DOI 10.34019/1980-8518.2020.v21.32043
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 392-414, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
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Serviço Social e a temática família: renovação e
conservadorismo na produção do conhecimento
Claudio Henrique Miranda Horst
*
Resumo: o artigo apresenta a dialética renovação/conservadorismo na produção teórica e no
trabalho profissional com famílias a partir de duas frentes: a) a recuperação histórica de três
momentos da profissão (gênese/renovação/aproximação com o marxismo) e sua relação com a
temática família; b) a compreensão de família apresentada por assistentes sociais em artigos
publicados nos Encontros Nacionais de Pesquisadores em Serviço Social (ENPESS) entre
2004 e 2012. Por meio de uma pesquisa documental, com análise de conteúdo, busca-se
decifrar os elementos históricos que se reatualizam, no presente, ou que são fontes de
rupturas. Conclui-se que, diante da persistência de perspectivas conservadoras, na contramão
da direção assumida mais de 40 anos pela profissão, impõe-se, como urgente, a produção
crítica do conhecimento sobre família.
Palavras-chave: família; conservadorismo; serviço social; ENPESS.
Social Work and the family theme: renewal and conservatism in the
production of knowledge
Abstract: the article presents the dialectic renewal / conservatism in theoretical production and
professional work with families from two fronts: a) the historical recovery of three moments of the
profession (genesis / renewal / approximation with Marxism) and its relationship with the family
theme; b) the understanding of family presented by social workers in articles published in the National
Meetings of Researchers in Social Work (ENPESS) between 2004 and 2012. Through documentary
research, with content analysis, we seek to decipher the historical elements that are being updated, at
present, or that are sources of disruptions. We conclude that, in view of the persistence of conservative
perspectives against the direction assumed by the profession for over 40 years, the critical production
of knowledge about family is urgent.
Palavras Chave: family; conservantism; social work; ENPESS.
*
Doutor em Serviço Social pela UFSC, Docente no Departamento de Serviço Social da UFOP.
Serviço Social e a temática da família: renovação e conservadorismo na produção do conhecimento
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Introdução
Ao longo dos últimos anos, a dialética renovação/conservadorismo tem ganhado
destaque no campo teórico, sobretudo, na produção acadêmica sobre a família e o trabalho
profissional com famílias. As pesquisas e as discussões possibilitam que o assistente social
decifre os elementos históricos que se reatualizam, no presente, ou que são fontes de rupturas
(HORST; MIOTO, 2017; HORST, 2018).
Pouco mais de 40 anos separa um grande marco histórico da profissão: o III Congresso
Brasileiro de Assistentes Sociais, conhecido como o “Congresso da Virada”, de 1979. Trata-se
de uma marca significativa, compreendida, no Brasil, como desdobramento do processo de
renovação do Serviço Social.
Esse congresso é um marco simbólico na recusa do conservadorismo de
origem no Serviço Social brasileiro em favor de sua renovação histórico-
crítica. O III CBAS articula, unifica e simboliza a “virada dos
compromissos políticos do Serviço Social com as classes dominantes e o
poder político que presidiram sua institucionalização e desenvolvimento no
país. Os assistentes sociais, como coletividade, passam a sintonizar-se com
os interesses e necessidades de trabalhadores e trabalhadoras em luta pela
democracia. O “Congresso da Virada” expressa a luta pela hegemonia no
universo de assistentes sociais: na sua atuação, na formação acadêmica e na
produção de conhecimentos na área de Serviço Social (IAMAMOTO, 2020,
p.5).
Nessa direção, não há dúvidas que os avanços da profissão, na contemporaneidade,
são resultados desse legado histórico – patrimônio profissional – expresso nas diferentes
dimensões que constituem a profissão: na própria prática profissional, na formação
profissional, na produção do conhecimento e na organização política das/os assistentes
sociais. Tais dimensões, deparam-se com novos/velhos desafios, resultantes dos
desdobramentos da crise estrutural do capital, somados às implicações da conjuntura
brasileira, que se concretizam em expressões ampliadas do conservadorismo.
Pensar o legado do III CBAS é pensar os desafios, como discentes e profissionais, do
projeto ético político na contemporaneidade. A ‘virada’ não significou o desaparecimento das
tensões, disputas e contradições no corpo profissional. Afinal, “[...] uma categoria profissional
jamais é um bloco identitário ou homogêneo é sempre, sob todos os prismas, um conjunto
diferenciado e em movimento” (NETTO, 1996, p.116).
Por isso, não basta, apenas, uma direção social, o enunciado do seu horizonte ético-
político. É preciso que os sujeitos profissionais, cotidianamente, estabeleçam as “mediações
entre a produção de um conhecimento crítico e a efetivação de respostas alternativas às atuais
condições/relações de trabalho e requisições institucionais” (GUERRA, 2018, p.26).
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As demandas e necessidades, apresentadas pelos indivíduos e suas famílias, não
devem ser consideradas como problemas particulares, derivados do
modelo/estrutura/organização das famílias. Elas devem ser observadas como fruto das
desigualdades sociais, resultantes da lei geral de acumulação capitalista. Em outras palavras,
são expressões da “questão social”.
Nessa seara, a compreensão dos indivíduos e de suas famílias não pode se resumir em
uma perspectiva simplificadora de psicologização de suas demandas e da culpabilização das
mesmas. A particularidade, assumida pela família no sistema do capital, não permite reduzi-la
a leituras simplistas que as naturalizam. Mas, o somente, a partir de uma perspectiva de
totalidade social, é possível entendê-la como uma instituição contraditória (HORST, 2018).
Além disso, reconhece-se o seu papel essencial na reprodução do sistema de valores da
ordem estabelecida da reprodução social(MÉSZÁROS, 2002, p.270).
Nesse sentido, o presente trabalho apresenta a dialética renovação/conservadorismo no
que tange à produção teórica e o trabalho profissional com famílias, a partir de duas frentes: a)
a recuperação histórica de três momentos da profissão gênese, renovação e aproximação
com o marxismo e a relação com a temática família; b) a compreensão de família
apresentada, por assistentes sociais, nos artigos publicados em Encontros Nacionais de
Pesquisadores em Serviço Social (ENPESS) entre 2004 e 2012
1
.
Para isso, realiza-se uma pesquisa documental, utilizando como fonte de dados os
anais dos Encontros de 2004 a 2012. Para seleção do corpus empírico, foi utilizada como
palavras-chave Família e Serviço Social. Ao realizar a busca, nos anais dos cinco ENPESS,
constatou-se: do número total de artigos publicados (5.561), 233 apresentaram a palavra
família no título, resumo ou palavra-chave, que foram impressos e lidos; dos 233 artigos
lidos, 73 traziam alguma concepção, porém, desses 73, apenas, 27 apresentaram, diretamente,
o conceito de família. Como técnica de análise, utilizou-se a análise de conteúdo.
A presente exposição está organizada em dois momentos afora a presente introdução e
a conclusão: no primeiro momento, o foco será a relação entre famílias e Serviço Social; no
segundo momento, serão discutidas as concepções utilizadas nos artigos dos ENPESS.
1
Cabe destacar que a presente pesquisa foi realizada durante o ano de 2012. Naquele momento, foi feito um
recorte a partir de 2004, considerando que o retorno das publicações, na profissão, sobre família foi motivado
pela centralidade que a família passou a ocupar na Política Nacional de Assistência Social (PNAS). É importante
sinalizar que dos resultados, de tal pesquisa, foram extraídas para o presente artigo, apenas, uma parte dos dados:
as concepções de família, que foram, de forma mais qualificada, trabalhadas no presente texto. Outros dados
levantados podem ser encontrados em: AZEVEDO; HORST, 2013. Também cabe destacar que outra pesquisa
está em curso, a qual realiza o levantamento dos artigos publicados nos anais do ENPESS de 2014, 2016 e 2018.
