DOI 10.34019/1980-8518.2020.v20.30822
Revista Libertas, Juiz de Fora, v.20, n.1, p. VII-XVI, jan. / jun. 2020 ISSN 1980-8518
EDITORIAL
O neoconservadorismo em tempos de pandemia
Demais, a sua educação militar e a sua fraca cultura
deram mais realce a essa concepção infantil,
raiando-a de violência, não tanto por ele em si, pela
sua perversidade natural, pelo seu desprezo pela
vida humana, mas pela fraqueza com que acobertou
e não reprimiu a ferocidade dos seus auxiliares e
asseclas.
Lima Barreto, O triste fim de Policarpo Quaresma
... a propósito de Floriano Peixoto
O processo de editoração desse volume da Revista LiberTas teve a peculiaridade de
coincidir com um momento no mínimo inusitado da história contemporânea: a pandemia
provocada pelo vírus corona. A tão propalada globalização da economia estende o leque de suas
consequências não apenas para a campo das crises econômicas propriamente ditas, mas também
para outras esferas essenciais da vida, neste caso, a saúde. O caráter inesperado desta crise
assoma-se aos rumos praticamente inevitáveis da crise econômica que estava por vir; a
pandemia se junta às tendências em curso e eleva a crise ao patamar de catástrofe internacional
de imensas proporções. Em meio às incertezas das consequências mundiais a que o desfecho
desta crise pode levar, nós brasileiros, por nossas próprias mazelas e indefinições, podemos
esperar um conjunto de irresolubilidades sociais ainda maiores.
O agravamento particular da crise em nosso país tem raízes bem antigas, fruto da
estrutura e “tradição” que nunca deixou de ser marcada pelos traços conservadores e retrógrados
presentes desde sempre na sociedade brasileira e hoje agravados por posições extremas,
irascíveis e impulsivas. Não bastasse a situação de calamidade própria de uma pandemia,
assistimos ao descontrole e acirramento de posições políticas, em um caos o insano que eleva
às raias do absurdo a prostração e inação debochada frente aos malefícios causados pelo vírus.
Nunca de forma tão evidente como agora, as tendências mais absurdas e extremas do
conservadorismo haviam-se presentificado de maneira tão explícita. Em um momento em que
a urgência dos tempos exige lucidez e clareza para a prospecção do futuro, assistimos ao
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VIII
desenredo do caos político e governamental orquestrado pelo retorno de um passado que sempre
insistiu em se fazer presente.
A propósito das raízes deste conservadorismo que assola o presente, cumpre aditar
algumas rápidas palavras. Ele nunca deixou de existir, apenas se recolheu por um período como
um predador à espreita esperando o momento ideal para proferir seu ataque. Sobre o processo
da formação da sociedade brasileira, em particular, sobre a composição das forças que se
colocaram como os dominantes dos rumos nacionais, Carlos Nelson Coutinho tece
considerações bastante elucidativas sobre a transição do Brasil para o capitalismo:
a burguesia se ligou às antigas classes dominantes, operou no interior da
economia retrógrada e fragmentada. Quando as transformações políticas se
tomavam necessárias, elas eram feitas 'pelo alto', através de conciliações e
concessões mútuas, sem que o povo participasse das decisões e impusesse
organicamente a sua vontade coletiva. Em suma, o capitalismo brasileiro, ao
invés de promover uma transformação social revolucionária o que
implicaria, pelo menos momentaneamente, a criação de um 'grande mundo'
democrático - contribuiu, em muitos casos, para acentuar o isolamento e a
solidão, a restrição dos homens ao pequeno mundo de uma mesquinha vida
privada.
1
O conservadorismo atravessa toda a história brasileira, cuja marca inapagável trovem
de seu nascedouro. A peculiar entificação do capitalismo, em nosso país, não ocorreu por meio
de uma revolução, mas pela conciliação em que preserva os interesses “de uma mesquinha vida
privada”. Desse modo, não se insere o novo, apenas se muda um âmbito restrito da realidade
social – alguns aspectos de sua economia – promovendo a manutenção dos antigos privilégios
em detrimento de quaisquer formas de expressão autêntica da vontade coletiva.
