DOI 10.34019/1980-8518.2021.v21.31780
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 21, n.1, p. 323-346, jan. / jun. 2021 ISSN 1980-8518
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A proteção de crianças e adolescentes contra
castigos físicos aplicados por pais ou
responsáveis
Protection of children and teenagers against physical punishment by
parents or guardians
André Viana Custódio
*
Andréa Silva Albas Cassionato
**
Resumo: O artigo tem como objetivos estudar as
estratégias para o enfrentamento da violência
intrafamiliar decorrente dos maus tratos contra
crianças e adolescentes pela aplicação de castigos
moderados através da contextualização desse tipo
de violência a partir da aprovação da Lei Menino
Bernardo em 2014, caracteri-la juridicamente
como maus tratos e analisar as diretrizes para
enfrentá-la de tal maneira que possa ser
identificado se as políticas públicas preveem
ações para combate ao problema. Como
conclusões observou-se a fragilidade das políticas
públicas para o enfrentamento a violência
intrafamiliar e a necessidade de superação da
cultura da violência contra crianças e
adolescentes como forma de garantia de direitos
humanos. O todo de abordagem foi dedutivo e
o método de procedimento monográfico com
técnicas de pesquisa bibliográfica e documental.
Palavras-chave: criança; adolescente; violência;
direitos humanos; políticas públicas.
ABSTRACT: The article haves with objectives
to study the strategies for coping with
intrafamily violence resulting from
mistreatment against children and teenagers by
applying moderate punishments through the
context of this type of violence after the
approval of the Menino Bernardo Law in 2014,
characterizing it legally how to mistreatment
and analyze the guidelines to face it in such a
way that it can be identified if public policies
foresee actions to combat this problem. As
conclusions, it was observed the fragility of
policies to face intrafamily violence and the
need to overcome the culture of violence against
children and adolescents as a way of
guaranteeing human rights. The approach
method was deductive and the monographic
procedure method with bibliographic and
documentary research techniques.
Keywords: child; adolescent; violence, human
rigths, policies.
Recebido em: 25/08/2020
Aprovado em: 24/11/2020
*
Coordenador adjunto e professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado
da Universidade de Santa Cruz do Sul (PPGD/UNISC). Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa
Catarina, com Pós-doutorado pela Universidade de Sevilha/Espanha. Líder do Grupo de Pesquisa Políticas
Públicas de Inclusão Social e do Grupo de Estudos em Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens da
UNISC.
**
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul, Mestre e,
Ciências Jurídicas pela Unicesumar. Integrante do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social e do
Grupo de Estudos em Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens da UNISC.
André Viana Custódio; Andréa Silva Albas Cassionato
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Introdução
A imposição de castigo físico sob a narrativa do discurso de educar a criança é algo
extremamente corriqueiro na sociedade contemporânea. A cultura do bater persiste nas lógicas
organizativas familiares e nas relações estabelecidas entre adultos e crianças e ultrapassa
gerações naturalizando a violência como linguagem e prática social. Por essa razão, o castigo
físico é tolerado socialmente mascarado pelo discurso da necessidade de impor limites às
crianças e adolescentes ou como o fim mais eficiente para os adultos obterem os
comportamentos infantis desejados.
A cultura da permissão de bater, tão presente nas famílias, implica na vitimização de
crianças e adolescentes em detrimento de seus direitos fundamentais de proteção contra toda
forma de violência reconhecido na Constituição brasileira e regulado pela Lei n. 8.069/1990 -
Estatuto da Criança e do Adolescente. No entanto, a Lei Menino Bernardo - 13.010/2014 foi
responsável pela definição objetiva da proibição da prática do castigo físico com fins corretivos,
dentre outras formas de vioncia contra crianças e adolescentes, prevendo a aplicação de
medidas de proteção para criaas e adolescentes e medidas administrativas aos pais e
responsáveis. Além disso, os pais ou responsáveis estarão sujeitos a responsabilização penal
decorrente da violência cometida. Da prescrição legal decorre inclusive a necessidade da
estruturação de políticas blicas que tenham a capacidade de transformar a cultura da violência
em efetiva proteção de criaas e adolescentes.
O estudo buscou analisar os julgamentos proferidos pelo Tribunal de Justiça do Estado
do Rio Grande do Sul para verificar como nos processos crime ocorre a justificativa do agressor
baseado na narrativa do caráter educativo da violência. Nesses casos, com fundamento na Lei
13.010/204 a agressão com fins educacionais/corretivos o é aceita. Assim, o agressor é
responsabilizado criminalmente pelo seu ato. Entretanto, nada foi encontrado na seara da
proteção dos direitos da criança e do adolescente no âmbito familiar como, por exemplo,
interferência no exercício do poder familiar ou afastamento da vítima de seus agressores. Isso
implica em reconhecer que a atuação estatal para proteção de crianças e adolescentes vítimas
de castigo físico moderado permanece como desafio no campo das políticas blicas de
atendimento e proteção.
Nota-se que, apesar do avanço internacional e nacional dos direitos de criaas e
adolescentes, é fato que, em relação ao castigo físico, há uma cultura persistente e tolerante,
ocultando as graves consequências da violência contra crianças e adolescentes. Ddecorre a
necessidade de estruturação de políticas públicas especializadas para o enfrentamento às
A proteção de crianças e adolescentes contra castigos físicos aplicados por pais ou responsáveis
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diversas formas de violação de direitos e que proteja a dignidade de crianças e adolescentes
vítimas da violência intrafamiliar.
Diante dessa realidade, a proposta do presente trabalho é analisar a aplicação de castigos
físicos moderados como forma de maus tratos contra crianças e adolescentes e estudar
estratégias para o enfrentamento da violência intrafamiliar. A questão que se coloca é: como as
políticas blicas de enfrentamento à violência intrafamiliar preveem ões para o
enfrentamento da aplicação de castigos moderados como forma de maus tratos contra crianças
e adolescentes?
A princípio destaca-se que as políticas públicas de atendimento, muitas vezes, reduzem-
se a ações de sensibilização social, sem qualquer espécie de atendimento especializado,
acompanhamento e articulação intersetorial para enfrentamento da violência contra crianças e
adolescentes nos territórios. Persiste uma prática reparatória, que reduz a ão apenas ao
atendimento após a ocorrência da violência, que em regra, o notificadas ou conhecidas apenas
quando se expressam de maneira grave.
A fim de cumprir com seu objetivo, o presente estudo oferece breve contextualização
da violência contra crianças e adolescentes na modalidade de maus tratos a partir da aprovação
da Lei Menino Bernardo em 2014. Em seguida, caracterizar-sejuridicamente a aplicação de
castigos moderados como modalidade de maus tratos no contexto da violência intrafamiliar
contra criaas e adolescentes. E, por fim, serão analisadas diretrizes para o enfrentamento à
violência contra a criaa e o adolescente nos planos nacionais de políticas públicas
identificando as estratégias e ações previstas para o enfrentamento à cultura de aplicação de
castigos moderados.
