DOI 10.34019/1980-8518.2020.v21.30116
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n.2, p. 521-543, jul. / dez. 2020 ISSN 1980-8518
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Entre carências, incertezas e violências da vida
contemporânea: o encarceramento feminino no
Brasil
Rodrigo Barbosa e Silva
*
Denise Rodrigues Vieira da Silva
**
RESUMO: O presente trabalho versa sobre a presença da prisão no contexto da sociedade
contemporânea enquanto instituição que visa a punição e a reinserção social dos sujeitos condenados à
pena de privação da liberdade. O objetivo foi compreender o lugar do encarceramento feminino no
Brasil, suas causas e os problemas enfrentados na execução das penas. Além de uma revisão literária a
respeito das violências do mundo atual e debatermos a construção da identidade na sociedade
contemporânea, trouxemos a percepção de ex-detentas sobre o sistema penitenciário brasileiro.
Concluímos que o cárcere, de maneira geral, contribui para a violação dos direitos humanos e tem como
único papel a punição das mulheres presas.
PALAVRAS-CHAVE: Violência; Prisão; Punição.
Among the needs, uncertainties and violence of contemporary life: female
incarceration in Brazil
ABSTRACT: The present work deals with the presence of prison in the context of contemporary society
as an institution that aims at the punishment and rehabilitation of subjects sentenced to the penalty of
deprivation of liberty. The objective was to understand the place of female incarceration in Brazil, its
causes and the problems faced in the execution of sentences. In addition to a literary review of the
violence of the current world, we brought the perception of former inmates about the Brazilian prison
system. We conclude that prison, in general, contributes to the violation of human rights and has as its
main role, only the punishment of women imprisoned.
KEYWORDS: Violence; Prison; Punishment.
*
Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA). Professor do curso de Serviço Social da
Universidade Estadual do Tocantins. Líder do Grupo de Pesquisa em Educação, Cultura e Transversalidade.
**
Graduada em Serviço Social (Universidade Estadual do Tocantins).
Rodrigo Barbosa e Silva; Denise Rodrigues Vieira da Silva
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Introdução
Talvez a prisão seja um exemplo significativo para entendermos o mundo moderno. Há
quem a defina como o ponto de chegada de uma trajetória de vida marcada por carências,
violências e incertezas da vida quido-moderna
1
. Outros, por sua vez, destacam-na como a
materialização de todo esse processo de exclusão social, próprio de um mundo globalizado,
onde o modo de produção capitalista apresenta-se cada vez mais ascendente. Independente
destes olhares propostos à compreensão da presença da prisão na contemporaneidade, o mais
importante seria a efetivação de um trabalho em prol da emancipação humana com o intuito de
formar pessoas críticas frente à realidade vivenciada, fazendo-as perceber o porquê chegaram
ali. Vislumbrar que, no fundo, também são vítimas de um sistema que não se restringe ao
sistema prisional.
O sistema é maior, envolve estruturas, valores e relações que vão além
daquelas que ditam o convívio dentro da prisão. Esta conscientização é
revelada com a perspectiva de um rumo diferente à sua vida, fugindo da
alienação vivida há anos e inserindo-se efetivamente na História como sujeito
social (SILVA, 2012, p. 33).
A sociedade atual é líquida, marcada pela fluidez nas relações, pela instabilidade e
incerteza da vida humana. O movimento de globalização do capitalismo colabora com a
superficialidade das aprendizagens e com o mínimo envolvimento das pessoas no que se refere
aos acontecimentos político-sociais, priorizando o singular em detrimento do plural e
corroborando com a incessante exploração da mão de obra dos trabalhadores, formando um
cenário de imediatismo cultural, onde as pessoas não têm mais tempo livre para atividades de
lazer e nem tampouco para planejar o futuro.
Diante da liquidez das relações humanas e da velocidade na mudança dos sentidos
atribuídos à vida na contemporaneidade, é preciso compreender o lugar do encarceramento
feminino no Brasil no que tange aos impactos na perspectiva de vida daqueles que cumprem
penas de privação de liberdade. A pesquisa que norteou o presente trabalho possui caráter
qualitativo e exploratório. Para tanto, este trabalho buscou entender o objeto estudado em sua
profundidade e nas suas particularidades, de modo que a “preocupação seja a com a
compreensão da lógica que permeia a prática e com o nível de realidade que não pode ser
quantificado” (MINAYO, 1994, p. 21). Preocupou-se com os aspectos da realidade, sendo que
1
A expressão modernidade líquida é utilizada por Bauman (2001) para enfatizar o mundo em uma perspectiva de
mudanças dos paradigmas e da fragmentação do indivíduo e das suas relações sociais. Refere-se às incertezas, às
indeterminações, além das transformações que ocorrem diariamente na sociedade. Uma vez que a sociedade sólida
apresenta estabilidade e resistência às rupturas, a sociedade líquida, vivenciada por nós, não mantém a sua forma
com facilidade e está em constante mutação.
Entre carências, incertezas e violências da vida contemporânea: o encarceramento feminino no Brasil
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estes não podem ser enumerados quando se trata de compreender a dinâmica das relações
sociais, de forma que estas não têm uma metodologia pré-definida, mas vão sendo constituídas
de acordo com a especificidade do cenário estudado (GOLDENBERG, 1997).
A pesquisa bibliográfica nos ajudou no enfretamento do problema que concerne à
presença e ao papel da prisão na sociedade brasileira. No que se refere à pesquisa de campo, os
dados foram coletados junto aos sujeitos envolvidos na pesquisa, ex-detentas do sistema
penitenciário do Tocantins
2
. Neste sentido, vale ressaltar que a coleta de dados só foi realizada
após a aprovação do projeto de pesquisa junto ao Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo
seres humanos CEP UNITINS
3
, respeitando os princípios éticos e legais preconizados na
Resolução CNS 510/2016 de 07 de abril de 2016, que dispõe sobre as normas aplicáveis a
pesquisas em Ciências Humanas e Sociais cujos procedimentos metodológicos envolvam a
utilização de dados diretamente obtidos com os participantes.
As inseguranças da vida contemporânea
A Constituição Federal Brasileira de 1988 foi um grande avanço para a democracia e
para a garantia de direitos em nossa sociedade. Dentre os direitos constituintes que são
garantidos, os direitos sociais, aqueles que devem ser garantidos pelo Estado Social de Direito,
apresentam-se como foco de nossas reflexões. Conforme preconiza o art. 6º, tais direitos são
referentes à educação, à saúde, ao trabalho, à previdência social, ao lazer, à segurança, à
proteção à maternidade e à infância, bem como, à assistência aos desamparados (BRASIL,
1988).
O retrato das sociedades capitalistas ainda é marcado pela banalização da vida humana,
pelo desemprego, pela violação dos direitos e pela expressiva exploração da força de trabalho.
Santos (2009) destaca que os direitos sociais se fazem necessários para que haja uma melhoria
na condição de vida dos mais pobres, visando assim, uma equidade social. Em tese, tais direitos
são concretizados através das políticas públicas sociais, aumentando, assim, a visibilidade
social quanto à valorização dos direitos humanos. E ainda que os direitos sociais estejam
garantidos através da Constituição, eles não são amplamente efetivados, uma vez que a
globalização e o modo de produção capitalista também influenciam de forma exacerbada nesse
2
Tínhamos como ideia inicial envolver as presas da Unidade Prisional Feminina (UPF) de Palmas/TO, enquanto
cumpriam suas penas encarceradas. Contudo, devido às dificuldades encontradas no decorrer do processo de
pesquisa, optamos por trabalhar com as cumpridoras de prestação de serviço à comunidade (PSC) da Central de
Execuções de Penas e Medidas Alternativas (CEPEMA) de Palmas/TO, após terem cumprido parte de suas
penas no regime fechado.
