DOI 10.34019/1980-8518.2020.v20.30270
Revista Libertas, Juiz de Fora, v.20, n.1, p. 21-37, jan. / jun. 2020 ISSN 1980-8518
O Serviço Social na história:
40 anos de lutas e desafios
Ivanete Salete Boschetti
*
RESUMO: O texto situa alguns elementos essenciais na trajetória do Serviço Social brasileiro desde o
chamado “Congresso da Virada”, que aconteceu em 1979. Trata-se de revisitar 40 anos de história da
profissão, embebida em suas determinações econômicas, políticas e sociais, partindo do contexto do
regime autocrático instaurado em 1964, passando pelo contexto da democracia burguesa alcançada com
a Constituição de 1988 e chegando em 2019 num contexto de avanço fascistizante, que traz à tona o
ultraneoliberalismo, o obscurantismo, e o ataque à própria democracia burguesa.
PALAVRAS-CHAVE: Serviço Social; XVI CBAS; Congresso da Virada, Projeto Ético-Político
Profissional.
The 40 years of the "turn" of Social Work in Brazil: history, present and
their challenges
ABSTRACT: The text situates some essential elements in the trajectory of Brazilian Social Work since
the so-called “Congresso da Virada”, which took place in 1979. It involves revisiting 40 years of the
profession's history, embedded in its economic, political and social determinations, starting from the
context of the autocratic regime established in 1964, passing through the context of bourgeois
democracy reached with the 1988 Constitution and arriving in 2019 in a context of fascist advancement,
which brings out ultra-liberalism, obscurantism, and the attack on bourgeois democracy itself.
KEYWORDS: Social Work; XVI CBAS; Congress of turn; Professional Ethical-Political Project.
Submetido em 20/04/2020
Aprovado em 05/05/2020
*
Graduada em Serviço Social pela Universidade Católica Dom Bosco (1985), mestre em Política Social pela
Universidade de Brasília (1993), doutora (1998) e pós-doutora (2012) em Sociologia pela Ecole des Hautes Etudes
en Sciences Sociales de Paris. Professora Titular da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (ESS/UFRJ). Pesquisadora 1A do CNPq. Presidenta da ABEPSS na gestão 1999-2000. Vice-presidenta do
Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) na gestão 2005-2008 e Presidenta na gestão 2008-2011.
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Introdução
Esse texto nasceu em outubro de 2019, como roteiro para palestra proferida no XVI
Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, realizado em Brasília, no período de 30 de outubro
a 03 de novembro de 2019. Foi um CBAS conectado ao tempo presente, e dedicado a refletir e
celebrar os 40 anos que marcam a construção do Serviço Social crítico, fundamentado na
perspectiva marxiana e comprometido com as lutas da classe trabalhadora. O CBAS de 1979
ficou historicamente conhecido como Congresso da Virada, pois foi um momento de inflexão
que expressou a virada de hegemonia teórica e política do Serviço Social, tal como expressa no
Código de Ética Profissional (1993), na Lei de Regulamentação da Profissão (1993) e nas
Diretrizes Curriculares da ABEPSS (1996), que constituem pilares estruturadores da formação
e do exercício profissional.
Sobre esse texto que ora se publica em uma Revista Científica, cabem duas
advertências. A primeira é seu caráter menos científico e mais histórico-político, uma vez que
foi elaborado como reflexão para abrir um Congresso Profissional que celebraria as conquistas
e desafios profissionais nesses quarenta anos. E a segunda, é sua natureza panorâmica e
coloquial, tendo em vista sua adequação à abordagem de um longo período (1979-2019) e o
tempo disponível para fazê-lo em uma conferência.
A opção, aqui, o foi reescrever a palestra em forma de artigo científico, e sim manter
o texto com poucas adequações, como registro histórico do momento em que foi pronunciado.
A inclusão de algumas notas de rodapé foi necessária para melhor compreensão do contexto. É,
portanto, com essa expectativa que deve ser lido.
1979 – “Nós somos porque outros/as foram antes de nós.
Em 40 anos, muitos e muitas fizeram história, e o Projeto Ético Político do Serviço
Social existe porque foi forjado por muitas mãos e muitas gerações, que merecem nosso
permanente reconhecimento. Por isso, não podemos iniciar sem agradecer aos que lutaram e
lutam pela consolidação cotidiana do nosso Projeto Ético Político Profissional. Por isso, não se
trata de um agradecimento pessoal. Mas de um agradecimento coletivo do Serviço Social.
Estamos aqui hoje comemorando os 40 Anos da Virada porque, parafraseando Marielle Franco,
assassinada brutalmente no Rio de Janeiro em 2018, “eu sou porque nós somos”, como ela
sempre dizia.
Em nome de nossas/os companheiras/os, Marilda Iamamoto, Rosalina Santa Cruz,
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José Paulo Netto e Vicente Faleiros, o Serviço Social agradece aos assistentes sociais e
estudantes que foram presos, torturados, mortos e exilados durante a ditadura civil-militar e
colocaram suas vidas à disposição das lutas pelas liberdades democráticas
Em nome de Maria Beatriz Abramides, Socorro Cabral, Luíza Erundina, Maria Inês
Bravo, agradecemos a todas as assistentes sociais que estavam nas organizações sindicais e de
trabalhadores/as e organizaram o processo histórico que culminou no Congresso da Virada em
1979, com encontros prévios como o III Encontro de Entidades Sindicais do Serviço Social, e
instituíram, como Comissão de Honra do III CBAS “Todos os Trabalhadores Brasileiros!
