DOI 10.34019/1980-8518.2020.v20.30604
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 544-560, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
544
Subordinação e dependência na América
Latina: apontamentos para pensar a “questão
social”
Waldez Cavalcante Bezerra
*
Larissa Martins de Almeida
**
RESUMO: A partir da perspectiva histórico-crítica e, incorporando elementos da teoria marxista da
dependência, o artigo busca elucidar aspectos para pensar a “questão social” na América Latina. Para a
organização da exposição, num primeiro momento, retomamos alguns aspectos gerais sobre a expressão
“questão social” para, em seguida, discutirmos o processo de formação sócio-histórica da América
Latina e tecermos alguns apontamentos sobre as particularidades da “questão social” latino-americana.
Levando em consideração a bibliografia estudada, conclui-se que a “questão social” na América Latina
se manifesta por meio de diferentes expressões que têm origem nas tendências gerais de acumulação
capitalista, mas que também está assentada na lógica da subordinação e da dependência, apresentando
como característica uma maior exploração da força de trabalho no processo produtivo, que desencadeia
junto aos trabalhadores um conjunto de misérias, privações e violências.
PALAVRAS-CHAVE: América Latina; questão social; capitalismo dependente.
Subordination and dependency in Latin America:
Notes to think the “social issue”
ABSTRACT: From the historical-critical perspective, and incorporating elements from marxista theory,
this article aims to clarify elements to think the “social issue” in Latin America. To organize this
exposition, on a first moment, we took back some general aspects about the expression. “social issue”,
and then discuss the historical social formation process of Latin America and conceive some noes about
the particularities of the Latin American “social issue”. Taking in consideration the the studied
bibliography, we conclude that the “social issue” manifests itself through different expressions which
originate on general tentencies of capitalist accumulation, but is also established on the subordination
and dependency logics, presented as one key characteristc, a bigger exploitation of the labour forces on
the productive process, which initiates, among the workers, a set of miseries, privations and violence.
*
Terapeuta Ocupacional. Mestre e doutorando em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social da Universidade Federal de Alagoas (PPGSS-UFAL). Professor assistente da Universidade Estadual de
Ciências da Saúde de Alagoas (UNCISAL). Integra o Grupo de Pesquisa “Serviço Social, Trabalho, Profissão e
Políticas Sociais” (UFAL) e o Grupo de Pesquisa “Terapia Ocupacional Social: fundamentos, recursos e
populações” (UFPB). “Membro da Rede Metuia – Terapia Ocupacional Social”.
**
Assistente Social. Doutoranda em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da
Universidade Federal de Alagoas (PPGSS-UFAL). Mestra em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação
em Serviço Social da Universidade Estadual da Paraíba. Possui Graduação em Serviço Social pela mesma
instituição. Integra o Grupo de Pesquisa sobre Reprodução Social (GPSRS/UFAL) e o Grupo de Estudo, Pesquisa
e Assessoria em Políticas Sociais (GEAPS/UEPB). Professora substituta do curso de Serviço Social na
Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Campus Sousa-PB.
Subordinação e dependência na América Latina
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 544-560, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
545
KEYWORDS: Latin America; social issue; dependent capitalism.
__________
Introdução
À “questão social” são atribuídas características particulares, dependendo da sua
contextualização em determinadas realidades locais, sob a influência de movimentos globais,
para além do seu reconhecimento como expressão dos conflitos sociais no contexto da
sociedade capitalista.
Assim, o estudo da “questão social” em uma realidade específica remete, sem dúvida,
às bases da própria organização da produção capitalista, uma vez que foi a forma
especificamente capitalista de produzir que determinou uma pobreza da classe trabalhadora de
novo tipo, não mais pela escassez de recursos, mas pela abundância e apropriação privada deles.
Esta abordagem genérica da “questão social” revela o seu fundamento ontológico, evidenciando
a relação estrutural entre ela e o capitalismo; contudo, por si só, o se mostra suficiente para
explicar as particularidades do modo de constituição e expressão da problemática em contextos
específicos, como, por exemplo, o da América Latina.
Sem desconsiderar as leis tendenciais gerais do modo de produção capitalista, fazemos
tal afirmação ao entender que, a depender da forma como a produção capitalista se instaura e
se desenvolve em determinadas regiões, ela assume particularidades definidas pela forma de
inserção e função dessas regiões no movimento da economia mundial, dinâmica esta que revela
elementos que definem os contornos da “questão social” nessas localidades.
Desse modo, propomo-nos a realizar alguns apontamentos teóricos para suscitar a
reflexão sobre a “questão social” na América Latina, tomando como base o processo de
formação sócio-histórica da região e da sua dominação e exploração pelos países europeus,
quando do seu “descobrimento” e inserção subordinada na dinâmica da economia mundial. Para
subsidiar as reflexões, recorremos às produções de autores que buscaram compreender e
discutir a realidade latino-americana a partir da tradição marxista, com destaque para aqueles
filiados à teoria marxista da dependência.
Waldez Cavalcante Bezerra; Larissa Martins de Almeida
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 544-560, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
546
Contudo, antes de adentrar nas singularidades latino-americanas, faz-se necessário,
mesmo que de modo breve, assinalar alguns aspectos gerais sobre a expressão “questão social”,
demarcando a nossa perspectiva de análise nesse texto. Tal necessidade se coloca a partir do
reconhecimento de que, ao longo da história, foram diversas as perspectivas de análise da
“questão social” e, a depender do modo como esta é apreendida, estabelecem-se determinadas
formas de enfrentamento ou mesmo minimizam-se os processos sociais envolvidos na sua
gênese e reprodução.