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Família e Serviço Social: a legitimação de uma ideologia
Metodologicamente, alguns pontos da relação da profissão com a família serão
retomados a partir de três marcos e marcas centrais da profissão, conforme destacou Yazbek
(2016): a gênese, o movimento de reconceituação e o processo de interlocução com o
marxismo.
As/os assistentes sociais foram convocadas/os, desde a gênese da profissão, a trabalhar
no âmbito da produção e reprodução da vida da classe trabalhadora cuja expressão,
particular, da família se mostra como instituição universal indispensável à reprodução
capitalista junto aos indivíduos sustentada por uma função política de cunho educativo,
moralizador, disciplinador que a legitimava enquanto profissão (HORST, 2018;
IAMAMOTO, 2013).
Conforme apontou Netto (2011), a profissão é, em termos histórico-universais, uma
variável da ordem monopólica, que instaurará um espaço próprio na divisão social e técnica
do trabalho. Trata-se de propiciar um espaço que tem, na sua base, “modalidades através das
quais o Estado burguês se enfrenta com a “questão social”, tipificada nas políticas sociais”
(NETTO, 2011, p.74). Contudo, enquanto profissão, o Serviço Social não representou,
apenas, uma possibilidade posta pelo capitalismo monopolista.
Emergindo como profissão a partir do background acumulado na
organização da filantropia própria à sociedade burguesa, o Serviço Social
desborda o acervo das suas protoformas ao se desenvolver como um produto
típico da divisão social (e técnica) do trabalho da ordem monopólica.
Originalmente parametrado e dinamizado pelo pensamento conservador,
adequou-se ao tratamento dos problemas sociais quer tomados nas suas
refrações individualizadas (donde a funcionalidade da psicologização das
relações sociais), quer tomados como sequelas inevitáveis do ‘progresso’
(donde a funcionalidade da perspectiva ‘pública’ da intervenção) - e
desenvolveu-se legitimando-se precisamente como interveniente prático-
empírico e organizador simbólico no âmbito das políticas sociais (NETTO,
2011, p.79).
O exercício junto aos indivíduos e suas famílias se orientaram, desde sua gênese, pela
lógica de ajustamento do sujeito à ordem e na sua consequente preparação e aptidão para o
mercado de trabalho. Jorge (2009) expôs que essa atuação se pautava na moralidade e nos
valores cristãos, sendo os problemas econômicos e sociais resultados de um desvio de conduta
moral e de seu afastamento da vida religiosa. As práticas direcionadas às famílias da classe
trabalhadora tinham como objetivo atender às camadas populares, que se viam impedidas de
integrar-se ao restante da sociedade (SILVA, 1982). A família era vista como uma unidade de
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tratamento das disfunções sociais
2
.
Um fato a ser notado é que existe consenso no Serviço Social quanto a se
constituir a família em unidade de tratamento ou sistema cliente de sua
prática. Tal consenso pode ser encontrado desde o início de um Serviço
Social que se pretendeu técnico e fundado no conhecimento científico do
homem. Mary Richmond, em seu Diagnóstico Social, mostrava a
importância de se considerar os clientes em suas múltiplas relações sociais,
em especial com sua família de origem, considerando este, ‘muitas vezes’ o
único caminho para obter resultados completos e duradouros’. Enfatizava
também a necessidade de proceder a um estudo da família, de suas
características básicas, de sua importância na gênese e no desenvolvimento
dos problemas apresentados pelo cliente e das interferências do meio social
sobre esta família caracterizada como ‘unidade integradora’. A partir dessa
época, toda a literatura do Serviço Social reafirma a necessidade de não se
isolar o indivíduo de seu contexto familiar (SILVA, 1982, p. 83).
Nesse período, a atuação do profissional pautava-se na perspectiva do estudo social do
caso, cuja compreensão dos indivíduos baseava-se no âmbito do imediato, o considerando,
portanto, uma análise macro das relações societárias. A visão remetia a culpabilização e a
responsabilização desses pelos problemas sociais, bem como sua solução por parte das
famílias (MIOTO, 2010). Assim, para o acesso aos auxílios materiais e serviços institucionais,
a autora afirmou que eram necessárias várias avaliações e exigência de mudanças no
comportamento da família, donde as/os profissionais “desenvolviam seus instrumentos e
técnicas no intuito de fiscalizar e controlar a vida das famílias, marcada ainda por um
processo de burocratização dos procedimentos e regulação das famílias” (MIOTO, 2010, p.2).
O Estado, nesse momento, disseminou o ideário de que, em meio às crises sociais,
somente uma família forte, organizada, com matrimônio consistente, poderia superar essas
crises. Com isso, se deduz que uma família mal “estruturada”, que não mantinha sua
subsistência, como, por exemplo, forçando a mulher ao mercado de trabalho, tornava-se
responsável e vulnerável às desordens sociais, necessitando de alguma ajuda para o seu
restabelecimento. Tal ideologia será materializada na criação do Estatuto da Família, de 1939,
que trouxe profundas mudanças para a sociedade brasileira.
O Estatuto é um documento doutrinário que busca combinar duas ideias
indissociáveis: ‘a necessidade de aumentar a população do país e a de
2
É próprio, desse momento histórico, os Centros Familiares, organizados pelo Centro de Estudos e Ação Social
(CEAS): “Sua finalidade seria a de ‘separar as famílias das classes proletárias, prevenindo sua desorganização e
decadência e procurando elevar se nível econômico e cultural por meio de serviços de assistência e de educação’.
Nesses Centros manterão serviços diversos, como plantão para o atendimento de interessados, visitas
domiciliares, bibliotecas infantis, reuniões educativas para adultos, curso primário ‘para proteger as crianças
cujas mães são obrigadas a trabalhar fora’, cursos de formação familiar (moral e formação doméstica para o lar),
restaurante para operários, etc. O tratamento dos casos será basicamente feito através de encaminhamentos,
colocação em empregos, abrigo provisório para necessitados, regularização da situação abrigo provisório para
necessitados, regularização da situação legal da família (casamento), etc., e fichário dos assistidos”
(CARVALHO; IAMAMOTO, 1996, p.193).
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consolidar e proteger a família em sua estrutura tradicional. A prosperidade,
o prestígio e o poder de um país dependem de sua população e de suas forças
morais: a família é a fonte geradora de ambos’. O Estatuto deixa clara a
importância de uma família bem organizada para uma sociedade bem
estruturada e demonstra o quanto à situação em que se encontravam
principalmente as famílias operárias, estava fora de controle e necessitava de
uma solução urgente (JORGE, 2009, p.15).
Com essa perspectiva de família compreendida como expressão da “ideologia da
família” –, considerada uma célula fundamental da sociedade, sendo necessárias intervenções
nas famílias ditas ‘desestruturadas’, ‘desajustadas’ e ‘desorganizadas’. Nesse cenário, a
atuação pretendia enquadrar e ajustar os indivíduos conforme as necessidades da reprodução
do capital e da expansão da industrialização.
Um segundo marco importante ocorreu a partir da década de 1960, período de grandes
mudanças no Serviço Social latino-americano, resultado dos processos sócio-históricos que
movimentaram todo o continente latino-americano. Nesse momento histórico, surgiram as
condições objetivas e subjetivas para mudanças qualitativas na profissão. Sendo assim, o
posicionamento do Serviço Social comprometido com a classe trabalhadora e suas famílias,
compreendendo-as de forma crítica, iniciou-se, nessa década, com o movimento de
reconceituação, avançando, nos anos setenta, com destaque para o significado político do
chamado Congresso da Virada em 1979. A partir de então, a categoria traça a sua trajetória
rumo à construção de um projeto profissional atrelado à defesa da conquista de direitos, da
emancipação humana e do comprometimento com as classes trabalhadoras.