O todo de abordagem utilizado foi dedutivo, uma vez que se parte de uma
generalização – consistente na constatação da existência de violência intrafamiliar –, para uma
questão individualizada consistente na proibição de castigo físico moderado como prática
disciplinar. O método de procedimento foi monográfico, com técnicas de pesquisa bibliográfica
e documental. A pesquisa bibliográfica considerou a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e
Dissertações, Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES e revistas científicas qualificadas. A
pesquisa documental envolveu o levantamento de legislação no site do Planalto, documentos
técnicos orientadores da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e do
Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e dados do Fundo das Nações Unidas
para Infância – UNICEF.
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O contexto da violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes.
A violência intrafamiliar ainda é comum na sociedade contemporânea e afeta
principalmente crianças e adolescentes, em que pese a fragilidade dos dados decorrentes da
prática da subnotificação. Para contextualizar o tema pode-se levar em consideração os
indicadores de violência intrafamiliar relativos aos casos de maus tratos contra crianças e
adolescentes. Visando obter uma amostra confiável dos dados oficiais foi utilizado os
indicadores disponíveis do período compreendido entre 2014 e 2019. O limite de 2014 decorre
do ano de aprovação da Lei Menino Bernardo, que fortaleceu as medidas para o enfrentamento
da violência e o limite de 2019 foi definido em razão do período de disponibilidade de dados
oficiais.
Os dados sobre violência contra crianças e adolescentes podem ser identificados nos
registros do Disque 100, serviço vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos, canal responsável pelo acolhimento de denúncias, coleta de dados e construção de
estatísticas. (BRASIL, 2020a) O gráfico abaixo apresenta os casos registrados no Disque 100
entre 2014 e 2019 relativos às violações de direitos de crianças e adolescentes.
Fonte: (BRASIL, 2020a)
Do total de denúncias apresentadas, as que se referem especificamente à violência física
demonstram que houve significativa redão do número de denúncias de maus tratos entre os
anos de 2014 e 2019. Em 2014 foram realizadas 36.581 denúncias e em 2019 somente 25.801
foram registradas.
2014 2015 2016 2017 2018 2019
Total de denúncias
91.342 80.437 76.171 84.049 76.216 86.837
65.000
70.000
75.000
80.000
85.000
90.000
95.000
Violações de Direitos - Crianças e Adolescentes
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Fonte: (BRASIL, 2020a)
Não obstante os dados apresentados pelo Disque 100, os dados do Sistema de
Informação de Agravos de Notificação SINAN, do Ministério da Saúde, apresentaram um
cenário ainda mais grave como apresenta o Observatório da Criança e do Adolescente
(FUNDABRINQ, 2020).
Fonte: (FUNDABRINQ, 2020)
Apesar das informações referirem-se apenas ao período de 2014 a 2017, é possível
constatar que o mero de casos notificados de violência física é significativamente maior do
que o número de denúncias realizadas pelo Disque 100, motivo pelo qual é importante analisar
os dados apresentados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos com
cautela. Isso porque os casos notificados abrangem mais esferas de atendimento à criança e ao
adolescente, tais como a área da sde, da educação e da segurança pública. De igual sorte, é
importante destacar que nesses números estão incluídos todos os tipos de violência física,
inclusive os maus tratos. De 44.234 casos notificados para 59.293 é um salto considerável e
preocupante.
Ao tratar da relação entre suspeito e vítima e do local da violação de direitos, o Disque
100 traz as seguintes informações:
2014 2015 2016 2017 2018 2019
Violência física
39.164 34.119 32.040 33.105 30.962 30.962
Lesão Corporal
22.424 20.018 22.179 24.602 25.583 26.263
Maus tratos
36.581 31.465 28.002 28.308 24.639 25.801
0
10.000
20.000
30.000
40.000
50.000
Violências contra crianças e adolescentes
Violência física
Lesão Corporal
Maus tratos
2014 2015 2016 2017
Casos notificados de violência
física
44.234 45.601 48.086 59.293
0
10.000
20.000
30.000
40.000
50.000
60.000
70.000
Casos notificados de violência física
André Viana Custódio; Andréa Silva Albas Cassionato
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Fonte: (BRASIL, 2020a)
Quase metade de todas as violações ocorre na casa da vítima. o há número específico
a respeito do tipo de violência física ocorrida na casa da vítima. No entanto, ainda assim a
análise dos dados apresentados demonstra que quase metade das violações de direitos de
crianças e adolescentes ocorre no ambiente familiar e a grande maioria das agressões é
perpetrada pela mãe, embora o número de agressões praticadas pelo pai tamm seja
considerável.
Nota-se que a violência está no espaço dostico, no ambiente familiar e mesmo após
a Lei Menino Bernardo (BRASIL, 2014a), que proibiu o uso de castigo físico contra crianças e
adolescentes, houve aumento no número de casos de violência, quer seja de denúncias, quer
seja de casos notificados. Diante disso, é inevitável pensar na situação de crianças e
adolescentes que sofrem com a violência corriqueira, diária, quase que imperceptível a todos:
o castigo físico moderado considerado culturalmente como para fins educacionais. Essa
violência dificilmente é identificada, pois não chegam na rede de atendimento, que se reduz ao
atendimento dos casos de natureza grave como indicam os dados do Ministério da Saúde.
(ABRINQ, 2020)
A antiga cultura patriarcal que tem entre suas concepções o direito do pater famílias de
castigar e punir, persiste no cotidiano, sendo referendada pela cultura do bater como forma de
educar, ocultando as diversas formas de maus tratos e violências que crianças e adolescentes
são submetidos sistematicamente.
Os maus-tratos ou abuso ocorrem quando “um sujeito em condições de
superioridade (idade, força, posição social ou econômica, inteligência,
autoridade) comete um ato ou omissão capaz de causar dano físico,
psicológico ou sexual, contrariamente à vontade da vítima, ou por
consentimento obtido a partir de indução ou sedução enganosa”. O tipo mais
frequente de maus-tratos contra a criaa ou adolescente é a violência
doméstica, que ocorre na maioria das vezes dentro dos lares ou no convívio
2014 2015 2016 2017 2018 2019
Mãe
86.007 78.612 73.192 76.161 68.245 78.505
Pai
40.806 35.638 31.880 35.766 33.490 35.698
Casa datima
48.686 42.085 35.668 40.186 37.100 47.514
0
10.000
20.000
30.000
40.000
50.000
60.000
70.000
80.000
90.000
100.000
Relação suspeito x vítima - Local de violação de direitos
A proteção de crianças e adolescentes contra castigos físicos aplicados por pais ou responsáveis
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familiar. Costuma prolongar-se por muito tempo, uma vez que a família,
considerada o agente protetor da criança, tende a acobertar ou silenciar o ato
de violência, seja pela cumplicidade dos adultos e /ou pelo medo que as
vítimas têm de denunciar o abusador. (PIRES, MIYAZAKY, 2005: 44)
Assim, o castigo físico moderado se encaixa perfeitamente no conceito apresentado,
motivo pelo qual, o castigo físico moderado é considerado como modalidade de maus tratos,
sendo este expresso pela violência histórica. Considerando as origens da cultura da violência,
destaca-se que o poder paterno e a autoridade marital sempre estiveram juntos na história das
famílias de tal maneira que a situação jurídica da mulher se assemelhava muito a de seus filhos.