Os primórdios da sociedade brasileira são marcados pelo confronto entre duas grandes
tendências na política. A vitoriosa, caracterizada pela perspectiva tradicionalista e conservadora
contrapôs-se à tendência que propunha transformações de feitio democrático e à ideia de um
desenvolvimento econômico nacional próprio. Quanto a isso, vale lembrar as palavras de José
Onório Rodrigues:
A vitória secular da primeira representou a derrota do progresso econômico e,
consequentemente, a história cruel para o povo, sacrificado na educação, na
saúde, no bem-estar. Se somarmos o sangue dos rebeldes e inconformados à
crueza das repressões, às rebeldias, à contínua e ininterrupta insensibilidade
das lideranças, à mortalidade infantil, ao apavorante e desmoralizante grau de
analfabetismo, ao número de doentes, ao crescimento das favelas, e à vida
sub-humana das populações rurais, teremos um processo histórico cruento.
2
1
COUTINHO, Carlos Nelson; Literatura e humanismo; Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; p. 142.
2
RODRIGUES, José Osório; Conciliação e reforma no Brasil: um desafio histórico; Rio de Janeiro: Civilização
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As páginas ainda não viradas de nossa histórica ficam evidentes quando folheamos as
páginas de uma obra literária que retrata de maneira excepcional as raízes da formação do
espírito de parte de nosso povo. As semelhanças não são meras coincidências, pois retratam um
passado que insiste em se fazer presente. A propósito de Floriano Peixoto, esse ícone funesto
da instauração da república brasileira, nos diz Lima Barreto:
A sua concepção de governo não era o despotismo, nem a democracia, nem a
aristocracia; era a de uma tirania doméstica. O bebê portou-se mal, castiga-se.
Levada a coisa ao grande, o portar-se mal era fazer-lhe a oposição, ter opiniões
contrárias às suas e o castigo não eram mais palmadas, sim, porém, prisão e
morte. (LIMA BARRETO, 2018, p. 346)
As surpreendentes e decisivas considerações de Lima Barreto não se rendem à
compreensão simplicista que reduz o curso da história à personalidade das figuras que
desempenharam papel proeminente em determinadas épocas. Tais personalidades somente
ganham relevância na medida em que cumprem um papel social correspondente às expectativas
e características sociais de certas classes, na exata medida em que compõem o perfil mais geral
de parte expressiva de uma população, em que representa seus elementos tendenciais, mesmo
se contraditórios; ou seja, quando cumprem um mandado social historicamente posto pelas
condições sociais de uma nação. A esse propósito, Lima Barreto acrescenta acertadamente:
Sua preguiça, sua tibieza de ânimo e seu amor fervoroso pelo lar deram em
resultado esse “homem-talvez” que, refratado nas necessidades mentais e
sociais dos homens do tempo, foi transformado em estadista, em Richelieu, e
pôde resistir a uma séria revolta com mais teimosia que vigor, obtendo vidas,
dinheiro e despertando até entusiasmo e fanatismo. (LIMA BARRETO, p.
346)
Se omitirmos as especificidades históricas, se nos déssemos ao trabalho de substituir
nomes e situações particulares, reescrever essas palavras em nossos dias significaria uma
descrição bem próxima aos descalabros e descaminhos em curso no país.
Sem negligenciar a particularidade histórica dos dias atuais, não seria de todo incorreto
compreender o campo das forças em curso, como formas de regressividade de um capitalismo
periférico e dependente. Entretanto, tal forma regressiva tem intenções recônditas que precisam
ser trazidas à luz. Em um país em que parte não desprezível da população (o famigerado e
persistente “30%”) se arrebatada pela retórica verde-amarela de seu chefe, tomados por
arroubos de alta tensão patriótica, cuja face mais aparente não deixa de ser a expressão
disfarçada do sussurrante instinto pequeno burguês, o que se põe no horizonte para esses – é
Brasileira, 1965, p. 114.