Nesse contexto, o Serviço Social incorpora matrizes teóricas e metodológicas como
autores da tradição marxista, que possibilitam a crítica radical à sociedade burguesa e,
consequentemente, aos diversos complexos sociais que compõem a realidade, dentre eles: o
indivíduo e a família
3
. Ganha destaque uma das três tendências da renovação –, retomando
sua compreensão de trabalho com família plasmada no conservadorismo.
Conforme apontou Netto (2015), a renovação não se trata de processo simples e
natural de desenvolvimento de tendências e possibilidades que existiam na profissão no
pré-1964.
Trata-se, como se infere, de um processo global, que envolve a profissão
como um todo as modalidades da sua concretização, em decorrência da
laicização mencionada, configuram, todavia, perspectivas diversificadas: a
renovação implica a construção de um pluralismo profissional, radicado nos
procedimentos diferentes que embasam a legitimação prática e a validação
teórica, bem como nas matrizes teóricas a que elas se prendem. [...] nesta
ótica, a renovação do Serviço Social aparece, sob todos os aspectos, como
3
As tendências teórico-metodológicas presentes na renovação do Serviço Social brasileiro, e suas relações com o
exercício profissional com famílias, foram introdutoriamente trabalhadas em: HORST, 2018b.
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um avanço: mesmo nas vertentes em que as concepções herdadas do passado
não são medularmente postas em causa, registra-se uma articulação que lhes
confere uma arquitetura que procura oferecer mais consistência à ordenação
dos seus componentes internos (NETTO, 2015, p.172).
Esse será o caso de uma das direções do processo de renovação, a reatualização do
conservadorismo, que expressará a inspiração fenomenológica e que, no trato com a família,
trilhou uma construção referendada por proposições psicanalíticas, sistêmicas,
existencialistas. Por exemplo, no interior de um conjunto de formulações, a terapia familiar
sistêmica (TFS) define família “como um sistema equilibrado e o que mantém este equilíbrio
são as regras do funcionamento familiar. Quando, por algum motivo, estas regras são
quebradas, entram em ação meta-regras para restabelecer o equilíbrio perdido” (FÉRES-
CARNEIRO, 1996, p. 40, grifos nossos).
As abordagens configuradas da família centram-se na ideia do normal e do patológico,
criando uma imagem de que o problema (patologia) é resultante de aspectos da estrutura da
psiquê (inconsciente) ou das relações (perspectiva relacional). Na história da profissão, essas
perspectivas se fizeram (e ainda se fazem) presentes. Umas das formas de enfrentá-la é a
Resolução CFESS 569, de 25 de março de 2010, que dispõe sobre “a VEDAÇÃO da
realização de terapias associadas ao título e/ou ao exercício profissional do assistente social”.
Nessa resolução, o CFESS destaca que “[...] historicamente, o Serviço Social brasileiro
superou suas vertentes iniciais psicologizantes e estrutural funcionalista, cujos princípios
norteadores segmentavam metodologicamente a profissão em Serviço Social de Caso, Grupo
e Comunidade” (CFESS, 2010, p. 4).
Historicamente, o trabalho com as famílias ganhou impulso, no interior da profissão,
desde o momento de consolidação profissional, por meio do Serviço Social de Caso. Na
aproximação com a teoria social marxista, que se vislumbra a abertura para o amadurecimento
teórico/político necessário que possibilite “aos assistentes sociais as condições de rompimento
com uma interpretação do Serviço Social, enquanto prática imediatista, ajustadora e
pretensamente neutra” (SILVA, 1982, p. 35). Posto isto, vale destaque, o terceiro marco
importante na profissão: o processo de interlocução com a tradição marxista.
Inicialmente, é importante destacar, conforme sinalizou Mioto (2010):
Nesse novo contexto, a família não alcançou o estatuto de objeto de estudo
privilegiado no âmbito da profissão e isso trouxe consequências bastante
indesejadas. O fato da família e das formas de intervenção com famílias não
ser problematizada e trabalhada dentro do novo marco teórico afetou
profundamente o campo da prática profissional (MIOTO, 2010, p.165)
4
.
4
É importante ressaltar que as problemáticas presentes na prática profissional não são vistas como derivadas da
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O não alcance é resultado de diversas mediações que se constituíram no processo
histórico a partir de determinações da própria realidade social, das expressões no âmbito da
esquerda, como também das opções feitas pelo coletivo profissional. Ou seja,
à preocupação com a consolidação dos fundamentos teórico-metodológicos
da profissão, à inserção da profissão como interlocutor no debate [...] sobre
política social e também a um possível alinhamento ao caminho adotado pela
esquerda, de negação da família burguesa como objeto de interesse
intelectual [...] (HORST; MIOTO, 2017, p.236).
No que tange à profissão, destaca-se as particularidades da aproximação com o
marxismo.
Podem-se distinguir, neste processo de inserção do pensamento marxista no
Serviço Social brasileiro, dois momentos: um, primeiro, correspondente ao
período que vai do fim dos anos 1970 até o final dos 1980 e aquele que então
se inicia e se prolonga até hoje. No primeiro, próprio à crise e à derrota da
ditadura e ao afluxo dos movimentos democráticos e populares, a referência
formal ao marxismo e a Marx tornou-se dominante entre as vanguardas
profissionais; houve mesmo uma espécie de moda do “materialismo
histórico”. No segundo, sob a pressão do neoconservadorismo pós-moderno
que começou a envolver as ciências sociais, o marxismo “entrou em baixa
no Serviço Social o elegante tornou-se a adoção de “novos paradigmas”.
De qualquer maneira, há um saldo objetivo indiscutível: a inserção do
pensamento de Marx contribuiu decisivamente para oxigenar o Serviço
Social brasileiro e, desde então e apesar tudo, constituiu-se nele uma nova
geração de pesquisadores que se vale competentemente das concepções
teórico-metodológicas de Marx (NETTO, 2009, p.30).
No bojo do segundo momento histórico entre os anos 1990 e 2000 –, a temática
família é retomada como objeto de estudo, não sem problemas. Este processo é resultado da
urgência colocada diante da centralidade que a família assume, oficialmente, nas políticas
sociais dos governos petistas, particularmente a política de assistência social. Nesse momento
contraditório, a família volta como objeto de reflexão, estudo e debate.
Mioto (2010)
apontou duas questões de avanço no trabalho com famílias, que a
aproximação com a teoria crítica possibilitou, são elas: a) as necessidades trazidas pelos
sujeitos singulares não são compreendidas como problemas individuais/familiares, como
“casos de famílias”, mas são demandas decorrentes da desigualdade social inerentes ao
capitalismo; b) permitiu um redimensionamento em relação ao alcance e direcionalidade, ou
seja, uma ação que se projete além da eficiência operativa, comprometida, eticamente, com a
transformação social.
“ausência de reflexões teóricas” ou, até mesmo, que um acúmulo em certa temática, com grande produção,
impediria a reprodução do conservadorismo. Com todo o avanço que se possa observar ou alcançar a profissão, o
progresso na dimensão teórica “ainda é insuficiente em face da complexidade das determinações e a dinâmica
das contradições constituintes, constitutivas e constituídas dos fenômenos sociais com os quais o assistente
social se confronta” (GUERRA, 2014, p.65).