Aqueles que lutaram e morreram pelas liberdades democráticas”, conforme a faixa colocada na
mesa de abertura, após a destituição da mesa oficial composta por militares e representantes
institucionais governamentais sustentáculos da ditadura em vigor.
Em nome da Larissa de Jesus, da Coordenação Nacional da ENESSO, agradecemos às
estudantes de Serviço Social que sempre estiveram nas trincheiras e não fogem da luta. Em
nome da Josiane Soares Santos e da Esther Lemos, atuais presidentes do CFESS e da ABEPSS,
respectivamente, agradecemos a todas as gestões das nossas organizações nacionais
(profissionais e acadêmicas), que cuidam, militam e trabalham incansavelmente 40 anos
para que o Projeto Ético Político Profissional seja nosso bastião contra todas as formas de
exploração, opressão e resistência ao avanço do conservadorismo no Serviço Social. Em nome
do CRESS/DF, que sedia este CBAS, agradecemos a todos os CRESS e aos assistentes sociais
desse imenso Brasil, que labutam cotidianamente, em condições de trabalho muitas vezes
insuficientes, impróprias e inadequadas, para mediar o acesso aos direitos, bens e serviços
públicos.
E, pessoalmente, agradeço carinhosamente à Comissão Organizadora desse XVI
CBAS (ABEPSS, CFESS, ENESSO, CRESS-DF) pelo convite para estar aqui, agora, nesse
lugar, e vivenciar a emoção de partilhar com a querida Marilda Iamamoto a abertura desse
icônico CBAS. Muito, muito obrigada! Tenho a convicção que, nesses 40 anos, muitas gerações
honraram a Virada” e seguem consolidando o Projeto que ali nascia, porque seguimos lutando,
na maioria das vezes, em contextos muito adversos, mas sempre com garra e convicção na
possibilidade de construção coletiva de uma sociedade emancipada, como afirma nosso Projeto
Ético Político Profissional.
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1979 1989 Apesar de você amanhã há de ser outro dia. Eu pergunto a você
onde vai se esconder da enorme euforia? Como vai proibir quando o galo
insistir em cantar? Água nova brotando e a gente se amando sem parar (Chico
Buarque).
Vivíamos nessa década uma particular convivência entre coerção e consenso, com
redução dos aparatos coercitivos instituído no pós 1964, mas que ainda explodiam bombas, a
exemplo do atentado militar no Riocentro em 1981 e a forte repressão militar em Brasília em
1984, que isolou o Distrito Federal para evitar o Movimento “Pelas Diretas Já”, que sacudia o
Brasil. O general Newton Cruz, do Comando Militar do Planalto, desfilou na Esplanada dos
Ministérios montado sobre um cavalo branco, à frente de 6 mil militares e 116 tanques e carros
de combate. Era simbólico mostrar a força militar já no contexto de derrocada da ditadura! No
dia seguinte a essa brutal demonstração de poderio militar a população de Brasília promoveu
um imenso buzinaço para, simbolicamente, reagir ao autoritarismo e defender as Diretas Já e a
Democracia. Foi uma década de derrotas, mas também de importantes e esperançosas
conquistas: a Emenda pelas “Diretas
1
não foi aprovada pelo Congresso Nacional e vivemos
uma transição pactuada para uma democracia que nascia sob controle, mas com intensas lutas
da classe trabalhadora.
Teórica e politicamente, o Serviço Social passou a incorporar as formulações da
tradição marxista, o que possibilitou intenso e sólido avanço crítico na compreensão da
realidade em uma perspectiva de totalidade
2
, sendo o livro de Marilda Iamamoto e Raul de
Carvalho, “Relações Sociais e Serviço Social no Brasil”
3
o primeiro, contundente e ainda atual,
marco e referência, seguido por várias obras fundamentadas na perspectiva marxiana nos anos
seguintes, que foram decisivas na elaboração das novas diretrizes curriculares de 1982, e do
novo Código de Ética de 1986.
Nos 03 Congressos de Assistentes Sociais realizados nessa década – 1983, 1986, 1989
transformamos a Virada de 1979 em mediações concretas na Construção do Projeto Ético
Político Profissional e, num contexto mais favorável aos trabalhadores, estávamos ali, em todas
as lutas pelas liberdades democráticas, nas ruas pelas Diretas Já, nas Greves que sacudiram o
1
Sobre as Diretas Já, e sobre o período da Ditadura brasileira, consultar José Paulo Netto, “Pequena História da
Ditadura Brasileira” (1964-1985), São Paulo, Cortez, 2014.
2
Para um ótimo panorama que mostra a importante produção científica do Serviço Social brasileiro, sugerimos o
livro organizado por Maria Liduína de Oliveira e Silva (org.), Serviço Social no Brasil: história de resistências e
de ruptura com o conservadorismo. São Paulo, Cortez, 2016.
3
Publicado pela Editora Cortez, São Paulo, em 1982.
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país, nos movimentos contra a repressão, na defesa dos direitos sociais e da Seguridade Social
na Constituinte (1987-1988), quando participamos no recolhimento das 15 milhões de
assinaturas em 122 emendas populares que precisaram ser entregues ao Congresso num
carrinho de rodas
4
.
Construímos um Projeto Ético Político Profissional comprometido com as lutas da
classe trabalhadora e com um Projeto Societário na perspectiva de superação do capitalismo,
mas entendendo a mediação do projeto profissional nas necessárias lutas e conquistas do Estado
Democrático de Direitos, ainda que nos limites da Cidadania Burguesa, na qual a Constituição
de 1988 foi o marco decisivo. Engrossamos as fileiras de militância no Partido dos
Trabalhadores e participamos na eleição das assistentes sociais Maria Luiza Fontenelle como
primeira mulher e primeira prefeita de capital eleita pelo PT em Fortaleza em 1985 e Luíza
Erundina para a Prefeitura de São Paulo em 1988. E não nos esqueceremos da importante
participação da Luiza Erundina como palestrante no CBAS de 1989 em Natal/RN.