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a defesa, custe o que custar, do status quo. Não nos enganemos, esse espírito de ódio pelo
adversário, essa mentalidade agressivamente autoritária, os brados retumbantes de
reconstituição das antigas tradições e de uma moral cristã arcaica, prestam-se, na realidade, à
preservação da forma peculiar do capitalismo dos “tristes trópicos”. Em termos mais diretos, o
que se põe como regressividade no plano da cultura, da moral e dos direitos, se oferece como
grande aliado na linha de frente da ofensiva do capital. Nada mais são do que as duas faces
distorcidas de um Jano
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perverso e ludibriador – pois, desprovidas da sapiência do deus romano
e alheias e contrárias às mudanças e movimentos transformadores. São faces distintas em uma
única cabeça, perfis diferentes em um mesmo corpo, cujos olhos apesar de mirarem em sentidos
opostos, pelo guiar de suas pernas seguem sempre a mesma direção, qual seja, a da manutenção
de prerrogativas, o restabelecimento e intensificação das diretrizes econômicas de uma classe
social que persiste em constante peleja para não perder a direção do processo social. A face do
velho traveste-se em novo, perfazem a síntese de um futuro que somente se oferece na
aparência, na medida em que preserva e intensifica as formas sociais de exploração necessárias
ao processo de acumulação do capital.
A luta contra o conservadorismo e contra as tendências de exploração econômica sempre
foram bandeiras decisivas para contrapor às elevadas taxas de desigualdades e às injustiças
sociais que marcam sobremaneira o decurso de nossa história. Dentre os vários movimentos de
resistência e de luta por transformações, o Serviço Social tem uma parte relevante de
contribuição. Desde a década de 1980, a área tem sua trajetória marcada pela “recusa do
conservadorismo de origem” (cf. Iamamoto, p.5, desta edição). O conservadorismo, no Serviço
Social, nada mais é do que uma das expressões da composição de forças da sociedade civil. O
combate interno que se processo no Serviço Social é uma das formas parciais de luta mas nem
por isso sem importância – que se desenrola em um terreno mais amplo, o das lutas sociais em
sua dimensão mais geral. O Serviço Social é parte desta história de resistência e da luta por
transformações.
Os dois artigos que abrem este número de nossa revista registram as intervenções de
duas grandes expoentes do Serviço Social no XVI Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais,
2019 - 40 anos da “virada” do Serviço Social no Brasil: história, atualidade e desafios. Falar
dos 40 anos, implica reportar ao memorável III CBAS (1979), que sem dúvida constitui o marco
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Jano é dos mais antigos deuses do panteão romano, filho de Creusa e Apolo. É representado por caras opostas,
uma olha para frente e outra olha para trás, como se examinasse as questões por todos os seus aspectos.
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histórico onde a “resistência coletiva de assistentes sociais à ditadura empresarial–militar e ao
conservadorismo no Serviço Social em favor de sua renovação histórico-crítica” (cf. nesta
edição, p. 1). A ruptura implicou, de modo necessário, deflagrar lutas contra posições
conservadoras ativas, pondo como eixo decisivo a crítica social como elemento capaz de firmar
o compromisso de assistentes sociais com a construção de uma sociedade mais justa e
igualitária. Para sermos mais direitos, cabe dar a palavra às próprias autoras. No artigo de
Marilda Iamamoto, lemos que “a ‘virada’ revela a sintonia de parcelas significativas do Serviço
Social brasileiro com experiências de segmentos de trabalhadores e entidades combativas da
sociedade civil, numa aproximação às lutas, organizações e movimentos sociais que portam a
defesa dos direitos, interesses e projetos societários das classes subalternas” (cf. nesse volume,
p. 1).