3
Comprovante de envio do projeto 060751/2018, em 06 de junho de 2018; Certificado de Apresentação para
Apreciação Ética - CAAE: 90964218.7.0000.8023; Número do Parecer: 2.748.866, em 02 de julho de 2018.
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processo de não efetivação dos direitos. A globalização está na ordem do dia:
palavra da moda que se transforma rapidamente em um lema, uma encantação
mágica, uma senha capaz de abrir as portas de todos os mistérios presentes e
futuros. Para alguns, “globalização” é o que devemos fazer se quisermos ser
felizes; para outros, é a causa da nossa infelicidade. Para todos, porém,
“globalização” é o destino irremediável do mundo, um processo irreversível;
é também um processo que nos afeta a todos na mesma medida e da mesma
maneira. Estamos todos sendo “globalizados” – e isso significa basicamente o
mesmo para todos (BAUMAN, 1999, p. 3).
Dessa forma, pode-se entender a globalização como um mundo que é globalmente
conectado entre si, estreitando a relação entre os países e as pessoas. Iamamoto (2008) denuncia
que a mesma globalização que une é a que segrega, exclui as pessoas. A tecnologia, por
exemplo, é um dos grandes avanços advindos da globalização. Ela está para ser usufruída
por todos, porém, nem todos detêm de capital para poder adquirir um smarthphone do
momento, por exemplo.
O que significa a globalização para as classes subalternas, em especial para os
marginalizados do sistema dominante? Sua crescente exclusão da riqueza
social por ela gerada e seu afastamento dos centros de decisão política. Implica
também a deterioração das suas condições de vida em termos de alimentação,
saúde, habitação, saneamento e educação, entre outros aspectos. A análise do
processo de globalização reforça a convicção de que sua lógica implacável,
mais do que bem-estar, tem produzido um aumento da exploração da força de
trabalho e promovido maior destruição de todas as formas de sobrevivência
que não se adaptam aos padrões econômicos da sociedade global (SANTOS,
2001, p. 184).
Importante salientar que uma grande parcela da sociedade é classe trabalhadora e a
minoria são os donos dos meios de produção. E essa minoria explora a mão de obra da maioria.
Neste contexto, o trabalhador recebe uma quantidade menor de valor do que a que ele gera para
o empregador. Marx (2002) denominou esse processo de mais-valia ou excedente de trabalho,
que nada mais é do que aquilo que o trabalhador produz além do seu salário e que é apropriado
pelo dono do capital, pelo dono dos meios de produção.
Um trabalhador, por exemplo, pode executar todo o seu serviço em apenas quatro horas
de trabalho tendo como base o que é pago para este trabalhador pela venda da sua força de
trabalho, nesse caso, o salário as quatro horas restantes resultará no excedente de trabalho e,
consequentemente, na mais-valia. O produto final não lhes pertence. Com o capitalismo cada
vez mais em ascensão, intensificou-se a busca contínua pelo lucro, retirando da maioria dos
trabalhadores as chances de obter o bem que fora produzido por ele. O não pertencimento, por
sinal, vai além do produto:
Mas não é apenas o produto que deixa de lhe pertencer. Ele próprio abandona
o centro de si mesmo. Não escolhe o salário – embora isso lhe pareça
ficticiamente como resultado de um contrato livre não escolhe o horário nem
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o ritmo de trabalho e passa a ser comandado de fora, por forças estranhas a
ele. Ocorre então o que Marx chama de fetichismo da mercadoria e reificação
do trabalhador (LEITE; SANTOS, 2013, p. 5).
O modo de produção capitalista, estando orientando para o lucro, transforma tudo em
mercadoria, inclusive o ser humano, que pode ser comprado e vendido em troca de dinheiro.
Ele retira a essência humana do indivíduo e o coisifica. A força de trabalho, então, é vista como
uma mera mercadoria. Desse modo, o consumismo desenfreado se configura como um reflexo
desta lógica capitalista:
é um tipo de arranjo social resultante da reciclagem de vontades, desejos e
anseios humanos rotineiros, permanentes e, por assim dizer “neutros quanto
ao regime”, transformando-os na principal força propulsora e operativa da
sociedade. [...] O “consumismo” chega quando o consumo assume o papel-
chave que na sociedade de produtores era exercido pelo trabalho (BAUMAN,
2008b, p. 41).
Fica nítida a inversão de valores entre a mercadoria e o homem. A mercadoria ganha
vida e as pessoas são coisas. Os bens têm valor superior à vida humana, aos sujeitos. Nesta
lógica, importa o que você tem e não o que você é perante a sociedade, levando mais uma vez
à banalização do humano, abrindo espaço para o individualismo, a desarticulação dos
sindicatos, o aumento do desemprego etc. Nesta realidade, o mercado de trabalho exige
trabalhadores cada vez mais polivalentes, que consigam se adaptar às necessidades em prol do
maior lucro ao outro, enquanto seus salários servem apenas para a subsistência. Vemos, então,
uma gigantesca competição entre esses trabalhadores e, consequentemente, um grande exército
de reserva esperando uma oportunidade para adentrar nesse mercado desigual e explorador, que
é o mercado de trabalho capitalista.
As incertezas, instabilidades, violações de direitos, desigualdades e fluidez das relações
sociais evidenciam que a sociedade contemporânea, capitalista e consumista, preocupa-se mais
com os seus prazeres momentâneos, com a eternidade dos instantes, do que com o planejamento
de um propósito de vida em um futuro sólido. Os sujeitos, assim, ficam à mercê de um futuro
incerto.
Podemos dizer que a partir da modernidade e do movimento advindo dessa nova era,
instaurou-se uma instabilidade e fragilidade social. Por consequência, trouxe a necessidade de
remodelar as coisas, de estarmos sempre em constante mudança, de forma que não permaneçam
iguais. O mesmo ocorre com o sujeito contemporâneo que, em razão das permanentes
transformações, levanta dúvidas quanto a sua identidade pessoal: quem é e o que quer da vida
na sociedade.
[A identidade] só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto;
como alvo de um esforço, ‘um objetivo’; como uma coisa que ainda se precisa
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construir a partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela e
protegê-la lutando ainda mais — mesmo que, para que essa luta seja vitoriosa,
a verdade sobre a condição precária e eternamente inconclusa da identidade
deva ser, e tenda a ser, suprimida e laboriosamente oculta (BAUMAN, 2005,
p. 22).
Monte (2012) nos afirma que tempos atrás a identidade era relacionada à regionalidade
e/ou nacionalidade da pessoa. E mesmo que tal identidade fosse construída, ela era quase
hereditária. Assim, era imposto que os indivíduos de determinado país, de fato, pertencessem a
ele e onde quer que estivesse pudesse ser identificado como pertencente àquela nação. Porém,
com a contemporaneidade, surgem as transformações e as rupturas. O indivíduo, que antes
priorizava a nacionalidade, começa a se deslocar do seu território e conhecer outros lugares,
outras culturas.
Diante das fragmentações e transformações existentes, Bauman (2001) aponta que está
cada dia mais difícil termos uma identidade própria, de forma que os meios, as relações
interpessoais e os produtos influenciam diretamente na nossa vida, fazendo com que assim não
tenhamos uma identidade única, mas sim identidades. Forma-se, então, o que ele denomina de
simulacro do sujeito real. E, por muitos não terem certeza sobre suas identidades pessoais,
acabam deixando se influenciar pelo meio e viram outdoors de marcas gratuitos.