Finalizamos essa década com emoção, esperança e “sem medo de ser feliz” na
Campanha Presidencial de 1989, que trazia, pela primeira vez em nossa história, um candidato
da classe trabalhadora, Luís Inácio Lula da Silva, pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Mas
também nos decepcionamos com a derrota, que viria a mudar radicalmente o futuro do PT. A
vitória do candidato Fernando Collor de Mello, que viria a ser impedido três anos depois, só foi
possível pelo apoio da burguesia, da grande mídia e de importante parcela da classe média.
Foi uma década de fundamentais resistências, de efervescência cultural e política, mas
também de aprofundamento da dependência econômica, de intensa crise social, de agudização
das desigualdades, de um tempo em que a esperança alimentava nossos corações e mentes, e
acreditávamos que amanhã haveria de ser outro dia, com a água nova brotando, como diz a
canção do Chico, citada no início desse item. E seguíamos “sem medo de ser feliz”.
1989 – 1999 A gente quer viver pleno direito, a gente quer viver todo
respeito, a gente quer viver uma nação, a gente quer é ser um cidadão...
(Gonzaguinha).
Na cada seguinte, a Constituição Federal aprovada no final de 1988 alimentou a
crença e a ilusão que a redemocratização instauraria a cidadania burguesa no Brasil, com
4
Tivemos oportunidade de registrar o processo de construção da Seguridade Social e a participação do Serviço
Social, no livro “Seguridade Social e Trabalho: paradoxos na construção das Políticas de Previdência e Assistência
Social no Brasil”. Brasília, Editora UnB e Letras Livres, 2006.
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direitos amplos, com a possibilidade de construir um Estado Social à moda do welfare state
europeu, com participação política e redução das desigualdades sociais.
Mas, a derrota nas eleições presidenciais de 1989 foi mais que uma derrota eleitoral.
Foi uma derrota política que abriu as comportas do neoliberalismo, do oportunismo, e da
corrupção que retirou Collor do poder no final de 1992. No campo da esquerda, as mudanças
programáticas e de estratégia política no Partido dos Trabalhadores provocaram fissuras que se
revelariam nessa década com a Fundação do PSTU em 1993 e do PCO em 1995
5
.
As primeiras regulamentações das três políticas constitutivas da Seguridade Social
(previdência social, saúde e assistência social) foram contidas por vetos parciais (saúde e
previdência) ou integrais (assistência social) do Governo Collor aos projetos de lei, e ao se
instituir, restringiram a amplitude dos direitos conforme previstos na Constituição Federal: ali
começava o longo e irredutível processo de contrarreformas sociais
6
.
Com a eleição e posse de Fernando Henrique Cardoso em 1994, instaura-se
efetivamente o neoliberalismo no Brasil, com acelerado processo de privatização das empresas
estatais, e inaugura-se a Era da privataria tucana
7
, com a redução dos espaços políticos de
controle democrático, os ajustes fiscais draconianos, as contrarreformas do Estado e da
previdência social, e o solidarismo primeiro damista na assistência social, que desconsiderou a
LOAS aprovada em dezembro de 1993, e instaurou o Programa Comunidade Solidária como
carro chefe da assistência social
8
, financiado com base em campanhas voluntárias e mobilização
e engajamento da sociedade civil em atividades sociais.
Em contexto de privatizações e forte aumento do desemprego, a cada de 1990
vivenciou importantes mobilizações e lutas sociais da classe trabalhadora, como a Greve dos
Petroleiros (1995), das Universidades Públicas (1998) e a Marcha do MST para Brasília (1998),
que foram determinantes para desgastar politicamente o Governo neoliberal de FHC. E o
Serviço Social seguiu firme, atento e forte na defesa dos princípios e valores do Projeto Ético
Político Profissional: participou ativamente nos processos de regulamentação das Políticas de
5
Para um estudo sobre as transformações do PT, consultar Mauro Iasi, “As Metamorfoses da Consciência de
Classe: o PT entre a negação e o consentimento”. São Paulo, Expressão Popular, 2006.
6
Sobre as Contrarreformas na década de 1990, ver Elaine Rossetti Behring, “Brasil em contrarreforma -
desestruturação do Estado e perda de direitos”, São Paulo, Cortez, 2003.
7
A Privataria Tucana é o título do livro do jornalista Amaury Ribeiro Jr, publicado pela Geração Editorial, em
2011. Disponível para leitura em <https://privatariatucanaolivro2.files.wordpress.com/2011/12/a_privataria_
tucana_-_amaury_ribeiro_jr1.pdf> .
8
Para uma análise crítica do Programa Comunidade Solidária, recorrer a Maria Ozanira da Silva e Silva (org.)
Comunidade Solidária: o não-enfrentamento da pobreza no brasil. São Paulo, Cortez, 2001.
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Saúde, da Assistência Social, do Estatuto da Criança e Adolescente, e se posicionou firmemente
contra o Programa Comunidade Solidária. Denunciou teórica e politicamente o desmonte da
seguridade social em diversas publicações de livros, artigos e posicionamentos do Conjunto
CFESS/CRESS e da ABEPSS
9
, e se aliou às principais lutas da classe trabalhadora, se
engajando às principais greves e mobilizações dessa Década.