Elementos da gênese da “questão social”: uma perspectiva ontológico-
material
Quando pensamos em “questão social”
1
, automaticamente nos remetemos a pensar em
pobreza, miséria ou algo associado a estas expressões. No entanto, a “questão social”, como
fruto da sociedade do capital, pode se apresentar nas suas mais diversas expressões, das quais
pobreza e miséria são componentes, juntamente com a violência, o desemprego, a indigência,
a fome, as desigualdades, a carência de políticas sociais, dentre outras. A “questão social” trata-
se, portanto, de uma totalidade imbuída de outras totalidades que se expressam de forma latente
no modo de produção capitalista e que detém uma base material econômica, política e social,
além de ser permeada pela questão de classe, que a desvela em suas contradições.
A constituição do modo de produção capitalista tornou-se possível somente através da
acumulação primitiva, processo possibilitado pela expropriação e expulsão dos trabalhadores
rurais do campo, do roubo dos bens da Igreja e da usurpação dos domínios do Estado (MARX,
2013). Além da violência característica desse processo, Marx (2013) revela que nem todos os
trabalhadores arrancados do campo conseguiram se adaptar aos ditames da nova ordem e às
condições de trabalho impostas pelo mercado capitalista; muitos “converteram-se
massivamente em mendigos, assaltantes, vagabundos, em parte por predisposição, mas, na
maioria dos casos, por força das circunstâncias” (MARX, 2013, p. 805-6). As consequências
decorrentes desse processo são muitas: o amontoamento urbano de pessoas vivendo na mais
pura miséria, as desigualdades sociais em crescimento, o desemprego, os conflitos sociais, a
violência, a disseminação de doenças, dadas as péssimas condições de moradia em que viviam
grande parte dos trabalhadores livres.
A acumulação primitiva do capital propiciou, então, a ascensão da hegemonia capitalista
1
O uso do recurso das aspas durante todo o texto está alicerçado na prerrogativa de que o termo “questão social”
surge com uma “tergiversação conservadora”, conforme aborda Netto (2006) e, por isso, seu uso requer um certo
cuidado para que se evite reducionismos.
Subordinação e dependência na América Latina
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 544-560, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
547
e, com ela, o surgimento das classes fundamentais, essencialmente antagônicas:
Deu-se, assim, que os primeiros acumularam riquezas e os últimos acabaram
sem ter nada para vender, a não ser sua própria pele. E, desse pecado original,
data a pobreza da grande massa, que ainda hoje, apesar de todo seu trabalho,
continua a não possuir nada para vender a não ser a si mesma, e a riqueza dos
poucos, que cresce continuamente, embora há muito tenham deixado de
trabalhar (MARX, 2013, p.785).
Dessa acumulação primitiva, decorrem os “males sociais” que fundamentam a ascensão
da chamada “questão social”. Todavia, conforme Netto (2006), o termo “questão social” é
usado pela primeira vez por volta de 1830 para definir o fenômeno generalizante do
pauperismo, resultante da Revolução Industrial ocorrida na Inglaterra entre o final do século
XVIII e o início do século XIX período em que se acirravam os conflitos capital-trabalho,
dada a ascensão da classe proletária enquanto sujeito político disposto a lutar por melhores
condições de vida e de trabalho.
O pauperismo, caracterizado como uma pobreza de novo tipo, distingue-se da pobreza
das formas societárias anteriores pelo fato de existir em um momento cujo desenvolvimento
das forças produtivas seria capaz de eliminá-lo. Assim,
O que torna a pobreza na sociedade capitalista uma pobreza de natureza
distinta de todas as anteriores é que nesta sociedade é possível suprimir a
pobreza. É possível do ponto de vista da produção, da distribuição, mas não é
possível do ponto de vista dos marcos jurídico-políticos em que opera essa
sociedade. O que é importante assinalar não é a continuidade da fome; o que
é importante é que a continuidade se quando é possível suprimi-la (NETTO,
2013, p. 93).
Desde então, a expressão “questão social” se popularizou e passou a ser incorporada por
pensadores, filósofos, políticos, jornalistas etc., filiados às mais diversas matrizes ideopolíticas.
Para Netto (2013), de um modo geral, podemos categorizar a diversidade do trato teórico dado
à “questão social” em dois grandes blocos, os quais permanecem ainda atuais: conservador e
crítico revolucionário. O primeiro, que possui expressão tanto laica quanto cristã, interpreta o
fenômeno como algo natural e possível de eliminar nos marcos da sociedade vigente, seja por
meio de medidas de cunho moral ou com planejamento da gestão pública na alocação de
recursos e investimentos em políticas sociais. O segundo, parte da compreensão de que a
“questão social” é insolúvel na ordem do capital e está radicada na lei geral da acumulação
capitalista.
Ainda que Marx nunca tenha utilizado o termo “questão social” em suas obras, usando
por diversas vezes o termo “males sociais” para designar os problemas decorrentes da
exploração capital-trabalho (PIMENTEL, 2016), ao estudar a sociedade burguesa e a produção
capitalista, ele revela as contradições que permeiam a anatomia dessa sociabilidade, tornando
Waldez Cavalcante Bezerra; Larissa Martins de Almeida
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 544-560, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
548
possível apreender a “questão social” como um complexo constitutivo do desenvolvimento
capitalista (NETTO, 2006), ou seja, inerente à sua lógica acumulativa.
A alteração da composição técnica do capital, decorrente do desenvolvimento das forças
produtivas no capitalismo, desencadeou uma “população trabalhadora adicional relativamente
excedente” (superpopulação relativa/excedente ou exército industrial de reserva), que funciona
como mecanismo de pressão da força de trabalho ocupada, barrando suas pretensões,
contribuindo para sua maior exploração e incentivando, inclusive, os movimentos gerais do
salário (NETTO, 2013). A grandeza desse exército acompanha o aumento das expressões da
“questão social”: “quanto maiores forem as camadas lazarentas da classe trabalhadora e o
exército industrial de reserva, tanto maior será o pauperismo oficial” (NETTO, 2013, p. 719).