Esse direito de jurisdição, que o chefe de família exercia em sua casa, era total
e sem apelação. Podia condenar à morte, como o magistrado o fazia na cidade:
nenhuma autoridade tinha o direito de modificar sua sentença. “O marido, diz
Catão, o Antigo, é o juiz de sua mulher; seu poder não sofre limitação; pode o
que quer. Se a mulher cometeu qualquer falta, ele a castiga; se bebeu o vinho,
condena-a; se teve relações com outro homem, mata-a”. Quanto aos filhos, o
direito foi o mesmo. Valério ximo cita Atílio que matou sua filha culpada
de impudicícia, e todo mundo conhece aquele pai que matou o filho, cúmplice
de Catilina. (COULANGES, 1975: 74)
Essa situação começou a mudar com a emergência do cristianismo, que colocou a
criança no centro da relação parental e defendia o companheirismo, eo hierarquia, entre pai
e e. No entanto, a Teologia Cristã não colaborou para perpetrar os ensinamentos de Cristo.
Justificou o poder paternal no fato de que o homem era a imagem e semelhaa de Deus e,
portanto, seu representante na Terra. Assim, era responsável pelos seus filhos e, portanto, teria
poder absoluto para corrigi-los. Além disso, a Teologia Cristã deu ênfase ao mandamento
“honrarás teu pai e tua mãe a fim de viver longo tempo sobre a Terra”. Ou seja, obrigação
do filho em amar o pai, mas não há qualquer referência à necessidade do pai de amar e respeitar
o filho. Esse foi o destaque que a Teologia Cristã, fundada no judaísmo, deu para a relação entre
pais e filhos, deixando de lado os ensinamentos de Jesus quanto ao amor e a igualdade.
(BADINTER, 1985: 32).
Óbvio que posteriormente houve tamm interesses políticos em manter essa teoria,
tanto que essa foi a base da monarquia absolutista: o rei deve prover seus ditos tal como o pai
deve prover seus filhos. Do mesmo modo que se os filhos devem respeito e obediência ao pai,
os súditos também os devem ao rei. A Santo Agostinho coube à responsabilidade por colaborar
para concepção de que a criança deve ser educada de forma severa e ser tratada da mesma forma
que um adulto, eis que em nada se distinguiam (BADINTER, 1985: 54)
É um texto dirigido às classes aristocticas e cultas, às quais os pedagogos
censuram em coro uma excessiva tolerância com sua prole (expressão de seu
narcisismo?), ao mesmo tempo que uma falta de cuidado e de atenção
educativa. A sua atitude não reflete o amor-amizade de que falamos. Em
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nome dos postulados agostinianos, a boa amizade pelo filho não pode ser
tolerante. Deve ser uma atitude rigorosa que jamais perde de vista que a
finalidade da educação é salvar a alma do Pecado. Semelhante à ideologia
platônica, a pedagogia do século XVII pretende atribuir um papel importante
ao castigo redentor: para salvar uma alma, não hesitemos em castigar o corpo.
(BADINTER, 1985: 58)
Historicamente, se constrói o mito que a malignidade da infância nas classes mais
intelectualizadas, por ser a personificação do pecado original, e a criança como estorvo para
todos, em face do verdadeiro sacrifício que é tê-la, era justificativa para o abandono, o
infanticídio e o desprezo.
O processo de formação social brasileiro influenciado pela cultura jesuítica em aliar
educação e castigos corporais teve grande influência da cultura indígena em contraposição ao
bito das culturas originárias de criar seus filhos sem a disciplina paterna, deixando os
cuidados primários de socialização com as mulheres. (PRIORE, 1991: 13) A responsabilidade
dos homens era prover o sustento material da tribo, motivo pelo qual a criação das crianças era
papel da mãe, que educava sem castigos físicos. (FREYRE, 2003: 208).
Durante a catequização dos índios ocorrida na invasão colonial, os jesuítas ensinaram
que a educação rígida, perpetrada através do castigo físico, era a melhor forma de se demonstrar
afeto pela criança (PRIORE, 1991: 13-4).
no século XIX o uso da o de obra escrava africana nas grandes produções de açúcar
foi responsável por substituir as mulheres indígenas nas atividades de socialização das crianças
pela mulher negra escravizada. Ao contrário da criaa indígena, que permanecia ao lado da
mãe que o educava sem qualquer castigo físico, as crianças negras escravizadas cresciam à
revelia de seu “senhor”. Diante disso, enquanto a criaa era objeto de violência tanto de seu
“dono” quanto dos filhos brancos do senhor do engenho, aos filhos bastardos restava crescer
com suas mães, na senzala, ignorados por seus pais, até ganharem a alforria com o falecimento
de seu “dono” (FREYRE, 2003, 525).
Assim, nota-se que a imposição da violência como dispositivo legítimo de controle
(MACHADO, 2016: 42), como visto, es presente na vida de crianças e adolescentes desde
muito tempo, e ainda é comum na sociedade atual, heraa da cultura colonial, da persistência
do patriarcado e das assimetrias de poder decorrentes da escravidão.
Foi somente ao final do culo XX que houve o reconhecimento das consequências da
violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes mediante a emergência de estudos sobre
os impactos dos castigos moderados no desenvolvimento infantil. (CUSTÓDIO; SOUZA;
LEME, 2016: 35)
Os efeitos da violência são inevitavelmente observados no desenvolvimento de crianças
A proteção de crianças e adolescentes contra castigos físicos aplicados por pais ou responsáveis
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e adolescentes. É comum o impacto no desenvolvimento físico, psicológico e moral afetando
as condições básicas necessárias para a proteção ao desenvolvimento integral da infância e da
adolescência, pois qualquer tipo de violência praticada de forma reiterada causa consequências
de curto, médio e longo prazo no desenvolvimento de crianças e adolescentes.
De imediato é inevitável observar o medo que a criança e o adolescente possuem de seu
agressor, além da raiva, do sentimento de injustiça e do desejo de vingança existente no
momento da agressão. , tamm, a evasão escolar e fuga nos casos de violência mais severa.
Percebe-se que quando a criança é submetida repetidamente a um ritual de
violência, seja física, psicológica, negligência, pode reproduzir o
comportamento do perpetrador, timidez, insegurança, baixa autoestima,
dificuldades de aprendizagem escolar, evasão escolar, desinteresse escolar,
déficit de atenção, retraimento, apatia, além de desenvolver algum
comportamento psicopatológico. [...]
De acordo com os atendimentos no CAIC, as consequências podem aparecer
como depressão, ansiedade, pensamentos suicidas ou estresse pós-traumático;
pode também expressar-se externamente como agressão, impulsividade,
delinqncia, hiperatividade, dificuldades de aprendizagem escolar ou abuso
de substâncias. (QUEIROZ, 2011: 62-3)
MACIEL (2011: 64) estabeleceu a relação entre os tipos de violência, formas de
manifestação e as consequências psicológicas nas crianças. Com relação à violência física,
manifestada de forma ativa, traz como consequências o comportamento agressivo, depressão e
ansiedade. Ao tratar das repercussões psicológicas em crianças vítimas de violência familiar
analisou casos concretos e constatou que:
Os indicadores para a categoria pensamentos autodirigidos resultaram em 33
ocorrências (durante o ato violento) e 18 ocorrências (após o ato violento) de
um total de 63 e 54, respectivamente. Foram pensamentos, na sua maioria, de
caráter autodepreciativo. As crianças descrevem pensamentos nos quais se
colocam como desacreditados, vulneráveis, em estado de privação, com
tendências à autopunição, referindo que mereciam ser punidos pelos pais e
manifestando sentimentos de culpa, menos valia, dentre outros da mesma
natureza. [...]