No âmbito profissional, o Serviço Social formulou uma nova regulamentação da
profissão com atualização do Código de Ética (Resolução CFESS) 273/1996 e da Lei de
Regulamentação Profissional (Lei Federal 8662/1993)
10
, que estabelecem seus princípios ético-
políticos-profissionais e suas atribuições e competências, sintonizados com os princípios éticos
de defesa dos direitos da classe trabalhadora, como importante mediação no fortalecimento das
lutas sociais em projeção da emancipação humana. As Diretrizes Curriculares da ABEPSS,
aprovadas em 1996, estruturaram a formação profissional em sintonia com o Projeto Ético
Político Profissional e marcaram a maturidade na produção acadêmica crítica. Essa Década viu
florescer e proliferar no Serviço Social publicações de livros e artigos fundamentados na
tradição marxista, sobre as mais diversas temáticas, como Serviço Social, Ética, Direitos
Humanos, Direitos Sociais, Questão Social, Política Social, Estado, entre tantos outros que se
espraiaram como referências nas ciências humanas e sociais.
Os três CBAS realizados nessa década - 1992, 1995, 1998 – formularam contundentes
críticas aos governos neoliberais e assumiram intensamente a defesa dos direitos, das políticas
sociais e da radicalização da democracia, como elementos fundamentais no atendimento às
demandas sociais e à realização das atribuições e competências profissionais. Na década de
introdução do neoliberalismo no país, a hegemonia crítica no Serviço Social brasileiro marchou
na contracorrente, não fugiu da luta, e apesar das “invasões positivistas”
11
, não se rendeu às
incidências pós-modernas que se esforçavam para se infiltrar na profissão. Vinte anos após o
Congresso da Virada, o Serviço Social brasileiro bradava em alto e bom som a gente quer
viver pleno direito, a gente quer viver todo respeito, a gente quer viver uma nação, a gente quer
é ser um cidadão...” (Gonzaguinha).
9
Ver especialmente a Revista Temporalis n. 1. publicada pela ABEPSS em junho de 2000, com o tema “Reforma
do Ensino Superior e Serviço Social”, que registra análise do Serviço Social sobre a proposta de “reforma” do
Governo FHC, bem como as estratégias adotadas para combatê-la no âmbito da formação profissional. ABEPSS,
Brasília, 2000.
10
Disponíveis em http://www.cfess.org.br/arquivos/CEP_CFESS-SITE.pdf
11
Conforme livro de Consuelo Quiroga, Invasão Positivista no Marxismo: manifestações no ensino da
metodologia no Serviço Social, São Paulo, Cortez, 1991.
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1999 – 2009 A dor e a delícia de ser o que somos: classe trabalhadora.
No início dos anos 2000, vivíamos a contradição entre a alegria de eleger o primeiro
presidente trabalhador pelo PT em 2003, e a decepção pela sua rendição aos mercados, expressa
na “Carta ao Povo Brasileiro” divulgada na campanha eleitoral em 2002
12
. A eleição trouxe
consigo as contrarreformas de previdência de 2003 e 2005, que estendeu a restrição da
previdência aos servidores públicos e estimulou os planos privados de seguro social
13
, e mais
ajustes fiscais que custaram novas fissuras e rupturas na esquerda, com a saída de importantes
militantes e intelectuais do PT, como o geógrafo Aziz Ab’Saber, Fábio Konder Comparato, e
os sociólogos Francisco de Oliveira, Ricardo Antunes, Carlos Nelson Coutinho, entre outros, o
que levou à criação do PSOL em 2004.
O ambiente favorável à luta de classes da década anterior sofreu importante inflexão
política, e a “democracia de cooptação”
14
fragilizou as lutas sociais, que não encontraram forças
de resistência organizadas à altura das contrarreformas impostas pelo Partido que era o seu, e
muitas organizações da classe trabalhadora, a exemplo da CUT (Central Única dos
Trabalhadores) aderiram às metamorfoses do Partido, com abandono das lutas anticapitalistas
e assumindo o lugar de gestores do e para o capital.
O governo “democrático-popular” eleito assume matiz social-liberal, e fortalece o que
Iasi (2019) designou de uma forma de “consciência democrática-cidadã”
15
, que conjugou o
fortalecimento de políticas de direitos humanos, a defesa da diversidade, da tolerância aos
diversos padrões de conduta religiosa, sexual, política e cultural, com o desenvolvimento de
medidas antissociais, como os ajustes fiscais e redução da previdência pública e o abandono
dos projetos de reformas estruturais (agrária, do trabalho, urbana, universalização da seguridade
social), que seriam absolutamente fundamentais para reduzir a desigualdade, e desconcentrar a
propriedade e a riqueza.
A Política de Assistência Social recebe atenção especial, e se torna o carro chefe das
políticas sociais, com a instituição e expansão do Bolsa Família desde 2003, criação do SUAS
12
Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u33908.shtml>.
13
Sobre as contrarreformas da previdência do Governo Lula, sugerimos o texto de Sara Granemann, A Reforma
da Previdência do Governo Lula: argumentos e perspectiva de classe. Disponível em
<http://outubrorevista.com.br/wp-content/uploads/2015/02/Revista-Outubro-Edição-9-Artigo-07.pdf>.
14
O aprofundamento dessa categoria pode ser lida em Mauro Iasi, “Democracia de Cooptação e Apassivamento
da Classe Trabalhadora”, disponível em <https://praxisteoria.wordpress.com/2016/07/14/democracia-de-
cooptacao-e-o-apassivamento-da-classe-trabalhadora/>.
