DOI 10.34019/1980-518.2020.v20.29965
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O livro II de O capital e o Direito:
um debate com Pachukanis
Vitor Bartoletti Sartori
*
Resumo: contrário do que se usualmente ao tratar do Direito em Marx, trataremos do livro II de O
capital. Em primeiro lugar, traremos à tona sua especificidade em relação ao livro I e III da obra magna
de Marx. Posteriormente, ao ter em conta a relação entre reprodução e acumulação de capital,
analisaremos a posição do Direito nesta obra para, então, tratar de seu aspecto dúplice, que passa pela
correlação entre o capital produtivo e o capital improdutivo, ao mesmo tempo em que expressa
contradições importantes no sistema de apropriação capitalista.
Palavras-chave: Marx, O capital, Direito, Livro II, capital produtivo
The Book II of Capital and tha Law: debate with Pachukanis
Abstract: here, we will analyze Marx’ s Book II of The capital. First, we will deal with its plane on
Marx’s masterpiece; than, taking in account the reproduction and the accumulation of capital, Law will
be dealt. Finally, we intend to expose the relationship between Law, productive capital and improductive
capital. So, we will deal with some contradictions present in capitalist appropriation system.
Key-words: Marx, The capital, Book II, productive capital
Submetido em16/03/2020
Aprovado em 30/04/2020
*
Professor do departamento de Direito do trabalho e introdução ao Direito da faculdade de Direito da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Docente no programa de Pós-graduação em Direito na Universidade Federal
de Minas Gerais. Editor da Revista Verinotio e autor de publicações sobre Marx e marxismo, como os livros Lukács
e A crítica ontológica ao direito e Ontologia nos extremos: o embate Heidegger-Lukács, uma introdução.
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Introdução
No âmbito dos estudiosos da obra de Karl Marx voltados ao Direito há uma prevalência
do livro I de O capital. Isto se dá, sobretudo, devido à influência decisiva da obra Teoria geral
do Direito e o marxismo (2017), de Pachukanis. Em grande parte tomada como uma
interpretação autêntica do Direito em Marx e do modo pelo qual o método marxiano se
colocaria (Cf. NAVES, 2000, 2014), esta obra deu a tônica do debate sobre marxismo e o Direito
ao enfocar a relação entre forma jurídica e forma mercantil (Cf. PACHUKANIS, 2017); esta
relação, por sua vez, ficaria clara ao se ter em conta, sobretudo, a ligação entre os capítulos I e
II do livro I de O capital, de Marx.
Assim, o enfoque neste livro da obra magna de Marx apareceu praticamente
como evidente. E, claro, do ponto de vista do conhecimento da obra marxiana, é também de
grande valia a compreensão dele, bem como o estudo da obra pachukaniana. (Cf. SARTORI,
2015) No entanto, para que seja possível um estudo criterioso do corpus teórico de Karl Marx,
é preciso que as outras partes da obra do autor alemão sejam estudadas com o mesmo afinco,
também no que diz respeito ao Direito. Tendo isto em conta, aqui não discutiremos os acertos
ou erros desta interpretação por assim dizer, clássica da obra marxiana. Antes, procuraremos
trazer à tona algo que ainda não foi realizado com o devido cuidado, um estudo, mesmo que
breve, sobre o Direito no livro II de O capital.
1
Mesmo que os méritos da obra pachukaniana,
também em sua leitura de Marx, sejam muitos (Cf. SARTORI, 2015)
2
, sempre que se trata da
análise da obra de um autor clássico ainda mais de um como Marx, que foi reivindicado por
tradições bastante diversas de se voltar ao próprio texto, e ao modo pelo qual certas
temáticas aparecem diferentemente em diversos momentos de sua obra. Ou seja, não negamos
a contribuição da tradição pachukaniana que, de um modo mais ou menos meandrado,
prevalece nos estudos marxistas sobre o Direito -; antes, aqui, tentaremos nos voltar a um texto
de Marxo livro II de O capitalque não foi tratado com o mesmo cuidado, seja pelo próprio
autor da Teoria geral do Direito e o marxismo, seja por aqueles que a reivindicam e que, de
certo modo, no Brasil, vem fazendo escola, sobretudo, devido à influência de Márcio Naves e,
mais recentemente, de Alysson Mascaro.
3
1
Vinícius Casalino, em seu livro Direito e mercadoria (2011), chega a trazer uma crítica a Pachukanis a partir da
problemática da reprodução ampliada, presente no livro II de O capital. Porém, seu enfoque não está na obra de
Marx, mas sim na de Pachukanis.
2
Mesmo que talvez seja possível criticar suas teses centrais, de certo modo, como sugere-se em SARTORI, 2019
a e em PAÇO CUNHA, 2014, 2015.
3
Mascaro aponta sobre a perspectiva que chama de crítica na filosofia do Direito que “esta perspectiva extraída
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Não dizemos que seja preciso voltar-se aos textos do próprio Marx e não tomar
Pachukanis como um intérprete rigoroso da obra marxiana por simples purismo ou por
simples gosto pela marxologia. Também não estamos sugerindo que a análise do texto marxiano
possa resolver todos os dilemas colocados na sociedade analisada por ele, a capitalista.
Trazemos esta questão à tona porque, mesmo que não suficiente para uma tradição como a
marxista na qual os estudos sobre Marx normalmente se colocam –, o estudo cuidadoso de
um autor clássico sempre tem uma função essencial. Ser marxista ou contrário ao marxismo
– sem o conhecimento da obra de Marx parece algo, em verdade, um tanto quanto estranho. A
compreensão de uma tradição, bem como dos seus caminhos e descaminhos, remete ao
pensamento que a funda; ao mesmo tempo não pode ser reduzido a ele. E, por isso também,
parece-nos essencial voltar àquele que talvez seja o primeiro passo na análise do marxismo, e,
em específico, da relação entre marxismo e Direito, a análise da obra do próprio Karl Marx,
aqui, vista ao se trazer à tona o livro II de O capital.
A análise de autores dentro da tradição marxista, seus papéis em suas épocas, suas
contribuições e etc. também é considerado por nós de grande relevo. Porém, os limites deste
texto não permitem que se extrapole o pensamento do próprio Marx. Continuemos, portanto.
Alguns estudos já foram realizados no Brasil sobre o Direito em Marx. Além do citado
Márcio Naves (2000, 2014), que pode ser considerado o principal marxista estudioso do Direito
em nosso país, tem-se – também a partir de uma perspectiva pachukaniana – a obra de Alysson
Mascaro (2008, 2012) e Celso Naoto Kashiura Jr (2009, 2014). Trata-se de autores que, ao
trazer à tona a análise do texto marxiano, têm alta dívida com o autor da Teoria geral do Direito
e o marxismo. Principalmente no caso de Kashiura e de Naves, uma influência fortemente
althusseriana também. Mas, não obstante a seriedade, o rigor e a dedicação destes autores,
de se perceber que, quando o texto do próprio Marx é trazido à tona, tem-se por essencial o
livro I de O capital, e não tanto uma análise sistemática da obra do autor alemão. É preciso
apontar também que alguns momentos da obra marxiana (como aqueles anteriores à Ideologia
alemã) são tratados de modo bastante rápido que, para estes autores, a obra marxiana anterior
a este período ainda não teria passado pela ruptura epistemológica, que caracterizaria a
cientificidade marxiana, sendo marcada por uma concepção confusa e alinhada com certo
“humanismo”, pico do pensamento burguês. (Cf. ALTHUSSER, 1979, 1999, 2002) Ou seja,
em grande parte, tem-se, também a partir de Althusser, a ausência de um estudo detido da obra
do marxismo, cuja leitura mais profunda está em Evguiéni Pachukanis.” (MASCARO, 2018, p. 315).
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de Marx de seu período formativo (Cf. CHASIN, 2009); há, inclusive, sob a influência de
Pachukanis, uma ênfase bastante grande em O capital, e, em especial, no livro I desta obra.
Trata-se, pois, de autores que certamente prevalecem devido aos seus méritos e clareza. No
entanto, no Brasil, também estudos distintos sobre o Direito em Marx, mesmo que eles
sejam, de certo modo, incipientes. E é preciso que se destaque, mesmo rapidamente, e sem
pretensão de ser exaustivo, alguns deles. Os autores mencionados acima trazem uma visão geral
do Direito em Marx, como dito, principalmente, tendo como guia a obra pachukaniana.
Porém, a partir de uma análise mais detida do texto do próprio Marx, pode-se destacar
estudos mais cuidadosos sobre momentos específicos da obra marxiana.
Nestas pesquisas, em geral, não se tem a posição pachukaniana ou althusseriana como
referência, e, principalmente em contato com a tentativa de renascimento do marxismo,
proposta por György Lukács (2013), procura-se analisar os meandros do texto marxiano com o
maior cuidado possível. Assim, têm-se, por exemplo: 1) sobre o papel do Direito na formação
inicial de Marx, Murilo Pereira Leite Neto (2018), que analisa os textos de 1837 a 1842, e
Marco Aurélio Palu (2018) que trata da obra marxiana de 1843; 2) sobre o Direito penal em
Marx de 1842 a 1857 dispõe-se do texto de Nayara Medrado (2018); 3) sobre a relação entre
Marx, Morgan e o Direito nos chamados Manuscritos etnológicos, o estudo de Lucas Parreira
Álvares (2019) destaca-se. Com uma perspectiva bastante próxima, o estudo de José Roberto
Almeida Sales Jr. (2018) sobre o papel do Direito na Alemanha, mais precisamente, na Nova
Gazeta Renana, de 1848.
