente no final dos anos 1990, fartamente
adensada nos últimos 20 anos, tem sido incrementada pela mais recente precarização da
educação pública universitária, sucateamento geral das universidades públicas, eliminação das
instâncias democráticas existentes, privatização do financiamento educacional, destruição de
política inclusivas, criminalização de seus espaços formativos, desprestígio da área de
humanidades (que estava em curso), bem como sua desqualificação/demonização. A
precarização da formação profissional que era marcada pelo avanço de grandes
conglomerados educacionais documentado em diversos estudos na área (PEREIRA, 2009 e
2014; BRAZ; RODRIGUES, 2013), tem se adensado associando iniciativas radicais: captura
dos fundos do públicos destinados à educação pública, republicana e gratuita; destruição de
instâncias democráticas de participação e recrudescimento autoritário em todos os níveis; bem
como privatização, produtivismo, precarização laboral, submissão das ciências humanas às
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ciências duras e criminalização do pensamento crítico. O cenário se adensa com o uso de
tecnologias remotas imposto a partir da pandemia Covid 19 de 2020.
A precarização laboral e formativa tem sustentado um adensamento do conservadorismo
e de suas frações mais reacionárias que nunca deixaram de existir no interior da profissão (ainda
que estivessem relativamente contidas e equacionadas pelo consenso democrático). Isso tem
reeditado discursos e teses de que a profissão precisa voltar-se à “prática profissional em si”,
preocupar-se com as demandas genuinamente profissionais, com uma formação mais flexível,
“moderna”, teoricamente ajustada ao “fazer profissional”, menos ou não politizada. Na esteira
desta espécie de crítica, as associações profissionais (o conjunto CFESS, CRESS, ABEPSS e
ENESSO) têm sido seguidamente golpeadas por discursos que as colocam como distantes das
demandas profissionais. Não se trata, aqui, de desconsiderar o trabalho profissional e sua
dimensão mais operativa, muito menos de desconsiderar os limites que também existem nessas
instâncias organizativas, mas de rejeitar a refuncionalização da profissão associada a
fragmentos sistêmicos, fundamentalistas, essencialmente instrumentais, gerencialistas,
defensores do “empreendedorismo profissional” e absolutamente subservientes à ordem em
curso, inclusive à sua fração mais reacionária como apresentado e defendido por Oliveira
(2020)
9
. A defesa do ponto de vista de totalidade (LUKÁCS, 2012) inspirado nesta importante
categoria que compõe o método na teoria social de Marx, é essencial à direção social estratégica
elaborada a partir das condições históricas da segunda metade dos anos 1990. Revisitar esse
debate e reconstruir mediações a partir do atual contexto sócio-histórico incluindo o debate
étnico racial, de gênero e diversidade é condição essencial para a crítica radical ao
conservadorismo-reacionário que hoje se renova no interior da profissão, bem como importante
para superar posicionamentos aparentemente radicais e críticos que fragmentam e focalizam o
estudo e a luta em um cenário de extrema regressão.
É preciso destacar, ainda, que o atual retrocesso tem afetado a profissão por meio da
rejeição das políticas de regulação do pauperismo extremo que foi implementada nos governos
de conciliação de classe do PT. Esse é o caso da criação do Sistema Único de Assistência Social
(SUAS) e de outras políticas que previram ou retomaram a obrigatoriedade dos profissionais
de Serviço Social em algumas áreas como INSS, na política de habitação, nos Institutos
Federais, entre outros espaços sócio-ocupacionais. Mesmo que focais, tais políticas estavam
9
O texto 23 teses para a reforma do Serviço Social brasileiro. Pelo resgate de sua identidade e de uma cultura
profissionalizante é um exemplo deste retrocesso. Expressão rasteira da “decadência ideológica” (LUKÁCS,
1981, 109-13) e da “miséria da razão” (COUTINHO, 2010) presente no Serviço Social brasileiro. Não pode ser
desconsiderado e subestimado, mas sim explicado e criticado a partir de seus fundamentos.