15
Cf. o artigo “Cinco teses sobre a formação social brasileira (notas de estudo guiadas pelo pessimismo da razão
e uma conclusão animada pelo otimismo da prática)”. In Revista Serviço Social e Sociedade, n.136. São Paulo,
2019. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-66282019000300417>.
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em 2004, com forte protagonismo de assistentes sociais vinculados ao PT. Junto com a
valorização do salário mínimo, estas medidas sociais possibilitaram reduzir a fome e a miséria,
atender às necessidades mais básicas da classe trabalhadora e ampliar a base social e política
do Lulismo nas classes trabalhadoras mais empobrecidas, mas não foram capazes de reduzir e
menos ainda de suprimir as desigualdades estruturais, e a forte concentração de renda e de
propriedade.
O Serviço Social se expande enormemente nessa cada, como resultado da
regulamentação da LDB e do novo redesenho no ensino superior provocado pelo Reuni, Prouni,
Expansão do EAD
16
, Enade. No final da década, em 2009, éramos 87.000 profissionais.
Somente em um ano formamos o correspondente a 20% do que formamos em 40 anos (entre
1936 e 1976), e éramos o segundo maior colégio de Assistentes Sociais do mundo, atrás
apenas dos Estados Unidos.
Ampliamos a atuação profissional em todas as políticas sociais, especialmente na
saúde, assistência social e no chamado campo sócio-jurídio. Na previdência social, lutamos e
conseguimos impedir a extinção do Serviço Social no INSS e assegurar o concurso público para
900 vagas em 2008.
O Serviço Social, ao longo dessa década, teve forte incidência na formulação e gestão
da Política de Assistência Social, com a criação do SUAS e papel atuante nos Conselhos de
Gestão e Controle Social das Políticas Sociais e Direitos Humanos e assumiu em seu cotidiano
profissional uma intervenção pautada na defesa dos direitos da classe trabalhadora e mediação
no atendimento às suas demandas e necessidades mais imediatas. A expansão profissional nas
políticas sociais, contudo, ocorria na mesma medida em que aumentava a precarização na
formação e no trabalho profissional.
As Organizações da categoria (ABEPSS e Conjunto CFESS/CRESS), atentas a esse
movimento da realidade, investiram fortemente em regulações para aprimoramento dos
mecanismos políticos e jurídico-normativos, em resposta ao processo de precarização da
formação e do exercício profissional. Lançam o Projeto Ética em Movimento, asseguram a
autonomia das entidades face aos Governos e Partidos, mapeiam a formação em EAD e lançam
a Campanha “Educação não é Fast Food”, qualificam a atuação nos Conselhos de Direitos,
16
Larissa Dahmer Pereira vem se dedicando ao estudo da expansão de cursos de Serviço Social na modalidade à
distância. Uma boa síntese está no artigo, escrito em parceria com outras autoras, intitulado Análise comparativa
entre expansão dos cursos de serviço social EAD e presenciais”, publicado na Revista Tem poralis n. 27, Brasília,
ABEPSS, 2014. Disponível em Dialnet-AnaliseComparativaEntreExpansaoDosCursosDeServicoS-5017158.pdf
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iniciam a realização de diversos Seminários Nacionais para debater e formular orientações para
o trabalho nas políticas sociais, sendo o primeiro na área da assistência social em 2009. Lançam
a primeira campanha para defender os direitos LGBTT intitulada “O Amor Fala Todas as
Línguas” e a campanha contra a desigualdade social intitulada “Lutar por direitos, romper com
a desigualdade”
17
.
O serviço Social não saiu ileso das inflexões e fissuras no campo da esquerda, e com
a crise no PT instaura-se um debate sobre a possibilidade de crise de hegemonia do Projeto
Ético Político, mediada pela crise das esquerdas, pela precarização da formação e do trabalho
profissional. O debate rendeu algumas publicações de renomados autores do Serviço Social
brasileiro e segue sendo um tema de reflexão e debate
18
.
Mas, atento às tendências destrutivas do capital, e com força, bússola e direção política
crítica assegurada em suas principais organizações (ABEPSS, Conjunto CFESS/CRESS,
ENESSO), o Serviço Social brasileiro vem lutando contra a maré, e, hegemonicamente, não se
rendeu ao possibilismo, ao contrarreformismo. Ao contrário, seguiu e segue reafirmando
política e teoricamente os princípios e valores do Projeto Ético Político Profissional, orientado
por um projeto societário anticapitalista, e construtor de mediações fundamentais no exercício
profissional na defesa dos direitos sociais.
Os três CBAS realizados nessa década 2001, 2004, 2007 – marcaram a resistência,
e reafirmaram nossos princípios de luta. O Congresso de 2007 presenciou a primeira (e ahoje
única) disputa de chapas no campo da esquerda para o CFESS, desde o Congresso da Virada,
revelando que o Serviço Social também vivia as inflexões e rupturas na esquerda brasileira.
Terminamos a década celebrando os 30 anos do Congresso da Virada, e em 2009, no mesmo
Anhembi de 1979
19
, bradamos alto e coletivamente: Começaria tudo outra vez se preciso
fosse... a chama em meu peito ainda queima; saiba, nada foi em vão...” (Gonzaguinha)
Como classe trabalhadora que somos, vivemos cotidianamente as delícias das
conquistas e as dores das derrotas, e sem idealismo ou devaneios, seguimos lutando sem perder
a esperança, mesmo quando o tempo presente, em que completamos 40 anos da Virada nos
17
Todas as campanhas e publicações do CFESS referenciadas no texto estão disponíveis em sua página:
http://www.cfess.org.br
18
Uma das primeiras reflexões sobre essa questão foi abordada pelo CFESS na Revista Inscrita, Ano VII, X,
CFESS, Brasília, 2007. Na sequência, rias publicações abordaram o tema em Revistas como Temporalis, Serviço
Social e Sociedade e outras.