Ivanete Boschetti em seu artigo, O Serviço Social na história, enfatiza a necessidade na
formação em Serviço Social tanto na graduação quanto na pós-graduação, sempre salientar a
importância da crítica à incapacidade civilizatória do capitalismo em conviver com a conquista
de direitos. Os 40 anos de história da profissão foram marcados por lutas decisivas, que vão
desde os enfrentamentos do período do regime autocrático de 64, passando pela democracia
burguesa, cuja expressão maior é a Constituição Federal de 1988, até os dias atuais em que
impera o obscurantismo e o ataque à própria democracia burguesa, frutos do a autora designa
como o hiperliberalismo.
A contraposição ao conservadorismo não negligencia de modo algum os desafios
contemporâneos, o horizonte canhestro do neoliberalismo que frontalmente ataca direitos dos
trabalhadores, cerceia ao máximo e até mesmo aniquila políticas sociais conquistadas a “duras
penas”. Nesse sentido os artigos convergem ao compreender que rememorar o passado é
compreender a trajetória da luta, suas conquistas, erros e acertos, sempre como forma de
enfrentar os desafios do presente. Conforme ambas as autoras dão testemunho, a luta está longe
de um fim, pelo contrário, acirra-se não somente no interior das fronteiras nacionais, mas ganha
a feição temerária de um retrocesso que se desdobra no plano internacional.
Esse conservadorismo aliado fiel do neoliberalismo se vê, conforme dissemos, imerso
em uma crise de proporções inesperadas: a pandemia. Nem um, nem outro, mostram-se capazes
de dar respostas, de estabelecer rumos e perfilar possíveis resoluções. No que diz respeito à
crise da economia, os que hoje ladeiam o mandatário do país, veem-se mais tranquilos em
dissimular a situação, isentam-se de qualquer culpabilidade, pois basta justificá-la pela ausência
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do programa neoliberal, algo como o argumento tautológico de parca persuasão como: “a crise
está aí, pois não somos neoliberais”. Entretanto, quando o vírus se apresenta como desafio traz
consigo o velho dilema, tão ameaçador aos de princípios liberais, da contradição entre o bem
comum e os interesses individuais. Difícil, nessa nova equação social, continuar a ver nos
interesses individuais a possibilidade da realização do bem de todos. Torna-se difícil defender
o egoísmo natural do humano como fundamento da prosperidade, quando a realidade nos exige
exatamente o caminho contrário: o da solidariedade e do compromisso social de cada indivíduo
pelo bem de todos.
A incapacidade de apresentar soluções se transforma, no entanto, em teimosia e cinismo.
Cinicamente os vemos entoar os cânticos da famigerada Escola de Chicago, em que o mestre
Milton Friedman sempre vislumbrava nas crises a possibilidade de impor sua agenda
liberalizante. Contra tal cinismo e contra a vociferação da intolerância conservadora que
avassala o país, faz-se necessário voltar a tremular as bandeiras da crítica social.
Em meio a um processo em curso, não se apresentam ainda as dimensões exatas das
consequências humanas e sociais, muito embora a urgência do momento nos cobra reflexões,
ainda que aproximativas, sobre os possíveis desdobramentos. Precisamente com vistas na
necessidade da compreensão e da crítica, abrimos espaço nessa edição para reflexões dirigidas
diretamente a tal problemática, não apenas ao problema da pandemia tomado em si mesmo,
mas às possíveis consequências econômicas e sociais que podem advir de tal situação.
São três os artigos destinados a essa discussão. No primeiro, de título Reflexões sobre a
pandemia da COVID-19 e o capitalismo, Marina Barbosa e Augusto Cerqueira – membros da
diretoria da APES, Seção Sindical de Juiz de Fora trazem em seu texto a preocupação que
vincula crise sanitária à expansão do modo de produção capitalista. Para os autores não como
deixar de perceber na linha dos desdobramentos econômicos tendências que criam condições
profícuas para o surgimento e frequente eclosão de surtos de gripe capazes de evoluir para
pandemias, tais como o recente caso da H1N1 e do caso atual da COVID-19. Há, segundo os
autores, uma relação entre a crise estrutural do capital que, como subterfúgio, “intensifica o
avanço sobre o meio ambiente juntamente ao desmonte dos mecanismos de proteção social e
do trabalho” (cf, neste volume, p. 38).