Em vista da volatilidade e instabilidade intrínsecas de todas ou quase todas
identidades, é a capacidade de “ir às compras” no supermercados das
identidades, o grau de liberdade genuína ou supostamente genuína de
selecionar a própria identidade e de mantê-la enquanto desejado, que se torna
o verdadeiro caminho para a realização das fantasias da identidade. Com essa
capacidade somos livres para fazer e desfazer identidades à vontade. Ou assim
parece (BAUMAN, 2001, p. 98).
Assim, quando pensamos sobre a questão do indivíduo nessa era da globalização, logo
nos remetemos às carências, dúvidas e urgências, as quais estão presentes nesse sujeito que se
encontra mergulhado em um mundo de inseguranças e incertezas, tendo uma necessidade
emergencial de pertencer a algum espaço. Um dos problemas quanto à identidade é em relação
à baixa autoestima, às fraquezas com o outro, em acharmos esse outro melhor ou superior a
nós. Nessa ótica, as novelas, as propagandas e os reality shows, por exemplo, nos remetem
estilos de vida e estereótipos perfeitos a serem seguidos pela população, incorporando rótulos
do que seria o modelo a ser seguido e eximindo, assim, a identidade própria do sujeito e abrindo
espaço para uma identidade ideal (BAUMAN, 2001).
A internet potencializa as pessoas a assumirem posturas e identidades diferentes das que
elas de fato têm, de modo que essas novas identidades oportunizam camuflar a real identidade
que possuem. É praticamente impossível, hoje em dia, não pertencer às redes sociais, já que as
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relações da contemporaneidade priorizam mais um chat que uma conversa pessoal tomando um
café. Bauman (2005, p. 100) diz que na sociedade contemporânea “nada nos faz falar de modo
mais solene ou prazeroso do que as ‘redes’ de ‘conexão’ ou ‘relacionamentos’, porque a
‘coisa concreta’ praticamente caiu por terra”. As mudanças de identidades ocorrem de acordo
com as novas realidades. Nesse prisma, a noção de tempo e espaço é vista sob um novo olhar,
comprimido.
Com a globalização e principalmente a Internet, temos a sensação de que o
tempo se tornou escasso e que o espaço é conquistado em apenas um ‘click’,
como se o mundo estivesse ao nosso alcance. Ao mesmo tempo convivemos
com a segurança da perda da identidade e da incompreensão de quem somos
de verdade. À medida que as mudanças solapam nossa vida, construímos
novas relações sociais e novos meios de convivência, de viver em sociedade.
Como exemplos de identidade a serem seguidas. A reconfiguração e a
adaptabilidade são características da identidade da pós-modernidade e se
apresentam como “moeda” da sociedade global (MOLINA, 2014, p. 7).
Portanto, fazendo referência ao pensamento de Bauman (2001; 2005), podemos dizer
que as identidades na sociedade contemporânea se tornam cada vez mais diferentes e fluidas.
Na contemporaneidade, o foco já não se encontra na solidez e nem na unificação de identidade.
Frente à globalização e à sociedade consumista, as identidades estão intrinsecamente
relacionadas aos produtos. As relações sociais, a comunidade e o fortalecimento dos laços
humanos não são tão essenciais. Abre-se espaço e têm mais importância as redes sociais.
Importa, agora, quantos likes tem a foto que fora postada no Instagram ou quantos amigos
no Facebook. Prioriza-se o individualismo e o consumismo exacerbado, onde importa o que se
tem e, não o que você é ou buscar ser. Com a globalização, a identidade é pautada na marca que
você usa ou o status que você tem na sociedade. Dessa forma, na sociedade líquida, temos
identidades fragmentadas, voláteis e descartáveis após a satisfação, assim como, os produtos
que são consumidos e têm prazo de validade.
As violências do cotidiano
A sociedade contemporânea, além de ser marcada pelas constantes transformações,
também é vista como uma sociedade do medo, segundo Bauman (2008a). A violência se mostra
intrínseca à formação da sociedade brasileira. Reconhecendo a complexidade desse fenômeno
em suas múltiplas faces, focaremos as violências estrutural e institucional, chamadas também
de violência estatal, e a violência criminal. De antemão, é válido ressaltar que teremos como
foco a desigualdade social e suas expressões como um principal fator que impulsionaria a
prática delituosa.
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Ainda que o conceito de violência seja ambíguo, complexo e estudado por vários
teóricos a partir de diferentes prismas, buscamos conceitua-la e caracterizá-la para que haja uma
maior compreensão sobre o que seria esse fenômeno social. A violência pode ser
natural ou artificial. No primeiro caso, ninguém está livre da violência, ela é
própria de todos os seres humanos. No segundo caso, a violência é geralmente
um excesso de força de uns sobre outros. A origem do termo violência, do
latim, violentia, expressa o ato de violar outrem ou de se violar. Além disso, o
termo parece indicar algo fora do estado natural, algo ligado à força, ao
ímpeto, ao comportamento deliberado que produz danos físicos tais como:
ferimentos, tortura, morte ou danos psíquicos, que produz humilhações,
ameaças, ofensas. Dito de modo mais filosófico, a prática da violência
expressa atos contrários à liberdade e à vontade de alguém e reside nisso sua
dimensão moral e ética (PAVIANI, 2016, p. 8).
Especificamente, a violência estrutural é do tipo que permeia a estrutura da sociedade
com a finalidade de manter as “desigualdades sociais, culturais, de gênero, etárias e étnicas que
produzem a miséria, a fome, e as várias formas de submissão e exploração de umas pessoas
pelas outras(MINAYO, 2007, p. 32). É uma violência rbara que objetiva perpetuar a miséria
da população, naturalizando a desigualdade social presente na sociedade, abrindo espaço para
surgimento de outras violências.
O problema da violência estrutural, no Brasil, não está na questão das pessoas possuírem
poucos recursos, mas sim pelo fato do poder que os ricos têm e, consequentemente, fazer com
que todos os recursos possam beneficiá-los. A péssima distribuição de recursos, onde uma
pequena parcela da população detém a maior parte e a maioria não os têm. Em países
subdesenvolvidos as pessoas morrem de fome, em países ricos e com uma melhor
distribuição de renda, as pessoas morrem de doenças provenientes pelo consumo em excesso
de alimentos, como os fast foods. Porém, a violência estrutural não é exclusiva de países pobres,
além do que ela poderia ser evitada caso houvesse uma distribuição de renda mais equânime.
Dessa forma, podemos visualizar que essa violência estrutural abrange questões econômicas,
políticas e sociais (PALHARES; SCHWARTZ, 2015).
A violência institucional, por sua vez, tendo como instituição o Estado, também é uma
forma de violência que se apresenta na sociedade como um todo, porém, afeta diretamente a
camada mais pobre da população, dependente dos serviços públicos. A utilização desses
serviços, por sinal, se torna quase inviável, em virtude do acesso limitado, dificultado ou
negligenciado:
Os serviços de saúde, de seguridade social e de segurança pública são os
principais exemplos dados pela própria população quando se refere à violência
institucional: a maior parte das queixas dos idosos, quando comparecem às
delegacias de proteção, é contra o INSS e os atendimentos na rede do SUS. E
os jovens reclamam principalmente das forças policiais que os tratam como se
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fossem “criminógenos”, ou pelo fato de serem jovens ou por serem pobres.
