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DOI 10.34019/1980-8518.2020.v20.30318
O Jardim na estética de Georg Lukács
Cristina Lontra Nacif
*
João Vitor Giorno
**
Resumo: O presente texto é um esforço de traduzir o item IV do Capítulo “Cuestiones liminares de la
mímesis de lo estético (Grenzfragen der ästhetischen Mimesis), que preferimos traduzir para o
português como “Questões de liminares da mimese estética”: “Jardim” (Garten na edição alemã) e
Jardineria na edição espanhola. A tradução, ainda sujeita a revisões, foi feita a partir do item IV livro 4.
da Estetica 1: la peculiaridad de lo estético, publicado pela Ediciones Grijalbo em 1982. O objetivo é a
necessidade de divulgar no plano acadêmico, especialmente nos cursos de arquitetura e urbanismo, a
obra de Georg Lukács e, assim, ampliar e qualificar o debate a partir de uma ontologia marxiana.
Palavras chave: Lukács, jardim, estética.
The Garden in the aesthetics of Georg Lukács
Abstract: This text is an effort of translating the fourth section of the chapter “Grentzfragen der
ästhetischen Mimesis”, part of Georg Lukács’s “Ästhetik”. The section is named “Garten” and discusses
the garden in an aesthetic sense, it’s genealogy and dialectical structure. The translation, still under
possible revisions, is based on the book “Estica 1: la peculiaridade de lo estético, ed. Grijalbo de 1966.
Such effort is concentrated on the necessity of spreading, specially in the fields of architecture and
urbanism, the works of Georg Lukács and, by that, qualify and expand the debate from an marxian
ontology.
Keywords: Lukács, garden, aesthetic.
Submetido em 02/04/2020
Aprovado em 25/04/2020
*
Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal Fluminense (1975), mestrado em
Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992), mestrado em História Social da Cultura pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1998) e doutorado em Geografia pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (2007). Pós doutorado na Universidade Federal de Juiz de Fora sob a supervisão do Professor
Ronaldo Vielmi Fortes, (2017). Organizou em parceria com Ivan Zanatta o Livro Introdução à Estética de Georg
Lukács, Editado pela 7Letras em 2019. Professora Associada da Escola de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal Fluminense (EAU/UFF). Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa em Ontologia Crítica
(GEPOC-UFF).
**
Estudante do Curso da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense. Bolsista do
LabLegal (Laboratório do Estudos da Legislação Urbanística) EAU - UFF e Integrante do Grupo de Estudos e
Pesquisa em Ontologia Crítica (GEPOC-UFF).
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Tradução dos Clássicos
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Introdução
Georg Lukács (1875-1971) é considerado um dos filósofos mais influentes no interior
do marxismo e a sua Estética, apesar de inconclusa, pode ser considerada uma síntese de “cinco
décadas de estudos dedicados a caracterizar o que considerava ser o lugar da arte e do
comportamento estético na totalidade das atividades humanas”. Daí a precisão do título dado
ao primeiro volume: “A peculiaridade do estético”. A obra foi planejada em três partes das quais
apenas a primeira foi concluída e publicada. Mesmo assim Lukács sempre considerou que a
primeira parte é plenamente compreensível sem as demais. Em seu prólogo à primeira parte
publicada Lukács aponta que nas duas partes iniciais, “A peculiaridade do estético” e “A obra-
de-arte e o comportamento estético”, haveria um domínio do materialismo dialético, enquanto
na terceira parte, “A arte como fenômeno histórico social”, o domínio estaria no campo do
materialismo histórico. Talvez se possa afirmar que com sua Estética Lukács estabelece
simultaneamente um debate e uma crítica radical a toda a herança estética e filosófica de seu
tempo.
Motivados pelas leituras comentadas dos (volumes) da Estética, 2018, realizadas no
âmbito do Laboratório Lablegal, atrelado ao grupo de estudos Gepoc - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Ontologia Crítica, e por uma pesquisa financiada pela Faperj Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - com o objetivo divulgar e aprofundar os
estudos sobre a obra lukácsiana, nos dedicamos com especial interesse ao item dedicado ao
Jardim em razão de um estudo sobre o Parque do Flamengo no Rio de Janeiro, o Aterro do
Flamengo como é mais conhecido. Em pouco mais de dez páginas Lukács fornece indicações
valiosas para o entendimento da organização espacial envolvendo a relação arquitetura e jardim.
No entanto, é quase impossível mergulhar no conteúdo deste item sem um conhecimento ainda
que preliminar do restante da Estética. Tal dificuldade pôde ser em parte contornada com a
leitura do livro de Nicolas Tertulian: Georg Lukács - As Etapas do seu pensamento estético -
editado pela Unesp em 2008. Também foram úteis, entre outras, leituras comentadas de Lukács
e arquitetura de Juarez Duayer, EdUFF, também de 2008, dos textos da coletânea Lukács:
Estética e Ontologia organizada por Ester Vaisman e Miguel Vedda, publicado pela Alameda
em 2018 e de Ronaldo Vielmi, O caráter libertador da Arte na Estética de György Lukács, In:
NACIF , Cristina Lontra e ZANATTA, Ivan. (Org.). Introdução à estética de Georg Lukács,
também publicado em coletânea pela Editora 7 Letras em 2019, que resultou do seminário
(Introdução à Estética de Georg Lukács, realizado nos dias 7 e 8 de dezembro de 2017) por nós
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organizado no LabLegal.
A seguir faremos alguns apontamentos de apoio aos leitores de nossa tradução do
capítulo dedicado à peculiaridade estética do Jardim.
Apontamentos para a leitura
O “Jardim” (Garten na edição alemã) é a quarta seção do capítulo Grenzfragen der
ästhetischen Mimesis”, traduzido para o espanhol como “Cuestiones liminares de la mímesis
de lo estético”. Neste capítulo Lukács se debruça sobre os limites práticos do reflexo estético
do mundo em relação a outros complexos, inclusive a formas análogas ao estético,
“pseudoestéticas”, tema caro à análise do jardim, mas que submetido a amplo escrutínio na
última seção do capítulo. Pode-se dizer, em certo sentido, que o intuito nesta parte da obra seja
o de cartografar a categoria da mimese, especialmente suas “franjas”, o que se confunde com
as determinações do modo científico de conhecimento do mundo e a vida cotidiana.
