As páginas ainda não viradas de nossa histórica ficam evidentes quando folheamos as
páginas de uma obra literária que retrata de maneira excepcional as raízes da formação do
espírito de parte de nosso povo. As semelhanças não são meras coincidências, pois retratam um
passado que insiste em se fazer presente. A propósito de Floriano Peixoto, esse ícone funesto
da instauração da república brasileira, nos diz Lima Barreto:
A sua concepção de governo não era o despotismo, nem a democracia, nem a
aristocracia; era a de uma tirania doméstica. O bebê portou-se mal, castiga-se.
Levada a coisa ao grande, o portar-se mal era fazer-lhe a oposição, ter opiniões
contrárias às suas e o castigo não eram mais palmadas, sim, porém, prisão e
morte. (LIMA BARRETO, 2018, p. 346)
As surpreendentes e decisivas considerações de Lima Barreto não se rendem à
compreensão simplicista que reduz o curso da história à personalidade das figuras que
desempenharam papel proeminente em determinadas épocas. Tais personalidades somente
ganham relevância na medida em que cumprem um papel social correspondente às expectativas
e características sociais de certas classes, na exata medida em que compõem o perfil mais geral
de parte expressiva de uma população, em que representa seus elementos tendenciais, mesmo
se contraditórios; ou seja, quando cumprem um mandado social historicamente posto pelas
condições sociais de uma nação. A esse propósito, Lima Barreto acrescenta acertadamente:
Sua preguiça, sua tibieza de ânimo e seu amor fervoroso pelo lar deram em
resultado esse “homem-talvez” que, refratado nas necessidades mentais e
sociais dos homens do tempo, foi transformado em estadista, em Richelieu, e
pôde resistir a uma séria revolta com mais teimosia que vigor, obtendo vidas,
dinheiro e despertando até entusiasmo e fanatismo. (LIMA BARRETO, p.
346)
Se omitirmos as especificidades históricas, se nos déssemos ao trabalho de substituir
nomes e situações particulares, reescrever essas palavras em nossos dias significaria uma
descrição bem próxima aos descalabros e descaminhos em curso no país.
Sem negligenciar a particularidade histórica dos dias atuais, não seria de todo incorreto
compreender o campo das forças em curso, como formas de regressividade de um capitalismo
periférico e dependente. Entretanto, tal forma regressiva tem intenções recônditas que precisam
ser trazidas à luz. Em um país em que parte não desprezível da população (o famigerado e
persistente “30%”) se vê arrebatada pela retórica verde-amarela de seu chefe, tomados por
arroubos de alta tensão patriótica, cuja face mais aparente não deixa de ser a expressão
disfarçada do sussurrante instinto pequeno burguês, o que se põe no horizonte – para esses – é
Brasileira, 1965, p. 114.