No caso do setor saúde, a tentativa de criar um programa transversal de
humanização do SUS, em última instância, é o reconhecimento de que a
tendência da instituição e dos profissionais é a burocratização ou a
tecnificação. Essas falhas se apresentam na despersonalização dos pacientes e
na substituição de uma relação dialógica por exames e procedimentos que
transformam o setor saúde em produtor de violência contra os usuários
(MINAYO, 2007, p. 33).
a violência criminal se expressa de acordo com os princípios das sociedades. O crime,
em cada sociedade, é visto e tratado conforme as normas internas, ou seja, um ato pode ser
considerado violento ou não de acordo com as normas do país (MELARA, 2008). Ainda que
crime e violência sejam distintos, podemos elencar que todo crime é uma violência, porém, nem
toda violência é propriamente crime, uma vez que o crime é caracterizado pela infração de leis
estabelecidas em uma sociedade específica. O indivíduo que não age de acordo com as normas
pré-estabelecidas é visto como alguém que não deve permanecer no convívio daqueles que
cumprem com todas as regras.
Um indivíduo tendo praticado o comportamento criminoso, setido como
sujeito incapaz de seguir as normas de um corpo social, estando, portanto, de
fora e fora do corpo social, é um “outsider”. O conceito de “outsiders” é um
conceito relativo, visto que se pode ter dentro de um subgrupo delinquente a
compreensão de que o “outsider” é aquele que dita as normas. Contudo, dentro
da lógica de distribuição de poder, o “outsider” que será efetivamente atingido
pelo sistema repressor penal é justamente aquele que não age de acordo com
as normas etiquetadas pelas instâncias oficiais de controle (Estado e meios
formais de categorização de condutas como criminosas ou não) (BANDEIRA;
PORTUGAL, 2017, p. 52).
Tendo contextualizado a violência estatal e a violência criminal, pautaremo-nos em
trazer alguns fatores que influenciam diretamente e/ou indiretamente na prática delituosa.
Antes, porém, é imprescindível salientarmos que tais condicionantes estão intrinsecamente
correlacionados com a globalização e com as desigualdades sociais advindas dessa. Ainda que
ter ciência das causas da criminalidade seja algo bem complexo, compartilhamos da ideia de
que a desigualdade social é um dos principais fatores dessa causalidade. Dessa forma, nos é
conveniente destacar, inicialmente, que o agora criminoso fora ou permanece sendo vítima
dessas violências estrutural e institucional, na maioria dos casos (ADORNO, 2002).
O Brasil é um dos países que carrega os piores indicadores sociais do planeta e nos
últimos cinco anos tem contabilizado uma alta ininterrupta na concentração de renda,
aprofundando o abismo das condições socioeconômicas da população (NERI, 2019). Nessa
perspectiva, sabemos que em decorrência dessa acumulação do capital e da má distribuição de
renda, o que a classe trabalhadora recebe pela venda da sua força de trabalho apenas para a
sua subsistência, de forma que o acesso aos bens e serviços são extremamente escassos. Dessa
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forma, prioriza-se muito as questões materiais e ficam de lado as relações e valores sociais.
Logo, tem-se uma sociedade em que os meios são escassos, que vive situação
de intensa escassez e, diante disso, tem-se o desmantelamento dos valores
sociais, a sobreposição dos interesses do indivíduo em detrimento dos valores
sociais. Como uma forma de sobreviver, o indivíduo irá encontrar no crime a
sua forma de atuação. Cuida-se, pois, de uma teoria de consenso
(BANDEIRA; PORTUGAL, 2017, p. 48).
Ainda no tocante a globalização e as constantes transformações advindas com ela,
Bauman (2001) elucida que a sociedade está cada dia mais individualista, onde não se prioriza
a luta em prol do bem comum, mas sim uma luta individual, de interesses pessoais, em
detrimento dos interesses coletivos. Entretanto, o mesmo autor nos chama a atenção aos
movimentos sociais que têm como objetivo alcançar mudanças na sociedade por meio da
participação popular em embates políticos, em manifestações públicas etc.
Os indivíduos, coletivamente, têm como estratégia a resistência e a luta para combater
as desigualdades provenientes do modo de produção capitalista, porém, ainda que cada um
tenha suas particularidades, todos devem ter um objetivo comum a alcançar com tal movimento
social. Entretanto, como o Bauman (2001) elucida, muitas vezes os movimentos sociais acabam
sendo enfraquecidos pelo fato de fragmentarem o objetivo comum em objetivos individuais.
Podemos levar essa perspectiva ao campo das prisões: ainda que as rebeliões sejam de interesse
coletivo de um determinado grupo, também possuem fins individuais e lutas de poder entre
grupos e objetivos distintos.
Nessa perspectiva, podemos visualizar que muitos crimes praticados contra o
patrimônio, por exemplo, são influenciados pelo ódio por pertencer à pobreza e não supe-la,
e também por motivos individuais, ainda que estes indivíduos façam parte da maioria
esmagadora que não detém recursos suficientes para ter acesso a bens de consumo. Tais crimes,
em tese, se configuram como formas de demonstrarem a insatisfação ao modelo econômico
vigente e as mazelas provenientes deste, assim como mudarem o status social.
os assaltantes, em sua quase totalidade, são indivíduos rudes, semianalfabetos
e pobres, quando não miseráveis. Sem formação moral adequada, eles são
párias da sociedade, nutrindo indisfarçável raiva e aversão, quando não ódio,
por todos aqueles que possuem bens de certo modo ostensivos, especialmente
automóveis de luxo e mansões, símbolos inquestionáveis de um status
econômico superior. Esse sentimento de revolta por viver na pobreza não
deixa de ser um dos fatores que induzem o indivíduo ao crime (FERNANDES;
FERNANDES, 2010, p. 341).
muita crítica a respeito dessa linha de que a desigualdade social e a pobreza são
causadoras do crime, uma vez que há muitos pobres que passam por necessidades econômicas
e nem por isso entram no mundo do crime. Buscam sempre ser resilientes frente a essas
Entre carências, incertezas e violências da vida contemporânea: o encarceramento feminino no Brasil
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expressões da questão social que são vivenciadas por eles. Nesse caso, entraria a questão moral
que, em tese, deveria vir de berço, porém, muitas dessas estruturas estão fragilizadas,
quebradas.
É cada vez mais comum presenciarmos laços familiares enfraquecidos dentro da
sociedade brasileira, onde mães criam os seus filhos sozinhas e têm que trabalhar em uma
jornada intensiva de trabalho para conseguir a sobrevivência de todos. Ou ainda os inúmeros
casos em que pais chegam bêbados em casa e praticam violência doméstica contra a esposa e
os filhos. Entretanto, comumente, há todo um contexto histórico e social por trás disso. Assim,
aqueles que seriam responsáveis pelo cuidado e educação familiar dos filhos, são os mesmos
que precisam e/ou se tornam ausentes e que assim podem cooperar com a violência destes.
Nessa perspectiva, Ferreira (1996) ilustra essa questão a respeito dos vínculos familiares que
são essenciais para a construção da identidade da criança e/ou jovem.
para a grande maioria dos detidos, a total ou parcial ausência da figura
masculina. Quer por abandono do lar, quer por ter sido uma relação casual,
que ainda por problemas ligados à embriaguez, drogas, jogo, ou também por
ausências que se devem à necessidade de trabalhar. Com relação à figura
feminina, embora os sentimentos e referências a ela sejam cercadas de especial
respeito e profundo amor e idealização, ela se apresenta submissa e servil,
como é a imagem do feminino esposa-mãe, no universo simbólico próprio da
nossa sociedade (FERREIRA, 1996, p. 56).
Não obstante, se faz necessário ressaltar que, ainda que os crimes existentes no Brasil
não sejam cometidos apenas por pessoas pobres, negras e de baixa escolaridade, a repressão e
o controle social por parte do Estado voltam a sua atenção principalmente para essa classe.