19
Um livro e anais do Seminário celebrativo dos “30 anos da Virada” estão disponíveis na página do CFESS, em
<http://www.cfess.org.br/visualizar/livros>.
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pareça o mais bárbaro dessas quatro décadas.
2009 – 2018 – “Sai do ovo a serpente. Fruto podre do cinismo” (Chico César).
Nessa última quadra histórica, a crise do capital, que o então Presidente Lula chamou
de “marolinha” em 2008, chega com força ao Brasil e impõe a mais profunda ofensiva do capital
sobre a classe trabalhadora e os direitos sociais, na busca de recomposição das taxas de lucro
em queda
20
. As Jornadas de Junho de 2013 foram a mais contunde expressão de insatisfação
diante da crise e de reivindicação de direitos como transporte, saúde, educação e abriram uma
nova conjuntura na dinâmica da luta de classes. Por um lado, mobilizaram as forças de esquerda
na busca de unidade nas lutas, por outro, provocaram reações organizadas da direita que
tentaram capitalizar o movimento e iniciaram ali as primeiras manifestações antipetistas,
antipartidos de esquerda e com uma falsa retórica de “antissistema”.
21
As respostas governamentais estiveram longe de atender às reivindicações, e cederam
às pressões do mercado, sobretudo no contexto dos mega-eventos, com repressão institucional
legitimada pela Lei Antiterrorismo aprovada em 2016, no contexto do processo de
impeachment da Presidenta Dilma pelo Parlamento brasileiro. O processo de impedimento, hoje
reconhecido por seus próprios autores como sem amparo legal
22
, foi um verdadeiro show de
horror, ignorância, cinismo e hipocrisia, e acentuou a blindagem da democracia
23
. A finalização
do golpe parlamentar-jurídico, no final de 2016, com apoio da grande mídia, judiciário e grande
parcela da classe média, encerrou o período da conciliação de classe entre o PT e seus aliados
da burguesia e abriu as comportas para o avanço do conservadorismo, da organização da
extrema direita, do neofascismo e da destruição ainda mais acelerada dos direitos sociais
20
São inúmeras as análises e publicações sobre os governos petistas, suas políticas e legado. Sugerimos aqui uma
síntese crítica elaborada por diversos autores, a partir de debates no Núcleo de Educação Popular 13 de Maio. Ver
Iasi, Mauro, Mansur, Isabel, Neves, Vitor (org.). “A Estratégia Democrático-Popular; um inventário crítico”.
Marília/SP, Ed. Lutas Anticapital, 2019. Disponível em <https://lutasanticapital.milharal.org/files/
2019/04/2019_Iasi_final.pdf>.
21
Muitas análises foram realizadas sobre as Jornadas de Junho de 2013 e estão disponíveis em livros, artigos e
blogs de esquerda. Para uma leitura de reflexão cinco anos depois, sugerimos o sucinto e didático texto de Marcos
Pestana, publicado no Blog Esquerda Online, disponível em <https://esquerdaonline.com.br/2018/07/16/cinco-
anos-de-junho-de-2013-a-perspectiva-petista-e-os-dilemas-estrategicos-da-esquerda-brasileira/>.
22
Três anos após o Golpe, os noticiários divulgaram amplamente as declarações de Janaína Pascoal, uma das
autoras do pedido, afirmando que o impeachment foi uma farsa. Ver <https://www.redebrasilatual.com.br/
politica/2019/09/janaina-paschoal-admite-farsa-do-impeachment-alguem-acha-que-dilma-caiu-por-um-
problema-contabil/>.
23
Cf. Felipe Demier, “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil”, Rio de Janeiro, Mauad,
2017.
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democraticamente conquistados.
Nessa década, a classe trabalhadora sofreu imensas derrotas políticas, talvez
irrecuperáveis: os processos privatizantes nos Hospitais Universitários com a EBSHER, a
derruição dos direitos e das políticas sociais com a EC 95 que estabeleceu teto de gastos por 20
anos (mas que exclui o gasto exorbitante com o pagamento dos juros e amortizações da dívida
pública), a contrarreforma trabalhista que já está acelerando a precarização do trabalho, a lei da
terceirização, a criminalização dos movimentos sociais e a truculenta repressão aos protestos e
lutas em defesa dos direitos sociais. Fomos atacados duramente por bombas de gás jogadas de
helicópteros, cavalos, tiros de balas de borracha e muitas prisões de manifestantes, a maioria
jovens, durante os anos de 2016 e 2017, quando estávamos nas ruas contra essas medidas
autoritárias e em defesa dos direitos da classe trabalhadora.
Conseguimos barrar a proposta de Reforma da Previdência de Temer, mas fomos
derrotados/as em todas as lutas contra a EC 95, a contrarreforma trabalhista, a terceirização, o
Fora Temer, o EleNão. O ano de 2018 ficará marcado na história por todas essas derrotas, pelo
violento assassinato de Marielle Franco em março de 2018, ainda sem respostas sobre quem
mandou matar a vereadora do Rio de janeiro, e a prisão espetaculosa do ex presidente Lula pela
Lava Jato em abril. Foi o ano que “quebrou o ovo da serpente”, que sairia da casca com as
eleições no final de 2018.
E o Serviço Social, nessa intensa década de lutas e derrotas políticas? Reafirmamos
incessantemente que o Serviço Social não é e nunca será uma “Ilha da Fantasia”, imune aos
processos sociais determinados pelo capitalismo. Ao contrário, é uma profissão que nasce e se
forja nas e pelas relações de classe e, como classe trabalhadora, sofremos cotidianamente os
impactos das derrotas políticas dessa década.