Apreendida por Marx como movimento tendencial da própria realidade do modo de
produção capitalista, a lei geral da acumulação demonstra a capacidade potencial das forças
produtivas do sistema capitalista para exaurir a miséria no mundo, todavia, este sistema realiza
o seu contrário: produz miséria na razão direta em que aumenta a capacidade de produzir
riqueza (MARX, 2013; NETTO, 2006). Nesse sentido, a “questão socialtem base material
objetiva e é um elemento indissociável da engrenagem do capital. Sua gênese, conforme
Pimentel (2016), é essencialmente econômica e explicita as contradições do capitalismo,
passando, assim, a ser pauta do Estado, que atua no sentido de garantir a ordem reprodutiva do
capital.
Netto (2013) ressalta, ainda, que o reconhecimento, tanto da relação estrutural entre a
questão social e o capitalismo, quanto da impossibilidade de eliminá-la nos marcos deste, não
anula a importância das medidas reformistas de enfrentamento da mesma por meio de políticas
sociais, principalmente no contexto latino-americano. Afirma ele:
Enfrentar a “questão social” sem tocar nos fundamentos econômicos e sociais
dessa ordem é enxugar gelo. Mas isso não significa imobilismo. [...] É
equivocada a alternativa reforma (posta pelos conservadores) ou revolução.
Não se trata de uma alternativa excludente. A formulação adequada do
problema seria reforma e revolução, por uma razão simples: porque a
experiência histórica tem mostrado que lutas que levavam como alvo, como
objetivo, simplesmente, o reconhecimento de direitos políticos e sociais
tiveram impactos extremamente significativos no conjunto das organizações
sociais capitalistas (NETTO, 2013, p. 91).
Feitas essas considerações gerais sobre o fundamento ontológico-material da “questão
social”, a partir de agora trataremos das singularidades da formação sócio-histórica da América
Latina, buscando refletir, ainda que introdutoriamente, sobre a “questão social” no contexto
latino-americano.
Subordinação e dependência na América Latina
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 544-560, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
549
O lugar da América Latina: a opressão e a dependência como marcas
histórico-sociais
A América Latina é uma região muito diversa, composta por países com níveis de
desenvolvimento das forças produtivas desiguais, estruturas de classes e instituições políticas
distintas, peculiaridades étnicas e culturais diversas, diferentes inserções e relações
internacionais. Tais características fazem da mesma um todo complexo e diferenciado.
Contudo, a análise do processo sócio-histórico de formação da região e a sua colocação como
subordinada na relação com a economia mundial revela, também, a existência de uma base
objetiva para a conformação de uma unidade latino-americana.
É compreensível, pois, que uma efetiva unidade latino-americana só possa ser
pensada como não identitária, como unidade do diverso. Esta unidade latino-
americana é um processo em construção, que possui como base objetiva o fato
de as massas trabalhadoras do subcontinente terem os mesmos inimigos: o
imperialismo (em especial, mas não exclusivamente, o norte-americano) e as
classes dominantes nativas, a ele associadas (NETTO, 2017, p. 256).
Nesse sentido, sem querer anular as peculiaridades de cada país latino-americano,
buscaremos sumariar os processos comuns aos mesmos que permitem identificar essa unidade
à qual Netto (2017) se refere.
Como ponto de partida para tal discussão, apoiamo-nos nas reflexões de Dussel (1993),
quando este analisa o processo mundial de dominação colonial dos povos e culturas, colocando
em xeque o discurso da Modernidade. Para o autor, até 1492, coexistiam impérios e sistemas
culturais entre si, sendo somente a partir desta data que ocorre a implantação do sistema-mundo.
Assim, a ideia eurocêntrica de modernidade, colocada por ele como um mito, teria sua gênese
em 1492, quando a Europa se confrontou com o “Outro” e se afirmou como centro da história
(DUSSEL, 1993).
No contato com a alteridade do não-europeu e, consequentemente, com a sua
dominação, exploração e violação, os europeus se aperceberam e se autoafirmaram como
descobridores, conquistadores e colonizadores. Apenas com a expansão europeia a partir do
século XV, quando esta chega ao Oriente e, no século XVI, quando chega na América, o planeta
se torna o lugar de apenas uma “história mundial”, tendo a Europa se colocado como seu centro
e relegando as demais culturas e regiões à condição de sua periferia (DUSSEL, 1993; 2000).
Desse modo, o sofrimento imputado ao Outro”, nesse caso, os povos latino-americanos,
configura-se como a consequência de um projeto civilizatório europeu, no qual sujeitos são
subjugados por meio de relações desiguais e opressivas de poder. Dussel (1993) busca, então,
romper com a concepção dominante de “descoberta” e indica o conceito de “encobrimento”
como o que melhor define a dominação econômica, cultural e espiritual dos europeus sobre os
Waldez Cavalcante Bezerra; Larissa Martins de Almeida
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 544-560, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
550
demais povos.
Nesse sentido, a história da América Latina, a partir do seu encobrimento” pelos
europeus passou a ser marcada por uma série de processos cuja finalidade sempre foi a
exploração e a usurpação das suas riquezas naturais e humanas em favorecimento do
desenvolvimento dos países centrais do sistema capitalista. Colocada como região periférica do
sistema, o lugar reservado à América Latina impossibilitou-a de se desenvolver plenamente,
devido às amarras econômicas, políticas e sociais que a sua inserção subordinada na divisão
internacional do trabalho determinou.
A divisão internacional do trabalho significa que alguns países se especializam
em ganhar e outros em perder. Nossa comarca no mundo, que hoje chamamos
de América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos
tempos em que os europeus do Renascimento se aventuraram pelos mares e
lhe cravavam os dentes na garganta. [...] Mas, a região continua trabalhando
como serviçal, continua existindo para satisfazer as necessidades alheias,
como fonte e reserva de petróleo e ferro, de cobre e carne, frutas e café,
matérias-primas e alimentos, destinados aos países ricos que, consumindo-os,
ganham muito mais do que ganha a América Latina ao produzi-los
(GALEANO, 2019, p. 17).