Traço fundamental do debate contido nestas páginas é a “dialética da mimese dupla”, a
condição incontornável de certas práticas artísticas que solicitam tanto um “reflexo
desantropomorfizador” do mundo - pense-se no entendimento objetivo das legalidades naturais,
sem as quais não seriam possíveis a música, a arquitetura ou o jardim - quanto um “reflexo
antropomorfizador”, e que apenas através da associação de ambos podem chegar ao efetivo
momento de autoconsciência da humanidade. A dialética da mimese dupla” tem, em perfeito
acordo com a variedade do concreto, implicações particulares no âmbito de cada forma de arte
singular abordada por Lukács, implicações que não cabe discutir aqui, a não ser para esclarecer
certos aspectos do item Jardim.
O método de Lukács, cuidadosamente exposto por Nicolas Tertulian em seu ensaio
sobre “A grande estética marxista”, dedicado à Estética de Lukács, aparece nítido na exposição
do jardim em sentido estético (Gartenkunst). O argumento que mantém em vista a “gênese” e
a “estrutura” da forma ao analisá-la, busca extrair de seu estudo determinações as mais
universais possíveis, sem jamais violentar a flexibilidade dialética do real. Decidimos fazer coro
com a preocupação do autor em explicitar o ”caráter de realidade” (Wirklichkeitscharakter) da
arquitetura e do jardim, traço que confere condições genéticas e possibilidades de realização
radicalmente diferentes das artes chamadas “puramente miméticas”, como a poesia e a pintura.
O espaço arquitetônico é elemento muito caro ao entendimento da seção dedicada ao
jardim, tendo em conta que é considerado enquanto limite do jardim. A relação entre as duas
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práticas, do arquiteto e do jardineiro, é ao mesmo tempo que de parentesco, de inexpugnável
separação. A diferença de matéria prima entre as duas é definitiva para os contornos de suas
estruturas; para o espaço arquitetônico, a matéria inorgânica radicalmente reformulada, para o
jardim, o orgânico, plantas singulares cuja “autonomia relativa” o autor faz questão de
sublinhar, especialmente para pôr em perspectiva os efeitos possíveis do jardim estético, que
preso atado a uma certa singularidade, estão apartados separados das evocações da arquitetura,
bem mais propensa à expressão da generalidade.
Ao debater a fronteira entre construído e” plantado”, Lukács aponta a “antinomia
essencial” do jardim em sentido estético, princípio que interpretamos como o de uma certa
tensão, ou contradição, decorrente de seu parentesco com a arquitetura e, acima de tudo, do que
o separa dela, sua orientação ao mundo ornico. O primeiro polo da antinomia a ser
apresentado é o do jardim conforme ideal arquitetônico, que busca, portanto, dar ao natural”
um caráter o mais dirigido possível pelas atividades e interesses humanos. O segundo polo, por
outro lado, quer eliminar do jardim qualquer traço de “artificialidade” ou interferência humana,
aproximando-o de um mero produto da natureza, postura que ressalta o caráter de singularidade
referido anteriormente. Lukács tem o cuidado de nunca opor rigidamente os dois polos, e
inclusive ressalta o efeito particular de sua coexistência em certas formações.
Como nas demais seções que compõem esse capítulo (música, artesanato, cinema), é
nítida a preocupação do autor em estabelecer os impactos que as passagens à sociedade do
Capital provocam nas bases do estético, especialmente no que diz respeito à arquitetura e o
jardim, cujo caráter de realidade impede que não sejam afirmativos da particular “forma de vida
coletiva” que abrigam. No caso do jardim, a tendência de concebê-lo na chave de um expurgo
do artificial - o supracitado segundo polo - está alinhada com a figuração de mundo da nascente
burguesia; sua oposição à artificialidade das instituições feudais-absolutistas, o acento da
singularidade dos sujeitos humanos em relação aos estamentos a que pertencem, o fato de que
as relações sociais promovidas por esse grupo acabarão por não aparecer enquanto
manifestamente sociais, mas como “naturais”. O autor se reporta a algumas expressões
ideológicas dessas tendências, como o que propõe “Juliede Rousseau ao afirmar que no jardim
tudo foi disposto pela natureza, a qual, em contraponto, vale apelar à narrativa do “Cândido”
de Voltaire que em irônica polêmica contra a filosofia da harmonia universal de Leibniz, opera
a violenta expulsão das personagens de seus lugares sociais através de sucessivas tragédias,
para quando finalmente as leva ao repouso, representá-las mais ou menos despidas de suas
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determinações estamentais e dependentes da substância de seu próprio trabalho. Não é à toa
que as palavras que encerram o “Cândido” sejam: “Devemos cultivar nosso jardim”.
Com as tendências de “privatização” características da sociabilidade do Capital, no
preciso sentido que Lukács a elas, e com o problemático cristalizar desses “novos modos
espirituais e emocionais do homem”, o rumo impelido ao jardim - esboçado brevemente nas
páginas a seguir - é de trágico afastamento do potencial estético, queda na mera singularidade
privada. Ao ser “retirado” historicamente de suas possibilidades estéticas, o jardim se afasta da
missão social da arte, cuja função primordial é a “desfetichização das individualidades”.
Esse efeito consiste em ser modelo de um comportamento digno do ser
homem, um comportamento que capte e forma à objetividade do mundo,
de tal modo em que nela se manifeste uma relação sujeito objeto. Nessa
medida, a arte tem um papel de autoconsciência das individualidades. Ela se
volta diretamente aos sujeitos, aos indivíduos e quer, exatamente, a
emancipação desses indivíduos. Essa é a função e a missão específica da
própria obra de arte. A missão essencial da arte é a desfetichização das
individualidades. (VIELMI, 2019, pg. 28)
Jardim
1
O jardim é o segundo grupo de fenômenos estéticos (ou pseudoestéticos) importante,
nos quais aparecem as formas análogas da mimese. à primeira vista, a posição deste grupo
no sistema dos fenômenos da vida, das atividades humanas e de suas objetivações sugere
importantes parentescos com a arquitetura. O jardim, como qualquer construção, é antes de
mais nada uma realidade cuja existência, epistemologicamente vista, não é absolutamente
afetada pelo fato de que seja ou não criado esteticamente. O jardim nasceu do mesmo modo
que a arquitetura, das necessidades vitais puramente práticas, e inclusive no curso da posterior
evolução a maioria esmagadora dos jardins continuam sem alterar sua natureza deste ponto de
vista (hortas, etc.). Como é natural, os sentimentos de prazer desencadeados pela prática da
jardinagem, pelo uso de produtos, pela consequente vitória sobre a natureza, etc., desempenham
um papel nada inessencial na gênese do jardim no sentido da estética. Mas além disso, parece
certo que os primeiros princípios de regulação da natureza orgânica, a ordenação das plantas
em linhas regulares, as formas geometricamente compostas das distintas plantações, às vezes
1
Tradução das págs. 157 a 173, do livro 4. da Estetica 1: la peculiaridad de lo estético, publicado pela
Ediciones Grijalbo em 1982.