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Além dessas possibilidades, entende-se que apesar de não incorporada, em grande
parte, na literatura sobre família da profissão é a perspectiva de totalidade social, bem como
a categoria da contradição, que podem representar um giro teórico-metodológico nos
fundamentos explicativos da família. Conforme alertou Netto (2005), Marx não detinha de
uma obra específica para o trato da família. No entanto, em sua vasta obra, possui elementos
históricos analíticos que possibilitam o estudo e a compreensão desse complexo.
Na concepção de Netto (2005), a potência da contribuição do Marxismo para o estudo
sobre família pode ser indicada a partir de três aportes centrais: a) a relação entre indivíduo e
gênero humano; b) a relação entre divisão social do trabalho e formas de propriedade; c) a
relação entre formas de socialização elementares e tipos determinados de organização de
controle e poder. Além disso, o autor sinaliza que as determinações marxianas constituem um
valioso acervo para a investigação da temática, pelo menos em duas frentes:
1. Do ponto de vista teórico-metodológico. Salvo grave erro de
interpretação, o conjunto da obra marxiana em que se inserem aquelas
determinações impõe analisar instituições específicas, como a família, a
partir da perspectiva de totalidade das formações econômico-sociais
concretas. Donde a infirmação de qualquer impostação analítica que, a
pretexto da defesa da real autonomia relativa das instituições, converta-as em
espaços de tensão movidos exclusivamente por vetores imanentes (NETTO,
2005, p.84).
2. Do ponto de vista histórico-sistemático. Também salvo erro de
interpretação, as determinações marxianas mais básicas apontam para
estudos rigorosamente situados, infirmando as operações analíticas tendentes
à construção de tipos ideais ou de constantes sociais invariáveis (estas
últimas, frequentemente, associadas à equivoca noção de natureza humana a-
histórica) (NETTO, 2005, p.85).
Em relação à primeira frente, é o próprio entendimento da família, como um totalidade
em si, um complexo social, dialeticamente articulado com a totalidade social, que possibilita
não isolá-la das determinações exteriores a mesma, ao mesmo tempo que não possibilita uma
leitura de tal complexo como “suspenso”, diante a concretude da realidade, do seu contexto
histórico.
O segundo ponto contribui, diretamente, para ao partir da realidade e das formas de
organização familiares nos seus diversos modelos compreendê-las em sua historicidade e
determinações centrais. Buscando as determinações que a constituem, o que não possibilita
caracterizá-la como uma instituição a-histórica e eterna.
Diante dos elementos apresentados pelo autor, a possibilidade de avanço na
discussão sobre família a partir da tradição marxista pelo aprofundamento da relação entre
individualidade e totalidade, ao se considerar o caráter indissociável entre a sociabilidade e a
Serviço Social e a temática da família: renovação e conservadorismo na produção do conhecimento
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individualidade.
A individualidade tem lugar na reflexão crítica e de totalidade e entendê-la
exige transitar entre as contradições e conflitos da relação entre sociabilidade
e individuação, localizando o ser singular como ser histórico, genérico e
diverso. Neste sentido, decifrar e entender as complexas relações entre o
Estado, a propriedade privada e o casamento monogâmico/família
monogâmica abre fronteiras para a ruptura com concepções idealistas na
elaboração da concepção da subjetividade e da própria diversidade, tidas
ambas, neste campo teórico, como algo que existe nas trilhas internas dos
indivíduos, como uma espécie de mundo interior, que supostamente não tem
vínculo com as relações sociais vigentes. De outro modo, na perspectiva da
totalidade, a essência dos indivíduos está no conjunto das relações sociais e
somente inseridos em suas relações concretas de existência é que podem ser
apreendidos (SANTOS, 2019, p.84).
Nesses termos, ao conceber a relação indissociável entre a sociabilidade e indivíduos,
considerando a sociabilidade como o ‘momento predominante’, não se perde de vista a
relação dialética entre dois polos de um mesmo processo, que é a reprodução social,
determinação central para entender a família. Portanto, o aprofundamento necessário, no
presente, a partir dos fundamentos do Serviço Social, pode contribuir para o enfrentamento da
peleja na profissão, em especial, a produção teórica sobre família, donde o horizonte aberto
pelo PEP possibilita o enfrentamento ao histórico de enraizamento do estrutural
funcionalismo:
Situa-se a família no conjunto das relações sociais, desmistificando a
clássica divisão entre esfera pública e privada, reafirmando o seu caráter
histórico e as suas relações contraditórias. Busca-se desnaturalizar o trabalho
desenvolvido na família e pela família, cuja naturalização permite os
deslizamentos de responsabilidades, especialmente no campo do cuidado,
dos serviços para as unidades familiares. Ademais, interpreta os processos
familiares como expressões singulares arquitetadas nas famílias, que
expressam as múltiplas relações que a condicionam e a definem. Nessa
esteira, a dinâmica familiar não pode ser circunscrita ao âmbito das relações
familiares, considerando os modelos de famílias pautados em funções e
papéis. Com isso, abre-se uma ponte para o campo de debate sobre a
direcionalidade do trabalho com famílias no campo da política social,
postula-se ações orientadas pelas necessidades das famílias e não pelos
problemas apresentados por elas casos de família (HORST; MIOTO,
2017, p.238).
Contraditoriamente, avança-se nos pilares que sustentam o projeto, na produção
teórica que sustenta a perspectiva classista e de totalidade social. No entanto, desde meados
dos anos 2000, conforme Netto (2020), a profissão perde condições e espaços objetivos que
permitam materializar o acúmulo teórico dos últimos 30 anos.
No que tange à família, essa lógica foi, ainda, mais perversa, somou-se a ausência de
produção teórica no horizonte crítico-ontológico com a expansão do SUAS e das políticas
sociais ‘familistas’. A tendência ideológica construída pela política de assistência social,
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desde os anos 2000, amplamente incorporada pela profissão, pode ser resumida na seguinte
chave:
Efetivamente, ela tem seu fulcro conduzido para o enfrentamento do ‘risco e
vulnerabilidade social’, o que se expressa na fixação das suas prioridades em
termos do ‘desenvolvimento de capacidades’ dos indivíduos e famílias
atendidos. Mas, nessa esteira, ocorre uma indução de metodologias de
trabalho socioassistencial com acentuado teor individualizador e marcado
peso psicologizante. A individualização se expressa na proposição de
metodologias de trabalho social centradas na mudança de projetos
individuais (ou familiares) para a superação da condição de pobreza. A
psicologização é conformada, não somente por uma moralização estrito
sensu da pobreza, donde redundaram, no passado, inclusive terapias de
ajustamento, mas pela promessa de sua suplantação por meio da
escolarização, profissionalização e/ou assimilação de aptidões
empreendedoras, que capacitariam para a luta individual por ascensão social
na concorrência do mercado. O que oportunizaria a ‘emancipação’ (ou a
‘autonomia’) dos usuários da assistência social e suas famílias. Aqui, a
hipoteca permanece na redefinição de características pessoais dos
indivíduos, na mudança subjetiva, representada no alcance de determinados
conteúdos culturais e atitudes sociais que representariam a porta de saída’
da sua condição social (SILVEIRA JUNIOR, 2016, p. 65).
Sendo assim, a trajetória histórica aglutinou-se ao o reavivamento de metodologias
inclusive, pela busca equivocada da metodologia marxista para o trabalho com família –
tensionando e possibilitando a reatualização do conservadorismo (HORST, 2018)
5
. Diante
desse cenário contraditório, no próximo tópico, será analisado, por meio dos textos publicados
nos ENPESS, como as tendências da temática família se expressaram na categoria
profissional das/os assistentes sociais.
O debate do serviço social sobre famílias expresso nos anais dos ENPESS.