Ao ser integrada ao movimento da economia mundial a partir do século XVI, as formas
de organizar a produção latino-americana (do período colonial até a atualidade) devem ser
entendidas como parte da dinâmica de expansão do capitalismo mundialmente, processo este
que subsumiu regiões ditas subdesenvolvidas, dentre elas a América Latina, aos ditames do
capital. De acordo com Paiva, Rocha e Carraro (2010:150) “está dado, desse modo, o processo
em que a história engole a história para produzir outra história: a história do
subdesenvolvimento da América Latina na história do desenvolvimento do capitalismo
mundial” [grifo das autoras].
Desse modo, o subdesenvolvimento (atraso) latino-americano não pode ser entendido
como uma etapa evolutiva que precede o desenvolvimento (progresso), mas sim como resultado
da inserção subordinada das economias periféricas no mercado mundial e como parte de uma
lógica de acumulação global, em que subdesenvolvimento e desenvolvimento são processos
antagônicos e complementares, assim como a relação entre Modernidade e Colonialidade.
Marx (2013) já sinalizou o decisivo papel cumprido pelas regiões ditas periféricas para
o processo de acumulação primitiva de capital nos países centrais. A conquista e colonização
dessas regiões foram importantes para o capitalismo nascente. Segundo ele,
A descoberta das terras do ouro e da prata, na América, o extermínio, a
escravização e o enfurnamento da população nativa nas minas, o começo da
conquista e pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África em um
cercado para a caça comercial às peles negras marcam a aurora da era de
produção capitalista. Esses processos idílicos são momentos fundamentais da
Subordinação e dependência na América Latina
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 544-560, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
551
acumulação primitiva (MARX, 2013, p. 370).
Williams, em seu livro Capitalismo e Escravidão (2012), também demonstrou o papel
da escravidão negra e do tráfico de escravos no fornecimento do capital humano que financiou
a Revolução Industrial. Para ele, a produção das Índias Ocidentais britânicas atuou
sobremaneira na formação do capital inglês, lançando as fundações para a Revolução Industrial,
através do comércio triangular Inglaterra-África-Caribe. Analisando a relação entre o poder
colonial e suas colônias, o autor revela a importância do sistema escravista para a economia
inglesa da época, desconstruindo a “visão tradicional de que as colônias eram mais recipientes
da benevolência metropolitana e menos agentes principais na construção da prosperidade do
poder imperial” (WILLIAMS, 2012, p. 21).
O autor destaca, ainda, que o exclusivismo comercial, estabelecido entre a Inglaterra
e as colônias, obrigavam estas a remeterem seus produtos somente para a Inglaterra e por meio
de seus navios, ao mesmo tempo em que somente podiam adquirir produtos de comerciantes
ingleses ou por eles reexportados. Nas palavras do autor: “assim, como uma criança obediente
que trabalhava para a maior glória de seus pais, elas [as colônias] eram reduzidas a um estado
de vassalagem permanente e confinadas somente à exploração de seus recursos agrícolas”
(WILLIAMS, 2012, p. 56).
Esse processo de acumulação primitiva também propiciou um processo oposto: a
desacumulação primitiva das economias latino-americanas. Conforme Cueva (apud PAIVA;
ROCHA; CARRARO, 2010), essa desacumulação primitiva decorre da usurpação das riquezas
latino-americanas pelos países cêntricos, ocasionando a sua pobreza e aprofundando as suas
desigualdades sociais.
A colonização da América, portanto, favoreceu o enriquecimento e a acumulação
originária de riquezas nos países europeus. As colônias funcionavam como grandes
impulsionadoras do desenvolvimento capitalista, “constituindo-se em poderosas alavancas de
concentração de capitais” que ampliavam as potências existentes no mercado europeu
(MAZZEO, 1988, p. 6).
Assim, o legado da herança colonial determinou as matrizes econômica e social sob as
quais as nações latino-americanas tiveram que se organizar no momento da independência nas
primeiras décadas do século XIX, configurando um padrão oligárquico-dependente de
desenvolvimento capitalista, de modo que as novas sociedades, agora “independentes”,
nasceram baseadas na escravidão, na concentração de terras e na produção de bens primários,
voltados para o mercado externo, evidenciando um não rompimento com o estatuto colonial.
Nesse contexto, o conceito de “Colonialidade” é formulado a partir da compreensão de
Waldez Cavalcante Bezerra; Larissa Martins de Almeida
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 544-560, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
552
que o mundo colonial não foi completamente descolonizado. Enquanto o Colonialismo refere-
se estritamente a uma estrutura de dominação e exploração, cujo controle político e econômico
de uma determinada população são mantidos por outra com uma identidade e jurisdição
territorial diferente, a noção de Colonialidade atenta para as continuidades históricas entre os
tempos coloniais e os tempos ditos "pós-coloniais", além de destacar que as relações de poder
colonial o estão limitadas apenas ao domínio econômico-político e jurídico-administrativo,
mas possuem também uma dimensão cultural (QUIJANO, 2000; CASTRO-GÓMEZ;
GROSFOGUEL, 2007).
As relações coloniais estabelecidas inicialmente na América Latina contribuíram para
que, mesmo após os processos de independência, fossem mantidas relações de subordinação e
dependência entre nações formalmente independentes, no interior das quais as relações de
produção das nações subordinadas são modificadas e recriadas para assegurar essa
dependência.
Segundo Marini (2011), o aprofundamento da inserção latino-americana na economia
mundial se realizou plenamente no século XIX, com o nascimento da grande indústria
europeia, à qual necessitou de uma grande disponibilidade de produtos agrícolas e matérias-
primas fornecidas pela América Latina, que garantiu o desenvolvimento industrial europeu.