Os indicadores para pensamentos de enfrentamento resultaram em 16
ocorrências (durante o ato violento) e 9 ocorrências (as o ato violento) de
um total de 63 e 54, respectivamente. As crianças apresentam, conforme
citado, uma percepção adequada da realidade e coerência contextual. Os
indicadores de pensamentos de enfrentamento revelam que as crianças
desenvolveram tipos de estratégias que as mantém na condição de vítimas,
não promovem mudanças na relação entre agressor/vítima e vítima/ato
violento. [...]
Os pensamentos de transformação apresentaram três indicadores, com 10
ocorrências no total: sentimentos de felicidades, de libertação e desejo de
punir o agressor, demonstrando senso de consequência. [...] (MACIEL, 2011:
90)
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Em médio prazo, criaas e adolescentes podem se tornar indivíduos agressivos e sem
qualquer empatia. Em longo prazo os efeitos da violência suportada resultam em adultos com
baixa autoestima, com dificuldades de relacionamento e que reproduzem a violência sofrida,
consequências mais recorrentes. Nesse contexto está o castigo físico moderado, que é
reproduzido sistematicamente pelos responsáveis pela educação de crianças e adolescentes
que assim foram educados” em suas infâncias, formando um ciclo geracional de violência sem
fim. (QUEIROZ, 2011: 63)
Após a alise dos trabalhos citados e diante dos dados apresentados destaca-se que
a pior consequência do uso do castigo físico moderado como forma de educar, além dos
impactos no desenvolvimento de crianças e adolescentes, é permitir ao adulto que apanhou se
apoderar da ideia de que possui o direito de bater em seu filho reproduzindo o ciclo
intergeracional das violências.
A proteção jurídica contra a aplicação de castigos moderados em crianças e adolescentes.
Ante a lesão de direitos constatada é inevitável analisar quais são os instrumentos legais
existentes para proteção jurídica das vítimas do castigo físico moderado.
Essa proteção jurídica remonta ao direito internacional dos direitos humanos que é
constituído por uma rie de instrumentos normativos, dentre os quais está, obviamente, a
Declaração Universal dos Direitos Humanos DUDH de 1948, e a Convenção sobre os
Direitos da Criança de 1989, ambos elaborados pela Organização das Nações Unidas ONU.
Os direitos humanos o aqueles inerentes a todos os seres humanos, independentemente de
raça, credo, cor, idade, religião, origem, nacionalidade, idioma, condição econômica ou opinião
política, dentre os quais está a liberdade, a igualdade e a fraternidade.
Concomitantemente a elaboração da DUDH surgiu na ONU uma divisão no que dizia
respeito ao direito de crianças e adolescente, divisão essa consistente em duas grandes
Doutrinas: a Doutrina da Situão Irregular e a Doutrina da Proteção Integral. O Brasil, em
1979, optou pela Doutrina da Situação Irregular, que foi o fundamento valorativo para a
elaboração do Código de Menores de 1979, segundo a qual a prioridade era a proteção da
sociedade em detrimento da proteção da criança e do adolescente. A partir de 1980, com a
redemocratização do país e a importante influência de movimentos sociais, o Brasil passou a
adotar a Doutrina da Proteção Integral que defende a proteção da criaa e do adolescente de
maneira integral e prioritária, e refletiu sua adesão no texto constitucional de 1988 ao criar o
Direito da Criaa e do Adolescente como um novo ramo autônomo do Direito, cujos principais
A proteção de crianças e adolescentes contra castigos físicos aplicados por pais ou responsáveis
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instrumentos normativos protetivos são a Constituição da República Federativa do Brasil
(BRASIL, 1988) e o Estatuto da Criaa e do Adolescente (BRASIL, 1990b), que foram
responsáveis por instituir o atual Sistema de Garantias de Direitos destinados a assegurar a
concretização dos direitos fundamentais de criaas e adolescentes com fundamento no
princípio do interesse superior da criaa e na teoria da proteção integral.
A norma jurídica por excelência a estabelecer direitos e deveres no que diz respeito a
criança e ao adolescente é o artigo 227 da Constituição Federal de 1988:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao
adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalizão, à cultura, à dignidade,
ao respeito, à liberdade e à convincia familiar e comunitária, além de
colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão. [...]
§ 4º A lei puniseveramente o abuso, a violência e a exploração sexual da
criança e do adolescente. [...] (BRASIL, 1988)
O dispositivo constitucional citado estabelece o prinpio da tríplice responsabilidade
compartilhada, segundo o qual é dever solidário da família, da sociedade e do Estado assegurar
a proteção de crianças e adolescentes contra toda forma de violência. Ao dizer “de toda a forma
de violência” o legislador constituinte não estabeleceu limites ou critérios para o tipo de
violência: pode ser qualquer uma, inclusive a imposição de castigo físico moderado.
Os critérios utilizados pelo legislador constituinte estão em consonância com as
diretrizes estabelecidas pela Convenção sobre os Direitos da Criança da Organização das
Nações Unidas da ONU (BRASIL, 1990a) ratificada pelo Brasil:
Artigo 19
1. Os Estados Partes devem adotar todas as medidas legislativas,
administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança
contra todas as formas de violência física ou mental, ofensas ou abusos,
negligência ou tratamento displicente, maus-tratos ou exploração, inclusive
abuso sexual, enquanto a criança estiver sob a custódia dos pais, do tutor legal
ou de qualquer outra pessoa responsável por ela.
2. Essas medidas de proteção devem incluir, quando cabível, procedimentos
eficazes para a elaboração de programas sociais visando ao provimento do
apoio necessário para a criança e as pessoas responsáveis por ela, bem como
para outras formas de prevenção, e para identificação, notificação,
transferência para uma instituição, investigação, tratamento e
acompanhamento posterior dos casos de maus-tratos mencionados acima e,
quando cabível, para intervenção judiciária. (BRASIL, 1990a)
Como se nem a Constituição Federal nem a Convenção preexceção para a proteção
da criança contra todas as formas de violência. A proteção deve ser integral e cumprir com esse
dever de maneira incondicional é dever parental por excelência. No entanto, seguindo a mesma
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seara da Convenção e da Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente
estabelece: Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente se objeto de qualquer forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei
qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.” (BRASIL, 1990)
A Lei Menino Bernardo (BRASIL, 2014a) alterou o Estatuto da Criaa e do
Adolescente (BRASIL, 1990) reforçando que: “Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade
da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento,
aterrorizante, vexatório ou constrangedor.” (BRASIL, 1990) Assim estabeleceu a ampla
proteção de crianças e adolescentes contra qualquer tipo de violência, incluindo pais,
responsáveis ou agentes blicos, além de definir, exemplificativamente, as principais
modalidades de violência, nos seguintes termos:
Art. 18-A. A criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados
sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas
de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos
integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos
executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada
de cuidar deles, tra-los, educá-los ou protegê-los.
Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se: I - castigo físico: ação
de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física sobre a
criança ou o adolescente que resulte em: a) sofrimento físico; ou b) lesão; II -
tratamento cruel ou degradante: conduta ou forma cruel de tratamento em
relação à criança ou ao adolescente que: a) humilhe; ou b) ameace gravemente;
ou c) ridicularize. (BRASIL, 2014a)
Contudo, a Lei Menino Bernardo (BRASIL, 2014a) não avançou em relação as medidas
aplicáveis nos casos de violência contra a criança repetindo tão somente as medidas específicas
de proteção, anteriormente previstas no art. 101 Estatuto da Criança e do Adolescente
(BRASIL, 1990b):
Art. 18-B. Os pais, os integrantes da família ampliada, os responsáveis, os
agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou qualquer pessoa
encarregada de cuidar de crianças e de adolescentes, tratá-los, edu-los ou
prote-los que utilizarem castigo físico ou tratamento cruel ou degradante
como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto
estarão sujeitos, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, às seguintes
medidas, que serão aplicadas de acordo com a gravidade do caso:
I - encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família;
II - encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico; III -
encaminhamento a cursos ou programas de orientação; IV - obrigação de
encaminhar a criança a tratamento especializado; V - advertência.
Parágrafo único. As medidas previstas neste artigo serão aplicadas pelo
Conselho Tutelar, sem prejuízo de outras providências legais. (BRASIL,
2014a)
A proteção de crianças e adolescentes contra castigos físicos aplicados por pais ou responsáveis
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Embora a Lei Menino Bernardo tenha representado um avanço na definição expressa da
proibição do uso do castigo físico moderado, incluindo o Brasil ao rol de sessenta países que
proíbem a punição corporal (UNICEF, 2017: 31) não conseguiu prover a norma estatutária com
medidas relativas a definição de fluxos, protocolos e estratégias de financiamento para as
políticas públicas de atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência.
Por outro lado, encontram-se as decisões jurisprudenciais sobre a responsabilização por
aplicação de castigos moderados. Para a análise do tema, o estudo tomou como referência
decisões do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.
A análise de julgados demonstra que não qualquer menção a Lei Menino Bernardo
(BRASIL, 2014a) em processos que visem proteger a criança e ao adolescente, mas apenas em
processos crime em que a criança ou o adolescente foi vítima de violência física e a justificativa
apresentada pelo agressor foi a finalidade educacional/corretiva. Nesses casos, os julgados
foram no sentido de que não se pode aceitar essa justificativa correcional ou educativa para
descaracterizar o ato de violência.
No julgamento da Apelação Crime nº 0428059-35.2014.8.21.7000 (Acórdão 2015-
290281) o Desembargador Relator Jayme Weingartner Neto, ao tratar da dosimetria da pena
pela condenação por vias de fato, defendeu que:
A defesa requer o reconhecimento da atenuante do artigo 65, inciso III, anea
“a” (cometido o crime por motivo de relevante valor social ou moral). Refere
que agrediu o filho apenas na intenção de corrigir o comportamento e
incentivá-lo ao estudo. Porém, inviável reconhecer relevante valor social ou
moral na agressão ao filho que se deu com extrema brutalidade, mediante o
uso de um pedaço de pau, atingindo-lhe os braços e as costas. Reação
decorrente, conforme relatado pelas vítimas, apenas porque teria ficado
descontente pelo fato de que o filho estava na rua.
Ademais, o castigo físico “de per si” é juridicamente reprovado, mesmo com
“animus corrigendi”, nos termos do artigo 18-A da Lei nº 8.069/90, incluído
pela Lei13.010/2014. (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO
SUL, 2015a)
Ao julgar a Apelação Crime 0221023-23.2014.8.21.7000 (Acórdão 2015-1038650),
o Desembargador Relator Diógenes V. Hassan Ribeiro confirmou a condenação por lesão
corporal decorrente de violência dostica com fundamento na Lei Menino Bernardo
(BRASIL, 2014a):
A ofendida, apesar da pouca idade, descreveu, com riqueza de detalhes, nas
duas oportunidades em que foi ouvida, as circunstâncias que circunscreveram
a ocorrência do fato delituoso. Suas alegações foram integralmente
corroboradas pelos depoimentos prestados por sua mãe, tanto na fase
policial quanto em juízo, confirmando ter a menina sido agredida pelo
acusado com um tapa nas costas, o qual deixou a marca de sua mão.
André Viana Custódio; Andréa Silva Albas Cassionato
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Ademais, o acusado, em que pese tenha alegado que sua intenção era atingir
a bunda da filha, como forma de edu-la, confessou ter desferido um tapa
contra suas costas, deixando marcas.
Por oportuno, saliento que, em 26 de junho de 2014, foi editada a Lei n
13.010, que alterou a Lei n.º 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do
Adolescente), para estabelecer o direito da criança e do adolescente de
serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento
cruel ou degradante. Passou a vigorar, com as seguintes disposições, o artigo
18-A, da Lei n.º 8.069/1990:
[...]
Segundo a Lei da Palmada”, considera-se castigo físico toda ação de
natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física sobre a
criança ou o adolescente que resulte em lesão. Desse modo, tendo a conduta
praticada pelo acusado, enquanto pai da vítima, resultado em lesão
corporal constatada em exame pericial acostado à fl. 21, não há que se falar
em incidência da Lei n.º 13.010/2014.
Devidamente comprovadas, portanto, a materialidade e a autoria delitivas,
impositiva a manutenção da condenação do réu como incurso nas sanções
do artigo 129, parágrafo 9º, do Código Penal. (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO
RIO GRANDE DO SUL, 2015b)
No mesmo sentindo foi o julgamento da Apelação Criminal, 70082395310 (Acórdão
2019-1564512), relatado pelo Desembargador Sylvio Baptista Neto:
De fato, o elemento anímico do crime em testilha satisfaz-se com a prática de
ato direcionado a ofender a integridade física de outrem – ainda que apenas se
assuma o risco de causar tal ofensa com a conduta praticada –, no caso, uma
criança de 07 anos de idade.
A intenção de disciplinar, ainda que restasse comprovada e não foi –, não
tem o condão de afastar o dolo do crime de lesão corporal e, com a devida
vênia, sequer poderia beneficiar o acusado em qualquer fase da aplicação da
pena, uma vez que faria conduta encontrasse subsunção, em tese, ao crime de
maus-tratos (art. 136 do CP).
Ademais, registre-se que a Constituição Federal consagrou a Doutrina da
Proteção Integral da criança e do adolescente, em seu art. 227, da Constituição
Federal, assim redigido: “...”
Não bastasse, a vedação do castigo físico, independente de qual seja o motivo,
foi reafirmada com a edição da Lei nº 13.010/14 (“Lei da Palmada)”.
(TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL, 2015c)
Por fim, vale transcrever um trecho do voto do Desembargador Relator João Batista
Marques Tovo no julgamento da Apelação Criminal nº 70068196450 (Acórdão 2016-932782):
Ou seja, a agressão ora em exame não constituiu fato isolado. E o se pode
reconhecer tenha havido um abuso corretivo”. A notícia de agressões
reiteradas com marcas aparentes na enteada desautoriza esse dito por
completo. A ofendida refere que as agressões ocorriam sem motivos, sempre
que a madrasta se irritava, ditos corroborados pela própria acusada, ao admitir
descontrole quando agrediu Denise com um cabo de vassoura. Tais relatos
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revelam que a conduta foi muito além da correção.
Não logro conceber como se possa reconhecer razoáveis ou cabíveis tais
atitudes, em tempos da Lei da Palmada. Por que devemos dar à ré o
tratamento leniente ou magnânimo que ela negou à enteada, uma frágil
adolescente de quatorze anos que afirma ter criado como filha desde tenra
idade? Se a imputada considera uma resposta tão severa necessária à
educação da filha, o que a norma de regência não autoriza, não está a nos
dizer que necessita ela própria da punição prevista no preceito secundário da
norma penal, para que possa ser pedagógica em relação a ela? Com a devida
vênia, não vejo adequação sequer em algum apelo “sentimental, no caso
concreto.
[...]
Por todo o exposto, tenho que a integridade física e moral da menina foram
severamente ofendidos, em descompasso flagrante com os artigos 16, 17 e 18
da Lei n. 8.069/90, com reforço indiscutível do artigo 18-A, inserido pela Lei
n. 13.010/14. E isto não pode passar em brancas nuvens, menos ainda com
base em um sentimentalismo impróprio, que deve ser havido como
historicamente deslocado. Afinal, como bem observado na sentença, a ré em
vários momentos de sua inquirição refere-se à enteada como se objeto fosse
dizendo que a emprestou a Deamantina, e concluindo que é por isso que não
se pode emprestar nada.
Não se trata de exigir rigor para os pais que falham em suas árduas
missões, mas de o dar mau exemplo pela leniência e complacência com tão
grave conduta. A desclassificação pretendida pela defesa é, portanto,
incabível. A condenação vai mantida. (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO
GRANDE DO SUL, 2016)
Chama a atenção a utilização nos julgados a expressão Lei da Palmada”, concepção
oriunda do senso comum daqueles que eram contrários a aprovação da legislão protetiva e
que na sua redação final não foi adotada, sendo substituída pela denominão Lei Menino
Bernardo. Além dos casos relatados, a busca no site do Tribunal de Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul da expressão “castigo físico moderado” restou infrutífera.
Os julgados citados demonstram que grande preocupação do Poder Judiciário em
proteger as criaas e adolescentes vítimas de violência intrafamiliar, no entanto essa proteção
permanece na esfera penal, perpetuando a prática de predominância da resposta punitiva como
alternativa à violência contra crianças e adolescentes.
As políticas públicas para o enfrentamento da aplicação de castigos moderados em
crianças e adolescentes como forma de violência intrafamiliar
A estruturação das políticas públicas de atendimento é o meio adequado para enfrentar
a questão da vioncia intrafamiliar no que se refere aos castigos físicos moderados.
Depreende-se que as políticas públicas compreendem um conjunto de
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decisões e de ões destinadas a resolver um problema coletivo. Tais decisões
ou ações, segundo os autores, englobam um conjunto de atividades normativas
e administrativas que só produzirão efeitos se os atores políticos,
administrativos e sociais anuírem a elas. [...] (SOUZA, CABRAL, 2018: 123)
As políticas públicas devem estar estruturadas de modo a atender as demandas sociais
mediante o compartilhamento de responsabilidades intersetoriais que sejam suficientes para
satisfazer a concretização dos direitos fundamentais. É, portanto, a forma que o Estado e a
sociedade civil têm para cumprir com suas obrigações relativas à garantia dos direitos de
crianças e adolescentes.
O estudo tomou por referência a alise dos planos nacionais de públicas visando
verificar nas diretrizes e objetivos como se pretende assegurar a proteção de crianças e
adolescentes contra a violência intrafamiliar, priorizando o Plano Nacional Decenal de Direitos
Humanos de Crianças e Adolescentes (BRASIL, 2014b), o Plano Nacional de Assistência
Social (BRASIL, 2016b) e o Plano Nacional de Saúde (BRASIL, 2016a)
De acordo com a consulta ao Serviço de Informação ao Cidadão do Ministério da
Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, consulta essa que gerou o pedido nº
00083.000673/2020-49, foi informado que a versão final do Plano Decenal de Direitos
Humanos de Crianças e Adolescentes foi aprovado em julho de 2013, e que está vigente até
2021. Na análise das diretrizes e objetivos, destacaram-se as seguintes proposições:
EIXO 1 PROMOÇÃO DOS DIREITOS DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES
Diretriz 01 - Promoção da cultura do respeito e da garantia dos direitos
humanos de crianças e adolescentes no âmbito da família, da sociedade e do
Estado, considerada as condições de pessoas com deficiência e as diversidades
de gênero, orientação sexual, cultural, étnico-racial, religiosa, geracional,
territorial, de nacionalidade e de opção política. [...]
Objetivo Estratégico 1.3– Fortalecer as competências familiares em relação à
proteção integral e educação em direitos humanos de crianças e adolescentes
no espaço de convivência familiar e Comunitária.
Diretriz 02 - Universalização do acesso a políticas públicas de qualidade que
garantam os direitos humanos de crianças, adolescentes e suas famílias e
contemplem a superação das desigualdades, afirmação da diversidade com
promoção da equidade e inclusão social. [...]
Objetivo Estratégico 2.4 – Ampliar o acesso de crianças e adolescentes e suas
famílias aos serviços de proteção social básica e especial por meio da
expansão e qualificação da política de assistência social.
EIXO 3 - PROTEÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS
A proteção de crianças e adolescentes contra castigos físicos aplicados por pais ou responsáveis
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Diretriz 03 - Proteção especial a crianças e adolescentes com seus direitos
ameaçados ou violados, consideradas as condições de pessoas com deficiência
e as diversidades de gênero, orientação sexual, cultural, étnico-racial,
religiosa, geracional, territorial, de nacionalidade e de opção política.
Objetivo Estratégico 3.1 – Ampliar e articular políticas, programas, ações e
serviços para a promoção, proteção e defesa do direito de crianças e
adolescentes à convincia familiar e comunitária, com base na revisão e
implementação do Plano nacional temático. [...]
Objetivo Estratégico 3.4 Fomentar a criação de programas educativos de
orientação e de atendimento a familiares, responsáveis, cuidadores ou demais
envolvidos em situações de negligência, violência psicológica, física e sexual.
[...]