Reflexo disso são as prisões superlotadas de pessoas com esse perfil. Entretanto, apenas a
repressão por parte das forças de segurança não é eficaz para se combater a violência. É
necessário que se às raízes da problemática social, não tão somente aos atos violentos. “Hoje
em dia, o principal alvo da arbitrariedade policial são os mais vulneráveis e indefesos da
sociedade brasileira: o pobre, o trabalhador rural e os sindicalistas, grupos minoritários, crianças
e adolescentes abandonados, muitos vivendo nas ruas” (PINHEIRO, 1997, p. 44).
Nessa perspectiva, Fernandes e Fernandes (2010, p. 341) apontam que
a repressão policial tem valor limitado, pois combatendo uma parte maior ou
menor dos efeitos, não tem o condão de eliminar as causas. E as causas todas
emanam, principalmente, da distribuição de riquezas e do conluio do poder
público com o poder econômico, permitindo que este caminhe paralelamente
com ele, como seu subgerente na condução dos destinos de um país.
Portanto, fazendo alusão ao pensamento de Sudbrack (2010), ainda que estejamos nos
referindo à contemporaneidade, o cenário econômico remonta ao século XIX, onde havia uma
exploração desenfreada da mão de obra dos trabalhadores, acumulação de renda e
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distribuição da mesma, além de um enorme exército de reserva que, sem emprego e sem
perspectiva de vida futura, aumentava o cenário da criminalidade.
A criminalidade, aliás, para muitos, é o caminho encontrado para superar o estado de
pobreza, fome e miséria, advindo do capitalismo e da famigerada globalização. Contudo, ainda
que a desigualdade social existente no Brasil não seja o único fator que influencia a
criminalidade urbana, nos é possível visualizar que ela e suas expressões têm, sim, grande
responsabilidade nesse processo.
Encarceramento feminino no Brasil
Foucault (1987) associa a história da prisão à história da punição, trazendo todo o
contexto histórico e as transições da punição, que vão desde a violência física aberta ao público,
o show de horrores, o suplício do corpo, o qual tinha como objetivo legal a salvação da alma
da pessoa que foi condenada, no período medieval, até a adoção das instituições penitenciárias
existentes na modernidade.
O sistema carcerário é um assunto que sempre esteve em pauta, tanto no meio jurídico
como no social, porém, os holofotes sempre se voltam para os homens, pelo fato de que estes
são a maioria que ocupam os presídios brasileiros. Porém, é válido lembrar que com o passar
dos anos aumentou o número de mulheres presas no Brasil, inclusive, a taxa de aprisionamento
4
das mulheres teve um aumento bem significativo. Na primeira edição do Infopen Mulheres
5
,
relatório que traz o censo voltado especificamente para as mulheres, com dados de 2014, a taxa
de aprisionamento era de 18,5 mulheres presas. na segunda edição, com dados de 2016, a
mesma taxa subiu para 40,6 mulheres presas, de acordo com o Departamento Penitenciário
Nacional, órgão executivo que acompanha e controla a aplicação da Lei de Execução Penal e
das diretrizes da Política Penitenciária Nacional do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Assim, diante de todo esse panorama de aumento do número de mulheres em situação
de cárcere e de suas especificidades no cotidiano de uma prisão, seria relevante que o trabalho
desenvolvido por estas instituições suprisse, minimamente, as necessidades básicas deste
público, ou seja, os direitos previstos na lei 7210/1984 – Lei de Execução Penal (LEP) no que
tange às assistências material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa que objetivam
4
A taxa de aprisionamento é calculada pela razão entre o número total de mulheres privadas de liberdade e a
quantidade populacional do país. A razão obtida é multiplicada por 100 mil.
5
O Infopen é um sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro. O sistema, atualizado
pelos gestores dos estabelecimentos desde 2004, sintetiza informações sobre os estabelecimentos penais e a
população prisional. Fonte: <http://dados.mj.gov.br/dataset/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-
penitenciarias>
Entre carências, incertezas e violências da vida contemporânea: o encarceramento feminino no Brasil
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prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade (BRASIL, 1984).
Muitas coisas no mundo do cárcere não acontecem conforme a previsão dos textos
legislativos. É possível perceber a enorme lacuna entre a lei e o cotidiano. O público feminino,
especificamente, quando condenado, observa que a própria estrutura física das prisões,
construções pensadas para abrigar apenados do sexo masculino, ignora as particularidades da
mulher. Muniz, Leugi e Alves (2017, p. 9) afirmam que “a percepção de que o crime era um
fenômeno predominantemente masculino, devido ao baixo percentual de infrações cometidas
por mulheres, fez com que edificações específicas para elas fossem ignoradas”.
Historicamente, a mulher foi considerada um sujeito excluído, não participante da vida
pública, simplesmente pelo fato de ser mulher (SILVA, 2010). Partindo de uma visão
conservadora, que permanece ainda nos dias atuais, a figura da mulher está intrinsecamente
ligada ao lar, aos cuidados destinados ao marido e/ou filhos. Espera-se dela que tenha bons
comportamentos, seja boa dona de casa, esposa e mãe. Comportamentos que contrariem tais
expectativas são socialmente inaceitáveis. Pensar em uma mulher criminosa, então, é algo
inadmissível.
No Brasil, quando surgiram as penitenciárias femininas, estas tinham por proposta
institucional valorizar as mulheres, fazer com que elas recuperassem ou tivessem bons
costumes, conforme o que se esperava de uma mulher honesta, sendo esses delitos inaceitáveis,
como explica França (2014, p. 220): “[...] elas são vistas como piores que os homens que
cometem crimes, pois não seria da ‘natureza’ feminina, na qual a sociedade acredita e que foi
legitimado pelos discursos científicos, o cometimento de crimes”.
Apesar da semelhança existente na edificação das penitenciárias masculinas e
femininas, muitas diferenças entre ambas na questão do convívio, das visitas, dos
preconceitos, dos relacionamentos, do poder, da organização, enfim, muitas vezes as diferenças
que são mais escancaradas nas penitenciárias femininas são exatamente por esse motivo: por
serem mulheres presas. A questão é de gênero (FRANÇA, 2014).
Ainda há muita discriminação às mulheres em privação de liberdade, principalmente no
que diz respeito ao abandono pela família e pelos amigos. Falcade-Pereira (2013, p. 18552)
aponta tal discriminação a partir do universo de instituições do sistema prisional onde
concentração das mulheres em poucas unidades, ficando distantes das pessoas de seus locais de
origem:
Os fatores distância e custo financeiro do transporte para chegar até a unidade
da visita dificultam e às vezes impedem que os familiares as realizem. Esta
realidade mostra a discriminação sofrida pelas mulheres e o total abandono a
que estão submetidas quando encarceradas. A situação crítica deste abandono
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denota a necessidade urgente de políticas públicas destinadas à convivência
familiar e comunitária.
Ainda sobre discriminação ao público feminino no cárcere, podemos citar a questão das
visitas íntimas. As mulheres presas tão somente tiveram o direito à visita íntima no início deste
século, quase vinte anos após os homens terem acesso ao mesmo direito, ainda que não
estivesse expresso de forma clara na lei. França (2014) nos leva a pensar em outro ponto que é
importante salientar: o fato de que as mulheres precisam passar por uma espécie de curso
preparatório a respeito de Infecções Sexualmente Transmissíveis e sobre o controle da
natalidade, mas os homens não passam pela mesma formação nos presídios masculinos. Outro
fato que merece atenção é que pouquíssimas são as presas que recebem visita íntima dos seus
cônjuges na prisão. Prado (2003), inclusive, destaca que muitas recebem nos primeiros meses
em que entram e, logo depois, são surpreendidas pelo abandono dos seus parceiros.