Durante a seleção e leitura dos artigos, foi construído um roteiro de análise
documental com estas informações: 1) qual o foco da discussão; 2) conceito de família; 3)
quais as principais categorias ou temas apresentados durante o artigo. Como cuidado ético, os
artigos foram enumerados, sem que os autores
6
fossem expostos.
Considerando os ENPESS de 2004 a 2012, apenas, em 2004, é identificada uma linha
direcionada à família (Família e Sistemas de Proteção Social), localizada no interior do
5
Nesse sentido, chama-se atenção, no presente texto, a tendência em curso de reatualização do conservadorismo,
mas não, apenas, pelos textos analisados nos ENPESS em si. Mas tais textos como expressão de um processo
mais amplo, resultado de determinações internacionais, estruturais e conjunturais do cenário brasileiro em suas
dimensões políticas, econômicas, culturais e sociais. Portanto, não há, na presente reflexão, a tentativa de
generalizar a partir dos textos analisados a possibilidade de reatualização do conservadorismo, em curso, na
profissão como resulto dos textos, eles são expressões de um processo mais amplo e contraditório.
6
O quadro completo com todas as concepções que apareceram nos artigos e demais informações pode ser visto
em: AZEVEDO; HORST, 2013. Trata-se do quadro 7 Conceitos de famílias encontrados nos ENPESS (2004
2012).
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subeixo: Serviço Social, Política Social, Estado e Sociedade, e do eixo temático Articulação
entre Formação e Exercício Profissional. A temática família não foi priorizada na sua
totalidade em nenhum outro encontro, ficando distribuída nos mais diversos eixos e subeixos.
Como ponto de partida, duas questões centrais se destacaram na leitura dos 233 textos:
o ecletismo e a naturalização da família. A primeira pode ser identificada desde a diversidade
de tendências teórico-metodológicas, presente na revisão de literatura dos textos, como
também nas concepções de família. Particularmente, nos 27 artigos que apresentaram,
declaradamente, a concepção, constata-se que a família é apresentada a partir de conceitos
diferenciados, que: ora mostrar-se uma mesma direção ideopolítica, ora fundamentos
profundamente ecléticos.
Na literatura sobre família, não existe um conceito reconhecido como único
e consensual, capaz de agregar todas as análises formuladas sobre ela. O que
existe são aproximações de acordo com as perspectivas teórico-
metodológicas dos autores e das suas áreas de conhecimento. A dificuldade
para a formulação de um conceito-padrão reside na complexidade
da família e na sua transversalidade, na sua relação com as questões mais
gerais da vida social, na multiplicidade de questões e temáticas presentes no
interior da família, tanto nas expressões da sua realidade concreta quanto na
produção teórica sobre ela (trabalho n°56 anais XIII ENPESS).
Conforme pode-se notar no trecho destacado acima, os textos, em geral, demarcam
“impossibilidade” de se compreender a família e, concomitante a essa justificativa, explica-se
a diversidade de fundamentos teórico-metodológicos, muitas vezes colidentes. Tudo aparece
como um caleidoscópio místico e eclético. Contudo, entende-se que tal constatação não
apresenta nenhum caráter de novidade no que tange à produção teórica da profissão. Na
verdade, é expressão da estrutura sincrética do Serviço Social, que apresenta, em sua
contraface teórica, o ecletismo (NETTO, 2011)
7
. Destaca-se, por ora, o debate a respeito do
pluralismo no sentido de demarcar as diferenças entre pluralismo e ecletismo.
O pluralismo no campo profissional do Serviço Social pressupõe o
reconhecimento de distintas vertentes do pensamento, concepções, direções
valorativas e respectivas finalidades que, incorporadas por projetos
profissionais, podem ser materializados no cotidiano de trabalho. Dessa
maneira, podemos encontrar nos espaços profissionais claras diferenças e
inúmeras nuanças, que podem ou não se conciliar ou se fundir. Em vista
disso, ao mencionar respeito às correntes profissionais diferentes, desde que
democráticas, não se pode supor que a referência feita no código de ética
7
“Três são os fundamentos objetivos da estrutura sincrética do Serviço Social: o universo problemático original
que se lhe apresentou como eixo de demandas histórico-sociais, o horizonte do seu exercício profissional e a sua
modalidade especifica de intervenção” (NETTO, 2011, p.92). Ainda, conforme Souza: “A prática sincrética
demanda e reproduz a elaboração formal-abstrata de conhecimentos teóricos a prática sincrética é o momento
predominante do ecletismo teórico, embora não o determine definitivamente. O ecletismo é a expressão do
sincretismo no plano teórico, isto é, um agregado acrítico e descontextualizado de conhecimentos produzidos por
distintas áreas e objetos de conhecimento” (2016, p.137).
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seja à mera equivalência entre as correntes profissionais ou ao fato de
poderem ser conciliadas ou fundidas, sem critério, indistintamente. É
imprescindível entender que diferenças entre o pluralismo e o ecletismo.
Para isso, é preciso antes reconhecer a existência de concepções distintas no
campo profissional seja de homem, sociedade, Estado, moral, ética etc. ,
as quais se encontram no bojo das vertentes teóricas e suas possibilidades de
proposições à prática, definindo meios, modos, objetivos e finalidades, em
face do trabalho profissional (FORTI, 2016, p.303).
Conforme Forti (2016), a ideia de que tudo é passível de ser juntado, ou “extrair o
melhor de cada coisa”, leva ao equívoco de “apreciação das opções profissionais como mera
questão de escolha, sem quaisquer consequências, sem implicações práticas, sem
comprometimentos profissionais com os sujeitos que atende e a vida social em geral”
(FORTI, 2016, p.303).
Nessa direção, cabe destaque, ainda, ao se tratar da profissão, de não se perder o foco
daquilo que é matéria de Serviço Social, objeto de trabalho que se expressa nas atribuições e
competências. Ainda que se possa acreditar que na explicação da família uma chave
importante, seja as contribuições de outras tendências, como o são, questiona-se: quais
determinações são fundamentais para o trabalho profissional?
A segunda questão é o aspecto recorrente nos argumentos sobre o papel fundamental
que as famílias exercem, sendo consideradas espaço: natural de socialização; de transmissão
de valores e de regras de convivência para os seus membros; de apoio; de desenvolvimento
humano. Isso reforça que as famílias têm papel central na socialização primária. Além do
consenso em torno do seu surgimento (que não é questionado/problematizado).
A família, juntamente com o Estado e a Igreja ajudam a normatizar a vida
em sociedade porque impõem direitos, poderes e deveres, talvez seja por
isso, que de dentro dela surgem os primeiros preconceitos vividos pela
criança e mais tarde reproduzidos pela sociedade. que é pelo viés familiar
que os sujeitos são introduzidos no meio social, trazendo consigo toda uma
configuração própria de seu primeiro grupo social de vivência (trabalho, nº 6
anais X ENPESS).
Neste ínterim, salientam-se os riscos que podem apresentar análises que tendem a
reforçar a família, apenas, como o lugar de ‘aconchego e de paz’ ou de reafirmação do ‘lugar
de socialização primária’, sem o questionamento de quais são os valores transmitidos por essa
instituição. Por isso, é salutar ressaltar que a família, como um ‘microcosmos’ da reprodução
e do consumo, está, intimamente, ligada aos imperativos alienantes do sistema de produção
capitalista, independente da organização/modelo da família.
Nesse sentido, a família se configura como um grupo importante de vivência não
por ser o primeiro espaço de socialização dos sujeitos, de cuidado e de proteção. Mas, por se
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tratar, também, de uma instituição central na ordem burguesa, que se objetiva perpetuar por
meio da internalização/inculcação – o sistema de valores capitalistas (MÉSZÁROS, 2002).