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inseridas em programas que se desdobravam em ações efetivas a serem realizadas junto à
população. Todavia, após o golpe jurídico-parlamentar de 2016, acelerou-se o processo
desmonte destas políticas sociais que, associadas à desvalorização do salário mínimo e
precarização geral, colocam os (as) profissionais cada vez mais frente a frente com diversas
refrações da “questão social” (IAMAMOTO, 2007; MARX, 2010) que afetam carências
humanas mínimas, como é o caso da fome
10
. O sentimento de impotência causado pelo
rebaixamento das condições de vida das pessoas atendidas, pelo gerenciamento de contextos
cada vez mais graves e terminais, pelo desmonte de políticas que pelo menos mantinham as
pessoas com suas carências básicas atendidas e pela precarização das condições de trabalho do
(a) próprio (a) assistente social, o adoecimento dos (as) profissionais tem se agravado
sensivelmente (LOURENÇO e ANUNCIAÇÃO, 2020; LOURENÇO, SANTANA, GALLO,
2018). Um dos procedimentos necessários para que o adoecimento profissional não se
aprofunde diante dos limites impostos pelo cotidiano profissional embebido pela regressão de
direitos, é apreender e exercitar a diferença entre projeto profissional e projeto institucional
(IAMAMOTO, 1999). Ter competência teórico-metodológica e compromisso ético-político não
é suficiente para superar as condições objetivas nas quais o/a profissional está inserido/a. É
preciso sustentar-se em uma base intelectual que seja capaz de articular as dimensões teórico-
metodológica, ético-política e técnico-instrumental, verificando as possibilidades reais e os
limites concretos a partir de condições objetivas, sem ilusões ou paralisias. Somente assim é
possível formular estratégias que permitem ao (a) profissional, mesmo sob condições adversas,
manter-se conectado ao seu projeto profissional que se orienta por pautas emancipatórias
(SILVA, 2013). Com o acúmulo construído nos últimos 40 anos, a profissão já possui recursos
teóricos-políticos para não se colocar como aquela que vai ser responsável pela transformação
social. Ao mesmo tempo, detém elementos fundamentais para resistir e enfrentar o profundo
retrocesso civilizatório que também afeta o amplo campo do trabalho dos (as) assistentes
sociais, nisto o conservadorismo-reacionário. Diga-se de passagem, manter esta conexão com
o direcionamento crítico e emancipatório, no atual contexto, é outro desafio, talvez o maior a
ser enfrentado pelos (as) assistentes sociais.
A atual direção ético-política construída está assentada em valores emancipatórios e a
sua apropriação e introjeção é algo complexo e que exige adesão objetiva e subjetiva de cada
10
Frente ao aumento do desemprego em função da pandemia do SARs 2 já se anuncia uma outra epidemia: a da
fome. Segundo a ONU, em 2019 47,7 milhões de pessoas foram afetadas pela fome na América Latina e Caribe,
quadro que está mais agravado devido a pandemia do SARs2. A este respeito conferir:
<https://nacoesunidas.org/onu-fome-na-america-latina-e-no-caribe-pode-afetar-quase-67-milhoes-de-pessoas-
em-2030/>.
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profissional. Não se trata de um receituário ou de uma estrutura jurídico-formal (GUERRA,
2013; MATOS, 2015), mas de princípios que estruturam uma visão do ser social e do mundo a
partir de valores que se contrapõem ao ideário dominante. Seguramente esse é um dos grandes
desafios: manter-se fiel – sem ilusões e com fundamentação teórico-crítica – a este projeto; ou
seja, não sucumbir diante dos ideais conservadores-reacionários que hoje invadem as casas, as
famílias, as religiões, as sociabilidades - de diferentes formas e altera e rebaixa o senso-
comum. Para fortalecer o pensamento crítico emancipador é fundamental manter proximidade
com este ideário, seja por meio da produção intelectual, da organização política ou mesmo da
aproximação com diferentes formas de resistência construídas pelos vários sujeitos coletivos
que lutam contra a exploração e a opressão. Mais importante, ainda, é articular criticamente
estas dimensões.