Objetivo Estratégico 3.11 Formular diretrizes e pametros para estruturação
de redes integradas de atenção a crianças e adolescentes em situação de
violências, com base nos princípios de celeridade, humanização e
continuidade no atendimento. (BRASIL, 2014b)
Os objetivos estratégicos tratam especificamente do atendimento à criança e ao
adolescente em situação de violência e às suas famílias, o que implica em concluir que possuem
como intuito erradicar a violência intrafamiliar e, consequentemente, o castigo físico moderado,
garantindo-lhes, ainda assim, o direito a convivência familiar e comunitária. O objetivo
estratégico 3.1 menciona a revisão e implementação do plano nacional temático, que se refere
ao Plano Nacional de Enfrentamento à Vioncia contra Crianças e Adolescentes, que ainda está
pendente de atualização.
Acerca da Gestão da Política Nacional dos Direitos Humanos de Crianças e
Adolescentes o Plano prevê que:
EIXO 5 GESTÃO DA POLÍTICA NACIONAL DOS DIREITOS
HUMANOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Diretriz 08 - Fomento e aprimoramento de estratégias de gestão da Política
Nacional dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes fundamentadas
nos princípios da indivisibilidade dos direitos, descentralização,
intersetorialidade, participação, continuidade e corresponsabilidade dos três
níveis de governo. [...]
Diretriz 09 – Efetivação da prioridade absoluta no ciclo e na execução
orçamentária das três esferas de governo para a Política Nacional e Plano
Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes, garantindo que
não haja cortes oamentários.
Objetivo Estratégico 9.1 - Dotar a política dos direitos humanos de crianças e
adolescentes de recursos suficientes e constantes para implementação das
ações do Plano Decenal, com plena execução orçamentária.
Objetivo Estratégico 9.2 Estabelecer e implementar mecanismos de
cofinanciamento e de repasse de recursos do Fundo da Infância e adolescência
entre as três esferas de governo, na modalidade Fundo a Fundo, para as
prioridades estabelecidas pelo plano decenal, de acordo com os parâmetros
André Viana Custódio; Andréa Silva Albas Cassionato
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legais e normativos do Conanda.
É importante destacar a descentralização das políticas blicas, ao passo que essa
responsabilidade foi atribuída aos três níveis de governo. Essa descentralização é importante
para que seja destinada a criaa e ao adolescente políticas públicas locais, que atendam às suas
necessidades diante das dificuldades reais e cotidianas. O acompanhamento e o atendimento,
dessa forma, são mais individualizados, eis que é possível identificar quais são as violações de
direitos mais recorrentes na localidade.
No entanto, para que as políticas blicas locais sejam possíveis é imprescindível a
previsão orçamentária, razão por que a Diretriz 09 garante execução orçamentária, sem cortes,
em atendimento a prioridade absoluta da criaa e do adolescente.
Denota-se que o Plano Decenal vigente é muito abrangente e gerico, sendo de
responsabilidade dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios criarem seus próprios
planos, com previsões orçamentárias suficientes para financiar as políticas blicas necessárias
a proteção dos direitos humanos de crianças e adolescentes.
Ao analisar o II Plano Nacional de Assistência Social 2016-2026, aprovado pelo
Conselho Nacional de Assistência Social (BRASIL, 2016b) , no que diz respeito à criança e ao
adolescente pode-se destacar na Diretriz 1:
DIRETRIZ 1. PLENA UNIVERSALIZAÇÃO DO SUAS, TORNANDO-O
COMPLETAMENTE ACESSÍVEL, COM RESPEITO À DIVERSIDADE E
À HETEROGENEIDADE DOS INDIVÍDUOS, FAMÍLIAS E
TERRITÓRIOS. Tornar os serviços e benefícios socioassistenciais acessíveis,
garantindo que sua qualificação e ampliação sejam orientadas pelo
conhecimento e reconhecimento das diversidades e heterogeneidade de
públicos e territórios e das manifestações de desigualdades que expressem
demandas no campo da proteção social não contributiva, de modo a contribuir
para: [...] o trato digno da mulher, da criança, do adolescente, do jovem, do
idoso, da pessoa com deficiência; [...] (BRASIL, 2016b)
No que se refere à violência intrafamiliar, o item 5.26 da 5ª Diretriz estabelece:
DIRETRIZ 5. PLENA INTEGRALIDADE DA PROTEÇÃO
SOCIOASSISTENCIAL [...]
5.26. Assegurar que as receitas da política pública de assistência social e suas
despesas com pessoal o sejam computadas para fins dos limites
estabelecidos na Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF. [...]
O decreto nº 5.085 de 2004, disciplina no art. 1º, que o consideradas ações
continuadas de assistência social aquelas financiadas pelo FNAS que visem
ao atendimento periódico e sucessivo à falia, à criança, ao adolescente, à
pessoa idosa e à portadora de deficiência, bem como as relacionadas com
Programas de Erradicação do Trabalho Infantil, da Juventude e de Combate à
Violência contra Crianças e Adolescentes. No mesmo sentido, o art. 23 da
LOAS prevê que são serviços socioassistenciais “as atividades continuadas
que visem a melhoria de vida da população e cujas ações, voltadas para as
A proteção de crianças e adolescentes contra castigos físicos aplicados por pais ou responsáveis
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necessidades básicas, observem os objetivos, princípios e diretrizes
estabelecidos nesta lei”. Nesse sentido, frente à natureza continuada das ações
desempenhadas pela Política Pública de Assistência Social, e que, portanto,
não podem sofrer solução de continuidade, pretende-se a excepcionalização
dos limites da LRF para contratação de pessoal. (BRASIL, 2016b)
Visando o financiamento necessário para uma série de ações continuadas, dentre elas o
Programa de Combate à Vioncia contra Crianças e Adolescente, o objetivo estratégico nº 5.26
pretende a exclusão dos limites estabelecidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal das despesas
com pessoal. Assim, o Programa poderá tornar-se efetivo independentemente de previsão na
Lei Orçamentária de qualquer das esferas do poder público. Essa previsão visa atender
integralmente os princípios da teoria da proteção integral e da prioridade absoluta da criaa e
do adolescente, que eles não podem deixar de ser atendidos em suas necessidades por
questões orçamentárias, ainda mais quandoo vítimas de qualquer forma de violência.
Tanto o Plano Nacional de Saúde 2016-2019 (BRASIL, 2016a) quanto o Plano Nacional
de Saúde 2020-2023 (BRASIL, 2020b) não fazem qualquer meão específica a atendimento
de crianças e adolescentes vítimas de violência. Estabelece critérios em caso de violência sexual
e questões relacionadas a vacinas, atendimento pnatal e neonatal, desnutrição, entre outras
demandas relativas à infância.
Sobre a violência, o Plano Nacional de Saúde 2016-2019 prevê em seu Objetivo 04
ações genéricas, dando ênfase a mulher vítima de violência doméstica/intrafamiliar:
Objetivo 04. Reduzir e prevenir riscos e agravos à saúde da população,
considerando os determinantes sociais, por meio das ações de vigilância,
promoção e proteção, com foco na prevenção de doenças crônicas não
transmissíveis, acidentes e violências, no controle das doenças
transmissíveis e na promoção do envelhecimento saudável. [...]