Por isso, o entendimento dessa instituição precisa recorrer a sua realidade
contraditória, que possibilita o enfrentamento das tendências que a naturalizam por vias da
ciência positivista/funcionalista, suas vertentes e pela vida da ontologia religiosa. É preciso,
portanto, enfrentar a tendência, explicitada, de naturalização e eternização da família
nuclear burguesa patriarcal (HORST, 2018).
Posta a demarcação das duas dimensões que provocaram a leitura dos textos, o foco
central, agora, será a sua exposição, considerando um aspecto fundamental que se sobressai
na análise: as concepções de família. As concepções apresentadas nos textos do ENPESS
pelas autoras podem ser observadas a partir de quatro tendências gerais, a saber:
1. o primeiro grupo considera a família sob os seguintes aspectos: associação de
pessoas; grupo social convivendo por razões e laços afetivos; compromisso mútuo; rede de
apoio e solidariedade; não, apenas, ligada por fatores sanguíneos; proteção; reciprocidade e
mutualidade; respeito; responsabilidade; dependência; pessoas que convivem num lapso de
tempo mais ou menos longo; pessoas que se relacionam cotidianamente.
Além desses elementos gerais na definição de família, compreendem que existem
diversas formas de famílias, e baseiam-se nos marcos normativos das políticas sociais. Se for
tomado como exemplo a PNAS, nota-se que são empregados vários termos contidos na
definição da política no que se trata à família, como: espaço de proteção e socialização;
cuidado entre os membros” (BRASIL, 2004). Percebe-se a presença do entendimento da
NOB/SUAS ao visualizar a família enquanto núcleo de sustentação afetiva, ou seja, laços
afetivos, para além de fatores biológicos (BRASIL, 2005).
Apesar de considerar diversos modelos familiares, o que demarca esse grupo, e a
concepção que utilizam, é a fundamentação da ideia de família a partir da concepção presente
nas legislações das políticas sociais. As políticas são construídas com base em: conteúdos
teóricos e ético-políticos distintos; concepções dos organismos internacionais. Sendo assim,
distinção com os fundamentos da profissão. Além disso, mesmo que aparentem
abrangência da concepção de família, partem de pressupostos que reafirmam papéis e funções
esperadas da família monogâmica, expressão da sociedade de classes. Nesse sentido, é
essencial a “[...] leitura crítica e autonomia profissional, em relação às exigências político-
pedagógicas estabelecidas pelas políticas governamentais” (SILVEIRA JUNIOR, 2016, p.17).
2. um segundo grupo considerou a família dentro da perspectiva de um sistema,
estrutura, padrões - pequena sociedade humana; ponte de interseção; alianças entre grupos,
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cooperação, solidariedade. Nesse grupo, observa-se uma influência das tendências próximas a
terapia familiar, visualizando a família enquanto um sistema, com suas alianças e regras.
Neste grupo, destaca-se a formulação de Minuchin, representante do pensamento
sistêmico. A terapia familiar sistêmica (TFS) define família “como um sistema equilibrado e o
que mantém este equilíbrio são as regras do funcionamento familiar (FÉRES-
CARNEIRO, 1996, p. 40, grifos nossos). Para Minuchin (1982), os sintomas que um
indivíduo apresenta resultam de um sistema familiar disfuncional, identificando hierarquias e
relações no interior da família que levam a essa disfunção (MINUCHIN, 1982).
A perspectiva sistêmica ainda se faz presente no interior da profissão, indo contrária a
Resolução 569, de 25 de março de 2010, que veda a realização de terapias por parte das/os
assistentes sociais junto às famílias e indivíduos. Esses trabalhos apresentam significativa
interlocução com tendências da fenomenologia. As consequências para o exercício
profissional orientado por uma perspectiva fenomenológica são das mais diversas, dentre elas:
o usuário passa a ser considerado como um sujeito singular, isolado de determinações de
classe; a profissão é rebaixada a mero auxílio de natureza psicossocial, exigindo do
profissional uma posição acrítica e, consequentemente, a negação da perspectiva de totalidade
(CARLI, 2013).
3. O terceiro grupo considerou a família como um núcleo de: linhas de força;
autoridade e autoritarismo; estrutura hierarquizada; unidade distribuidora interna de renda e
afetos; relações de poder; papéis de gênero definidos; ligação afetiva; cuidado; compromisso.
Nele, faz-se presente a noção de família associada à ideia de um modelo tradicional e
patriarcal burguês, devido à presença de fortes demarcações de papéis a serem cumpridos e,
também, as próprias funções consideradas das famílias numa perspectiva de hierarquia,
autoridade, vinculada a imagem de uma chefia masculina e, logo, os outros membros
cumprem os papéis de subordinação.
Nas palavras de Mészáros (2002, p. 271), trata-se, exatamente, do papel que a família
cumpre no capitalismo, pois “sem o envolvimento ativo da família nuclear hierárquica,
articulada em plena sintonia com o princípio antagônico que estrutura o sistema do capital
os indivíduos não internalizariam as normas e valores dominantes. Ao mesmo tempo, trata-se
da naturalização de uma forma particular de família, a da particularidade na sociedade
burguesa. Junto a naturalização presente na defesa dessa família, como a-histórica, soma-se a
eternização – da família e do capitalismo. Lessa (2012, p.54) pontua que:
Quando se trata do Estado, das classes sociais e da propriedade privada, a
necessidade de sua superação é mais fácil de ser assimilada. Todavia, porque
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é um elo importantíssimo dos processos de individuação de todos nós, é bem
mais complicado constatar que o mesmo se com a família monogâmica.
Ela é um complexo social tão alienante e alienado quanto o Estado; tal como
a propriedade privada, é reproduzida pela aplicação cotidiana da violência; é
o exercício cotidiano do mesmo poder que faz de uns a classe dominante e
de outros os explorados e produtores do “conteúdo material da riqueza
social” (Marx, 1983, p.46).
4. A última tendência identificada propõe a família vinculada a laços consanguíneos;
pelas redes de parentesco, relações de afinidade, descendência. Defendem que, hoje, existem
várias formas de organizações familiares que rompem com o modelo tradicional. Neste, tem-
se a defesa dos diversos ‘arranjos familiares’ presentes na realidade, a partir da afirmação da
família ser socialmente construída e permanecer em constante mudança. As definições são
feitas sempre através de exposição dos diversos modelos que existem.
Os artigos demarcam, ainda, que as/os profissionais, em seus espaços sócio-
ocupacionais, precisam: refletir que existem modelos de família para além dos pré-
estabelecidos; romper com o “seu” modelo de família, pois, muitas vezes, não condizem com
o que ele atende ou vivencia, demarcando a necessidade de se apropriar, teoricamente, de
outros conceitos.
Torna-se salutar, então, a discussão sobre a diversidade familiar para o exercício
profissional, dado que é preciso conhecê-la como estratégias para: confrontar o discurso moral
do modelo nuclear patriarcal burguês como único possível; defender que, no plano individual,
os indivíduos possam ter o direito de partilhar a vida, as vivências afetivo-sexuais com quem
optarem. No entanto, o formato que o debate assume, na profissão, pode levar a uma
idealização de certos modelos familiares, por ter ‘rompido’ com o padrão burguês.
A partir dos fundamentos da profissão, é preciso demarcar a questão: da
gênese/origem; do desenvolvimento; e da particularidade da família na ordem burguesa. O
debate, “em defesa da diversidade familiar”, apesar de necessário, é limitado. Nesse sentido, é
na própria negação do debate em torno do surgimento da família (sua gênese e
desenvolvimento), majoritariamente sustentado por uma perspectiva religiosa, donde um
surgimento divino ou, por uma perspectiva positivista/ funcionalista, que ambas são
reforçadas. A tendência à naturalização e à eternização dessa instituição apresenta elementos
para apontar as tendências conservadoras. Apesar de necessárias, as críticas à negação da
diversidade familiar não são capazes de capturar a essência do problema: a propriedade
privada dos meios de produção.