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inclusive de todo o jardim, se baseiam em motivos de melhor usabilidade, e só muito
paulatinamente foram se convertendo em princípios construtivos de uma conformação estética.
A dialética da mimese dupla tem pois que ser dominante também no jardim: um reflexo
essencialmente desantropomorfizador das leis objetivas do crescimento e maturação das
plantas, a serviço de uma finalidade nascida de fundamentos sociais, se reproduz, portanto,
mediante categorias estéticas e se transforma de modo correspondente. Até que ponto esse
reflexo desantropomorfizador se alça ao nível da cientificidade, ou permanece ao nível da
prática manual cotidiana, é um fator que desempenha nesse complexo um papel mais modesto
que na arquitetura no que diz respeito aos problemas estéticos; não nos interessamos neste ponto
pelos jardins criados e conduzidos por considerações puramente científicas.
A única coisa importante é o fato de que o ponto de vista estético é aplicável a uma
parte relativamente reduzida dos jardins. Importa, pois, mostrar como, sobre a base das
necessidades sociais que produziram o jardim útil, se produzem as emoções que se condensam
paulatinamente em missão social conferida ao jardim no sentido estético. Para entender as
emoções adequadamente é necessário lembrar ainda uma propriedade comum ao jardim e à
arquitetura: desdobra-se a partir do caráter de realidade dominante em ambas, nas quais as duas
devem ser igualmente incapazes de expressar negatividade. Na medida em que um jardim
desencadeia emoções estas têm que ser positivas, ter um conteúdo afirmativo. A básica
afirmação de Aristóteles a respeito da arte puramente mimética não pode valer para uma
realidade: na arte pode operar prazerosamente algo que na vida seria repulsivo. A afirmação ou
negação do conteúdo emocional desencadeado é a afirmação ou negação direta e integral (direkt
und restlos) da coisa em si, da realidade em questão tal como ela é. Apesar dessas analogias
profundamente enraizadas na essência de ambas as atividades, o caráter das respectivas
realidades, o fato de que uma é orgânica e a outra inorgânica, produz também diferenças
essenciais. Por decisiva que seja a intervenção do conhecimento e da finalidade dos humanos
no mundo orgânico - como quando se transplantam espécies ou se produzem novas espécies -,
a influência humana no mundo orgânico é tipicamente mais uma prudente previsão que permite
o desenvolvimento dos processos, que uma transformação radical. Por muito que se depurem
as formas naturais, o fato é que as diversas plantas continuam sendo individualidades orgânicas
vivas que se desenvolvem segundo leis próprias. A máxima possibilidade nesse terreno se
expressa plasticamente pelo ideal baconiano de que mediante uma seleção e uma disposição
bem pensada das plantas se produziria uma primavera eterna. Por outro lado, o domínio do
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homem sobre as forças naturais, que é decisivo para a arquitetura, não pode chegar a conformar-
se, a não ser transformando radicalmente todo elemento material oferecido pela natureza,
mediante sua reelaboração, e, dando-lhes formas que não possuem paralelo na natureza mesma.
Pois apenas assim as forças da natureza, em si invisíveis, podem chegar a ser, em sua luta
estática equilibrada, desencadeadoras visuais de emoções. Com essa diferença material, por
assim dizer, está relacionado o fato de que o jardim não alcança nunca o patetismo
socialmente
generalizado que é característico da arquitetura em sentido estético.
Essa preservação das formas naturais originárias no jardim conduz a sua antinomia
fundamental, da qual surgem - diferente do que ocorre na arquitetura - dois tipos brutalmente
contraditórios de missão social, razão pela qual a história do jardim apresenta tendências muito
divergentes e até claramente contraditórias. O estudo detalhado delas, o descobrimento de suas
causas histórico-sociais concretas em cada caso, corresponde à parte histórico-materialista
da estética. Entretanto, a propósito de problemas muito diferentes apresentados, nos
deparamos com o fato sumamente significativo de que uma tal diferenciação histórica seria
impossível objetivamente se não se fundasse nas bases estéticas do jardim, em seus efeitos
necessários e possíveis sobre os homens. Assim subjaz ao problema histórico-materialista um
fato fundamental do reflexo estético da realidade, um problema que apenas pode se resolver
dialético-materialistamente. A seguir vamos fazer uma análise desse aspecto da citada
antinomia, sem entrar na problemática histórica – até mesmo alusivamente – a não ser quando
for inevitável ao interesse do esclarecimento geral da teoria.
A própria antinomia mostra quão diversas são apesar de suas importantes
coincidências - as estruturas estéticas do jardim e da arquitetura. Em sua essência as obras de
arquitetura expressam sempre e sem exceção a manifestação do caráter de entidade produzida
pela mão humana. Simmel fez uma forte observação de que o edificado apenas consegue se
aproximar do aspecto de um produto natural quando se encontra em decadência, quando perde
sua unidade básica, quando é uma ruína. Por outro lado, o necessárias complicadíssimas
operações, como por exemplo, as operações próprias do jardim barroco francês, para arrebatar
do conjunto do jardim, e especialmente de sua parte vegetal, o caráter de algo naturalmente
crescido. Mas como, apesar dessa presença indestrutível da naturalidade, o jardim é de todo
modo um produto da atividade histórico-social, já altamente evoluída, do homem, o núcleo da
antinomia que aqui estudamos se encontra na natureza estética do próprio jardim a saber: que
essa atividade pode se considerar como uma parte da arquitetura – caso toda sua disposição se
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direcione a criar para os produtos desta atividade um entorno digno da mesma, que conduza à
arquitetura e complete seus princípios internos -, ou de tal modo que o momento natural seja o
dominante. Nesse caso, o primeiro será uma paisagem artificialmente criada, enquanto que a
construção terá de se inserir nessa conexão natural geral. Wordsworth
2
e Coleridge
3
pensam
“que a casa e seu jardim têm que pertencer à paisagem, e que a paisagem não deve ser um
apêndice da casa”
4
.