A maioria das mulheres presas no Brasil, 59,9%, está nessa situação pelo crime de
tráfico de drogas (BRASIL, 2019). A maioria dos delitos dessa natureza teve o incentivo
recebido de seus parceiros, de forma que elas ajudam-nos na venda e/ou na administração do
dinheiro proveniente do tráfico. Caso algo desse errado para o casal e o homem fosse preso, a
mulher ficaria responsável por garantir que as drogas entrassem no presídio, afinal, ela o amava
e ele era o mantenedor da casa, que agora se encontrava preso, e continuar com o tráfico dentro
da cadeia era a única forma de conseguir sustentar a família que deixara fora daquele contexto
(COSTA, 2008).
Em 2019 foi elaborado a terceira versão do Infopen Mulheres e um número que nos
chama atenção é o de que 79,3% da população carcerária feminina possuem filhos (BRASIL,
2019). A mulher privada de liberdade, além de perder o convívio com a sociedade, também
perde o contato com os seus filhos. Essa separação não é nada fácil; é muito dolorosa para
ambos. No que diz respeito à mãe, esta sofre apenas em pensar que os filhos possam estar sendo
mal tratados por quem estiver gozando de suas guardas, se martiriza por não poder estar
acompanhando os passos dos filhos e, claro, deseja aos filhos um futuro melhor que o presente
vivenciado por ela (VARELLA, 2017).
Partindo do pressuposto de que as mulheres têm necessidades biológicas diferentes das
dos homens, seria plausível que essas demandas fossem atendidas. As mulheres menstruam,
engravidam, dão à luz e amamentam os seus filhos. Fatores esses que merecem uma atenção
especial. Uma vez ao mês as presas menstruam, cada uma com o seu ciclo menstrual de acordo
com suas especificidades orgânicas. O Estado parece não enxergar tais condições. Queiroz
(2015, p. 103) denuncia esse cenário:
Entre carências, incertezas e violências da vida contemporânea: o encarceramento feminino no Brasil
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Em geral, cada mulher recebe por mês dois papéis higiênicos (o que pode ser
suficiente para um homem, mas jamais para uma mulher, que o usa para duas
necessidades distintas) e um pacote com oito absorventes. Ou seja, uma
mulher com um período menstrual de quatro dias tem que se virar com dois
absorventes ao dia; uma mulher com um período de cinco, com menos que
isso.
As que recebem visitas de seus familiares, ainda podem ter um bônus, mas e aquelas em
que as famílias moram longe e não conseguem ir visitá-las? Ou aquelas em que a família não
tem condições de comprar os itens mínimos de higiene pessoal? Muitas que estão ali dependem
da assistência que o Estado proporciona a elas.
Varella (2017) nos remete à ideia que a prisão do homem é relativamente aceita, mas a
da mulher não, esta é inimaginável. O autor apresenta ainda a realidade dos presídios
masculinos em relação aos presídios femininos, que faça chuva ou faça sol, as mulheres estão
lá, formando filas gigantescas com os braços cheios de sacolas, prontas para visitar o apenado.
Porém, o mesmo não acontece com as mulheres. A mulher presa é esquecida, não sendo
lembrada por familiares, amigos, companheiro e até mesmo pelos filhos. Muitos a esquecem
pela estigmatização que passa pelo fato de estar presa. O abandono é a pena mais difícil de
suportar. Nesse aspecto, D’Eça (2010, p. 79) nos traz o relato de uma apenada que lamenta o
abandono da família.
Sinto-me desprezada. Sem carinho de mãe, sem as presenças dos meus irmãos
que não podem vir me ver porque é longe. O dia que eu me sinto mais triste é
no de visita. Eu vejo a visita de todo mundo chegando e pra mim não chega
ninguém... Então eu me sinto humilhada, realmente desprezada. A gente entra
em depressão porque quem tem visita sai [para o pátio], quem não tem fica
trancada [na cela] o dia todo.
As mulheres quando são presas, ficam a princípio detidas em delegacias próximas de
suas casas, posteriormente são transferidas para os presídios, que geralmente ficam mais
afastados, dificultando assim as visitas dos familiares. Um dos fatores para esse abandono é a
questão do elevado gasto com comidas, itens de higiene e a passagem de ônibus, uma vez que
a maioria esmagadora é pobre, assim como a sua família.
Em vez de pequenas unidades distribuídas pelo Estado, as penitenciárias
femininas do Brasil são grandes e poucas. Transporte e hospedagem são caros
e, normalmente, não existe ajuda do governo para que as visitas aconteçam.
Muitas unidades, inclusive, impõem dificuldades, como limitar o número de
crianças por visita. Além de impedir que os filhos encontrem a mãe todos
juntos, em algumas situações a visita nem sequer acontece porque o
responsável pelas crianças não tem com quem deixar os filhos que não
entrarão (QUEIROZ, 2015, p. 103).
Por lei, a revista íntima é proibida no Brasil desde 2016, após a promulgação da lei
13.271/16, que sinaliza que “as empresas privadas, os órgãos e entidades da administração
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pública, direta e indireta, ficam proibidos de adotar qualquer prática de revista íntima de suas
funcionárias e de clientes do sexo feminino” (BRASIL, 2016). Apesar de estar escrito de uma
maneira ampla, também abrange as penitenciárias. Nesse tocante, é notório que há um descaso
por parte do Estado em investir em tecnologia que pudesse garantir a intimidade, a integridade
moral, psicológica e física dos visitantes, conforme é previsto em lei.
A forma desumana em que acontecem as revistas é um ponto primordial para que as
pessoas não queiram mais voltar lá e acabam abandonando as mulheres encarceradas. Tal fator
entra no tocante das visitas íntimas, as presas sentem muito pela ausência dos companheiros.
Mas estes deixam de ir vê-las para não passarem pelo constrangimento da revista ao chegarem
à prisão. Mas os motivos do abandono do cônjuge vão além da revista. Seja pelo estigma social
empregado a ela ou pelo fato de já terem outra na rua, que esteja livre. Condição essa que nem
pode passar pela cabeça das mulheres, pois estaria correndo risco de morte (OLIVEIRA;
SANTOS, 2012).
Além da tristeza pelo abandono afetivo, algumas das presas também sentem pela
abstinência sexual proveniente de não receberem visita íntima do seu parceiro. A visita íntima
tem como principal finalidade o fortalecimento de laços, bem como, um incentivo para uma
possível mudança, que a presa sabe que há alguém esperando por ela fora da prisão. Assim,
as relações extramuros vão fortalecendo os vínculos e fortificando a intimidade entre ambos,
afinal, não é fácil manter um relacionamento em que um dos parceiros encontra-se recluso.
Entretanto, uma grande parcela da sociedade esse benefício como uma regalia (IDEÃO;
RAMOS, 2017).
Outro problema dentro das penitenciárias femininas no Brasil é o exercício pleno da
maternidade. Seja por discriminação de gênero ou pela não execução correta da lei. Muitas das
presas que são inseridas no sistema penitenciário adentraram o local com uma gravidez ou
engravidaram mesmo nos dias das visitas íntimas ou nas “saidinhas”
6
. Quase metade das
mulheres privadas de liberdade no Brasil, exatos 47,33%, tem até 29 anos de idade (BRASIL,
2019). Fator esse que contribui para a maternidade dentro do cárcere.