Negar as determinações centrais, pode acarretar na idealização das famílias, que
devem ser sempre o lugar: do afeto, do amor, dos sentimentos. O lugar de transmissão dos
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valores dominantes, mas sem o questionamento de que valores são esses. Portanto, mais do
que nunca, é preciso compreender esse complexo, partindo da realidade, mas não somente. É
preciso compreendê-lo a partir da totalidade social como uma instituição contraditória,
socialmente construída com vistas a enfrentar sua idealização e eternização.
As famílias inseridas num país de capitalismo dependente, marcadas pela
Superexploração (MARINI, 2017), na qual vivenciam condições sub-humanas, são obrigadas
a formarem redes de proteção para tentar suprir suas necessidades e ausência do Estado.
Porém, muitas vezes não conseguem. Quando as famílias não conseguem, por meio das redes,
responderem as suas necessidades básicas, são as mulheres sobrecarregadas e, ainda assim,
essas famílias são responsabilizadas e culpabilizadas.
Contraditoriamente, é interessante observar, nas produções, o diapasão, apresentado
entre a proteção social “ofertada” pelo Estado e a ausência da proteção, que ocasiona em
sobrecarga para as famílias.
A questão que se coloca é se a solidariedade familiar pode suportar os
efeitos da ausência de políticas de proteção social voltadas para zonas
mais vulneráveis de nossa sociedade. A família, agora vista como
‘alternativa privativa para a questão social’ substituta das políticas de
proteção social que deveriam estar sendo implementadas pela esfera pública,
vem sendo pressionada a responder pelas graves situações vividas pelos seus
membros, mesmo sem dispor de condições básicas para promover a
integração social e o desenvolvimento pessoal dos indivíduos que dela fazem
parte (trabalho, art. 2 artigos X ENPESS).
Com isso, um acúmulo no interior da profissão no sentido de reconhecer o papel
das políticas sociais e do Estado como central para a reprodução das famílias. Outro ponto
presente nos textos é a tendência em negar as realidades vivenciadas pelas famílias a partir da
referência pessoal do profissional, acionada no exercício profissional: “profissionais ainda
estão agindo, pautados nos seus próprios referenciais de família, utilizando-se de um
pensamento generalista, referendado no senso comum” (trabalho nº2 artigos X ENPESS).
Artigos de resultados de pesquisas mostram que muitos/as assistentes sociais
entendem a complexidade que a família está inserida e a necessidade de não colocar o seu
modelo de família e princípios no trabalho. Ainda que no exercício profissional, muitas vezes,
não conseguem materializar essa direção:
Os profissionais no exercício de suas atividades têm como referência as
funções tradicionais do homem e da mulher, de provedor e de cuidadora
respectivamente. Não incorporam ainda em suas práticas as significativas
transformações nesta área, que alteraram a vida familiar e consequentemente
os papeis masculino e feminino no âmbito familiar (trabalhonº2 artigos X
ENPESS).
Ao reproduzir seu modelo de família, tornam a atuação, meramente, tecnicista e
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esvaziada de um olhar crítico que compreenda as famílias nas suas mais diversas
determinações e proponha, juntamente com as mesmas, estratégias que visem atender às
necessidades vivenciadas por elas.
Outra questão identificável é o avanço da compreensão do alto nível de familismo das
políticas, que responsabilizam as mesmas
8
. Esse ponto merece destaque, no sentido de
expressar, contraditoriamente, a própria produção do conhecimento e do trabalho profissional.
As políticas de saúde e da assistência social estão interligadas com o projeto familista,
ficando explícitas quando se apresentam como eixos estruturantes de atuação a matricialidade
sociofamiliar e a territorialização. Estes eixos refletem uma dupla perspectiva, na medida em
que buscam oferecer uma proteção às famílias. Contudo, exigem aumento de suas
responsabilidades, reforçando a visão de culpabilização das famílias pelos “males sociais”,
expressões do modo de produção capitalista.
Ainda que profissionais reproduzam concepções e fundamentos conservadores como
uma marca da continuidade do conservadorismo , também é expressivo o grande número de
profissionais que tomam o ‘familismo’ como categoria-chave no cotidiano do trabalho e da
produção do conhecimento como um marco que expressa renovação –, denunciando: a
ausência de condições concretas de proteção social; a responsabilização; a culpabilização
resultante da centralidade da família; e, muitas vezes, construindo alternativas frente a essa
realidade.
Há um reconhecimento da ausência do Estado no cumprimento da proteção social e do
entendimento que as políticas públicas não conseguem dar conta da dinâmica da realidade
social das famílias da classe trabalhadora atendidas pelas/os assistentes sociais. Contudo, no
circuito do trabalho profissional – que os textos demonstram –, o que predomina é uma
dinâmica que circunscreve a processualidade do exercício profissional no círculo de giz do
sincretismo (NETTO, 2011). Sendo assim, trata-se da necessidade própria do circuito
sincrético de encerrar o processo de trabalho, somente, se encaminhado algo prático, concreto,
na vida dos sujeitos. Conforme destacou Netto (2011, p.97): “Toda operação sua que não se
coroa com uma alteração de variáveis empíricas (sejam situacional-comportamentais,
individuais, grupais, etc.) é tomada como inconclusa, ainda que se valorizem seus passos
prévios e preparatórios”.
8
Em uma análise macro (dos 233 artigos iniciais), mais de 50% discutiam a centralidade da família nas políticas
sociais a partir da Saúde, expressas, principalmente, através da Estratégia de Saúde da Família inscrita na
atenção primária à saúde, e da política de assistência, a partir da discussão da Matricialidade Sociofamiliar na
proteção social básica, organizada pelo Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) nos diversos
programas Programa de Atendimento Integral a Família (PAIF), Bolsa Família, Benefício de Prestação
Continuada (BPC).
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Como as respostas, em suma maioria, dependem das políticas públicas/sociais, opta-se
ao invés de serem feitas denúncias do cenário colocado, reconstruir as demandas e pensar
alternativas – por culpabilizar as famílias.
Diante disso, fica muito clara a tendência atual de direcionar o trabalho com
famílias na sua instrumentalidade funcional, reiterando o movimento
hegemônico da sociedade, com base numa produção bibliográfica de cunho
estrutural-funcionalista e também nas ambiguidades contidas na orientação
das próprias políticas setoriais em relação à família, o que significa velhas
práticas travestidas em novos discursos. Assim, a reiteração de um processo
interventivo na lógica do disciplinamento, da responsabilização e da
culpabilização das famílias flui como um continuum naturalizado e
necessário, embalado pela ideia do protagonismo das famílias. Nesse
contexto, a ausência ou a incipiência de resultados efetivos relacionados à
intervenção profissional com famílias tem sido atribuída, ora como culpa do
Estado, que não garante os direitos, ou da família, que, apesar de todas as
informações sobre seus direitos, não é competente o suficiente para acessar o
que lhe é de direito, ou ainda, para efetuar mobilizações para reivindicar tais
direitos (HORST; MIOTO, 2017, p.240).