Contudo, no início da década, e na contracorrente dos processos destrutivos dos
direitos sociais, conseguimos uma conquista valoroza que não pode ser minimizada: a jornada
semanal de 30 horas sem redução salarial, resultado de intensa mobilização da categoria, da
linda manifestação realizada em Brasília no contexto do X CBAS em 2010, do apoio político
de parlamentares de partidos da esquerda, e de alguns ministros petistas, destacadamente do
Ministério do Desenvolvimento Social (MDS)
24
.
Vivemos no fio da navalha na luta entre capital e trabalho, pois, de um lado, nos
24
Livro que registra o processo dessa conquista foi publicado pelo CFESS, com o título “Direito se conquista: a
luta dos/as assistentes sociais pelas 30 horas semanais”, e está disponível para acesso em
<https://issuu.com/cfess/docs/livro30hcfess>.
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orientamos pelo Projeto Ético Político Profissional, que luta pelos direitos da classe
trabalhadora e almeja uma sociedade emancipada do capital, e de outro, trabalhamos
cotidianamente nos limites impostos pelo capital, no atendimento precário e na maioria das
vezes insuficiente das demandas e necessidades da classe trabalhadora, cada vez mais exaurida
pela destruição dos direitos. E como trabalhadores e trabalhadoras, somos submetidos aos
avassaladores processos de expropriação das nossas condições de reprodução da vida.
Mas não fugimos das lutas, e estivemos em todas as manifestações e protestos, nas
ruas e nas praças, fazendo o bom combate, ainda que na defensiva para o perder os direitos
conquistados: lutamos contra a EBSHER, contra a privatização da saúde, contra o
desmantelamento da seguridade social, contra a PEC que se tornou a EC 95, conhecida como
PEC da Morte, contra a terceirização, contra a proposta de destruição da previdência e contra a
reforma trabalhista. Lutamos e nos manifestamos sucessiva e recorrentemente contra todas as
formas de exploração e opressão, por meio de publicações, palestras, e organicamente, por meio
dos manifestos de nossas organizações como CFESS e ABEPSS.
As contundentes campanhas do Conjunto CFESS/CRESS nessa década denunciaram
que “Na Luta de Classes não Empate”, conclamaram às lutas ao defender “Que sem
Movimento não Liberdade”, “Que nossa escolha é a resistência”, e que “No mundo de
desigualdade, toda violação de direitos é violência”. Fizemos a mais bela e contundente
campanha contra o racismo e reafirmamos coletivamente em inúmeros seminários sobre o
Trabalho Profissional na Políticas Sociais, organizados gratuitamente pelo CFESS para
assistentes sociais e estudantes, que o trabalho requer condições éticas e técnicas adequadas,
para desenvolver nossas competências e atribuições com compromisso ético político com a
qualidade dos serviços e atendimento das demandas da classe trabalhadora. Reiteramos em
inúmeras publicações os nossos valores e princípios ético-políticos contra a exploração, o
racismo, a LGBTFobia, as discriminações de todo tipo, a intolerância, sempre orientados pela
disputa incansável da consciência política de profissionais e estudantes, sem fazer nenhuma
concessão aos valores burgueses e pós-modernos.
Nos Congressos dessa década organizamos as maiores manifestações de assistentes
sociais desde a Virada: em Brasília em 2010 marchamos na Esplanada com mais de 3000
assistentes sociais e estudantes em defesa do trabalho, dos direitos e da jornada semanal de 30
horas para assistentes sociais; em 2015, em Recife, nos juntamos ao Grito dos Excluídos para
bradar nosso compromisso social e político guiado pelo Projeto Ético Político Profissional.
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Encerramos a década dizendo hegemonicamente #EleNão, ainda que poucos e
minoritários profissionais tenham sido contaminados com os venenos da serpente nascida nessa
década. Mesmo com a derrota político-eleitoral imposta à classe trabalhadora em 2018, que
levou ao poder o mais nefasto, incompetente, reacionário e ultraliberal presidente que o Brasil
teve, não vacilamos. Mesmo com perdas, não desesperamos, e acreditamos que “outras
primaveras virão”, porque seguindo a canção, temos consciência para ter coragem; temos a
força de saber que existimos
25
coletivamente e que juntos somos mais fortes. E assim nos
preparamos para as lutas que viriam no ano seguinte, esse ano de 2019 em que celebramos os
40 anos da virada histórica do Serviço Social rumo à sua construção como profissão produtora
de conhecimento e engajada nas lutas da classe trabalhadora.
2019 “Mágicas mentiras pulam da cartola, nascem mitos raros, imprecisos”
(Filipe Catto).
E aqui estamos nós nesse final de 2019, celebrando os 40 anos da virada no Serviço
Social Brasileiro. Adormecemos em 2018, e acordamos em 2019, sob o impacto da avalanche
bolsonarista que saiu das urnas em 2018, que sintoniza-se com a extrema direita e o neofascismo
em âmbito mundial, que instaurou no Brasil um governo eleito sem programa, sem debates, em
campanha sustentada em mentiras, fake news, mas, principalmente, sustentado, apoiado e
financiado por uma direita raivosa que constitui uma orda antipetista e anticomunista virulenta.