4
Poderíamos ainda mencionar estudos (artigos, principalmente) de menos fôlego sobre o
tema, no entanto, para que fiquemos nas pesquisas de maior extensão, basta que mencionemos
estas. Assim, de certo modo, pode-se dizer que ainda um longo caminho no que toca a análise
do Direito no pensamento do próprio Marx. Neste ponto, também não seremos exaustivos, mas
podemos dizer que faltam estudos sobre o Direito nas obras de 1843-1844, como Sobre a
questão judaica (mesmo que este texto seja muito citado) e as Glossas marginais; não se tem
uma análise detida do debate de Marx com os neohegelianos, que acontece na Sagrada família
e na Ideologia alemã e que passa por diversas pontuações do autor sobre o aspecto jurídico. O
posicionamento de Marx contra Proudhon, em A Miséria da filosofia, bem como no livro III de
4
Seria possível citar algumas outras dissertações, como a de Lucas de Almeida Silva, Marx e o movimento do
direito nos textos econômicos (1857-1879) (2018); ou a dissertação de Carlos Florêncio de Melo, O lugar dos
Manuscritos etnológicos no pensamento de Karl Marx, um embate com Maine (2019); tem-se também, a partir de
uma perspectiva distinta, o estudo de Moisés Soares sobre os Grundrisse, Direito e alienação nos Grundrisse de
Karl Marx (2011). Como mencionamos, não pretendemos ser exaustivos ao elencar as pesquisas.
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O capital, passa também por uma crítica ao Direito; e tal tema ainda não foi tratado com o
cuidado que merece. O modo pelo qual Marx traz reivindicações jurídicas no Manifesto, ao
mesmo tempo em que também critica o Direito o foi analisado com rigor. Os textos marxianos
sobre a França (Luta de classes na França, O 18 Brumário de Luís Bonaparte, bem como
Guerra civil na França) ainda o tiveram uma análise sistemática no que toca o Direito e a
função deste nas lutas de classes da época. O papel do Direito na Rússia, em comparação com
a Índia e com a China foi trazido à tona somente de modo lateral. (Cf. SARTORI, 2017) Não
também um estudo detido sobre o Direito nas Teorias do mais-valor. Poderíamos mencionar
diversas lacunas no estudo sobre o tema em Marx. No entanto, basta-nos ter citado estas para
que fique claro que o caminho na compreensão da obra marxiana é mais árduo do que, sob a
premissa de que Pachukanis é o elo essencial na pesquisa marxista sobre o Direito, supõe-se.
Por isso, é preciso ir para além de Pachukanis.
Nota-se também algo bastante interessante: ao mesmo tempo em que uma
centralidade bastante grande do livro I de O capital nos estudos sobre o Direito em Marx, ainda
não se tem um estudo detido e sistemático sobre o próprio livro que é central ao debate. Se em
outro lugar foi debatida a interpretação pachukaniana do livro I (Cf. SARTORI, 2019 a), aqui,
nós pretendemos algo diferente: a partir daquilo que José Chasin na esteira da obra de György
Lukács (1959) chamou de análise imanente
5
, procuraremos trazer à tona o modo pelo qual o
Direito aparece no livro II. Já havendo também pesquisas (artigos) sobre o Direito no livro III
(Cf. SARTORI, 2019 b), é preciso que se início a um estudo sobre o Direito no livro II da
obra magna de Marx. Assim, o presente texto tem a pretensão de lançar um debate bastante
necessário para a compreensão da obra de Marx. Intentamos trazer uma pequena contribuição
ao embate também. Mesmo sabendo que este é um passo que não basta por si só, acreditamos
que isto pode ser relevante, tanto para que se subsídios para os que aderem à tradição
marxista quanto àqueles que pretendem conhecê-la melhor.
5
Como diz Chasin: “tal análise, no melhor da tradição reflexiva, encara o texto a formação ideal em sua
consistência autosignificativa, aí compreendida toda a grade de vetores que o conformam, tanto positivos como
negativos: o conjunto de suas afirmações, conexões e suficiências, como as eventuais lacunas e incongruências
que o perfaçam. Configuração esta que em si é autônoma em relação aos modos pelos quais é encarada, de frente
ou por vieses, iluminada ou obscurecida no movimento de produção do para-nós que é elaborado pelo investigador,
que, no extremo e por absurdo, mesmo se todo o observador fosse incapaz de entender o sentido das coisas e
dos textos, os nexos ou significados destes não deixariam, por isso, de existir [...]”. (CHASIN, 2009, p. 26)
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O livro II de O capital, a acumulação capitalista e o nível da abstração em
que se coloca a análise do Direito em Marx
O livro II de O capital coloca-se em um nível mais concreto de análise se comparado
ao livro I. Enquanto este último trata do processo imediato de produção, em que é produzido o
mais-valor, o primeiro trata do processo de circulação, em que o mais-valor pode – ou não – ser
realizado. Dizemos que um maior nível de concretude, não porque aquilo abordado no
processo de circulação seja mais “real” que o que se tem no processo imediato de produção,
mas porque o tema analisado aproxima-se mais da experiência concreta dos homens da
sociedade capitalista. Em verdade, quando Marx trata das figuras que mais se aproximam da
imediatez da efetividade, as determinações essenciais da realidade já estão explicitadas em sua
exposição anterior; ao mesmo tempo, elas se ocultam na conformação imediata da realidade e
as figuras do processo global de produção passam a ser representadas pelos agentes econômicos
como se prescindissem da análise cuidadosa de categorias como mais-valor, força de trabalho,
mercadoria, dinheiro, capital, etc. Estas figuras mais próximas são aquelas como lucro, juros,
renda, que, por si mesmas, não se explicam. É necessário que, por exemplo, o mais-valor seja
compreendido para que se entenda que estas três figuras mencionadas – que parecem ser quase
que naturais aos agentes da produção e da circulação –, que, em verdade, são parcelas do
montante de mais-valor produzido na esfera produtiva. O livro I procura explicitar formas
econômicas (oikonomischen Formen) como mercadoria, dinheiro, capital, mostrando como que
a produção capitalista de mercadorias está assentada na compre e venda da força de trabalho e,
portanto, na produção do mais-valor. O livro III, por sua vez, analisa, dentre outras questões,
como que figuras econômicas (oikonomischen Gestalten) como lucro, renda, juros, ao mesmo
tempo, dependem da produção de mais-valor e parecem prescindir da mesma. O livro II, por
sua vez, ao tratar do processo de circulação de capital em que a reprodução ampliada e a
acumulação de capital se colocam –, de certo modo, é um elo mediador entre estes dois
extremos.
6
A exposição marxiana vai do abstrato ao concreto (Cf. MARX, 1996 a, 2011),
começando pela mercadoria, no livro I e chegando ao capítulo inconcluso sobre as classes
sociais, no livro III. Aliás, a diferença no grau de concretude fica muito clara quando se nota
que no processo de produção imediato, Marx trata principalmente do moderno proletariado, da
burguesia e dos proprietários fundiários, ao passo que no livro II, e principalmente no livro III,
6
Para uma análise da arquitetura e da feitura de O capital, Cf. ROSDOLSKY, 2001.
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diversas outras classes e parcelas de classes aparecem de modo muito mais evidente e com
muito maior proeminência no processo econômico. E, assim, se é verdade que as lutas entre as
diferentes classes, em suas complexidades, são muito mais palpáveis de imediato, também é
verdadeiro que elas podem ser compreendidas tendo-se em conta, por exemplo, o que é a
mercadoria, o dinheiro e o capital. Para se compreender o modo de produção capitalista, seria
preciso também se ter em conta que a oposição fundante deste forma de produção se entre
burguesia e proletariado, o que é tratado no livro I. Ao mesmo tempo, o processo de circulação
(livro II) e o processo global de produção (livro III) trazem oposições e contradições essenciais
para a compreensão da moderna produção de mercadorias, mesmo que tais contradições, por
vezes, não tenham na oposição entre proletariado e burguesia sua conformação imediata. Marx
havia mencionado que na arquitetura de O capital, tal qual havia dito Marx nos Grundrisse,
ao mesmo tempo em que o concreto é “o ponto de partida efetivo” (MARX, 2011, p. 78), “o
concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da
diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como processo da síntese, como
resultado, não como ponto de partida” (MARX, 2011, p. 78-79)
7
; ou seja, não obstante o
conhecimento parta sempre da concretude em sua imediatez (que aparece, sobretudo no livro
III de O capital), a compreensão do processo pelo qual o concreto se conforma como tal precisa
de abstrações
8
, que aparecem em seu grau máximo no livro I.
Para que nos coloquemos mais diretamente sobre nosso tema: a circulação de
mercadorias é muito mais palpável que os pressupostos de sua produção; a primeira, porém,
pode ser entendida com cuidado a partir da última. A exposição marxiana, assim, não é aleatória,
7
Na passagem em sua íntegra, diz Marx que “o concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações,
portanto, unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como processo da síntese,
como resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida efetivo e, em consequência,
também o ponto de partida da intuição e da representação. Na primeira via, a representação plena foi volatilizada
em uma determinação abstrata; na segunda, as determinações abstratas levam à reprodução do concreto por meio
do pensamento. Por isso, Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que sintetiza-se
em si, aprofunda-se em si e movimenta-se a partir de si mesmo, enquanto o método de ascender do abstrato ao
concreto é somente o modo do pensamento de apropriar-se do concreto, de reproduzi-lo como um concreto mental.
Mas de forma alguma é o processo de gênese do próprio concreto. […] a totalidade concreta como totalidade de
pensamento como um concreto de pensamento, é de fato um produto do pensar, do conceituar; mas de forma
alguma é um produto do conceito que pensa fora e acima da intuição e da representação, e gera a si próprio, sendo
antes produto da elaboração da intuição e da representação em conceitos. O todo como um todo de pensamentos,
tal como aparece na cabeça, é um produto da cabeça pensante que se apropria do mundo do único modo que lhe é
possível, um modo que é diferente de sua apropriação artística, religiosa e prático-mental. O sujeito real, como
antes, continua a existir em sua autonomia fora da cabeça; isso, claro, enquanto a cabeça se comportar apenas de
forma especulativa, apenas teoricamente. Por isso, também no método teórico o sujeito, a sociedade, tem de estar
continuamente presente como pressuposto da representação.” (MARX, 2011, p. 78-79)
8
Sobre as abstrações razoáveis em Marx, Cf. CHASIN, 2009.