Em uma linha similar, mas com contribuições distintas, Ricardo Lara professor da
Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina procura estabelecer
um “diálogo entre a crítica epidemiológica e as relações sociais de produção, com o propósito
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de indicarmos caminhos possíveis de compreensão da Covid-19 pautados na análise histórica
dos processos socioeconômicos” (cf. nesta edição, p.54). Sua trajetória de pesquisa sobre as
condições e transformações do trabalho na contemporaneidade, o torna apto a trazer elementos
para um panorama suscinto e decisivo sobre os acontecimentos recentes. Se ainda não é possível
apresentar respostas precisas, a construção de boas questões, a formulação dos problemas
centrais, são nesse momento a melhor forma de contribuição para compreensão da situação
atual e de seus desdobramentos. E o autor o faz com competência.
O terceiro artigo que se debruça sobre a mesma temática, de Felipe Demier – professor
do Departamento de Política Social (DPS) da Faculdade de Serviço Social (FSS) da UERJ ,
cujo título é Depois do vírus: onde você vai estar quando isso passar?, cumpre o papel de um
significativo ensaio, cujas intenções são advertir sobre os possíveis desdobramentos da crise
sanitária e econômica. Se a questão proposta parece se reportar à dimensão propriamente
individual, subjetiva, o autor não se furta a demarcar que a individualidade deve ser
compreendida como sujeitos coletivos. Nesse sentido, as respostas e as alternativas para a saída
da crise cobram de cada um a responsabilidade para a construção do futuro da sociedade pós-
pandemia, exige de todos uma reflexão a respeito dos valores por meios dos quais podemos
pensar a edificação de uma sociedade para além dos ditames que regem os interesses
econômicos da sociabilidade atual.
Na sequência o artigo Migraciones contemporaneas, de Miguel Perelló Profesor de
los estudios de Grado en Trabajo Social (Universitat de les Illes Balears-UIB), España ,
confere um importante tratamento a outro tema de grande atualidade, reflexo expressivo de
elementos contraditórios dos rumos históricos que a forma da sociabilidade globalizada põe em
curso: a dinâmica migratória. Considerando o fenômeno tal como ocorre na Espanha, o autor
discute o crescimento dos discursos anti-imigração, e analisa as políticas europeias de controle
do fluxo imigratório, com o consequente fechamento das fronteiras para os migrantes e para os
refugiados. Defende a tese da necessidade de desenvolvimento de políticas migratórias que
permitam o acolhimento e integração dos imigrantes por meio de políticas baseadas na
igualdade de direitos e de convivência intercultural.
María Eugenia Hermida, professora argentina da Licenciatura en Trabajo Social de la
Universidad Nacional de Mar del Plata, Argentina, aborda em seu artigo a questão de como é
possível articular projetos e propostas de intervenção social que mudem de maneira efetiva as
sociedades neoliberais vigentes. Para analisar o problema a autora avalia que o Serviço Social,
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na América Latina, em suas últimas cinco décadas, foi atravessado por aquilo que ela designa
por “três importantes interrupções”: São elas: las teorías críticas del marxismo; el enfoque de
derechos, género y ciudadanía; y las teorías críticas de lo colonial y el feminismo del Sur. Com base
nessa tese a autora analisa a genealogia dos processos históricos da América Latina nesse meio século
de história.
Outro tema de importância, que com frequência recebe atenção especial nas
investigações e pesquisas do Serviço Social, é o papel do assistente social na área da educação.