Para o enfrentamento desses problemas, faz‐se necessária a articulação e a
integração com órgãos externos ao setor saúde, a exemplo da violência
interpessoal e em particular da violência contra a mulher, de ocorrência
majoritária no âmbito doméstico. (BRASIL, 2016a)
o Plano Nacional de Sde 2020-2023 trata das questões voltadas a enfermidades e
tratamentos médicos de crianças e adolescentes. Não faz qualquer menção a questão da
violência intrafamiliar. Todavia, vale destacar o documento publicado pelo Ministério da Sde
(BRASIL, 2010) sobre linha de cuidado para a atenção integral à saúde de crianças,
adolescentes e suas famílias em situação de violências, que destaca:
O Ministério da Sde, gestor federal do SUS, seguindo as recomendações da
Organização Mundial da Saúde (OMS) feitas na Assembleia Geral das
Organizações das Nações Unidas (ONU) em 1996, declarou que a violência
se constitui em um importante problema para a saúde pública. [...]
O conteúdo deste documento está organizado de forma pedagógica e busca
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estimular o desenvolvimento de ações de prevenção de violências, promoção
da saúde e cultura de paz. Chama a atenção para a necessidade do trabalho
junto às famílias, refoa a importância de enfatizar os fatores de proteção e
alerta sobre as vulnerabilidades e os riscos da violência contra crianças e
adolescentes. Traz também orientações aos profissionais de saúde para
contribuir na identificação de sinais e sintomas de violências, e estabelece uma
linha de cuidado para a atenção integral à saúde de criança, adolescente e suas
famílias em situação de violências, articulada com a rede de cuidado e de
proteção social existente no território. (BRASIL, 2010: 7-8)
Embora as diretrizes das políticas nacionais sejam fundamentais para a estruturação das
políticas públicas de atendimento para crianças e adolescentes vítimas de violência, destaca-se
a urgência na definição de fluxos e protocolos especializados. Ainda ficit nos planos
nacionais na definição de estratégias de pactuação intersetorial de fluxos de atendimento para
crianças e adolescentes vítimas de violência entre as redes de saúde, educão e assistência
social, o que prejudica a qualidade do atendimento e o compartilhamento intersetorial das
responsabilidades.
Esta constatação está presente na consultoria contratada pelo Governo Federal no ano
de 2018 através do Edital 001/2017 com a finalidade de avaliar os resultados do Projeto BRA
13/07 denominado de “Projeto Integral dos Direitos de Crianças e Adolescentes Fortalecida”.
Esse projeto foi elaborado pelo Ministério dos Direitos Humanos – MDH – em parceria com o
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PNUD em novembro de 2013 com
duração prevista de 36 (trinta e seis) meses e com orçamento de US$ 3.900.750,00 (três
milhões, novecentos mil e setecentos e cinquenta dólares americanos). O objetivo desse projeto
era desenvolver subsídios voltados ao fortalecimento da proteção integral dos direitos de
crianças e adolescentes no país.
A consultoria resultou em um documento denominado Educação sem violência: um
direito de criaas e adolescentes” publicado no ano de 2018, no qual houve destaque à sanção
da Lei Menino Bernardo que ocorreu durante a vigência do projeto. Concluiu que as ações da
Secretaria Nacional de Proteção dos Direitos da Criança e Adolescente SNDCA foram
qualificar a rede de políticas sociais através de seminários e capacitação dos profissionais
responsáveis pelo atendimento em caso de violência, e sensibilizar os profissionais do Sistema
de Garantia de Direitos e as famílias, blico alvo prioritário. No entanto, desde a sanção da
Lei Menino Bernardo até a elaboração da consultoria a SNDCA o havia promovido nenhuma
campanha publicitária. Houve, apenas, apoio a ações realizadas pela sociedade civil e algumas
ações pontuais nas redes sociais, mais especificamente no ano de 2017. (BRASIL, 2018: 12)
Atualmente, a SNDCA está vinculada a pasta dos Direitos Humanos no governo
brasileiro e, em seu site enumera suas ões/diretrizes. No item 07 está a “Educação sem
A proteção de crianças e adolescentes contra castigos físicos aplicados por pais ou responsáveis
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violência Coordenação Geral de Promoção dos Direitos da Criaa e do Adolescente”. A
principal meta dessa diretriz é “contribuir para a implementação da Lei 13.010, de 26 de junho
de 2014.” Como principais resultados estão a inclusão de uma aula sobre o tema no curso
oferecido pelo Instituto Federal de Rondônia com a expectativa de capacitar 4.490 (quatro mil,
quatrocentos e noventa) conselheiros naquela região, e a produção de campanhas educativas
nas redes sociais, fazendo menção apenas as publicações realizadas em 2017, publicações essas
citadas na consultoria analisada anteriormente.
Assim, conclui-se que as ações governamentais no sentido de disseminar a educação
sem violência são extremamente irrisórias, sendo que a grande atuação tem sido realizada por
organizações da sociedade civil no sentido de conscientizar as famílias do direito da criança e
do adolescente de ser educado sem violência.
Considerações Finais.
Os dados apresentados demonstram que apesar do importante avanço no marco
normativo de proteção para crianças e adolescentes contra toda forma de violência, ainda
persistem altos índices de violações de direitos decorrentes da violência intrafamiliar, em
especial relativos à aplicação de castigos físicos, sendo que o castigo físico moderado, em regra,
o aparece nas estatísticas oficiais.
Verifica-se que a vioncia física intrafamiliar, em seus diversos tipos, está presente no
contexto familiar vitimizando crianças e adolescentes cotidianamente, sendo que os principais
agressores são aqueles que deveriam lhes proteger: os pais ou responsáveis. Apalmada” ou a
“surra” é apenas um dos diversos tipos de violência física, e não um método de educação ou de
correção do comportamento da criança e do adolescente. Tanto que o castigo físico moderado
é tratado pela UNICEF como uma face da violência na vida de crianças e adolescentes. Por essa
razão que é imprescindível a superação da cultura da violência contra crianças e adolescentes
como forma de garantia de direitos humanos, superação essa que somente será possível
mediante campanhas de conscientização daqueles que são responsáveis pela educação de
crianças e adolescentes.
Consta-se que a atuação judicial acaba por se reduzir a aplicação da lei na esfera
criminal. E os julgados analisados demonstram que há verdadeira preocupação dos julgadores
em proteger as crianças e adolescentes da violência que sofrem no ambiente familiar, mas as
decisões são focalizadas na retribuição penal e omitem a atuação judicial na responsabilização
dos órgãos responsáveis pela estruturação das políticas públicas.
André Viana Custódio; Andréa Silva Albas Cassionato
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No que se refere às políticas públicas, as diretrizes e objetivos nos planos nacionais são
demasiadamente genéricos e não apresentam estratégias precisas para o enfrentamento da
violência intrafamiliar, tais como a previsão de ações intersetoriais, que envolvam fluxos
articulados de atendimento, deixando a política de enfrentamento à violência o caráter
meramente promocional.
Embora as campanhas de sensibilização sejam importantes para a superação da cultura
da violência, sua perspectiva fragmentada e ocasional, deixam a desejar quanto aos impactos
necessários para evitar a persistência da violação de direitos e, muitas vezes, as políticas de
atendimento ficam reduzidas a atividades de sensibilização, sem oferecer serviços estruturados
para o atendimento integral da família e a construção de relações sociofamiliares sem violência.
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