Esse não é o momento adequado para abordar os diversos problemas resultantes dessa
antinomia. Indiquemos apenas que o lugar do individual na particularidade estética do jardim
não é da mesma natureza que na arquitetura, o qual - dado o comum caráter afirmativo, de
ambas atividades, excludente de toda negação - radicaliza o problema da singularidade. A
estrutura inorgânica da arquitetura facilita o domínio absoluto da generalidade, de tal modo que
nela a singularidade não existe esteticamente mais que por sua função na conexão total e não
pode apresentar pretensão alguma de existência autônoma, contraditória e superada. No que
tange aos objetos da natureza orgânica, cuja existência como individualidade nunca pode
desaparecer tão radicalmente como a dos artefatos dispostos propriamente em atenção à
composição de um conjunto, a antinomia produzida se encontra cada vez mais resolutamente
no primeiro plano. De acordo com isso, Ammanati
5
formula o princípio do jardim arquitetônico
do seguinte modo: “As construções devem ser superiores e norteadoras para o que for
plantado”.
6
Já Wolfflin
7
contempla como se estabelece a resultante situação para as plantações
dos jardins barrocos: A árvore sozinha não tem nenhuma importância. O indivíduo fica
absorvido na colaboração com os outros. Assim, esses imponentes grupos de carvalhos sempre
verdes que, muito comprimidos e rodeados por faias cortadas muito altas, condicionam
essencialmente o caráter da vila italiana”.
8
Se considerarmos, por outro lado, as descrições de
jardins a partir do século XVIII, observamos que o autêntico entusiasmo se deve precisamente
à impressão de não se encontrar diante de uma obra humana, e sim com o livre desdobramento
da mesma natureza, tanto no todo quanto na multiplicidade dos detalhes. A Julie de Rousseau
reconhece sem dúvida que a natureza fez todo o jardim sob sua direção, e que não há nele nada
2
William Wordsworth (1770 – 1850), um dos impulsionadores da génese do movimento romântico inglês.
3
Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) foi um dos grandes nomes da primeira fase do chamado romantismo inglês
ao lado de William Wordsworth.
4
Maria Louise Gothen. História do Jardim. Jena 1926, II, pg. 407.
5
Bartolomeo Ammannati (1511 –1592) foi um arquiteto e escultor italiano.
6
Maria Louise Gothen. História do Jardim. Jena 1926, II, pg. 264.
7
Heirich Wölfflin (1864 - Zurique - 1945) foi um escritor, filósofo, crítico e historiador da arte suíço.
8
Wölfflin, Renaissance und Barock, 1926, pg. 168.
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que ela mesma não tenha disposto. Não fará falta argumentar que, dada a intenção de dissimular
o caminho humano no jardim realizado, cada arbusto tem que mostrar independência, dando a
justificativa de sua existência como objeto de sua própria natureza.
9
Mais tarde daremos atenção
aos problemas suscitados pelas composições desse tipo, e aos de sua particularidade.
Já este brevíssimo esboço da antinomia central do jardim mostra que nela as tendências
contrapostas têm que chocar mais violentamente que em qualquer outra produção artística. Sem
dúvida aqui também ocorrem desenvolvimentos repletos de transições que se movimentam
essencialmente na mesma linha, com intensificações qualitativas. Porém quando a mudança
histórica-social desloca o trabalho social de um polo a outro o produzidas criações que se
enfrentam muito mais excludentemente, que se negam muito mais radicalmente que em todo o
campo restante da arte. Não estamos pensando ao falar isso na polêmica subjetiva que costuma
acompanhar as mudanças dos rumos da arte. A apaixonada vontade que tem de se impor “às
exigências do dia” costuma ir acompanhada de uma negação não menos apaixonada do passado.
No entanto, nas demais artes, essas contraposições contempladas desde uma distância temporal,
não aparecem nem tão decisivas nem tão negadoras do passado como apareceram para seus
contemporâneos; nem sequer quando por trás da transição artística figura o relevo de diversas
classes hostis e em luta. Deste modo, destaca-se nitidamente de seus precursores, das correntes
artísticas do absolutismo cortesão, a arte especificamente burguesa dos séculos XVII e XVIII.
A pintura holandesa de paisagens, interiores e naturezas mortas cria inclusive gêneros novos,
igualmente ao romance burguês dessa época. Entretanto, o jardim inglês, como é chamado, que,
tomado geneticamente, deve sua origem e florescimento às mesmas necessidades histórica-
sociais, nega seus precursores com uma recusa qualitativamente muito distinta. Aqui ocorre
realmente uma ruptura radical, que se apresenta necessariamente como tal, mesmo quando se
contempla a ruptura na ampla perspectiva da evolução transcorrida desde então, depois que a
oposição foi resolvida sem deixar dúvidas. Neste momento, se manifesta, pois, de uma forma
histórica o que teoricamente chamamos de antinomia essencial do jardim
Indicamos anteriormente os princípios essenciais das duas concepções contrapostas.
Resumimos agora de forma breve o essencial de ambos polos. Como é natural, temos
relativamente poucos documentos sobre os jardins de civilizações antigas; entretanto, os poucos
9
No romance Julie ou La Nouvelle Héloïse de Jacques Rousseau, na metáfora do jardim, a virtude do jardineiro
do jardim está precisamente em ter reproduzido as condições naturais na maior fidedignidade possível, disfarçando
os traços de sua obra.
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documentos que existem indicam que os jardins egípcios e da Ásia Anterior pertenciam ao
grupo que contemplava o jardim como uma parte ou momento subordinado à arquitetura. Como
esta concepção se manifestou claramente no Renascimento e, sobretudo, no Barroco, podemos
nos limitar a apresentar a concentrada e rica caracterização de Wolfflin referente a esses
períodos. Seu ponto de partida é a seguinte afirmação: “O jardim está inteiramente sob o
domínio de um espírito arquitetônico”. Assim foi estabelecido no Renascimento. “Os jardins
do auge do Renascimento havia estilizado todos os objetos da natureza, as formações
topográficas, a disposição das árvores, a água; também havia separado as diversas partes do
jardim e concebido tectonicamente cada especialidade”. O passo dado pelo período barroco
consiste antes de mais nada na “unidade da composição” que se realiza de um modo
qualitativamente mais estrito. “O barroco não se adapta ao terreno, pelo contrário, o submete.