Coube aos países dependentes o papel de produzir bens primários para a exportação e
importarem tecnologia, equipamentos e maquinarias. Assenta-se, então, uma contradição
interna nas economias dependentes pelo fato de a sua produção se orientar e se realizar,
majoritariamente, no mercado externo.
Contudo, o elemento fundamental da dependência está no desequilíbrio entre valor e
preço, uma troca de uma quantidade maior de valor (tempo de trabalho socialmente necessário)
por uma quantidade menor de valor, que faz com que haja uma transferência de mais-valia dos
países dependentes para os centrais.
Transações entre nações que trocam distintas classes de mercadorias, como
manufaturas e matérias-primas, o mero fato de que umas produzam bens que
as outras não produzem, ou não o fazem com a mesma facilidade, permite que
as primeiras iludam a lei do valor, isto é, vendem seus produtos a preços
superiores a seu valor, configurando assim uma troca desigual. Isso implica
que as nações desfavorecidas devem ceder gratuitamente parte do valor que
produzem [...] (MARINI, 2011, p. 145).
De acordo com Marini (2011), como forma de compensar essa troca desigual, os países
dependentes buscam intensificar a extração de mais-valia a partir de três mecanismos: a
intensificação do trabalho, a prolongação da jornada de trabalho e a expropriação de parte do
trabalho necessário ao operário para repor sua força de trabalho; condições estas que fazem ele
Subordinação e dependência na América Latina
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 544-560, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
553
defender a tese de que na América Latina há uma superexploração da força de trabalho.
Além disso, importa ressaltar que, nos três mecanismos considerados, a
característica essencial está dada pelo fato de que são negadas ao trabalhador
as condições necessárias para repor o desgaste de sua força de trabalho: nos
dois primeiros casos, porque lhe é obrigado um dispêndio de força de trabalho
superior ao que deveria proporcionar normalmente, provocando assim seu
esgotamento prematuro; no último, porque lhe é retirada, inclusive, a
possibilidade de consumo do estritamente indispensável para conservar sua
força de trabalho em estado normal. Em termos capitalistas, esses mecanismos
[...] significam que o trabalho é remunerado abaixo de seu valor (MARINI,
2011, p. 149-50).
Para exemplificarmos essa situação de maior exploração do trabalhador latino-
americano, recorremos a Galeano (2019), quando este trata da estrutura da espoliação na
América Latina.
Para ganhar o que um operário francês recebe em uma hora, o brasileiro tem
que trabalhar, atualmente, dois dias e meio. Com pouco mais de dez horas de
serviço, o trabalhador norte-americano ganha, em equivalência, um mês de
trabalho do carioca. E, para receber um salário superior ao correspondente a
uma jornada de oito horas do operário do Rio de Janeiro, é suficiente que o
inglês e o alemão trabalhem menos de trinta minutos (GALEANO, 2019, p.
352).
Segundo Teles (2018), a combinação desses mecanismos de compensação da troca
desigual, citados por Marini (2011), perpetua o baixo nível de desenvolvimento da força de
trabalho na região e impacta na diversificação de suas atividades, limitando a capacidade dos
trabalhadores de satisfazer suas necessidades sociais e, consequentemente, ampliando os
padrões de desigualdade devido aos altos índices de concentração e centralização dos
excedentes socialmente produzidos.
Apenas quando o sistema capitalista mundial atinge certo grau de desenvolvimento é
que a América Latina inicia seu processo de industrialização, ainda assim, em países localizados
(Brasil, Argentina e México) e, a partir das bases criadas pela economia agroexportadora, de
modo que a indústria continuou a ser, nesses países, uma atividade subordinada à exportação
de bens primários. É, somente, a partir da crise capitalista internacional do início do século XX,
a qual limitou a acumulação baseada na produção para o mercado externo, que o eixo da
acumulação se desloca para a indústria, originando a economia industrial que prevalece na
região (MARINI, 2011). Por isso, verifica-se que,
O crescimento fabril da América Latina fora iluminado, em nosso século, de
fora. Não foi gerado por uma política planificada em direção ao
desenvolvimento nacional, nem coroou a maturação das forças produtivas,
nem resultou da explosão dos conflitos internos, superados, entre os
latifundiários e um artesanato nacional, que morrera pouco depois de nascer.
A indústria latino-americana nasceu do próprio ventre do sistema
agroexportador, para dar resposta ao agudo desequilíbrio provocado pela
Waldez Cavalcante Bezerra; Larissa Martins de Almeida
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 544-560, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
554
queda do comércio exterior (GALEANO, 2019, p. 294).
No intuito de alavancar o processo de industrialização, aposta das correntes
desenvolvimentistas como a saída para a superação da condição subordinada e dependente das
economias latino-americanas e, para o enfrentamento das expressões da “questão social”, os
países da América Latina passaram a importar capital estrangeiro, sob a forma de financiamento
para investir diretamente na indústria. Além disso, Marini (2011) afirma que a região serviu de
local para os países centrais exportarem equipamentos e maquinários obsoletos, reforçando
a divisão internacional do trabalho, em cujo marco são transferidas para os países dependentes
etapas inferiores da produção industrial.
Ao contrário do que previam os desenvolvimentistas, esse processo aprofundou as
relações de dependência e subordinação das economias latino-americanas e o agravamento das
expressões da “questão social”, uma vez que os empréstimos realizados aumentaram a dívida
pública que, atualmente, compromete boa parte do orçamento que poderia ser investido em
políticas sociais, e o tão sonhado desenvolvimento econômico com desenvolvimento social não
se tornou realidade. Nesse sentido, Galeano (2019) afirma que:
De resto, as inversões que convertem as fábricas latino-americanas em meras
peças da engrenagem mundial das corporações gigantes não alteram em
absoluto a divisão internacional do trabalho. Não sofre a menor modificação
o sistema de vasos comunicantes por onde circula os capitais e as mercadorias
entre os países pobres e os países ricos. A América Latina continua exportando
seu desemprego e sua miséria: as matérias-primas de que o mercado mundial
necessita e de cuja venda depende a economia da região. O intercâmbio
desigual funciona como sempre: os salários de fome da América Latina
contribuem para financiar os altos salários dos Estados Unidos e da Europa
(GALEANO, 2019, p. 291).