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mas, de certo modo, é parte de sua própria crítica imanente ao modo de produção capitalista.
(Cf. GRESPAN, 2019)
9
Em, verdade, muitas vezes, os homens se deparam com aquilo trazido
no livro II antes de o processo de produção imediato lhes ser compreensível e, assim diz Marx
em O capital, tal qual nos Grundrisse em diálogo e em antítese a Hegel (Cf. SARTORI, 2014)
- que “é, sem dúvida, necessário distinguir o método de exposição formalmente do método de
pesquisa.” E, deste modo, “a pesquisa tem de captar detalhadamente a matéria, analisar as suas
várias formas de evolução e rastrear sua conexão íntima.” A exposição, portanto, somente seria
possível depois da apreensão das determinações da materialidade e, portanto, “só depois de
concluído esse trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real.” (MARX, 1996
a, p. 140) Os diferentes níveis de abstração, assim, estão colocados de modo indissociável na
realidade. Porém, para que, com a ciência, seja possível sair do nível aparente em direção à
essência - e toda a ciência seria supérflua se a forma de manifestação e a essência das coisas
coincidissem imediatamente” (MARX, 1986 b, p. 271) é necessário aquilo que Marx chamou
abstração razoável. (Cf. CHASIN, 2009) E, percebendo-se que as abstrações são expressões da
própria realidade, é necessário compreender os diferentes veis de abstração, daqueles mais
fenomênicos aos mais essenciais à conformação objetiva do modo de produção capitalista. (Cf,
LUKÁCS, 2013; CHASIN, 2009)
de se ter isto em conta para que as formas de apresentação das categorias da
economia capitalista possam ser compreendidas em correlação com a essência que se apresenta
nas diversas figuras econômicas que compõem a imediatez da sociedade capitalista. (Cf.
GRESPAN, 2019; SARTORI, 2019 a, b) O livro II precisa ser compreendido à luz do livro I e
vice-versa, certamente. E, claro, essência e aparência não são um par dialético que se coloque
no nível simplesmente epistemológico; são, constitutivos da efetividade.
10
A exposição
marxiana traz o desenvolvimento da própria efetividade, explicitando, em momentos distintos,
mas claramente interligados, a figura medular interna, essencial mas oculta” (MARX, 1986 b,
p. 160) e as figuras fenomênicas, que dependem da primeira em suas constituições efetivas, ao
9
Este aspecto da exposição marxiana é importante, porém, não pode ser exagerado. Para Marx, “é, sem dúvida,
necessário distinguir o método de exposição, formalmente, do método de pesquisa.” (MARX, 1996 a, p. 140) ao
passo que, muitas vezes se nota em uma aproximação exagerada entre os métodos de Marx e Hegel é o seguinte:
“o que se observa é o encobrimento do modo de pesquisa pelo modo de exposição das categorias”. (ALVES, 2013,
p. 10) Acreditamos que mesmo um grande autor como Reicheld talvez incorra neste erro ao dizer que “Marx
caracterizou sua relação com Hegel com um coqueteio com a linguagem hegelianae continua, marcando sua
posição, “isto não é uma subestimação dos fatos, mas um evidente despiste, porque se verifica uma profunda
coincidência na estruturação conceitual.” (REICHELD, 2013, p. 20) Para uma breve análise sobre este ponto, Cf.
SARTORI 2014.
10
Sobre esta questão, Cf. LUKÁCS, 2013.
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mesmo tempo em que as ocultam. As figuras econômicas que permeiam o livro III e, em parte
o livro II, não podem ser explicadas por si mesmas, ao mesmo tempo em que não deixam de ter
um efeito ativo sobre as formas econômicas tratadas no livro I e que constituem o essencial da
figura interna do modo de produção capitalista. E, também por isso, um estudo da arquitetura
de O capital não tem interesse meramente filológico.
A noção de produção, presente no livro I, e relacionada ao processo de trabalho, por
exemplo, é bastante importante para a compreensão de O capital e das formas e das figuras
econômicas que aparecem em toda a extensão desta obra. Ela sempre contém determinações
que a especificam, que trazem sua diferença específica, mas que, ao mesmo tempo, fazem parte,
em seu nível mais geral, da própria realidade efetiva; como diz Marx, “a produção em geral é
uma abstração, mas uma abstração razoável, na medida em que efetivamente destaca e fixa o
elemento comum, poupando-nos assim da repetição” (MARX, 2011, p. 56)
11
. A produção em
geral, portanto, não pode ser percebida em sua concretude, de imediato, com os sentidos; é
necessário um exercício de abstração, em que – após compreender a conexão íntima da matéria
expõem-se seu movimento real. Para o que nos diz respeito mais imediatamente, podemos
dizer que as abstrações do livro I como a própria noção de produção, destacada também na
famosa introdução aos Grundrisse – próximas do processo imediato de produção, espelham os
elementos essenciais da constituição da relação-capital; ao mesmo tempo, porém, neste livro, a
exposição ainda não deixa claro ao leitor o modo pelo qual a acumulação de capital se dá, a
partir da realização do mais-valor e do reinvestimento na própria produção, que remete, no
limite, ao mercado mundial. No livro II, por seu turno, esta questão é esclarecida e a
“acumulação de capital, isto é, a acumulação capitalista real” (MARX, 1985, p. 378) é analisada
com mais cuidado, em meio ao processo de circulação de mercadorias e à relação entre a
produção de meios de produção (departamento I) e a produção de meios de consumo
(departamento II). As abstrações, assim, fazem parte do próprio movimento da realidade, são,
como diz Marx, categorias que conformam “formas de ser, determinações de existência”
(MARX, 2011, 85), e assim, são partes da própria matéria. (Cf. LUKÁCS, 2013)
Porém, deve-se destacar algo sobre a exposição do livro II: camadas do capital (como o
11
Diz Marx na passagem na íntegra: “a produção em geral é uma abstração, mas uma abstração razoável, na
medida em que efetivamente destaca e fixa o elemento comum, poupando-nos assim da repetição. Entretanto, esse
Universal, ou o comum isolado por comparação, é ele próprio algo multiplamente articulado, cindido em diferentes
determinações. Algumas determinações pertencem a todas as épocas; outras são comuns apenas a
algumas.[Certas]determinações serão comuns à época mais moderna e à mais antiga. Nenhuma produção seria
concebível sem elas.” (MARX, 2011, p. 56) Para um estudo cuidadoso das abstrações, Cf. CHASIN, 2009.
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capital comercial), que não produzem mais-valor, ganham espaço; deste modo, o centro daquilo
que é tratado afasta-se progressivamente da essência da conformação mais basilar do modo de
produção capitalista, a exploração da mercadoria força de trabalho, trazida à tona no livro I. O
livro II, portanto, trata de algo que é de grande importância para que o modo de produção
capitalista possa se reproduzir concretamente em meio à acumulação de capital – e sem que se
entenda isso, não como haver uma análise crítica deste sistema produtivo -; porém, com isso,
na exposição marxiana, a produção de mais-valor está pressuposta, de modo que uma leitura
parcial de O capital também devido à questão que tratamos neste momento pode levar a
sérios equívocos: de um lado, ao se centrar no livro I, à centralidade excessiva na oposição entre
burguesia industrial e proletariado; doutro, no livro II, pode-se ter a ênfase demasiada na
acumulação de capital, e nos esquemas de reprodução. Caso coloca-se a tônica somente no livro
III, ganhariam espaço o capital portador de juros, a renda, o setor de serviços, as camadas
intermediárias, etc.
12
Há uma unidade em O capital e ela precisa ser compreendida para que se
analise a obra marxiana devidamente
13
. Assim, diz Marx:
O processo direto de produção do capital é seu processo de trabalho e de
valorização, o processo cujo resultado é o produto-mercadoria e cujo motivo
determinante é a produção de mais-valia. O processo de reprodução do capital
abrange tanto esse processo direto de produção como ambas as fases do
processo de circulação propriamente dito, isto é, o ciclo global, que como
processo periódico processo que se repete em períodos determinados sempre
de novo – constitui a rotação do capital. […] Cada capital individual constitui,
entretanto, apenas uma fração autonomizada do capital social total, dotada,
por assim dizer, de vida individual, assim como cada capitalista individual
constitui apenas um elemento individual da classe capitalista. O movimento
do capital social consiste na totalidade dos movimentos de suas frações
autonomizadas, das rotações dos capitais individuais. Tal como a metamorfose
da mercadoria individual é um elo da série de metamorfoses do mundo das
mercadorias da circulação de mercadorias –, assim a metamorfose do capital
individual, sua rotação, é um elo no ciclo do capital social. (MARX, 1985, p.
261)
A produção do valor, sua realização e expansão ligam-se à reprodução do capital. Trata-
se de momentos distintos, mas integrados, do movimento do capital social. A rotação do capital,
bem como o tempo de rotação do capital também são essenciais para a acumulação de capital.
Nela, ao mesmo tempo, coloca-se o capital social e os capitais individuais, estes últimos que se
relacionam, ao mesmo tempo, com suas autonomizações e indissociabilidades. Os capitalistas
individuais, na acumulação, são um elo na conformação da classe capitalista e no modo pelo
12
Sobre o modo como estas questões, bastante pungentes hoje, aparecem em Marx Cf. SARTORI, 2019 b, c.
13
Sobre o assunto, bem como sobre a relação dos Grundrisse com O capital, cf. ROSDOLSKY, 2001.
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qual se coloca o ciclo do capital total; as mercadorias individuais, um elo nas metamorfoses do
mundo das mercadorias, que se apresentam no processo de circulação. Tais temas são de grande
relevo na exposição do livro II de O capital. E, assim, é preciso notar que nosso assunto, o
Direito no livro II, envolve compreender o papel do momento jurídico na acumulação de capital
e no processo de circulação de mercadorias. A questão pode ser importante para este texto, para
os estudos sobre Marx, sobre o marxismo e sobre o papel do Direito na crítica à sociedade
capitalista. Aqueles que, como nós, acreditam que a análise marxiana do modo de produção
capitalista essencialmente acertada, diriam, inclusive, que o tema pode ajudar no entendimento
do próprio sistema capitalista de produção.