Tenta arrancar dele a qualquer preço uma disposição unitária: um motivo principal que o penetre
por completo, com perspectivas e vias dominantes, tudo que é individual é disposto segundo
sua situação em relação ao todo e calculado segundo seu efeito no todo, também é adotado o
eixo da construção senhorial para o jardim, posição nada casual nem marginal de pavilhões e
marquises, apenas sobre a linha central, ou à direita e à esquerda, e sempre em correspondência
simétrica”
10
. Certamente não é casual que os principais êxitos desse estilo tenham sido
alcançados em vilas situadas em colinas. Pois nesses casos se propõe o trabalho de reduzir uma
paisagem inteira, fechada em si, que envolve a construção em uma unidade visual. Uma parte
da natureza, completa em si e com o edifício, se submete totalmente à vontade do homem; o
inteiro bloco natural aparece então como uma obra humana conscientemente planejada e
realizada; os terraços dão forma e articulação novas à colina, nascidas das necessidades
humanas; o mundo vegetal presente e ordenado se insere sem sobras no enquadramento criado
pela arquitetura; a água deixa de ser uma força natural e se converte em um motivo dessa nova
formação utilizada pelo homem decorativamente e até de modo lúdico; e, além disso, a
totalidade orgânica de todos esses momentos resulta em algo no qual sem dúvida constam
elementos naturais, mas que representa algo qualitativamente novo em relação à natureza, algo
para o qual é quase impossível de encontrar uma analogia como é para a própria arquitetura.
Wolfflin indica, com razão, que esta total submissão do fragmento da natureza, tomado
da paisagem, às leis da sociedade humana, submissão mediada pela arquitetura, não é exclusiva
nem absoluta, nem mesmo sua intenção última(?!). Pois a totalidade que constituem, neste caso,
10
WOLFFIN, Renaissance und Barok, cit. pg. 164.
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a vila e o jardim juntos com a elaboração de seu fundamento natural, a colina, nada mais é que
uma totalidade intensiva no seio da totalidade extensiva representada pela natureza circundante.
Por um lado, o próprio jardim tem um dado entorno, seja este um parque não organizado
arquitetonicamente ou a própria natureza não submetida ao homem; por outro lado, a vila e o
jardim estão dispostos para possibilitar os pontos de vista mais favoráveis da paisagem
circundante. Sendo assim, aquilo que é evocado pelo jardim, conformado segundo princípios
puramente arquitetônicos, supera essa essência arquitetônica, e se transforma em pictórico. “O
barroco - diz Wolfflin - estilizou a natureza para lhe dar a atitude solene e uma certa dignidade
que exigia a época. Entretanto, o parque o adiciona ao que é arquitetônico: o infinito se
introduziu na composição, e assim foi possível que, exatamente com esse estilo de jardim, tenha
se desenvolvido a moderna pintura paisagista, a arte de um Poussin e um Dughet.”
11
Isso não
suprime, evidentemente, o domínio do arquitetônico. Pois nas mesmas conformações da
arquitetura é possível encontrar muitas vezes casos de sobrepujamento da criação construtiva
espacial em sentido estrito. Cabe pensar nos efeitos que produzem, cada uma em seu estilo, a
cúpula de Santa Maria del Fiore de Florença ou a de São Pedro de Roma por sua maneira de
“flutuar” por cima do oceano de casas das cidades quando são contempladas a grandes
distâncias. Tais observações não são capazes de eliminar o fato fundamental desse tipo de
jardim. Mostram simplesmente que a especificidade de uma missão social como a descrita
penetra totalmente o jardim, transformando suas categorias ônticas em categorias estético-
miméticas, sua generalidade e sua singularidade em particularidade estética, e, ao mesmo
tempo, eleva as emoções suscitadas pelo todo a uma altura onde podem se ampliar e serem
interiorizadas até o ponto de constituírem um “mundo”, um mundo do homem.
No entanto, ainda reconhecendo plenamente a natureza estética, a homogeneidade, a
totalidade e a unidade artística das façanhas culminantes nos jardins seria um erro teórico
ignorar que nem nelas pode desaparecer totalmente o paradoxo básico dessa arte, sua antinomia
subjacente. Esta se manifesta, por uma parte, no fato de que a mesma subordinação total do
mundo vegetal aos postulados arquitetônicos acaba muitas vezes por expressar seus próprios
aspectos problemáticos. Sem dúvida, a abertura de margem para soluções favoráveis é maior
do que um dogmatismo extremo pode postular. Especialmente no que tange aos jardins internos,
relativamente pequenos, como, por exemplo, pátios adornados com plantas, no qual é
11
ibid., pg. 166.
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perfeitamente possível a unificação dos princípios antinômicos em soluções afortunadas; uma
velha árvore solitária colocada no meio dos caminhos de um claustro, por exemplo, pode
perfeitamente erguer-se como parte do conjunto da arquitetura sem perder por isso sua essência
orgânica vegetal; o pátio das murtas em Alhambra, Granada, é um belo exemplo de soluções
deste tipo. A evolução do jardim barroco, principalmente na França, apresenta problemas muito
mais difíceis de resolver. Marie Luise Gothein resume a concepção dos teóricos e práticos desta
etapa do jardim dizendo que, ao contrário da “arquitetura mural italiana”, agora trata-se de
conseguir uma arquitetura vegetal”. A partir do ponto de vista estético essa mudança aponta
para dois momentos principais. Em primeiro lugar, a formação do jardim barroco italiano em
terraços é abandonada, e é preferido um terreno plano, ou no máximo com leve declive. É claro
que com isso se perde o patetismo generoso da submissão da natureza às necessidades dos
homens. Em segundo lugar, a construção de uma “arquitetura vegetal” já carrega consigo
tendências de pequenez e arbitrariedade. Pois ainda que a violação do princípio vegetal seja
muito mais crassa e que manifeste a mera inclusão de sua presença sob o poder do “muro”, falta
nela, precisamente por isso, a tensão que tanto havia contribuído para a monumentalidade dos
jardins barrocos italianos; e, precisamente, por esse motivo o domínio absoluto pode facilmente
passar a ser mera artificialidade, a ser mero jogo, e às vezes sem qualquer tipo de transição.