É próprio do processo de decadência ideológica da burguesia, a ausência da
perspectiva de totalidade, conforme apontou Lukács (2015), materializando-se,
concretamente, na vida e no entendimento dos sujeitos, uma desconexão com o
funcionamento geral da sociabilidade. “A sociedade aparece como um místico e obscuro
poder, cuja objetividade fatalista e desumanizada se contrapõe, ameaçadora e
incompreendida, ao indivíduo” (LUKÁCS, 2015, p.113), impactando, automaticamente, o
entendimento da relação entre os próprios sujeitos e de suas famílias com a sociabilidade.
Nesse sentido, aposta-se na leitura de mundo sustentado pelo método materialista
histórico-dialético, como forma de buscar dissolver a imediaticidade e de pensar alternativas
concretas. Essa leitura é essencial para enfrentar o debate proposto, considerando o risco do
retorno hegemônico, de caráter conservador, por meio da discussão sobre família, que se
encontra em terreno fértil no cenário atual.
O desconhecimento/negação da interpretação marxista da realidade – e do próprio
método tem permitido que, com base nessa justificativa, as produções sobre família, na
profissão, tornem-se quintal do ecletismo. Inclusive, no exercício profissional, que se
expressa no recurso a outras perspectivas, justificadas pela suposta impossibilidade do trato
da subjetividade
9
e da dimensão técnico-operativo pelo marxismo.
9
No levantamento do CFESS para a produção do documento ‘Práticas terapêuticas no âmbito do serviço social:
subsídios para aprofundamento do estudo’: a principal justificativa em defesa do recurso à terapia familiar e suas
formulações teóricas é a insuficiência dos “paradigmas” (leia-se marxismo) para lidar com a subjetividade
(CFESS, 2008). É de extrema importância indicar não somente a profunda obra de Lukács, como também os
trabalhos de Gilmaísa Macedo da Costa, cuja elaboração teórica tem contribuído para o debate sobre
subjetividade/personalidade ancorada na teoria lukacsiana (COSTA, 2008; COSTA 2010; COSTA, 2017).
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Considerações finais
As pesquisas que analisam o exercício profissional junto às famílias demonstram,
majoritariamente, um problema: a ausência da perspectiva de totalidade, o que acarreta a
responsabilização e a culpabilização das famílias pelas mazelas ocasionadas pelo capitalismo.
Em um cenário em que a pós-modernidade defende, exatamente, o esforço de análise e de
compreensão pela ênfase no singular, no micro, no pontual, a relação entre ausência de
perspectiva de totalidade, no trabalho cotidiano, e a ampliação das tendências
neoconservadoras se torna, nesse sentido, alarmante.
No âmbito da produção teórica, a processualidade histórica exige esforços reflexivos
em torno das novas demandas e aprofundamentos. Neste sentido, alguns temas, como o da
família, exigem esforços teóricos e mediações que deem conta, dentro de uma perspectiva da
tradição marxista, de novas respostas.
Se a minha argumentação é procedente, a inexistência de uma abordagem
marxiana particular da instituição família não torna impossível ou ilegítima
uma tal abordagem rigorosamente inspirada na teoria social de Marx. Ao
contrário, torna-a possível e necessária: se esta teoria pretende
universalidade, sua natureza macroscópica deve dar conta dos processos,
fenômenos e instituições significativos que se inscrevem no interior da
macroscópica. Vale dizer: uma teoria social como a marxiana, que procura
reproduzir idealmente o movimento histórico-social real da ordem burguesa,
tem de apreender a dinâmica efetiva das instituições constituintes desta
ordem social. Numa palavra, o desenvolvimento da teoria social fundada por
Marx implica, entre outros desdobramentos e aprofundamentos criativos, a
análise particular de instituições como a família (NETTO, 2005, p.85).
Problematizar que as famílias são observadas sob quatro grandes indicativos: um que
entende as famílias com base nas legislações das políticas sociais; outro que toma a
concepção vinculada à ideia de família enquanto um sistema, adotando a perspectiva da
Terapia Familiar Sistêmica; um que concebe a família de uma maneira tradicional, ligada a
hierarquia, regras e papéis sociais bem definidos, na defesa da família nuclear patriarcal
burguesa; e, por fim, um último indicativo que entende a família nas suas mais diversas
configurações, aproximando-se dos arranjos familiares, nos quais as mesmas organizam-se
no cotidiano.
Apesar de transversalmente, nos diversos textos, existir elementos que apontam uma
perspectiva crítica como o pressuposto de que a família é socialmente construída; a defesa
da diversidade familiar; a defesa pela não culpabilização das famílias; a crítica à centralidade
que as famílias ocupam –, ainda, tratam-se de textos que, majoritariamente, não conceituam a
família partindo dos fundamentos teórico-metodológicos do Serviço Social na
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Nesse sentido, é necessário acumular forças coletivas e estratégias junto aos núcleos e
grupos de pesquisa, nos eventos, na formação profissional, nos espaços do conjunto
CFESS/CRESS que possibilite a discussão e o acúmulo em uma direção crítica. Afinal,
A tendência restauradora e conservadora no Serviço Social resgata uma
idealização do passado com fortes influências da filosofia aristotélico
tomista mixada com o Social Worker (Serviço Social de Casos, Serviço
Social de Grupo e o Desenvolvimento de Comunidade), identificado como
“modelo” de profissionalização. Supostamente neutro e apolítico, esse
“modelo” é erigido como referência de competência técnica na
“intervenção”. Reclama-se o retorno a autores clássicos e representativos do
Social Work, evidente no chamado Serviço Social “clínico”. A perspectiva
conservadora recusa o debate teórico valendo-se de denúncias político-
ideológicas. Sob o signo de “politização à esquerda” ou “militantismo”
tidos como causa de suposta “desprofissionalização” do Serviço Social ,
reitera-se a velha crítica conservadora à Reconceituação (NETTO, 1981). As
circunstâncias históricas em que se inscreve a atividade profissional e as
relações e condições de trabalho são silenciadas. Também o são a politização
à direita e a militância religiosa. A crítica ideológica é direcionada
exclusivamente às propostas “de esquerda”. Esse caldo cultural dispõe de
aderente terreno societário à sua difusão ante a crise econômica e o
desmonte das políticas públicas de Estado. O rebaixamento do nível da
formação acadêmico-profissional na graduação com a expansão potenciada
do ensino à distância (EAD) em moldes empresariais e formação aligeirada,
oferece um solo favorável às propostas pragmáticas e conservadoras, com
rebaixamento do nível teórico e de crítica (IAMAMOTO, 2020, p.13).
O anseio é apontar que a temática família e o enfretamento dessa discussão, aportada
em subsídios e referenciais críticos, possibilitam: desvendar as disputas e tendências presentes
na profissão; e construir alternativas diante de requisições profissionais conservadoras,
mediadas pelo PEP, e que enfrentem as tendências neoconservadoras.
Negar e/ou afirmar que a tradição marxista não conta da explicação sobre a
instituição família sempre contribuiu ainda mais na atual conjuntura para levar água ao
moinho do conservadorismo e da pós-modernidade. Diante disso, exige-se, como
possibilidade de desenvolvimento da própria teoria social, fundada a partir de Marx, o
aprofundamento e novos desdobramentos de temáticas ainda não aprofundadas, de maneira
criativa. Se isso não ser feito, corre-se o risco, parafraseando Kofler (2010), de aceitar
acriticamente como verdadeiros os meros lampejos dos processos reais.
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Para destacar, apenas, alguns pressupostos: relação indissociável entre história/teoria/método; teoria/método
marxistas e valores emancipatórios; “questão social” como base de fundação sócio-histórica da profissão e suas
expressões como matéria do trabalho profissional; trabalho como categoria fundante do ser social, como
mediação entre homens/mulheres e natureza cuja interação deriva toda a processualidade de formação humana.
Serviço Social e a temática da família: renovação e conservadorismo na produção do conhecimento
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