E, neste ponto, é preciso ressaltar: praticamente não há estudos de fôlego sobre o tema.
Na esteira de Isaac Rubin (1987), Pachukanis enfatiza o modo de produção capitalista
como algo eivado pela circulação mercantil, chegando, por vezes, a tomar sociedade capitalista
e sociedade mercantil como sinônimas. O autor soviético, inclusive, coloca como central o
Direito em meio à circulação de mercadorias e, principalmente, na compra e venda da força de
trabalho (Cf. PACHUKANIS, 2017); ocorre, porém, que – como bem destacou Vinícius
Casalino (2011) ao analisar a obra marxiana é preciso que se enfoque, não só na reprodução
simples de capital (M-D-M/D-M-D), mas na reprodução ampliada (D-M-D’), ou seja, na
acumulação de capital, tratada no livro II
14
. Segundo o autor de O capital, seria um erro enorme
confundir a produção de mercadorias com a produção capitalista de mercadorias. Diz-se, assim,
no livro II: “Adam Smith identifica a produção de mercadorias em geral com a produção
capitalista de mercadorias; os meios de produção de antemão são capital e o trabalho é de
antemão trabalho assalariado.” (MARX, 1985, p. 287) Com isto, perder-se-ia de vista que, na
sociedade capitalista, a produção de mercadorias é a produção de mais-valor e leva à frente o
processo de autovalorização do valor: “a circulação do capital-mercadoria implica a circulação
da mais-valia, portanto as compras e vendas, por meio das quais os capitalistas medeiam seu
consumo individual, o consumo da mais-valia.” (MARX, 1985, p. 262) A riqueza que se
apresenta no modo de produção capitalista nas mercadorias é produzida no processo imediato
de produção, embora somente se realize como valor efetivamente no processo de circulação. A
acumulação de capital, portanto, é a expansão do mais-valor, não sendo possível falar da
sociedade capitalista somente como uma sociedade mercantil; ela é marcada pela expansão do
14
Casalino (2011), neste ponto, critica Pachukanis. Não entraremos neste debate. Porém, enfatizamos aqui que se
trata de diferentes, e complementares, níveis de abstração, de modo que a questão é bastante meandrada.
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valor e da produção, pela acumulação de capital, que se realiza no processo de circulação.
Se é verdade o que Casalino (2011) coloca, embora existam méritos indubitáveis na
abordagem pachukaniana, ela trata somente de um dos graus de abstração de O capital. E,
assim, é preciso ter em conta diversos outros aspectos, que não são enfatizados pelo autor da
Teoria geral do Direito e o marxismo. Marx é explícito ao dizer que “a reprodução simples em
escala constante aparece como uma abstração”, uma abstração razoável no grau de concretude
do livro I de O capital. No entanto, ao passo que, ao enfatizar o processo de circulação, isto se
“à medida que é estranho supor, de um lado, na base do sistema capitalista, a ausência de
toda acumulação ou reprodução em escala ampliada e, de outro, que as condições em que se
produz não permanecem absolutamente iguais em diversos anos.” (MARX, 1985, p. 293) Ou
seja, ao se ter em conta a reprodução ampliada, ao mesmo tempo, de se analisar a acumulação
de capital e o desenvolvimento desigual das diferentes formações sociais capitalistas
15
. A
autovalorização do valor, assim, somente é possível mediante o processo de circulação de
mercadorias. Nele, no comércio mundial colocado de modo mais ou menos desigual e, por
vezes, por meio de guerras (Cf. LUXEMBURGO, 1985; HARVEY, 2006, 2014) –, o valor pode
ser realizado em meio ao processo mundial de circulação de mercadorias. Comércio exterior e
reprodução ampliada, portanto, são indissolúveis. Mas, é preciso que se aponte: em O capital,
Marx não pode tratar das minúcias do comércio mundial, não havendo no livro II uma análise
pormenorizada sobre o assunto.
Não existe produção capitalista sem comércio exterior. Mas, quando se supõe
a reprodução anual normal em dada escala, supõe-se também que o comércio
exterior apenas repõe artigos locais por artigos diferentes na forma útil ou
natural, sem afetar as relações do valor, portanto também as relações de valor
em que as duas categorias, meios de produção e meios de consumo, se
convertem mutuamente e tampouco as proporções entre capital constante,
capital variável e mais-valia, em que o valor do produto de cada uma dessas
categorias é decomponível. A inclusão do comércio exterior na análise do
valor-produto anualmente reproduzido só pode, portanto, confundir, sem
proporcionar nenhum momento novo, seja do problema, seja de sua solução.
Por isso, deve-se abstraí-lo inteiramente; portanto, aqui, também o ouro há de
ser tratado como elemento direto da reprodução anual, e o como elemento
mercantil introduzido de fora, por meio de intercâmbio. (MARX,1985, p. 343)
No livro II de O capital, é essencial a compreensão das determinações gerais da
reprodução ampliada. Para isso, segundo Marx, seria central a análise das relações estabelecidas
entre o departamento I e o departamento II da economia, bem como entre os diferentes
15
Somente para que não fiquemos silentes sobre o assunto, vale mencionar o papel que Rosa Luxemburgo
desempenhou neste estudo. Cf. LUXEMBURGO, 1985.
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componentes do capital. Assim, mesmo que o mercado mundial com o comércio externo e
com as guerras seja uma condição sem a qual o sistema capitalista de produção não se
sustenta, o autor alemão não pode aprofundar-se na questão no grau de abstração em que sua
exposição se coloca no texto que aqui tratamos. Buscando apreender a reprodução do capital e
as leis gerais da acumulação capitalista, não haveria como (naquele momento da exposição) dar
um passo a mais em direção à concretude da sociedade capitalista em sua efetividade. O grau
de abstração do livro II, assim, é bastante menos acentuado que aquele do livro I, em certo
sentido. Ao mesmo tempo, há de se notar que o modo de produção capitalista como aparece no
livro II é bastante menos complexo do que o modo como ele efetivamente conforma-se em suas
múltiplas determinações. abstrações aqui, portanto. Abstrações razoáveis, certamente. Isto
faz com que o livro III de O capital (bem como textos de análise histórica como Guerra civil
na França, Luta de classes na França, O 18 Brumário, bem como os textos da Nova Gazeta
renana) aproxime-se muito mais da imediatidade da sociedade capitalista que o livro que aqui
tratamos; e, deve-se destacar: mesmo neste livro, não se tem uma análise detalhada do mercado
mundial, do Estado e das guerras. Assim como o processo de circulação é o elo intermediário
entre o processo imediato de produção e as figuras econômicas concretas do processo global de
produção, o livro II aparece como um elo intermediário na arquitetura de O capital. Isto faz
com que temas essenciais, como a acumulação de capital, o desequilíbrio entre os dois
departamentos da economia, o comércio externo e o mercado mundial apareçam, mas somente
em seus elementos mais gerais. (Cf. HARVEY, 2014) Mas, mesmo assim, acreditamos que o
tratamento do Direito neste processo possa ser bastante importante.
O lugar do livro II é bastante peculiar e, inclusive, é negligenciado hoje em dia (Cf.
HARVEY, 2014), tendo-se uma ênfase muito maior no estudo dos livros I e III. O assunto seria
essencial, inclusive, para que se discutisse a natureza do dinheiro no socialismo
16
. No entanto,
aqui não podemos tratar deste e de outros assuntos. Somente destacamos os elementos mais
gerais da arquitetura do livro II para que deixemos claro que seu estudo, quando se trata do
Direito, é de grande valia. E isto se mesmo que se chegar à conclusão segundo a qual
16
Diz Marx que “na produção social, do mesmo modo que na capitalista, os trabalhadores dos ramos de negócios
com períodos curtos de trabalho retirarão, depois como antes, produtos apenas por curto tempo sem dar produtos
de volta; enquanto nos ramos de negócios com períodos longos de trabalho retiram continuamente por longo tempo
antes de devolver. Essa circunstância decorre, portanto, das condições materiais do processo de trabalho em
questão e não de sua forma social. O capital monetário na produção social é eliminado. A sociedade distribui força
de trabalho e meios de produção entre os diferentes ramos de negócios. Os produtores podem receber, por fim,
vales de papel com os quais retiram das reservas sociais de consumo um quantum correspondente a seu tempo de
trabalho. Esses vales não são dinheiro. Eles não circulam” (MARX,1985, p. 265-266).
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ao contrário do que os estudiosos do Direito podem pensar o aspecto jurídico não exerceria,
de acordo com Marx, um papel essencial no processo de circulação de mercadorias, sendo este
processo engendrado, no âmbito econômico mesmo. Mais à frente trataremos do assunto, pois
é necessário que se analise a extensão do papel do Direito na acumulação de capital e no
processo de circulação de mercadorias, processo este que traz consigo a realização do mais-
valor. Isto se dá, primeiramente, para que se possa compreender com cuidado a obra de Marx
(bem como a realidade que ele tratou), mas também porque a importância do aspecto jurídico,
na leitura pachukaniana, é bastante grande, tendo-se, para este autor, o Direito como mediação
essencial na produção do mais-valor. Mesmo que os méritos do jurista soviético sejam muitos,
é preciso que se analise a obra de Marx em graus de abstração com os quais o autor de Teoria
geral do Direito e o marxismo não se preocupou.
Reprodução ampliada e circulação capitalista de mercadorias: as formas
econômicas de O capital e o Direito
A produção de mercadorias não se confunde com a produção capitalista de mercadorias.
E, assim, de se perceber, também por isso, que não é possível trazer a noção de sociedade
mercantil como sinônima de sociedade capitalista. Marx é bastante claro ao trazer à tona sua
crítica a Smith, que vem a tornar o trabalho assalariado (e a própria relação-capital) como algo,
de certo modo, supra-histórico. O autor ataca também o pensador de A riqueza das nações por
outras razões, dentre elas, sua concepção de trabalho e de trabalho produtivo em específico.