O Serviço Social brasileiro, por meio de suas entidades, tem feito um importante
trabalho ao construir um diálogo com os/as profissionais e estudantes de maneira a fortalecer a
atual direção social estratégica da profissão. São alguns exemplos destas ações: as publicações
do conjunto CFESS/CRESS, os encontros virtuais promovido pela Associação Brasileira de
Ensino e Pesquisa em Serviço Social, as mobilizações da ENESSO em favor da diversidade
sexual e de gênero, as lutas antirracistas, entre outras importantes inciativas. Todavia, que
considerar um aspecto importante: a defesa dessa direção social-profissional estratégica não
pode desconsiderar as condições objetivas hoje existentes para esta empreitada. Ademais,
trata-se de uma luta classista, anticapitalista progressista, antimachista e antirracista que
seguramente envolve a profissão, mas não se esgota nela. Uma recaída idealista seria fatal!
Por isso, é preciso reconhecer que o atual cenário é extremamente regressivo, que este
retrocesso na profissão é uma realidade, que ele pode aprofundar-se e que as lutas travadas e
as armas utilizadas durante os anos gloriosos da profissão no Brasil não podem ser as mesmas
hoje. É preciso reinventar-se o que não significa, absolutamente, capitular diante da barbárie
4. Considerações Finais
É preciso reconhecer que a realidade brasileira passa por um momento de regressão
civilizatória inédita desde a ditadura cívico-militar inaugurada em 1964. Os riscos de
recrudescimento contínuo desta realidade são reais. A tradição crítica do Serviço Social
brasileiro está na mira deste ataque que tem atingido o que de melhor a profissão construiu nos
últimos 40 anos. A defesa deste patrimônio profissional não é apenas uma necessidade: é uma
obrigação histórica e civilizatória. Ela precisa ser tecida coletivamente e articulada com a luta
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daqueles que vivem da venda da sua força de trabalho para sobreviver. E aqui a classe tem cor,
raça e sexo tecida no contexto do imperialismo renovado e do capitalismo dependente.
Mas é preciso reconhecer que a classe trabalhadora se transformou substancialmente,
com ela os (as) próprios (as) assistentes sociais como trabalhadores (as). Analisar esse complexo
social exige estudo permanente, rigor teórico, vínculo orgânico com a dinâmica do real e
fidelidade à verdade, às coisas como elas de fato são, sem qualquer concessão idealista. O
otimismo da categoria, como parte da luta por outra sociedade para além do capital, vincula-se
estritamente à radicalidade de atuar e tensionar contradições, particularmente no espaço
profissional, mas sem limitar-se a ele. Mais do que nunca os (as) profissionais precisam militar
e o militante pode aprimorar-se com o profissional (ou com as informações por ele fornecidas).
Entre eles não deve haver identidade, mas a unidade (como profissional-militante). Onde reside
a esperança? Na capacidade de reinventar a luta, sem qualquer idealismo, sem qualquer
messianismo, determinado pela vida real-material de pessoas concretas, com seus potenciais e
limites, em um cenário que reafirma profundamente as teses marxianas: as mesmas condições
que permitem a reprodução ampliada do capital como relação social de
expropriação/apropriação, repõe contradições internas e intrínsecas ao próprio capital,
insuperáveis sob suas fronteiras. É exatamente nessa contradição que reside o papel
revolucionário, a possibilidade histórica da revolução, sem qualquer ilusão. É nele que devemos
colocar todas as nossas forças civilizatórias e criativas como militantes e profissionais.
Yo quiero seguir jugando a lo perdido
Yo quiero ser a la zurda más que diestro
Yo quiero hacer un congreso del unido
Yo quiero rezar a fondo un hijo nuestro
Dirán que pasó de moda la locura
Dirán que la gente es mala y no merece
Más yo partiré soñando travesuras
Acaso multiplicar panes y peces
El necio – Silvio Rodríguez
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