Por outro lado - e nisso se manifestam as profundas peculiaridades da missão social -
essa situação mostra que a fundamentação no comum e no geral sociais não pode ser tão sólida,
óbvia e espontânea como na arquitetura, nem sequer nos jardins construídos com a mais pura
inspiração arquitetônica. A partir dessa noção, se concentra nossa afirmação anterior, de que a
margem para um pathos socialmente generalizador é muito mais estreita no jardim que na
arquitetura. O perigo de escorregar e cair no puramente privado é muito mais iminente no
jardim. Estudar detalhadamente tais diferenças seria impossível no enquadramento dessas
páginas. Vamos nos contentar em indicar que a representatividade, mediada nas construções
não puramente públicas pela elevação estética acima do nível privado, é quase sempre lábil,
isto é, pode facilmente reduzir o nível real, representativo de uma efetiva generalidade social -
ainda que a generalidade em questão seja convencional, limitada por estamento, etc., do ponto
de vista da humanidade posterior - para diluir-se na satisfação puramente privada e sem
significação. Esta afirmação tão geral vale sem dúvida tanto para a arquitetura quanto para o
jardim. Mas nesta última, tal tendência ao que é meramente privado, ao puramente pessoal, se
condensa em missão social que determina as formas muito mais facilmente que no caso da
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arquitetura. A ampla monografia de M. L. Gothein apresenta muitos exemplos de como esses
momentos definem já na Itália determinadas partes dos jardins nessa direção; assim nos fala de
um caminho alto escondido por um certo jardim, os que nele se perdem, se veem de repente
respingados com a água que cai do alto; ou de labirintos dos quais é impossível sair sem ajuda,
etc. Esta tendência se intensifica no jardim francês; seus caminhos retorcidos entre árvores e
arbustos retilineamente recortados suscitam frequentemente a impressão de que a missão social
tenha apontado menos para o arquitetônico-estético do que para a formação de um bom ponto
de encontro para numerosos casais. Essas tendências são facilmente registráveis em toda parte,
como sinal de que a descrita antinomia do jardim segue de inclusive em seus tipos de
orientação predominantemente arquitetônica.
Como sempre ocorre na esfera estética, aqui também se manifesta uma convergência
notável, chamativa, mas de modo algum casual, entre as possibilidades oferecidas pela matéria
à arte e ao caráter da missão social. Nesta arte vemos uma labilidade, uma intensa tendência de
cair no meramente privado, a qual corresponde na matéria à dificuldade de inserir a existência
orgânica do mundo vegetal, como totalidade relativa e singular, no enquadramento de uma
homogeneidade estética. Parece claro que se trata do modo de uma manifestação polarizada de
um fenômeno unitário, de uma mimese do metabolismo da sociedade com a natureza a um nível
no qual são problemáticas as possibilidades de penetrar essas formações miméticas com os
princípios da antropomorfização estético evocadora. Essa desvantagem estética se aloja tanto
nas possibilidades de elaboração humana quanto nas do material elaborado, como fica claro
quando se pensa que o metabolismo da sociedade com a natureza é o campo dessa subjetividade
ativa e desse peculiar mundo objetivo, cuja íntima interação está fundada no período pré-
estético.
indicamos os princípios mais importantes do outro polo de nossa antinomia, de modo
que nossa exposição agora poderia enveredar para uma determinação mais precisa. Em sua
concepção extrema, este ponto de vista (polo da antinomia) incluiria a exigência de que a
atividade humana, o submetimento da natureza às suas necessidades, fosse eliminada
completamente do que é proposto como jardim, parque, etc. Ou seja, certamente, impossível
por princípio, pois contradiz as condições de existência do jardim, e justamente em decorrência
de tal impossibilidade, junto com a citada exigência, se produz aqui o outro polo de nossa
antinomia. No caso antes descrito, o outro polo nascia do fato de que as necessidades humanas
reunidas e objetivadas no conceito de arquitetura eram demasiado estreitas ou demasiado
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amplas para o material natural em formação do mundo vegetal, ou seja: do fato de que, no caso
extremo, aquelas necessidades não podem “coletar” esse material, a não ser por meios
arbitrários, violadores, ou não possam, em absoluto, captá-lo. No jardim própria do outro polo
ocorre que a nova missão social, inteiramente contraposta à anterior, não é capaz de desenvolver
a partir de si mesma critérios unívocos - nem sequer claros - para a dação de forma. Apelamos
anteriormente a Julie de Rousseau, formuladora deste caso, que apresenta um duplo critério
estético: por uma parte, diz que o jardim é o puro desdobramento autônomo da natureza; por
outra parte e concomitantemente, diz que no jardim tudo está ordenado e conduzido por ela. É
dessa condição que nenhum dos critérios assim determinados seja capaz de uma
concretização autêntica. Mas isso não se deve a qualquer confusão intelectual da argumentação
rousseauniana. A descrição que é dada, por exemplo, por Home
12
, mostra, deste ponto de vista,
uma estrutura muito análoga: “Como a jardim não é uma arte inventiva, senão uma imitação da
natureza, ou melhor, a própria natureza embelezada, procede necessariamente que tudo que for
inatural tem de ser rechaçado com desprezo”.
13
Mais adiante falaremos sobre o momento
negativo da consideração de Home. No dado momento apenas importa registrar que o autor
formula de uma vez como tarefa unitária a imitação da natureza, a natureza própria e o seu
embelezamento, sem sequer pensar na possibilidade de que essas três considerações sejam
contraditórias entre si. Essa ingenuidade teórica precisamente no ponto decisivo, que descreve
conceitualmente a essência do jardim, o que precisa distinguir entre sua forma esteticamente
correta e as deformações do gosto, indica que na origem deste tipo de jardim e em sua
fundamentação teórica atuaram forças sociais tão avassaladoras que eliminaram simplesmente
toda prudência em refletir e toda preocupação com a clareza do argumento.
Tratamos anteriormente desta revolução dos modos emocionais e intelectuais da
humanidade no que tange à música e à arquitetura. Aqui nos interessa explicitar nisso os traços
específicos que caracterizam especialmente a natureza estética deste polo do jardim. Os dois
motivos decisivos daquele momento de transformação estão intimamente enlaçados um no
outro: o primeiro é a significação patética
14
da natureza - da vida de acordo com a natureza e
de sua violenta e polêmica contraposição com a artificialidade - que domina todos os aspectos
da concepção de mundo da nova classe burguesa; o segundo é a ênfase, não menos patética, da
justificativa própria do homem - independentemente de seu pertencimento a um determinado
12
Henry Home, mais conhecido como Lord Kames (1696 — 1782)
13
Home, Grundsätze der Kritik [Principios de la crítica], ed. alemana de 1772, Leipzig, II, pags. 487 s.
14
Relativa a pathos.