É, portanto, nesse contexto de desenvolvimento sócio-histórico marcado pelas relações
coloniais, pela subordinação e pela dependência que pretendemos situar, a partir de agora, a
“questão social” na América Latina.
A “questão social” no contexto da América Latina
Os processos vivenciados pelas economias latino-americanas impõem condições
deploráveis à vida dos trabalhadores, uma vez que, além da força de trabalho ser remunerada
abaixo do seu valor real, soma-se a ausência ou precariedade de um sistema de proteção social
público, diferentemente do que ocorreu nos países europeus.
Os últimos acontecimentos no âmbito social brasileiro reiteram essa precariedade. A
aprovação da reforma da Previdência, a PEC 241 (ou 55), conhecida como “PEC do fim do
mundo”, que congelou os gastos públicos com políticas sociais por 20 anos, os cortes nas
Subordinação e dependência na América Latina
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 544-560, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
555
universidades públicas, dentre outros, são medidas emblemáticas para esboçar o cenário latino-
americano, medidas que afetaram integralmente a classe trabalhadora brasileira.
Somadas a isso, as condições de trabalho na América Latina são assustadoras. Conforme
dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), atualmente, 158 milhões, de um total
de 292 milhões de pessoas empregadas na América Latina, trabalham na informalidade, ou seja,
cerca de 54% de trabalhadores estão inseridos em uma situação de instabilidade. Além disso,
como consequência da crise econômica atual, impulsionada pela pandemia da COVID-19,
estima-se uma perda de 80% na renda de trabalhadoras e trabalhadores informais da América
Latina. A nível mundial, essa perda é de 60% (NAÇÕES UNIDAS, 2020).
De acordo com um documento publicado recentemente pela Comissão Econômica para
América Latina e o Caribe (CEPAL), o atual contexto de pandemia pode levar a mudanças
estruturais na Divisão Internacional do Trabalho, provocando um enfraquecimento da
globalização e sérios embates no âmbito empregatício. Estima-se uma perda de 4,4 a 14,8% dos
empregos formais e, uma taxa de desemprego de 11,5%, acarretando um aumento de 11,6
milhões de desempregados em relação ao ano de 2019 (CEPAL, 2020, p. 9).
Para Netto (2013), na América Latina, subcontinente onde a supressão do estatuto
colonial ocorreu apenas no plano político, mas não no econômico dada a continuidade da
heteronomia –, a expressão imediata da “questão social” é a pobreza. Nas palavras de Galeano
(2019, p. 348) “terras ricas, subsolos riquíssimos, homens muito pobres neste reino de
abundância e do desamparo”.
O capitalismo dependente institui de modo sempre crescente o pauperismo
das massas, produzindo e reproduzindo, dessa forma, uma intensa e crescente
exploração do trabalhador, determinando, peculiarmente, os traços da
chamada questão social no continente latino-americano (PAIVA; ROCHA;
CARRARO, 2010, p. 157).
Em consonância, os dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD), citados por Lissardy (2020), apontam a América Latina como a região com maior
desigualdade de renda do mundo; os 10% latino-americanos mais ricos concentram 37% da
riqueza da região, os 40% mais pobres, por sua vez, recebem apenas 13% da renda, o que
demonstra a grande disparidade existente entre as classes sociais reinantes nessa região.
Cabe ressaltar que outra característica desse todo denominado América Latina é a
diversidade entre os países que a constituem, os quais apresentam diferentes níveis de
desenvolvimento econômico e social, regiões mais ou menos industrializadas, de modo que as
expressões da “questão social” aparecem de forma diversificada em cada país. Analisando
dados publicados pela CEPAL (2017), verifica-se que a taxa de desemprego na região variava
Waldez Cavalcante Bezerra; Larissa Martins de Almeida
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 544-560, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
556
de 2% (Cuba) a 13% (Brasil), a taxa de mortalidade infantil apresentava variação de 5,5%
(Cuba) a 39% (Haiti), a pobreza atingia 30,7% da população latino-americana, chegando a 48%
nas zonas rurais e, ao se somar a taxa de pobreza com a de pobreza extrema, atinge-se 40,7%
da população em geral e, alarmantes 69,7% na zona rural.
Apesar das características heterogêneas que resultam das singularidades territoriais,
étnicas, culturais e demográficas de cada país, a América Latina apresenta, ao mesmo tempo,
uma linha comum representada pelos índices históricos de desigualdade e pobreza, em
decorrência das relações de exploração econômica e dominação política (TELES, 2018).
Dados mais recentes revelam que a pobreza na América Latina e no Caribe chegou a
níveis extremos. Conforme o relatório “O Estado da segurança alimentar e nutrição no mundo
2020” (SOFI) da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), a
região chega ao quinto ano consecutivo com aumento da fome, afetando, em 2019, 47,7 milhões
de pessoas (FAO, 2020). A Organização ainda projeta que quase 67 milhões de pessoas podem
ser afetadas com a fome até 2030 (FAO, 2020), dados que, mesmo preocupantes, não
consideram ainda o impacto da propagação da COVID-19. A situação, obviamente, piora com
a conjuntura de pandemia que vêm atingindo de forma predominante às populações com baixa
renda. No relatório “Cómo evitar que la crisis del COVID-19 se transforme en una crisis
alimentaria: acciones urgentes contra el hambre en América Latina y el Caribe”, a CEPAL e a
FAO alertam que, como consequência da devastação causada pelo vírus, 83,4 milhões de
pessoas podem chegar à situação de pobreza na América Latina (CEPAL-FAO, 2020).