(Cf. MARX, 1980; SARTORI, 2018) E, assim, destaca que, na reprodução ampliada do capital,
não se tem simplesmente a incrementação das forças produtivas e do montante de riqueza,
também uma espécie de sujeito automático, que se coloca no valor, na autovalorização do valor;
ele se expressa em formas diferentes de aparição, fetichizadas, e que parecem ser por si
subsistentes na medida em que nunca podem ser. Diz Marx sobre o valor, no livro I, que “e
le
passa continuamente de uma forma para outra, sem perder-se nesse movimento, e assim se
transforma num sujeito automático” (MARX, 1996 a, p. 273)
17
de tal maneira que a produção
17
Veja-se a passagem na íntegra: “a
s formas autônomas, as formas dinheiro, que o valor das mercadorias assume
na circulação simples mediam apenas o intercâmbio de mercadorias e desaparecem no resultado final do
movimento. Na circulação DM D, pelo contrário, ambos, mercadoria e dinheiro, funcionam apenas como
modos diferentes de existência do próprio valor, o dinheiro o seu modo geral, a mercadoria o seu modo particular,
por assim dizer apenas camuflado, de existência. Ele passa continuamente de uma forma para outra, sem perder-
se nesse movimento, e assim se transforma num sujeito automático. Fixadas as formas particulares de aparição,
que o valor que se valoriza assume alternativamente no ciclo de sua vida, então se obtêm as explicações: capital é
dinheiro, capital é mercadoria. De fato, porém, o valor se torna aqui o sujeito de um processo em que ele, por meio
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capitalista se impondo potências estranhas como se naturais fossem. (Cf. SARTORI, 2019
a) A forma dinheiro e a forma capital, por exemplo, aparecem à representação dos agentes de
produção como algo que tem existência plenamente autônoma, e que poderiam ser tratados por
si próprios, trazendo um peculiar modo de representação (Cf. GRESPAN, 2019); ao mesmo
tempo, segundo Marx, seria preciso perceber que a autonomização destas formas econômicas
(que nunca subsistem por si sós fora do processo produtivo) é somente um elo mediador na
produção, mesmo que ele seja extremamente importante.
As circunstâncias mais básicas da produção capitalista, relacionadas à conformação da
relação-capital
18
, dão a tônica da transformação da circulação simples de mercadorias, que está
presente, por exemplo, na sociedade romana, na sociedade russa do culo XIX, entre outras
sociedades, para a circulação de mercadorias assentada sobre a produção capitalista. Assim, por
mais que Marx tenha tratado primeiramente da mercadoria, depois do dinheiro no livro I, sua
exposição supõe o desenvolvimento da relação capitalista de produção, que, também neste
livro, é vista em suas determinações mais basilares. (Cf. ROSDOLSKY, 2001) Sem estas
últimas, tem-se mercadoria e dinheiro em outras formas de produção de mercadorias que não a
capitalista. E, para nosso tema, é essencial que isto seja trazido à tona porque Pachukanis (2017)
associa diretamente a circulação de mercadorias com a existência do Direito, este último que
existiria no modo de produção capitalista. Para Marx, por outro lado, tanto a circulação de
mercadorias quanto a mediação da esfera jurídica são, em verdade, anteriores ao capitalismo –
Marx menciona diversas vezes, por exemplo, o Direito romano e a sociedade antiga. E, neste
sentido, continua sendo preciso que a diferença específica entre as diversas conformações das
mercadorias e das sociedades seja também trazida à tona; trata-se, em verdade, de uma agenda
que pode ser importante, inclusive, para os estudos críticos sobre o Direito, como aqueles
realizados pela crítica marxista ao Direito.
Marx é bastante claro no livro II de O capital sobre a produção de mercadorias, a
de uma mudança constante das formas de dinheiro e mercadoria, modifica a sua própria grandeza, enquanto mais-
valia se repele de si mesmo, enquanto valor original, se autovaloriza. Pois o movimento, pelo qual ele adiciona
mais-valia, é seu próprio movimento, sua valorização, portanto autovalorização. Ele recebeu a qualidade oculta de
gerar valor porque ele é valor. Ele pare filhotes vivos ou ao menos põe ovos de ouro.” (MARX, 1996 a, p. 273-
274)
18
Como diz Marx, “a relação-capital pressupõe a separação entre os trabalhadores e a propriedade das condições
de realização do trabalho. o logo a produção capitalista se apoie sob os próprios pés, não apenas conserva tal
separação, mas a reproduz em escala sempre crescente. Portanto, o processo que cria a relação-capital não pode
ser outra coisa que não o processo de separação entre o trabalhador e a propriedade das suas condições de trabalho,
um processo que por um lado transforma os meios sociais de subsistência e de produção em capital, por outro, os
produtores imediatos em operários assalariados.” (MARX, 1996 b, p. 252)
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generalização da circulação destas e, por fim, a conformação capitalista da produção mercantil:
As mesmas circunstâncias que produzem a condição básica da produção
capitalista – a existência de uma classe de trabalhadores assalariados –
requerem a passagem de toda a produção de mercadorias para a produção
capitalista de mercadorias. À medida que esta se desenvolve, tem o efeito de
decompor e de dissolver cada forma antiga de produção, a qual, orientada
preferencialmente para o autoconsumo direto, transforma o excedente do
produto em mercadoria. Ela faz da venda do produto o interesse principal,
primeiro sem aparentemente atacar o próprio modo de produção, como foi,
por exemplo, o primeiro efeito do comércio mundial capitalista sobre povos
como os chineses, indianos, árabes etc. Mas, em segundo lugar, onde tenha
fincado raízes, ela destrói todas as formas de produção mercantil que se
baseiem seja no trabalho do próprio produtor, seja apenas na venda do produto
excedente como mercadoria. Ela generaliza primeiro a produção de
mercadorias e transforma depois gradualmente toda a produção de
mercadorias em produção capitalista. (MARX, 1985, p. 32)
A circulação de mercadorias que parte da autovalorização do capital traz a expansão da
relação-capital, ou seja, é indissolúvel da acumulação de capital. Porém, a consolidação das
relações capitalistas de produção no âmbito nacional não necessariamente se de imediato e
sem atritos; antes, tem-se o contrário: na dissolução de formas sociais pré-capitalistas por
vezes comunitárias, e ligadas ao autoconsumo direto
19
–, a expansão da circulação das
mercadorias tem um papel, primariamente, de dissolução. A função do comércio mundial
capitalista sobre os árabes, os chineses, os indianos, por exemplo, é tal que, de imediato, parece
que é possível se manter o antigo modo de produção conjuntamente com as trocas mercantis
propriamente capitalistas. E, de fato, isto se daria por algum tempo. E, assim, conviveriam a
produção mercantil o capitalista com a produção mercantil capitalista. Porém, o
colonialismo, bem como a expansão comercial capitalista (seja por meio da concorrência, seja
por meio de guerras), trazem consigo a acumulação de capital e, por isso, também a potencial
sobreposição da produção de mercadorias pela produção capitalista de mercadorias. Ou seja, o
movimento da circulação mercantil passa de M-D-M, e de D-M-D, para D-M-D’, em que o
dinheiro ganha uma importância bastante grande: a acumulação de dinheiro volta-se para o
investimento produtivo e, portanto, para a acumulação de capital. O dinheiro só se coloca como
tal, no capitalismo, na medida em que sua acumulação implica, ao mesmo tempo, em sua
19
A diferença entre estas formações sociais é enorme. A China, a Índia e a Rússia tiveram formas comunais de
organização da produção, mas duas delas passaram pela invasão do colonizador estrangeiro e a outra, segundo
Marx, poderia se aproveitar da forma comunal de produção para a passagem ao socialismo. (Cf. MARX; ENGELS,
2013) Para uma análise das peculiaridades nacionais destes países e as diferenças no que toca o papel do Direito e
da propriedade privada, Cf. SARTORI, 2017 a. Para uma análise da questão russa em Marx, Cf. MACHADO,
2017.
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autonomização e em seu futuro – e bastante mediado (Cf. MARX, 1986 a, b) – retorno ao solo
da produção. O movimento da circulação de mercadorias que Marx mostra na passagem acima
é aquele em que, pelo próprio impulso e pela compulsão da lei do valor, a produção de
mercadorias primeiramente mediante a universalização da troca mercantil leva
tendencialmente (e as leis do sistema capitalista de produção são sempre tendenciais) à
superação da produção de mercadorias pela produção capitalista de mercadorias. A venda do
produto se torna o interesse principal na circulação ao passo que subjaz a ela a
autovalorização do valor e a acumulação de capital.
Devemos dizer que, em verdade, há ainda diversas questões de grande relevo na
passagem de Marx, como, por exemplo, a necessária análise do modo como a produção de
mercadorias se coloca em sociedades não capitalistas distintas, como aquelas dos chineses, dos
árabes, dos indianos e, podemos acrescentar, dos russos. Seria interessante tratar da relação do
colonialismo, do desenvolvimento das forças produtivas, do Direito e do Estado para que a
partir de uma análise que passa por parte essencial do livro II de O capital se chegasse a
conclusões importantes sobre o desenvolvimento real e efetivo da sociedade capitalista. (Cf.