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estamento -, a proclamação do valor próprio da personalidade, inclusive em sua singularidade
natural, a conquista apaixonada de todo obstáculo oposto a seu ilimitado desenvolvimento. O
elo ideológico entre ambas séries de temas - formulado, certamente, de maneiras diferentes e
até contrapostos nas diversas etapas, pelas diversas correntes, etc. - é a convicção de que a
simples eliminação das instituições, regras, etc., artificiais que imperam nas sociedades feudais-
absolutistas sobre a vida inteira bastaria para que a natureza (e o homem com ela e nela)
impusesse seus direitos em todos as áreas. Por escassa, e até contraditória, que pareça ser a
conexão dessas tendências quando são pensadas teoricamente, são muito coerentes do ponto de
vista do ser social. Pois em última instância carregam consigo a exigência de um
desenvolvimento sem travas das forças produtivas desencadeadas pela ampliação e
robustecimento de “ilhas” capitalistas presentes na sociedade feudal. O pressuposto
imprescindível desse desenvolvimento é a eliminação dos obstáculos postos em seu caminho
pela situação estatal e social. Mas quanto mais claramente se desenha essa unidade entitativa,
mais se revela a ambiguidade das correspondentes determinações intelectuais que são chamadas
a impô-la ideologicamente. A situação é ao máximo atrativa em relação ao conteúdo e ao âmbito
do conceito de natureza; o patetismo unitário de seu conteúdo emocional esconde uma
extraordinária heterogeneidade e até contraposição de seu conteúdo intelectual. Esta situação
paradoxal se explica pelo fato de que o mundo “artificial” do absolutismo feudal difundia,
naturalmente, pela totalidade da vida, suas próprias determinações e definições, não menos
heterogêneas intelectualmente, mas também elas nascidas com necessidade do campo dos
interesses e lutas de classe. Para a ideologia da classe ascendente estava ao seu alcance
concentrar sua oposição universal a todo o sistema, formulando-a como uma contraposição
entre “natural” e “artificial”.
A situação é facilmente perceptível no pensamento de teóricos dos jardins que partem
desse novo mundo emocional e que, em sua generalização, não se limitaram ao âmbito técnico
do jardim. Home, por exemplo, escreve o seguinte a propósito da utilização de ruínas artificiais
nos jardins: “As ruínas devem ser criadas, segundo o estilo gótico ou o estilo grego? Afirmo
que em estilo gótico. Porque com tais ruínas se contempla o triunfo do tempo sobre a força, que
é um pensamento melancólico, mas não desagradável. Por outro lado, as ruínas gregas nos
fazem pensar mais no triunfo da barbárie sobre o juízo, pensamento mais tenebroso e
deprimente”.
15
Se tomarmos essas palavras ao pé da letra, a atitude de Home como ideólogo da
15
Ibid., pg. 493.
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burguesia é manifesta e inequívoca. Se observamos, em contrapartida, uma orientação concreta
sobre a estética prática da jardinagem - e essa é a pretensão de seu texto -, nos encontramos
com sua ambiguidade. Pois a partir deste ponto de vista, deveria mostrar o critério segundo o
qual é possível julgar que obra humana (ruína, águas, templo, obelisco, etc.) pertence
organicamente a um jardim que represente o que é natural, mas que também é onde começa a
arbitrariedade e a artificialidade, tão criticadas nos estilos de jardins do barroco francês e
rococó. Home trata detalhadamente dessas questões, mas seus argumentos mostram claramente
a incapacidade de penetrar teoricamente a questão até atingir um critério verdadeiro. Ao mesmo
tempo que a polêmica é essencialmente social, guiada contra o tipo de jardim cortesão, a
“inaturalidade” deste é explícita. Porém após Home decidir como deve ser, por exemplo, um
circuito de águas adequado em um jardim “natural”, se suprime a questão óbvia de que algo
assim sucede, pois corresponde a “natureza”; por isso aparecem juízos de gosto completamente
subjetivos e arbitrários, como por exemplo, a tolerância por um animal parado e deitado que
lança água, ao invés de um animal de movimento selvagem, etc. A coisa não é casual, que
esta íntima insegurança estética aparece em toda a teoria e a prática dos chamados jardins
ingleses de um modo manifesto ou dissimulado. Essa incerteza se deve ao fato de que o conceito
fundamental de natureza é tão geral e tão multívoco que se podem inferir dele, no interior de
um jogo determinado por classe, qualquer consequência estética. Enquanto que o outro polo da
antinomia aqui estudada, o do jardim arquitetônico, consegue chegar apesar de tudo, em casos
felizes, a critérios esteticamente unívocos.
Tudo isso está intimamente relacionado com o segundo momento, a saber: com o fato
de que a singularidade privada do homem é posta em primeiro plano. Basta para explicar esse
fato, a circunstância de que o pensamento da época viu nessa singularidade, em seu peculiar
modo de ser, como revelação a mais da natureza, da sua capacidade de se impor diante de toda
convenção artificial. Não podemos aqui nos aprofundar na justificativa social e cultural e na
problemática desse complexo emocional e intelectual. O que nos interessa é - estudando o
aspecto estético do jardim que com tudo isso a missão social que teve de cumprir essa arte
que sofreu uma modificação essencial em direção às necessidades privadas. O paradoxo
manifestado em nosso atual campo de estudo consiste precisamente no fato de que essas
exigências surgem à jardinagem do modo mais puro e sem mesclas, enquanto que, por outro
lado - e precisamente porque o jardim, como realidade, não pode expressar nada além de
afirmação - as emoções suscitadas e, principalmente, as configurações formais que devem
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evocá-las, precisam carecer da tensão, das contradições com a sociedade levadas até o ponto
trágico ou satírico, que a arte nascida desse solo, dessa problemática, costuma o
frequentemente elevar até uma grandeza excepcional. Pense nos grandes romances da época,
desde Moll Flanders
16
até o Werther
17
, e terá uma clara ideia da riqueza e profundidade
implícitas neste ciclo temático imposto pela evolução histórica-social. Para consegui-las, no
entanto, é imprescindível - como se demonstrou em outros contextos - o reflexo da enredada
dialética que produz o desenvolvimento da particularidade do homem na sociedade, a luta dessa
singularidade com as velhas e novas normas da ética, da moral, dos costumes, etc., a aparição
de sua contraditoriedade interna como um momento simultaneamente justificado e carente de
superação na vida humana. A natureza do jardim, tal como a da arquitetura, exclui a limine o
questionamento de tais problemas; por isso a singularidade não pode constituir-se enquanto
forma, senão como ser afirmado. Assim aparece em sua forma mais pura, como ser afirmado
da nova classe. Por isso resulta que, precisamente no jardim ingles, esta nova forma de
existência tenha sido objetivada, por assim dizer, de uma vez, na imediata criação de um gênero,
enquanto que para muitas outras artes fez falta percorrer um caminho difícil e frequentemente
longo, estabelecer uma luta carregada de problemática para poder dar uma forma adequada e
artisticamente valiosa aos novos sentimentos. Se lembramos aqui da exposição das
consequências dessa evolução no caso da arquitetura, teremos que comprovar também uma
diferença decisiva, a pesar de todo parentesco nos últimos fundamentos. A veemência e a
linearidade com que se realizou uma objetivação da mais imediata singularidade privada no
jardim é ao mesmo tempo a raiz mais profunda da insolúvel problemática dessa realização.