Dentro dessa linha de reflexão, as autoras Sandra Faria (Docente do Curso de Serviço Social e
do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Serviço Social da Pontifícia Universidade
Católica de Goiás) e Sara Avelar (discente do Programa de pós-graduação PUC-Goiás),
retomam o “debate crítico-analítico” com o objetivo de problematizar a contrarreforma da
educação superior no Brasil, cuja proposta visa sobretudo a mudança estrutural e conceitual de
universidade. A discussão centra-se na análise das Diretrizes Curriculares Nacionais de 1996 e
com ênfase no reconhecimento do Serviço Social como área de conhecimento. O argumento
central do artigo considera a hipótese de que a ampliação, sob a lógica mercantil, dos cursos de
Serviço Social possui contradições e incompatibilidades com os princípios, os núcleos de
fundamentação e os conteúdos primordiais presentes nas Diretrizes Curriculares Nacionais de
1996.
Os três artigos que seguem, sem a intenção de constituir um todo coeso, não deixam de
ganhar certa articulação, uma vez que lidam com um campo de atuação importante do Serviço
Social: a residência profissional. O primeiro dessa tríade de artigos, escrito por Letícia Silva
pesquisadora em Saúde Pública da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação
Oswaldo Cruz (EPSJV/FIOCRUZ) –, trata do tema relacionando-o ao seu papel de formação
profissional. Em suas reflexões a autora apresenta um conjunto de conclusões e indicativos
relevantes para pensar criticamente o profissional em Serviço Social, não deixando de enfatizar
a prioridade do processo formativo este âmbito.
Na sequência, o artigo Residências multiprofissionais em saúde, escrito por Ana Maria
Ferreira (professora da Faculdade de Serviço Social UFMG), Laura Leal e Laura Marçola
(residentes), discorre sobre a pesquisa intitulada “Residência Multiprofissional em Saúde e
Serviço Social: mapeamento teórico e político-pedagógico”, realizada entre 2017 e 2018, pelo
Grupo de Estudos e Pesquisas dos Fundamentos do Serviço Social (GEPEFSS), da Faculdade
de Serviço Social/UFJF em parceria com a Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em
Serviço Social (ABEPSS). Procura contribuir com a discussão sobre as concepções
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“pedagógicas comuns aos programas de residência no Serviço Social”.
Dentro dessa mesma linha, e fruto da mesma pesquisa, três autoras – Luciana de Paula
(professora da Faculdade de Serviço Social UFMG), Joseane Lima, Vanisse Bedim
(residentes) –, no artigo Residências multiprofissionais em saúde, discorrem sobre a atuação
junto à residência no intuito de estabelecer reflexões sobre as atividades desenvolvidas pelo
assistente social-residente, em particular na área da saúde, dando ênfase maior às suas
competências e atribuições profissionais.
Se, nesse editorial, inicialmente assumimos um tom cuja intenção é destacar a
peculiaridade de nossos dramas nacionais e de nossas questões sociais, outro artigo que compõe
esse tomo retoma essas preocupações ao fazer a necessária investigação sobre as consequências
diretas e singulares da implementação de programas de política social em nosso país. Em
Programa bolsa família em Belém - PA , três assistentes sociais (Cibele Braga [UFAM],
Roselene Portela, Jéssica Carvalho) se unem para descrever e analisar a efetividade do referido
programa junto às famílias belenenses usuárias. Para além da mera consideração do recurso
monetário, o artigo coloca a justa questão de saber se seu impacto “tem possibilitado mudanças
significativas nas condições de vida das famílias”, se se coloca como capaz de “contribuir para
a efetivação dos direitos sociais e melhores condições de vida” (cf. neste volume, p. 196).
Decerto a contribuição das autoras nos presta o serviço de, ao analisar a particularidade do caso,
auxiliar na formação de uma consideração mais global sobre a natureza do programa e suas
consequências frente às expressões da questão social no Brasil.