SARTORI, 2017) A dissolução de sociedades pré-capitalistas, bem como os momentos de
transição entre a produção mercantil para a produção mercantil capitalista necessitam de um
estudo mais profundo também; e tem-se ainda o modo pelo qual os produtores diretos também
podem se colocar como produtores de mercadorias. Aqui, porém, não podemos avançar nesta
pesquisa, que, por mais relevante que possa ser, requer referência substancial a diversos outros
textos de Marx. Podemos, porém, para os fins deste artigo, trazer à tona as transformações na
produção que advém da imposição do sujeito automático do capital, da autovalozação do valor,
que, como dissemos, remete à acumulação de capital. Veja-se o que diz Marx no livro II sobre
a compra e venda da força de trabalho ao ter em conta o dinheiro:
Embora portanto, no ato D - FT, o possuidor do dinheiro e o possuidor da força
de trabalho se relacionem reciprocamente como comprador e vendedor,
confrontando-se como possuidor de dinheiro e possuidor de mercadorias, por
esse lado portanto se encontrem um com o outro em mera relação monetária
– ainda assim, o comprador de antemão aparece simultaneamente como
possuidor dos meios de produção, que constituem as condições objetivas do
dispêndio produtivo da força de trabalho por seu possuidor. Em outras
palavras: esses meios de produção se contrapõem ao possuidor da força de
trabalho como propriedade alheia. Por outro lado, o vendedor de trabalho se
confronta com seu comprador como força de trabalho alheia, que tem de
passar a seu domínio e ser incorporada a seu capital, para que este funcione
efetivamente como capital produtivo. A relação de classe entre capitalista e
trabalhador assalariado existe, está pressuposta no momento em que
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ambos se defrontam no ato D - FT FT - D, da perspectiva do trabalhador. E
compra e venda, relação monetária, porém uma compra e uma venda em que
se pressupõem o comprador como capitalista e o vendedor como trabalhador
assalariado, e essa relação está dada pelo fato de que as condições para a
realização da força de trabalho – meios de subsistência e meios de produção
estão separadas, como propriedade alheia, do possuidor da força de trabalho.
(MARX,1985, p. 29)
Se Pachukanis enfoca o primeiro parágrafo do segundo capítulo do livro I de O capital,
faz isto trazendo à tona certa centralidade do Direito, que viria a ser essencial para a própria
extração do mais-valor. Para isto, seriam essenciais tanto o sujeito de direito quanto a igualdade
jurídica. (Cf. PACHUKANIS, 2017) Aqui, porém, Marx não traz tanto à tona o papel do Direito
na compra e venda da mercadoria força de trabalho (FT), mas o papel que tem o dinheiro.
Na passagem analisada por Pachukanis
20
a forma contratual é uma mediação entre a
vontade dos possuidores de mercadoria – o comprador e o vendedor – e o reconhecimento das
pessoas como proprietários. Este reconhecimento se dá, segundo o autor da Teoria geral do
Direito e o marxismo, por meio da “forma jurídica”
21
, colocada por meio da noção de igualdade,
mais precisamente, da igualdade jurídica. (Cf. PACHUKANIS, 2017) Aqui, porém, o elo
mediador entre o comprador e o vendedor é o dinheiro. Se, como dissemos anteriormente, a
análise do livro I e do livro II implica no reconhecimento de diferentes níveis de concretude, é
preciso que analisemos com cuidado a passagem acima, em que não é o Direito ou a forma
jurídica contratual que tem o maior relevo, mas o dinheiro. Quem enfatiza com maior destaque
a relação entre igualdade jurídica e circulação de mercadorias é Engels, e não Marx. (Cf.
ENGELS, KAUTSKY, 2012) E, é preciso que se diga: a passagem na qual Pachukanis se baseia
está no primeiro parágrafo do segundo capítulo do livro I de O capital, que trata justamente do
processo de troca, que, por sua vez, supõe o dinheiro, que é tratado ao fim da sessão I de O
20
Diz Marx: as mercadorias não podem por si mesmas ir ao mercado e se trocar. Devemos, portanto, voltar a
vista para seus guardiões, os possuidores de mercadorias. As mercadorias o coisas e, consequentemente, não
opõem resistência ao homem. Se elas não se submetem a ele de boa vontade, ele pode usar a violência, em outras
palavras, tomá-las. Para que essas coisas se refiram umas às outras como mercadorias, é necessário que os seus
guardiões se relacionem entre si como pessoas, cuja vontade reside nessas coisas, de tal modo que um, somente
de acordo com a vontade do outro, portanto, apenas mediante um ato de vontade comum a ambos, se aproprie da
mercadoria alheia enquanto aliena a própria. Eles devem, portanto, reconhecer-se reciprocamente como
proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, desenvolvida legalmente ou não, é uma
relação de vontade, em que se reflete uma relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica ou de vontade é
dado por meio da relação econômica mesma.” (MARX, 1996 a, p. 79) Para uma análise da passagem tendo em
conta a arquitetura do livro I, Cf. SARTORI, 2019 a. A crítica à relação entre forma mercantil e jurídica se encontra
também em PAÇO CUNHA, 2014.
21
Colocamos entre parênteses a expressão pois, embora ela seja central a Pachukanis, ela aparece primordialmente
no plural em Marx, tendo um significado diferente. o formas jurídicas, por exemplo, o contrato as transações
jurídicas, as ficções jurídicas, entre outras. Elas aparecem preponderantemente no livro III de O capital.
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capital.
22
Assim, é verdade que a exposição marxiana vai do abstrato ao concreto, mas
igualmente verdadeiro é que a compreensão das abstrações razoáveis de Marx se também na
medida em que elas se encontram presentes mesmo que dissolvidas (Cf. LUKÁCS, 2013) –
no maior grau de concretude e, portanto, em um momento posterior da exposição. Dizemos isto
porque a forma contratual que implica no Direito, e na superação, ao menos nos elementos
essenciais, do privilégio se coloca como uma mediadora sem a qual os homens não se
conformam como assalariados. Mas, no livro II, a conformação dos homens como assalariados
e, portanto, a pressuposição da relação-capital já está colocada, de modo que Marx não precisa
trazer à tona o elo entre a relação econômica e a relação jurídica; ele traz a mediação do dinheiro
para que a força de trabalho possa ser incorporada ao capital e para que este se coloque, assim,
como produtivo. O essencial, assim, é a relação entre a forma mercadoria e a forma dinheiro, e
não a mediação jurídica.
O processo de troca também não aparece no livro II como aquele entre iguais, mas como
um conjunto de atos que têm consigo agentes da produção em suas funções concretas:
capitalistas, que possuem dinheiro (que se coloca como capital) e trabalhadores, que possuem
a mercadoria força de trabalho. O ato D-FT, portanto, não é somente uma relação entre sujeitos
de direito iguais, como alguns, dialogando com Pachukanis (2017), concluem a partir da leitura
do livro I de O capital; antes, as funções concretas dos indivíduos, como agentes da produção,
têm como elo um terceiro elemento, que aparece como impessoal: não o Direito, mas o dinheiro.
E, assim, do ponto de vista da reprodução do capital e da acumulação de capital, deve-se enfocar
a autonomização da forma dinheiro, e não o eventual fetichismo da forma jurídica
23
. Os
indivíduos, na compra e venda da força de trabalho, aparecem essencialmente como
proprietários, sendo o dinheiro e a força de trabalho elos pelos quais se coloca o capital
produtivo, pressupondo a relação de produção entre capitalista e trabalhador, no ato D-FT FT-
D. Tem-se, assim, uma forma de nivelação que não é propriamente jurídica e em que “como o
dinheiro aparece aqui como material, como mercadoria universal dos contratos, toda diferença
entre os contratantes é, ao contrário, apagada.” (MARX, 2011, p. 300) Ou seja, o nivelamento
e a igualdade que se relacionam com a forma mercadoria, no livro II, está na forma dinheiro,
que é uma das formas pelas quais – concretamente – representa-se o valor.
22
Para uma crítica à leitura pachukaniana a partir da estrutura do livro I, principalmente ao se ter com conta o
papel do dinheiro na exposição marxiana, Cf. CASALINO, 2019.
23
Para uma crítica da concepção pachukaniana segunda a qual haveria um fetichismo específico da forma jurídica,
Cf. PAÇO CUNHA, 2015.
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Trata-se de um processo que tem como suposto a formação do dinheiro na sociedade
capitalista e, assim, diz Marx no próprio livro I: “como no dinheiro é apagada toda diferença
qualitativa entre as mercadorias, ele apaga por sua vez, como leveller radical, todas as
diferenças.” (MARX, 1996 a, p. 252) Ou seja, real e efetivamente, a igualdade jurídica se
expressa em correlação com a troca mercantil, certamente, e, assim, Pachukanis traz um ponto
importante. No entanto, há outras mediações para que seja possível que o Direito e a igualdade
apareçam como tais no modo de produção capitalista; e, para entender isto, talvez seja essencial
que se enfoque com mais cuidado também o dinheiro, que aparece como mercadoria universal:
“o dinheiro mesmo, porém, é uma mercadoria, uma coisa externa, que pode converter-se em
propriedade privada de qualquer um. O poder social torna-se, assim, poder privado da pessoa
privada.” (MARX, 1996 a, p. 252) No livro II, portanto, aparece em maior grau de concretude
aquilo que estava explicitado no livro I: a conformação da igualdade entre os agentes da
produção, embora passe pela mediação do Direito, é essencialmente econômica e passa pela
forma dinheiro; esta última forma, inclusive, é algo importante para que o poder privado da
pessoa privada tenha a proeminência que tem na sociedade capitalista. para que toquemos
rapidamente em um outro ponto polêmico: a noção de pessoa privada que Marx menciona ao
tratar do dinheiro o parece relacionar-se imediatamente à categoria sujeito de direito (Cf.
SARTORI, 2019 a) Para que tragamos explicitamente algo que talvez não agrade toda uma
linha de argumentação sobre marxismo e Direito: aquilo que se relaciona mais proximamente
com a forma mercadoria não é tanto a forma jurídica, que seria central a Pachukanis, mas o
dinheiro; e, assim, a crítica ao Direito implica, não em enfatizar o papel que o Direito tem
na conformação da exploração da força de trabalho, embora isto seja importante. Antes, a
necessidade de trazer à tona que o processo de troca tem consigo o dinheiro aparecendo como
uma das metamorfoses da mercadoria, cuja substância está no valor, e na autovalorização do
valor. O sujeito primordial a Marx, tanto no livro I quanto no livro II (e no livro III) não é o
sujeito de direito, mas o sujeito automático do capital
24
. A relação essencial entre as formas
sociais não está na dialética entre forma mercantil e “forma jurídica”, mas nas correlações entre
a forma mercadoria, a forma dinheiro, a forma capital e as figuras concretas da economia.