É evidente que aquelas exigências se dirigiram também à arquitetura. Bacon escreveu:
“As casas são construídas para que se viva nelas, não para serem contempladas”
18
. No entanto,
como vimos antes, essas tendências se impuseram na arquitetura paulatinamente também, e,
portanto, o se desenvolveram a não ser mediante uma profunda crise. A natureza do jardim
possibilitou uma vitória imediata e completa dos princípios da privatização como missão social.
Por isso as contradições imanentes a essa posição entram em ação imediatamente. Por um lado,
expressam desde o início com toda clareza o elemento revolucionário da luta da burguesia pelo
16
Moll Flanders (A vida amorosa de Moll Flanders em português) é um romance do escritor inglês Daniel Defoe
(1660-1731) escrito em 1722.
17
Os sofrimentos do jovem Werther (1774) é um romance de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832).
18
Francis Bacon (1561 - 1626) foi um político, filósofo, cientista, ensaísta inglês. É considerado como o fundador
da ciência moderna.
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poder; por outro lado, o fazem de tal modo que a transformação radical rompe ao mesmo tempo
o fio essencial dessa radicalidade. O fato de que a corte de Versalhes se rendesse diante da nova
tendência no Petit Trianon, ou de que os parques dos pequenos principados alemães se
“anglicizassem” rapidamente, indicam sem dúvida, vistos desde uma perspectiva histórica
ampla, uma inserção dos princípios burgueses, um sinal claro de quão intensamente se haviam
impostos, antes mesmo de sua vitória definitiva, no campo inimigo. Mas - e nisto é revelada a
íntima vinculação da confusão do conceito de natureza com a tendência privatizadora - se
impuseram como expressão do meramente privado dentro da cultura absolutista feudal, como
intensificação da arbitrariedade, da brincadeira e casualidade deste tipo de jardim. Por isso não
é casual que começasse logo, e precisamente a partir do lado burguês, uma defesa irônica contra
esses fenômenos. Tampouco pode ser que nossa tarefa seja entrar em detalhes neste sentido.
Bastará apelar a Goethe, que em “Triunfo do sentimento” se ludibriou do nascente
sentimentalismo “jardinesco” e resumiu mais tarde, em suas anotações incompletas sobre o
diletantismo, o negativo dessas tendências, do seguinte modo: “Nulidade da fantasia e do
sentimento. O real é tratado como obra fantástica”. Ao que adiciona o seguinte comentário: ”[A
aficção diletante no jardim] diminui a sublimidade da natureza e a destrói ao imitá-la”.
19
(Na
última seção deste capítulo falaremos dos aspectos positivos - e essencialmente não estéticos -
do diletantismo, que são muito importantes para captar o sentido do conjunto das considerações
de Goethe.)
Se no período da Revolução Francesa, quando a justificativa da luta era ainda uma
parte do programa revolucionário da classe burguesa, essas forças do privado, dissolutórias do
estético, foram tão intensas, como visto antes, que entende-se que depois da vitória dos modos
burgueses de vida sobre os do absolutismo feudal, a força do privado, destruidora de modelos,
se impôs de forma ainda mais enérgica. Também aqui nos limitaremos a esclarecer o essencial
para nós dessa situação com apenas um exemplo. É uma tendência geral do século XIX a
substituição do comportamento sentimental com relação à natureza - comportamento no qual
havia ainda componentes revolucionários - pelo domínio do estado de ânimo, do
comportamento passivo. Certamente não fará falta argumentar que com isso a missão social do
jardim se dissolve ainda mais em uma indeterminação sem contornos, sobretudo se levamos em
conta a eficácia do princípio do “estado de ânimo” na destruição de formas firmemente muito
19
GOETHE, Uber den Dilettantímus [Sobre el diletantismo], Werke [Obras], edición de Weimar, I. Abteilung [1.'
sección], XLVII, págs. 300 y 310
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mais consolidadas. O ensaio de Hofmannsthal
20
sobre os jardins oferece uma excelente imagem
condensada desta situação. É notável que ele também elimine por completo, com toda
consciência, as determinações objetivas do jardim, para fazer caber no discurso uma tônica
puramente subjetiva. Por isso diz com muita consequência: “Um velho jardim sempre tem alma.
Basta deixar silvestre um jardim sem alma para infundir nele uma”.
21
Este caso extremo, no
qual a autodissolução das categorias estéticas construtivas se converte em fundamento do
estado de ânimo desejado, é apenas a culminação da concepção global de Hofmannsthal. O
poeta o no jardim uma realidade, uma ação do homem na qual a subjetividade deste solicite
uma objetividade de validez geral - como pensavam os teóricos e jardineiros dos jardins
paisagísticos do século XVIII -, e sim uma pura expressão subjetiva da individualidade privada,
a qual, segundo sua concepção, faz que solicite assim uma situação histórica. Por isso diz:
Aquele que constrói um jardim hoje…tem que expressar uma época tão curiosa, tão misteriosa,
de tanta vibração interna como jamais houve, uma época infinitamente carregada de referências,
uma geração cuja sensibilidade é infinitamente incerta, e ao mesmo tempo fonte de dores
desmedidas e felicidades incalculáveis. De algum modo precisará escrever, ao plantar esse
jardim, sua biografia muda, como a escreve com a disposição dos móveis em suas casas”.
22
Sem dúvida não é casual que com as palavras de Hofmannsthal este complexo de problemas
ressoe ao final como os do artesanato artístico: tais ordenações ou disposições de objetos
fabricados ou naturais parece evocar algo análogo ao estético, não é um “mundo” que se
defronta substantivamente ao sujeito receptor, um “mundo” fechado em si, como o da obra de
arte, e sim a atividade, eficaz no mundo objetivo, de um sujeito privado, cujas pegadas
fossilizadas não podem objetivar-se a não ser como pegadas dessa singularidade privada.
20
Hugo Laurenz August Hofmann, Edler von Hofmannsthal (1874 - 1929), foi um escritor e dramaturgo austríaco.
Hofmannsthal alcançou prestígio internacional graças a sua colaboração com o compositor e maestro alemão
Richard Strauss.
21
Hofmannsthal, O contato das Esferas, Berlim, 1931, pg 29.
22
ibid. pg. 31.