Nesse contexto, um sussurro ecoa e nos atemoriza: essas condições colocam em xeque
nosso Projeto Ético Político Profissional? A resposta não é simples e nem pode se limitar ao
SIM ou ao NÃO. Se, por um lado, as condições objetivas impõem severos limites para o avanço
nas lutas e conquistas sociais, e o conservadorismo, que nunca esteve ausente da profissão, se
renova, se fortalece e se sustenta no avanço da extrema direita, por outro lado, ao longo dessas
4 décadas, temos lapidado o Projeto Ético Político Profissional naquilo que ele tem de essencial
e determinante: a formação na graduação e pós-graduação pautada na crítica contundente ao
capitalismo e à sua incapacidade civilizatória de conviver com a conquista de direitos. E
intensificamos a participação ativa nas lutas da classe trabalhadora e na defesa dos nossos
direitos, como necessária mediação para impor limites ao capital.
25
Cf. a canção “Primavera nos Destes” de João Ricardo e João Apolinário: Quem tem consciência para ter
coragem/Quem tem a força de saber que existe/E no centro da própria engrenagem/Inventa a contra-mola que
resiste/Quem o vacila mesmo derrotado/Quem perdido nunca desespera/E envolto em tempestade
decepado/Entre os dentes segura a primavera...
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Sabemos e reiteramos incansavelmente que nosso Projeto Ético Político Profissional
não se limita à defesa dos direitos no capitalismo e nem estou aqui defendendo isso ou
estimulando o idealismo, ao contrário, tenho a convicção que no tempo presente os valores e
princípios do Projeto Ético Político Profissional pautados na projeção de uma sociedade
emancipada são mais necessários e urgentes do que nunca!
A liberdade substantiva, autonomia, emancipação e defesa intransigente dos
direitos humanos são fermentos imprescindíveis para lutar coletiva e individualmente em
nosso trabalho cotidiano contra o reacionarismo mais tacanho desse bolsonarismo, que se move
pelo discurso obscurantista contra a ciência e a razão e que ataca a educação pública; que se
motiva pelo ódio contra os direitos humanos e a diversidade, embebidos num discurso
fundamentalista e numa particular e reacionária interpretação da moral cristã que agride as
religiões de origem africanas e mesmo os cristãos que não concordam com sua interpretação;
são discursos que fomentam o extermínio da juventude negra, atacam e matam a população
LGBTT.
A universalização dos direitos sociais, as lutas pela equidade e contra todas as
formas de exploração, discriminação e opressão assumem caráter de luta anticapitalista nesse
contexto ultra-neoliberal que se empenha para destruir e mercantilizar as conquistas
civilizatórias da classe trabalhadora, necessárias à sua reprodução cotidiana, como os direitos
do trabalho, saúde, a previdência pública, a cultura, o lazer, a água, a natureza, a assistência
social.
A defesa das liberdades democráticas é vital para socializar a participação política,
garantir a organização e manifestação livre da classe trabalhadora, impedir a repressão, a
criminalização dos movimentos sociais e prisões políticas arbitrárias como a dos 23 jovens nas
Jornadas de 2013, da Preta Ferreira e seu irmão do MSTC, e do Lula em 2018, para citar
algumas. Mais do que nunca precisamos nos organizar, fortalecer as lutas nas ruas e nas praças,
vencer o torpor e o apassivamento que tomou conta de muitas organizações sindicais que não
se mobilizaram suficientemente para barrar a contrarreforma da previdência de Bolsonaro,
aprovada esse ano. Mais do que nunca, o tempo presente nos exige fortalecer os movimentos
sociais da classe trabalhadora e anticapitalistas.
A socialização da riqueza socialmente produzida tem nas lutas pela apropriação do
fundo público uma mediação fundamental nesses tempos de privatização, de destruição de bens
e serviços públicos, que constituem verdadeira usurpação do fundo público pelo capital.
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O compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população e com o
aprimoramento intelectual, na perspectiva da competência profissional, pode ser
assegurado com a defesa da educação pública, laica, presencial, com formação crítica e
compromisso social. É dessa formação que o reacionarismo tem medo e quer destruir com
propostas como a “Escola sem Partido”, que na verdade quer uma “escola com mordaça”, a
militarização das escolas, o Future-se e a educação familiar. É a ausência da formação crítica,
histórica e totalizante que forja mitos imprecisos.
Estou, portanto, convencida que vivemos um tempo em que temos uma escolha:
reafirmar e reafirmar e reafirmar a opção feita há 40 anos por um projeto ético, político e
profissional vinculado ao processo de construção de uma nova ordem societária, sem
dominação, exploração de classe, etnia e gênero. Uma sociedade comunista.
Esse é nosso principal desafio: assegurar, coletivamente, a direção ética, política e
técnico-operativa que estão nas Diretrizes Curriculares da ABEPSS, as competências e
atribuições que estão asseguradas na Lei de Regulamentação da Profissão e os princípios e
valores do Código de Ética Profissional, que atribuem materialidade ao nosso Projeto de
profissão, articulado ao projeto societário de construção de uma sociedade comunista.
As “mágicas mentiras pulam da cartola”, e assim como nascem, os mitos são
destruídos! Por isso, por nós, para nós, como classe trabalhadora que somos, façamos desse
histórico e icônico CBAS, um espaço de luta contra todas as formas de opressão e exploração.
Reafirmaremos coletivamente nos próximos dias nosso Projeto Ético Político e diremos não à
exploração, não ao machismo, não à LGBTFobia, não ao racismo, não ao conservadorismo, não
ao feminicídio, não à opressão, não à violência, não ao genocídio, não ao apassivamento.
Eles passarão e irão para o lixo da história porque nada de ter sido em vão.
Respiremos os ares de luta que sopram na América Latina e encantemos nossos corações.
Lutemos pela revolução!
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