O fetichismo do dinheiro, assim, aparece em ato no livro II. E, ao se tratar do Direito
neste livro, isto precisa ser enfatizado. Se, no livro I, tal fetichismo se expressa em correlação
próxima com o fetichismo da mercadoria, para o tema que tratamos, a questão ganha força a
24
Para uma crítica à ênfase pachukaniana no sujeito de direito, Cf. SARTORI, 2019 a.
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partir da autonomização da forma dinheiro. Disse Marx no livro I que “o enigma do fetiche do
dinheiro é, portanto, apenas o enigma do fetiche da mercadoria, tornado visível e ofuscante.”
(MARX, 1996 a, p.216) E, assim, este elemento visível e ofuscante correlacionado ao
nivelamento que se dá pelo dinheiro aparece com certa centralidade no processo de circulação
de mercadorias. Se é verdade, como Marx destacou no livro I, que “a esfera da circulação ou
do intercâmbio de mercadorias, dentro de cujos limites se movimentam compra e venda de
força de trabalho, era de fato um verdadeiro éden dos direitos naturais do homem” (MARX,
1996 b, p. 144)
25
, o que faz com que esta forma de aparição e de representação se dê assim não
é tanto um fetichismo inato ao Direito, mas a correlação entre o fetiche da mercadoria e do
dinheiro. (Cf. PAÇO CUNHA, 2015) Acrescenta-se que o processo capitalista de produção
precisa da extração de mais-valor, mas ele aparece na representação dos homens como se o
dinheiro (tomado de forma hipostasiada) fosse o real objetivo, como mercadoria universal. No
livro II, assim, uma dependência grande diante do capital produtivo e, portanto, do trabalho
produtivo, aquele que produz mais-valor (Cf. COTRIM, 2013) - ao mesmo tempo, porém,
uma tentação sempre presente de tomar o dinheiro como o essencial e a produção somente como
um mal necessário e, por vezes, passível de ser retirado da cena central.
E, assim, ao analisar do processo de circulação do capital, diz Marx sobre o assunto, ao
tratar da relação entre o capital produtivo (P), o dinheiro (D) e a mercadoria (M):
Se considerarmos, por fim, D - M P M' - D' como forma especial do processo
de circulação do capital, ao lado das outras formas a serem examinadas
posteriormente, então ela se destaca pelo seguinte: 1) Aparece como ciclo do
capital monetário, porque o capital industrial, em sua forma-dinheiro, como
capital monetário, constitui o ponto de partida e o ponto de retorno de seu
processo global. A própria fórmula expressa que o dinheiro não é aqui
despendido como dinheiro, mas adiantado; é, portanto, apenas forma-
dinheiro do capital, capital monetário. Além disso, expressa que o valor de
troca, não o valor de uso, é o fim último e determinante do movimento.
Exatamente porque a figura monetária do valor é sua forma autônoma,
palpável, de manifestação, a forma de circulação D D', cujo ponto de partida
e ponto de chegada é o dinheiro real, expressa de modo mais palpável o motivo
condutor da produção capitalista - o fazer dinheiro. O processo de produção
aparece apenas como elo inevitável, como mal necessário, tendo em vista
fazer dinheiro. Todas as nações de produção capitalista são, por isso,
25
Vale mencionar a continuação da passagem de Marx: “o que aqui reina é unicamente Liberdade, Igualdade,
Propriedade e Bentham. Liberdade! Pois comprador e vendedor de uma mercadoria, por exemplo, da força de
trabalho, são determinados apenas por sua livre-vontade. Contratam como pessoas livres, juridicamente iguais. O
contrato é o resultado final, no qual suas vontades se dão uma expressão jurídica em comum. Igualdade! Pois eles
se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente.
Propriedade! Pois cada um dispõe apenas sobre o seu. Bentham! Pois cada um dos dois cuida de si mesmo. O
único poder que os junta e leva a um relacionamento é o proveito próprio, a vantagem particular, os seus interesses
privados.” (MARX,1996 b, p. 144)
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periodicamente assaltadas pela vertigem de querer fazer dinheiro sem a
mediação do processo de produção. 2) O estágio de produção, a função de P,
constitui, nesse ciclo, a interrupção das duas fases da circulação D - M M' -
D', que, por sua vez, são apenas mediações da circulação simples D - M - D'.
O processo de produção aparece na forma do próprio processo de circulação
formal e expressamente como aquilo que no modo de produção capitalista ele
é, como simples meio de valorização do valor adiantado, portanto o
enriquecimento enquanto tal é um fim em si mesmo da produção. (MARX,
1985, p. 43-44)
Embora o capital industrial constitua o ponto de partida e de retorno do processo de
circulação de capital, de se notar que o capital monetário tem certa proeminência: o processo
de produção capitalista aparece, embora não seja só isso, como um processo de fazer dinheiro.
Ou seja, ao mesmo tempo em que isto não pode ser verdade, as formas de representação
dos agentes da produção operam com este suposto
26
. O processo de produção, desta maneira,
ao mesmo tempo em que é o essencial tanto para a produção de mais-valor quanto para a
acumulação de capital, aparece como um simples elo. Mostra-se como um mal necessário.
Tanto é assim, que os agentes da produção, e as próprias nações, segundo Marx, são seduzidos
pelo ímpeto de se fazer dinheiro sem a mediação da produção; o poder privado e a pessoa
privada, deste modo, operam em meio ao fetichismo do dinheiro. Este último, no limite, traz
consigo a compulsão para que se tenha a produção pela produção o valor de troca como fim
do processo e o valor de uso aparecendo como algo meramente circunstancial -; ao mesmo
tempo, porém, este processo aparece como seu oposto: um processo em que o acúmulo de
dinheiro é somente o incremento no poder social do possuidor seja ele quem for destes
títulos de curso forçado que representam a riqueza social. Vê-se, portanto, que o capital
industrial, e com ele a produção capitalista de mercadorias, é o essencial para a conformação
do modo de produção capitalista. A aparência do processo de troca, porém, traz o oposto; e,
assim, a mediação recíproca entre capital produtivo, mercadorias e dinheiro oculta-se.
O livro II de O capital trata justamente deste processo, que se conforma na reprodução
ampliada e na realização do mais-valor na esfera da circulação. A conformação do capital e do
trabalho produtivo, que são enfatizados no livro I, aparecem no livro II como pressupostos da
produção capitalista de mercadorias. O ciclo do capital produtivo, deste modo, tem no dinheiro
um elemento sem o qual a própria circulação não é possível; ao mesmo tempo, a mediação do
modo específico pelo qual se a produção traz as determinações essenciais da produção
capitalista de mercadorias, em que o dinheiro tem uma grande autonomização e em que o
26
Sobre as formas de representação e de apresentação em Marx, Cf. GRESPAN, 2019.
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complemento do fetichismo da mercadoria não é tanto o fetichismo jurídico, como quer
Pachukanis, mas o fetichismo do dinheiro. Deste modo, complementa Marx sobre o capital
industrial:
O ciclo do capital produtivo tem a fórmula geral: P M' - D' - M P. Significa a
função periodicamente renovada do capital produtivo, portanto a reprodução,
ou seu processo de produção como processo de reprodução com relação à
valorização; não produção, mas reprodução periódica de mais-valia; a
função do capital industrial que se encontra em sua forma produtiva, não como
função realizada uma única vez, mas como função periodicamente repetida,
de modo tal que o reinicio seja dado pelo próprio ponto de partida. Uma parte
de M' pode reingressar diretamente em certos casos, em ramos de
investimento do capital industrial como meio de produção no mesmo processo
de trabalho do qual saiu como mercadoria; dessa maneira se evita apenas a
transformação de seu valor em dinheiro real ou em signo monetário, ou
recebe expressão autônoma como moeda de conta. Essa parte do valor não
entra na circulação. Assim, entram valores no processo de produção que o
entram no processo de circulação. O mesmo vale para a parte de M' que o
capitalista consome como parte do mais-produto in natura. Esta é, no entanto,
para a produção capitalista insignificante; precisa, no máximo, ser considerada
na agricultura. (MARX, 1985, p. 49)
A reprodução do capital traz o processo de trocas como um elo intermediário no
processo produtivo global, em que o momento preponderante está na esfera da produção
imediata. (Cf. MARX, 2011) Com isso, o ciclo do capital produtivo tem como ponto de início
e como ponto final a produção e, mais precisamente, a acumulação de capital. Trata-se da
reprodução, não das mercadorias, mas do mais-valor. A circulação e o processo de circulação
são dependentes do processo de trabalho produtivo; e, assim, na análise do essencial do modo
de produção capitalista, é o dinheiro que é um mero elo evanescente na produção; porém, na
superfície da sociedade, o oposto parece ser verdadeiro. E, ao ler o livro II, percebe-se que o
fetichismo do dinheiro coloca-se em ato, ao mesmo tempo, supondo a extração de mais-valor e
a acumulação de capital e trazendo à tona uma forma de apresentação da forma dinheiro em
que ela parece ser o central. E, por isso, como bem ressaltou Vinícius Casalino (2019) – embora
possamos discordar de algumas de suas posições – a análise pachukaniana peca por considerar
a conformação categoria pessoa (na figura do sujeito de direito) somente em correlação com a
forma mercadoria. Ao passo que a forma dinheiro, que pressupõe algo muito mais avançado
que a circulação simples (M-D-M), seria central no livro I, Pachukanis parece trazer uma
ênfase exagerada nos possuidores de mercadorias, deixando de lado um tratamento mais
cuidadoso da mercadoria universal colocada no dinheiro. Pachukanis, assim, enfatiza na
esteira de Rubin (1980) o fetichismo da mercadoria; e, com isso, traz à tona sua concepção
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de “fetichismo jurídico”, ao invés de tratar da efetividade do fetichismo do dinheiro. Ao invés
de ir ao fundo da leitura de O capital, e, assim, compreender as complexas correlações entre as
diferentes formas e figuras econômicas, tem-se uma ênfase no elemento jurídico. Veja-se: ele
pode até mesmo ser importante na obra magna de Marx, mas precisa ser tratado em meio às
metamorfoses da forma mercadoria em sua correlação com a autovalorização do valor.