Esse cenário de crise acentua ainda mais a situação de vulnerabilidade da população
latino-americana e revela o impacto da inserção subordinada na divisão internacional do
trabalho, expõe nossas desigualdades e explicita as expressões da “questão social”,
especialmente, a condição trabalhista.
É preciso lembrar, portanto, que a “questão social” no solo latino-americano se
configura no contexto do capitalismo dependente, mas, trazendo as marcas dos processos de
colonização que dominaram a região ao século XIX e, que gestaram as bases de uma rie
de conflitos e mazelas que perduram mesmo após o fim do regime escravista colonial,
englobando especificidades que conformam o seu significado loco-regional. Temas como a
exploração ambiental, os conflitos envolvendo os povos e comunidades tradicionais, o modo
peculiar como se deu a formação das nações e das classes sociais, a ausência da experiência de
um Estado de bem-estar social, o processo de concentração de riquezas e de poder pelas
minorias ricas e o crescimento das populações pobres, as sequelas que figuram a desigualdade
e as injustiças estruturais não superadas pelos processos de “independência” do século XIX e
Subordinação e dependência na América Latina
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 544-560, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
557
de modernização do século XX, são apenas alguns dos temas relevantes para situar a “questão
social” no contexto latino-americano.
A partir do resgate histórico da formação da América Latina, é possível perceber que
um aspecto central da “questão social” na região é a extrema desigualdade que impera na
estrutura social dos seus países, fruto dos modos de constituição e reprodução social e
econômica de cada um, que se deram sob a marca da subordinação e da dependência no jogo
da economia mundial. Assim, distingue-se da realidade europeia, em tempo e espaço, na
instituição da nacionalidade, da esfera estatal, da cidadania e da implantação do próprio
capitalismo.
Outro aspecto essencial à discussão da questão social” na América Latina, para além
da sua dimensão econômica, diz respeito a sua dimensão política, ou seja, a forma como o
Estado latino-americano tem enfrentado as expressões da “questão social”. Isto recai na análise
do papel dos Estados nacionais na integração dos países latino-americanos na economia
mundial, o que não é possível fazermos nos limites deste artigo. Aqui, consideramos relevante
apenas pontuar que, diferentemente dos países centrais, nos países da América Latina,
historicamente, parte do excedente produzido pelos trabalhadores é apropriado pelo capital
externo, com apoio do Estado. Se, durante o período colonial, as riquezas regionais eram
drenadas para a metrópole a partir de relações sociais reguladas somente com uso da violência,
nos governos formalmente independentes, coube aos Estados latino-americanos usar parte do
excedente para investir em infraestrutura e criar as condições necessárias ao movimento do
capital em escala internacional, o que provocou seu endividamento e aprofundou as relações de
dependência.
Desse processo histórico decorre que, na atualidade, o excedente apropriado pelo Estado
latino-americano cumpre três destinos: financiar o processo de acumulação a partir de frentes
diversas; pagar a dívida externa e seus juros; financiar sistemas precários de proteção social, a
segurança pública e demais investimentos na reprodução social interna (PAIVA; ROCHA;
CARRARO, 2010).
Nesse cenário, a “questão social” na América Latina, sob orientações internacionais,
tende a ser tratada como um fato político partidário e problema individual a ser resolvido via
mercado, possuindo como principal estratégia de enfrentamento políticas e ações fragmentadas
e focalizadas no atendimento das necessidades sociais vinculadas à manutenção das condições
mínimas de reprodução da força de trabalho (TELES, 2018).
Escamoteadas em um discurso de equidade e prosperidade, as recomendações dos
órgãos multilaterais, a exemplo do BID e FMI, para o enfrentamento das expressões da “questão
Waldez Cavalcante Bezerra; Larissa Martins de Almeida
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 544-560, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
558
social” na América Latina ignoram as características estruturais constituintes da região e a
relação histórica de subordinação e dependência mantidas com as economias centrais. Nesse
sentido, as proposições implementadas não impactam, substancialmente, na “questão social” e,
nem poderia ser diferente devido à incongruência entre o crescimento econômico e justiça
social no contexto capitalista.
Depreende-se, destes fatos, a importância e o papel da luta de classes na América Latina
como elemento essencial para a expansão e garantia dos direitos sociais, visto ser pouca a
parcela do excedente destinada para este fim nas economias dependentes. Dussel (1993) afirma
a necessidade de que o bloco social dos oprimidos na América Latina (índios, negros, mestiços,
camponeses, operários e marginais), enquanto sujeitos historicamente marcados por uma
opressão negadora do seu ser, adquira o corpo de sujeito histórico afim de fazer a verdadeira
revolução política rumo à emancipação.
Considerações finais
A formação sócio-histórica da América Latina e a sua inserção na divisão internacional
do trabalho revela uma trajetória marcada por relações de exploração, saqueio, subordinação e
dependência. Apesar de diversa, se considerarmos os processos vivenciados pelos países latino-
americanos individualmente, o resgate teórico realizado neste artigo permitiu elucidar
elementos objetivos que fundam uma unidade latino-americana, uma vez que a região, como
um todo, padece historicamente da heteronomia das suas decisões macroeconômicas.
A inserção subordinada na divisão internacional do trabalho condiciona as economias
periféricas latino-americanas à qualidade de exportadoras de matérias-primas, de mãos de obra
e de riquezas. Essa inserção desigual gera concentração e centralização de riquezas por uma
parte imperialista do mundo e miséria, destruição e desigualdade pelos países periféricos. Dessa
forma, a acumulação dos países cêntricos advém da nossa desacumulação. A sua riqueza é
proporcional à nossa miséria.