Por fim, nosso último artigo, escrito Vitor Sartori professor da Faculdade de Direito
da Universidade Federal de Minas Geras –, é o resultado de uma pesquisa de fôlego em curso
algum tempo. Em suas linhas mais gerais, esse esforço intelectual visa estabelecer e
analisar as considerações de Marx e Engels sobre o direito, buscando não somente compreender
o pensamento de ambos os pensadores em torno do tema, mas inclusive cotejá-los e confrontá-
los com a literatura que versou sobre o problema no interior do marxismo e do pensamento
filosófico em geral. No artigo, O livro II de O Capital e o direito: um debate com Pachukanis,
o autor russo é analisado e comentado à luz das obras de seu antecessor: Marx, em particular.
Um importante movimento inverso de análise é empreendido neste estudo: cabe julgar o
comentador e intérprete, a partir das obras interpretadas. Um traço característico das análises
empreendidas por Sartori é a de que ele nunca se rende ao sabor das digressões interpretativas,
pelo contrário, toma o texto em suas dimensões efetivas para a partir da análise imanente
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estabelecer com rigor o conjunto das ideias presentes. Tal procedimento permite realizar o
cotejamento entre o texto base – aqui Marx – e a forma pela qual foi tomado por seu intérprete
no caso em questão, Pachukanis. A relevância de tal empreitada está em cumprir a difícil
tarefa de redescobrir Marx em meio ao multiverso de interpretações que recaíram sobre sua
obra e obnubilaram seu pensamento.
Com o fechamento da seção destinada aos artigos de fluxo contínuo, damos
prosseguimento à nova seção de textos iniciada no volume anterior de nossa revista (19.2), a
seção “tradução dos clássicos”. Com a intenção de trazer aos leitores a tradução de textos
inéditos na língua portuguesa, de autores significativos do pensamento filosófico e social, este
volume traz mais um escrito do filósofo húngaro György Lukács. Trata-se do capítulo de sua
Estética, destinado à jardinagem. A tradução e apresentação é fruto das atividades da Profa.
Dra. Cristina Nacif (professor Faculdade de Arquitetura UFF\Niterói) em esforço conjunto
com João Vitor Giorno, realizado no âmbito do Laboratório Lablegal. A tradução decorre da
“necessidade de divulgar no plano acadêmico, especialmente nos cursos de arquitetura e
urbanismo, a obra de Georg Lukács e, assim, ampliar e qualificar o debate a partir de uma
ontologia marxiana” (cf, neste volume p. 257).
Por fim, fechando esta edição, retomamos a seção entrevista, trazendo o importante
depoimento de Susana Cazzaniga, professora argentina, atualmente aposentada, mas que
mantem uma atividade acadêmicas intensa em diversas universidades em seu país e na América
Latina. A entrevista ocorreu em agosto de 2019 no Programa de Pós-graduação em Serviço
Social da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora. Foram
responsáveis pelas perguntas as professoras Carina Berta Moljo (UFJF), Katia Marro (UFF\Rio
das Ostras) e Maria Lucia Duriguetto (UFJF). Na entrevista Cazzaniga realiza um interessante
apanhado sobre a conjuntura histórica da Argentina ao longo do Século XX e destaca como as
condições políticas e sociais impactaram a trajetória do Serviço Social argentino.
Com mais essa edição da Revista LiberTas esperamos continuar contribuindo para o
debate das ideias. Julgamos que o processo de conhecimento não é uma forma de persuasão,
nem a imposição das próprias convicções, mas acima de tudo o procedimento em que o diálogo,
o debate, os consensos e contradições entre ideias constituem os meios mais profícuos para
estabelecer maneiras mais efetivas de apreensão da realidade. Aos leitores, desejamos uma boa
leitura e esperamos poder contribuir com o princípio de suma importância que nunca deve ser
abandonado e deixar de ser defendido contra toda tentativa de cerceamento: o livre pensar. Este
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é, provavelmente, a principal arma crítica contra os descaminhos do presente.
Alexandre Aranha Arbia, Carina Berta Moljo, Ronaldo Vielmi Fortes