A gravidez requer uma atenção redobrada tanto para a genitora quanto para a criança. A
realidade enfrentada pelas mulheres grávidas durante os nove meses de gestação dentro da
prisão é bem complicada (JULIO, 2016). Além dos dias passarem devagar dentro das celas, em
geral, as gestantes não têm sequer uma cama adequada para a sua gravidez, não têm um
6
As saidinhas são as saídas temporárias que os presos do regime semiaberto têm direito de usufruir caso seja
deferido pelo/a juiz/a, para isso, é necessário que o preso tenha cumprido pelo menos 1/6 da pena total, caso este
seja réu primário, ou ¼ se for reincidente. Além de ter uma boa conduta.
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acompanhamento pré-natal, não sabem as condições em que seus bebês se encontram, nem
tampouco sabem o sexo da criança. Não é difícil encontrar relatos de experiências em que
destacam que, muitas delas, acabam parindo dentro da própria cela:
A maioria das detentas grávidas chega grávida na cadeia. Algumas, no
fim da gestação, nunca passaram por um obstetra pois eram pobres e
desinformadas demais. Como em todo o país existem 39 unidades de saúde
e 288 leitos para gestantes e lactantes privadas de liberdade, na maioria dos
presídios e cadeias públicas, elas ficam misturadas com a população carcerária
e, quando chega a hora do parto, geralmente alguém leva para o hospital.
nasceu muita criança dentro do presídio porque a viatura não chegou a tempo,
ou porque a polícia se recusou a levar a gestante ao hospital, que
provavelmente não acreditou — ou não se importou — que ela estava com as
dores de parto (QUEIROZ, 2015, p. 42-43).
A LEP dispõe que é obrigatório que se tenha berçário e creche nos presídios femininos.
Porém, a prática difere da teoria e tal requisito não é atendido (BRASIL, 1984). O relato trazido
por D’Eça (2010, p. 80-81) de uma assistente social exemplifica a não efetivação do que está
previsto em lei:
Como é que você constrói uma unidade feminina, existe uma lei que
regulamenta a necessidade de berçário e creche, e você não atende essa lei?
Acho que é por conta do pensamento machista mesmo. Eles não veem a
condição da mulher e as necessidades exclusivas dela. Então fizeram um
presídio como um presídio qualquer. Se você observar a estrutura é muito
semelhante às unidades masculinas e poderia ser diferenciada. Poderiam
trazer uma outra estrutura para as celas, poderiam colocar creche e berçário,
porque tinha espaço. Nas comarcas onde não tem presídios, as cadeias
públicas e delegacias, que também estão lotadas, mandam elas pra gente.
elas estão nas celas com os homens, engravidou e vêm grávida para aqui.
Tratando as mulheres como se fossem homens que o sistema penitenciário
gera todo esse problema. E quando a presa parir, onde o bebê tem que ficar?
Na cela!
Quando as mães chegam do hospital com os bebês, em algumas cadeias eles arrumam
uma cela para que fique com o seu filho. Tudo improvisado. Entretanto, na maioria dos casos,
o recém-nascido fica junto à mãe na cela pequena, suja e úmida. Ambos propensos a pegar
algum tipo de infecção.
Conforme mostra o relatório da CPI do Sistema Carcerário de 2009, as mães
encarceradas, em muitos presídios, não são sequer transferidas para celas que
tenham o mínimo de adaptação para crianças, como berços, tendo essas
crianças que conviver junto de suas mães em celas com umidade, mofo, e em
muitos casos, mais de 10 mulheres na mesma condição de mães, ficando ali
sujeitas a qualquer rebelião (ARAÚJO; LIBERATO, 2015, s/p).
Os recém-nascidos podem ficar com as mães e serem amamentados até os 06 meses de
vida, de acordo com a lei de 11.942, de 28 de maio de 2009. Após esse período de
amamentação, a criança poderia ficar junto à mãe até completar cinco anos de idade no espaço
adequado, a creche. Porém, passados seis meses da amamentação, as crianças são arrancadas
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de suas mães. Caso tivesse o berçário em todos os presídios femininos, por um ângulo seria
benéfico, pois assim haveria o fortalecimento do vínculo mãe-filho. Seria importante também
o convívio com o filho ali na cadeia para que a presa começasse a pensar em boas práticas fora
daquele lugar, pudesse pensar numa reinserção social para si e um futuro melhor para o filho.
Nesse tocante, D’Eça (2010, p. 91) destaca que, no sistema penitenciário, “a creche
cumpre um papel diferente daquelas que estão situadas fora do contexto prisional: aproxima
mães e filhos”. Entretanto, observando essa situação por outro prisma, acredita-se também que
o filho não deve cumprir pena com a mãe. Em razão das cadeias serem lugares insalubres e
impróprios para crianças, uma vez que, ainda que tivessem os berçários, logo, haveria
superlotação. De forma que as crianças acabariam voltando para as celas junto às mães. O
mesmo valeria para as creches, que acolheriam as crianças menores de seis anos. Porém, o
sonho de muitas mães em situação de cárcere é que tivessem o berçário e a creche, para que
assim pudessem ficar mais próximas dos seus filhos (D’EÇA, 2010).
Passado o tempo legal de amamentação dos filhos, as mães o entregam para alguém da
família ou para algum abrigo. Tal separação é inevitável. Às vezes, é possível prolongar a
estadia da criança dentro da prisão, porém, não seria definitiva. Conforme prevê o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), em caso onde um dos pais ou dois se encontram presos, a
suspensão do poder familiar se faz necessária, até que esse cenário mude. Entretanto, para a
mãe, uma ex-presidiária, conseguir recuperar a guarda do filho não é nada fácil:
As que conseguem completar os seis meses de direito, precisam dar o filho
para o pai, um parente ou entregar para um abrigo. Neste último caso, quando
terminam de cumprir sua pena, elas têm que pedir a guarda dos filhos de volta
à Justiça. Nem todas conseguem. Para provar-se capaz de criar uma criança, é
preciso ter comprovante de endereço e emprego. E esse é um salto muito mais
difícil de ser dado pelas mulheres com antecedentes criminais. Quando um
homem é preso, comumente sua família continua em casa, aguardando seu
regresso. Quando uma mulher é presa, a história corriqueira é: ela perde o
marido e a casa, os filhos são distribuídos entre familiares e abrigos. Enquanto
o homem volta para um mundo que o espera, ela sai e tem que reconstruir
seu mundo (QUEIROZ, 2015, p 44).
Assim, por mais que a mãe saiba que o filho está bem cuidado com a família, ela ainda
assim sente a falta da criança perto dela, o que muitas vezes torna a pena desta mulher ainda
mais sofrida, mais árdua para se cumprir. Com o filho ali, poderia ser um elemento a mais de
esperança numa possível ressocialização, lhe encorajando lutar e cumprir sua pena.
No primeiro semestre de 2017, o Brasil tinha 37.828 mulheres privadas de liberdade.
A tabela abaixo traz informações mais detalhadas.
Entre carências, incertezas e violências da vida contemporânea: o encarceramento feminino no Brasil
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Tabela 1 – Mulheres privadas de liberdade no Brasil
Total da população prisional feminina
37.828
Sistema Penitenciário
36.612
Secretaria de Segurança e Carceragens
1.216
Total de vagas
31.837
Déficit de vagas
5.991
Taxa de Ocupação
7
118,8%
Taxa de Aprisionamento
35,52
Fonte: Brasil, 2019.
No que concerne à escolaridade, as mulheres presas apresentam um baixo grau de
escolaridade, de modo que 44,42% destas possuem o Ensino Fundamental Incompleto, seguido
de 15,27% com Ensino Médio incompleto e 14,48% com Ensino Médio Completo. Com o
Ensino Superior Completo, apenas 1,46% das presas. No que diz respeito ao estado civil,
destaca-se o percentual de solteiras, 58,4%. As presas em união estável ou casadas representam
32,6% da população prisional feminina (BRASIL, 2019).