Aquestão social” no subcontinente, portanto, apresenta elementos de uma longa
história que condiciona processos de colonização, lutas pela independência, planos de
desenvolvimento e industrialização, diferentes modelos de Estado e políticas sociais, dentre
outros. Nesse sentido, podemos afirmar que a “questão social” na América Latina se manifesta
por meio de diferentes expressões que tem origem nos determinantes da lei geral de acumulação
capitalista, contudo, está assentada, também, na lógica da subordinação e da dependência,
apresentando como característica uma maior exploração da força de trabalho no processo
Subordinação e dependência na América Latina
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 544-560, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
559
produtivo, desencadeando junto aos trabalhadores um conjunto de misérias, privações e
violências.
Neste sentido, mesmo em tempos de crise estrutural – e, mais atualmente, pandêmica –
a “questão social” latino-americana deve ser pensada de forma ontológica, enquanto resultante
de elementos provenientes da estrutura capitalista e de suas relações sociais de desigualdade,
bem como deve ser entendida no seio das suas particularidades internas, ou seja, no seu chão
sócio-histórico. O cenário que se mostra é realmente preocupante, resta-nos contribuir para o
debate e elencar alguns aspectos fundamentais para se apreender o objeto em questão. Esta
síntese foi construída com esse objetivo.
Referências bibliográficas
CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. Giro decolonial, teoría crítica y pensamiento
heterárquico. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. (Orgs.). El Giro Decolonial:
Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Pontificia
Universidad Javeriana: Bogotá, 2007, p. 93-126.
CEPAL. Comisión Económica para América Latina y el Caribe. Anuario Estadístico de
América Latina y el Caribe, 2017. Disponível em: <https://www.cepal.org/pt-br>. Acesso em:
10 de setembro de 2019.
CEPAL-FAO. Comisión Económica para América Latina y el Caribe/ Organização das Nações
Unidas para a Alimentação e a Agricultura. Cómo evitar que la crisis del COVID-19 se
transforme en una crisis alimentaria: acciones urgentes contra el hambre en América Latina y
el Caribe. 2020. Disponível em: <https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/45702
/4/S2000393_es.pdf>. Acesso em: 10 de julho de 2020.
DUSSEL, E. 1492 – O encobrimento do Outro: a origem do mito da modernidade. Petrópolis:
Vozes, 1993.
______. Europa, modernidad y eurocentrismo. In: LANDER, E. La colonialidad del saber:
eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas latinoamericanas. CLACSO: Buenos Aires,
2000, p.24-33.
FAO. Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura. Após três anos a
fome mundial ainda não diminuiu e a obesidade continua crescendo informa a ONU. 2020.
Disponível em: <http://www.fao.org/news/story/pt/item/1201994/icode/>. Acesso em: 10 de
julho de 2020.
GALEANO, E. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2013.
LISSARDY, G. Por que a América Latina é a 'região mais desigual do planeta. BBC News -
Mundo em Nova York. Nova York 16 fevereiro 2020. Disponível em:
<https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51406474>. Acesso em:10 de maio de 2020.
MARINI, R. M. Dialética da dependência. In.: TRASPADINI, R.; STEDILE, J. P. (orgs.). Ruy
Mauro Marini. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011, p. 131-172.
MARX, K. O capital: crítica da economia política (Livro 1). São Paulo: Boitempo, 2013.
MAZZEO, A. C. Burguesia e capitalismo no Brasil. São Paulo: Editora Ática, Série Princípios,
1988.
MOTA, A. E. Crise, desenvolvimentismo e tendências das políticas sociais no Brasil e na
América Latina. Revista de Sociologia Configurações, v. 10, 2012. Disponível em:
<https://journals.openedition.org/configuracoes/1324>. Acesso em: 15 de outubro de 2019.
Waldez Cavalcante Bezerra; Larissa Martins de Almeida
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 544-560, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
560
NAÇÕES UNIDAS. Perda maciça de renda afeta 90% dos trabalhadores informais na
América Latina e no Caribe. 2020. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/perda-macica-de-
renda-afeta-90-dos-trabalhadores-informais-na-america-latina-e-no-caribe/>. Acesso em: 10
de julho de 2020.
NETTO, J. P. Capitalismo monopolista e Serviço Social. 5 ed. São Paulo: Cortez, 2006
______. A questão social na América Latina. In.: GARCIA, M. L. T.; RAIZER, E. C. (orgs.). A
questão social e as políticas sociais no contexto latino-americano. Vitória-ES: EDUFES, 2013,
p. 83-111.
______. Nota sobre o marxismo na América Latina. In.: BRAZ, M. José Paulo Netto: ensaios
de um marxista sem repouso. São Paulo: Cortez, 2017, p. 254-280.
PAIVA, B.; ROCHA, M.; CARRARO, D. Política social na América Latina: ensaio de
interpretação a partir da Teoria Marxista da Dependência. Revista Ser Social, v. 12, n. 26, 2010,
p. 147-175. Disponível em: <https://periodicos.unb.br/index.php/SER_Social/article
/view/12702>. Acesso em: 10 de setembro de 2019.
PIMENTEL, E. As bases ontológicas da “questão social”. Boletim do Tempo Presente, n 11,
2016. Disponível em: http://www.seer.ufs.br/index.php/tempopresente. Acesso: 10 de julho de
2019.
QUIJANO, A. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, E. La
colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales - perspectivas latino americanas.
Buenos Aires: CLACSO, 2000, p. 122-151.
TELES, H. Desenvolvimento e proteção social na América Latina: a dialética das
recomendações das agências multilaterais para a região. 2018. Tese (Doutorado em Serviço
Social). Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, PUC-RS. Porto Alegre. 2018. 217f.
Disponível em: <http://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/8074>. Acesso em: 09 de março de
2020.
WILLIAMS, E. Capitalismo e escravidão. Trad. Denise Bottmann. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.