Tomando como exemplo o delito com maior incidência dentro dos presídios femininos,
o tráfico de drogas, partindo das novas configurações das famílias brasileiras, onde a mulher
precisa prover a casa sozinha, levando em consideração que muitas dessas mães são negras e
com baixa escolaridade, fica cada vez mais difícil conseguir um emprego formal. Neste
contexto, França (2014, p. 223) destaca que “algumas mulheres afirmaram terem iniciado a
prática desse delito em razão de o companheiro se encontrar preso e, como precisavam arcar
com as despesas da casa, não tiveram outra alternativa”. O caminho do tráfico, então, aparece
como uma possibilidade para sustentar os filhos.
Percepção das ex-detentas sobre a prisão
O público alvo da pesquisa realizada foi composto por sete mulheres que cumpriam
Prestação de Serviços à Comunidade – PSC e que já tinham passado pela prisão. Inicialmente,
perguntamos acerca da prisão provisória e/ou preventiva. Se elas visualizam que essa prisão
provisória se fazia necessária, tendo em vista a não condenação delas. Todas as sete
entrevistadas compartilham da ideia de que essa reclusão não é importante, uma vez que
poderiam esperar a sentença do juiz em liberdade, por se tratarem de crimes considerados de
menor potencial ofensivo. Segundo a Entrevistada A, não precisaria, era só julgar logo; mas
7
A taxa de ocupação é calculada pela razão entre o número total de mulheres privadas de liberdade e a quantidade
de vagas existentes no sistema prisional. Para o cálculo, são consideradas as mulheres privadas de liberdade em
carceragens de delegacias, porém não são consideradas as vagas existentes nesses espaços de custódia, uma vez
que são espaços inadequados à permanência da população privada de liberdade.
Rodrigo Barbosa e Silva; Denise Rodrigues Vieira da Silva
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a justiça serve para alguns”. A Entrevistada B também corrobora do mesmo argumento:
não, ele (o juiz) poderia escolher a pena alternativa logo”. A Entrevistada E também segue o
mesmo raciocínio: completamente desnecessária, como eles [operadores do direito] falam, eu
não oferecia risco à sociedade, mas só viram isso depois, né?!”.
Podemos perceber que, caso houvesse maior agilidade por parte do judiciário no que
tange aos julgamentos dos processos, muitos transtornos seriam evitados. Um fator que é
extremamente importante elucidar é o fato de que boa parte da população encarcerada no Brasil
é formada por presos provisórios, que não tiveram ainda a condenação do seu delito, o que
impulsiona ainda mais a superlotação nas cadeias. No que se refere ao aprisionamento feminino
não é muito diferente: “podemos inferir que 37,67% das mulheres presas no Brasil são presas
em regime provisórios, ou seja, sem condenação” (BRASIL, 2019, p. 15).
Quando perguntamos sobre as condições da prisão em que elas ficaram reclusas a
resposta foi unânime, péssimas. Atrelada a essa questão, questionamos se o período em que elas
ficaram reclusas trouxe algum benefício para a vida delas e pedimos para que elas falassem um
pouco sobre esse ponto. A Entrevistada C foi objetiva: Não, pelo contrário, quando retornei
encontrei a minha casa toda revirada, bagunçada, mal cuidada; me afastou da minha família,
dos meus filhos.”. A Entrevistada D também não visualizou benefícios: Não, benefícios não.
Pelo contrário, trouxeram prejuízos, até mesmo para a minha cabeça. As condições de são
as piores”. A Entrevistada F sentiu falta dos laços familiares: “me afastou dos meus meninos,
da minha família”.
Os relatos acima sustentam a tese que muitos pesquisadores trazem acerca das condições
que são vivenciadas pelos detentos. De forma que as condições socio-habitacionais influenciam
diretamente na vida dos detentos. Em cima disso, perguntamos se elas acreditavam que o
cárcere seria capaz de promover uma ressocialização: “Nunca! Como te falei, as pessoas saem
de pior”
8
. “Não, mas eu consegui ver como algo que me fizesse nunca mais voltar, mas a
maioria dentro não enxerga dessa forma”
9
. “Não, fica é pior... mesmo, as meninas ficavam
falando que quando saíssem de fariam pior, que é um inferno”
10
. “Não, porque é
péssimo... a comida muitas vezes vinha até com mosca, fio de cabelo... nossa! Muita sujeira.
Não tem como você sair de lá melhor, muitas vezes sai pior que entrou”
11
. “Não, a maioria que
está veio aqui e retornou... cada vez pior”
12
. “De jeito nenhum, o é lugar de gente
8
Entrevistada A
9
Entrevistada B
10
Entrevistada C
11
Entrevistada D
12
Entrevistada E
Entre carências, incertezas e violências da vida contemporânea: o encarceramento feminino no Brasil
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não, não desejo nem pro meu pior inimigo; muita gente sai de pior”
13
. “Não, quem é ruim
sai pior, quem não é, vai caindo aos poucos; se você foi lá, tu sabe... imundo, não tem
privacidade.”
14
.
As falas acima reiteram o que é sabido, o cárcere é falido, ainda que este tenha surgido
com a finalidade de realizar todos os objetivos da pena punir, ressocializar e prevenir a
reincidência criminal. Por isso que, anos, percebendo a quase impossibilidade da
ressocialização com a pena privativa de liberdade, muitos denunciam que, de fato, a prisão não
traz aspecto positivo para a vida de quem passa por ela (BITENCOURT, 2001). O cárcere, de
forma geral, apenas contribui para a violação dos direitos humanos e tem como único papel a
punição. Temos, então, um cenário aquém daquele vislumbrado na teoria com atividades
terapêuticas visando a ressocialização: retirada dos sujeitos do convívio social; período de
privação da liberdade em ambientes insalubres; e a reinserção dos mesmos à sociedade
Considerações finais
Cada vez mais as condições das prisões brasileiras são as piores possíveis, sendo
insalubres e subumanas. É consensual por parte das entrevistadas que a prisão não traz benefício
para a vida de quem passa por lá. Pelo contrário, foi possível perceber que elas corroboram a
posição de muitos autores da área que apontam que a prisão não ressocializa e nem previne
reincidência criminal. Uma vez que não é “lugar de gente” e quem adentra o ambiente
prisional, “sai de pior”. Não há o incentivo e tampouco valoriza o lado reflexivo e educativo
da pena, atendo-se apenas em punir e excluir o sujeito.
As condições sob as quais os apenados vivem nas prisões são sub-humanas, o que
provoca nesses sujeitos sentimento de revolta, o que pode desencadear em uma nova prática
delituosa, principalmente se levarmos em consideração o fato de que após saírem da prisão,
geralmente esses egressos não têm apoio algum por parte do Estado. Se antes, enquanto
“cidadão de bem”, o acesso aos direitos básicos era difícil, agora, com o estigma de ex-
presidiário, é quase inalcançável.
Algumas áreas do conhecimento, como a do Serviço Social e a Educação, têm se
apresentado como possibilidades factíveis ao processo de reintegração social das mulheres
presas, de forma que a atuação do profissional se dá em um espaço que oferece oportunidades
de se relacionar com outras pessoas e vivenciar novas experiências, para que possam traçar
13
Entrevistada F
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Entrevistada G
Rodrigo Barbosa e Silva; Denise Rodrigues Vieira da Silva
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novos projetos de vida. A atuação do/a Assistente Social, especificamente, que prima pela
efetivação e garantia dos direitos sociais para que a dignidade humana do sujeito seja mantida,
torna-se desafiadora e necessária no contexto prisional para que o cenário caracterizado pelas
entrevistadas possa ser transformado.
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