Um dos aspectos que destaca a importância do livro II de O capital está no modo como
se articulam a reprodução ampliada do capital, o processo de circulação e o fetichismo do
dinheiro. E, assim, também para o estudo do Direito em Marx, de se trazer a diferença
específica entre a troca de mercadorias que se dá na circulação simples, e nas sociedades pré-
capitalistas em que se tem produção de mercadorias, da produção propriamente capitalista das
mercadorias. Para isso, acreditamos, é importante passar, não pelo capital industrial, mas
pelo capital monetário.
O Direito e autonomização das formas econômicas no livro II de O capital
Tratar do Direito no livro II, pelo que dissemos, implica no reconhecimento dos nexos
trazidos acima. De um lado, isto se dá porque não é possível tratar das citações marxianas fora
de seu contexto. Porém, de se reconhecer que a constituição do capital monetário no processo
de circulação explica o modo pelo qual se coloca a esfera jurídica, ao mesmo tempo em que
alguns elementos desta última centrais no livro III (Cf. SARTORI, 2019 b, c), mas presentes
no livro II – podem ser de grande relevo para que se compreenda a natureza dúplice do capital
monetário: autonomizado e dependente da esfera produtiva e das mercadorias. Também em
meio a tal autonomização é que se colocam os distintos papéis cumpridos pelo Direito no
processo de circulação do capital. Ele precisa ser tratado ao passar pelas formas econômicas
abordadas em O capital, bem como pelas figuras econômicas concretas (como os juros, o lucro
e a renda) que, mesmo que dependentes destas formas, aparecem como se tivessem vida própria.
Deste modo, se, talvez, seja um pouco exagerada a posição segundo a qual o Direito é
o elo essencial na conformação da sociabilidade capitalista
27
, não é descabido apontar que as
27
Não concordarmos plenamente com Mascaro, para quem “a própria existência da forma jurídica constitui a
sociabilidade capitalista: por direito, o capital é do capitalista, e não dos trabalhadores; e o são também por direito
a prisão e a segregação dos indesejados; tudo que circula se faz mediante deveres e obrigações. O mundo da
mercadoria é jurídico; a equivalência a tudo preside. Não outro direito que não o capitalista.” (MASCARO,
2018, p. 63) A ênfase do autor no momento jurídico nos parece um tanto quanto exagerada; se é verdade que o
Direito tem um papel de grande relevo nestes atos destacados por Mascaro, não se pode dizer que ele constitui a
sociabilidade capitalista, ou que o mundo da mercadoria é jurídico. Tais identidades trazidas por Mascaro precisam
ser meandradas, tendo-se em conta, dentre outras coisas, outras formas econômicas que aquela da mercadoria,
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formas jurídicas
28
, como o contrato, as transações jurídicas, as promessas negociais, a noção de
justiça
29
, a ficção jurídica, entre outras, vêm a desempenhar um papel de destaque na
imediatidade da realidade efetiva da sociedade capitalista, tratada por Marx no livro III, mas já
vislumbrada em alguns de seus aspectos no livro II. Ou seja, se é verdade que não se pode
exagerar o papel real e efetivo que o Direito vem a exercer na conformação das determinações
essenciais da relação-capital, igualmente verdadeiro é que a aparência das transações que se
dão na sociedade capitalista, em grande parte, é constituída mediante, embora não só, a esfera
jurídica. Marx já havia colocado no livro I que a economia está envolvida por relações jurídicas,
mas “o conteúdo dessa relação jurídica ou de vontade é dado por meio da relação econômica
mesma.” (MARX, 1996 a, p. 79) Ele também diz no livro III que não se tem o essencial nas
formas jurídicas, mas no conteúdo da relação jurídica, tendo-se uma peculiar dialética entre
essência e aparência: “as formas jurídicas (jurisrichen Formen) em que essas transações
econômicas aparecem como atos de vontade dos participantes, como expressões de sua vontade
comum e como contratos” (MARX, 1986 a, p. 252) trazem à tona o modo fenomênico pelo qual
as relações econômicas (nas diversas formas e figuras do capital) aparecem. Logo depois, ao
tratar dos contratos, das transações jurídicas e das demais formas jurídicas, Marx complementa
dizendo tratar-se daquelas “cuja execução pode ser imposta à parte individual por meio do
Estado” e, assim, “não podem, como simples formas, determinar esse conteúdo. Elas apenas o
expressam” (MARX, 1986 a, p. 252)
30
. Deste modo, dizer que “o mundo da mercadoria é
jurídico” (MASCARO, 2018, p. 63) só é verdadeiro caso esteja-se referindo ao elemento mais
imediato e fenomênico da sociabilidade capitalista; por mais que o Direito passe pela forma
mercantil, como destaca corretamente Pachukanis (2017), as mediações para compreender a
forma mercadoria não estão essencialmente no elemento jurídico, mas em outras formas
como o dinheiro, por exemplo. Também há de se apontar que o capital o é uma coisa, mas uma relação social,
de modo que talvez fossem necessárias maiores mediações no modo pelo qual Alysson Mascaro traz certa
centralidade do Direito.
28
Usamos a expressão aqui no plural, e não no singular, como aparece em Pachukanis porque, no livro III em
especial, Marx traz sempre tal categoria no plural, seja ao tratar da justiça, da renda ou dos juros.
29
Sobre a noção de justiça em Marx, Cf. SARTORI, 2017 b.
30
Contra Wagner, diz Marx: “mostrei na análise da circulação de mercadorias que no escambo desenvolvido as
partes se reconhecem tacitamente como pessoas iguais e como proprietários dos respectivos bens a serem por eles
trocados; eles já o fazem ao oferecer uns para os outros seus bens e ao entrar em acordo uns com os outros sobre
o negócio. Essa relação fática que se origina primeiro na e através da própria troca adquire mais tarde forma
jurídica no contrato etc.; mas essa forma não cria nem o seu conteúdo, a troca, nem a relação nela existente das
pessoas entre si, mas vice-versa.” (MARX, 2017, p. 273) de se notar que, aqui, Marx retoma o tema do segundo
capítulo do livro I de O capital, bastante enfatizado por Pachukanis. Percebe-se também que o que destacamos
aqui também é bastante claro.
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econômicas, como a forma dinheiro e a forma capital, tendo-se a compreensão do mundo das
mercadorias ainda que remeter às figuras econômicas – como os juros, a renda e o lucro – que
aparecem na imediatidade da sociedade. Novamente, o essencial aparece, não tanto na
compreensão da relação entre o fetichismo da mercadoria e o jurídico, mas, no que passa pelo
livro II, na correlação entre o fetichismo da mercadoria e o fetichismo do dinheiro, visto em
ato.
As figuras econômicas concretas tratadas na análise do processo global de produção,
como os juros, a renda, o lucro, têm sua repartição, em grande parte, presidida pelo movimento
da propriedade privada, que é reconhecida juridicamente pelo Estado, sendo o Direito um
mediador essencial na distribuição do mais-valor (Cf. GRESPAN, 2011; SARTORI, 2019 b, c).
Estas figuras, por sua vez, têm uma correlação íntima com as formas econômicas tratadas no
livro I (mercadoria, dinheiro, capital, por exemplo), ao mesmo tempo em que, também por meio
do Direito, são autonomizadas por meio de títulos e promessas cujo reconhecimento se
juridicamente
31
. A autonomização destas figuras econômicas, porém, constitui-se, não
primordialmente como uma relação jurídica, mas em meio às contradições que marcam as
relações econômicas do modo de produção capitalista; para que sejamos mais diretos: por meio
de formas jurídicas, opera-se em meio a tais figuras econômicas, mas o seu conteúdo não é
determinado pelo Direito ou pelas formas jurídicas, mas pelo imbrincado processo
econômico
32
. Assim, a ênfase de Pachukanis no momento jurídico – e não na dialética peculiar
entre as formas e as figuras econômicas presentes nos livros de O capital corre o risco de
tomar o reconhecimento jurídico e estatal da propriedade privada pela existência factual desta
31
Veja-se Marx sobre os juros: “como o juro somente nasce do processo de produção, e seu resultado e tem de ser
produzido, é o juro apenas um direito a uma parte de um trabalho excedente que ainda deve ser prestado, título a
trabalho futuro, pretensão a uma parte do valor de mercadorias ainda não existentes. É portanto somente o resultado
de um processo de produção em curso, durante um certo tempo, no termino do qual expiara.” (MARX, 1982, p.
224)
32
Trazer as formas jurídicas como determinantes seria trazer uma espécie de inversão, tal qual a da religião, que
coloca os homens como criaturas divinas ao passo que Deus que é criado pelos homens. Não é por menos que
Marx aponta certa correlação entre Direito e religião: “Este tecnicismo exagerado do Direito antigo mostra que a
jurisprudência é uma pluma do mesmo pássaro que as formalidades religiosas.” (MARX, 1988, p. 281) Engels vai
ainda mais longe e diz que “tratava-se da secularização da visão teológica. O dogma e o direito divino eram
substituídos pelo direito humano, e a Igreja pelo Estado. As relações econômicas e sociais, anteriormente
representadas como criações do dogma e da Igreja, porque esta as sancionava, agora se representam fundadas no
direito e criadas pelo Estado. Visto que o desenvolvimento pleno do intercâmbio de mercadorias em escala social
– isto é, por meio da concessão de incentivos e créditos – engendra complicadas relações contratuais recíprocas e
exige regras universalmente válidas, que poderiam ser estabelecidas pela comunidade normas jurídicas
estabelecidas pelo Estado –, imaginou-se que tais normas não proviessem dos fatos econômicos, mas dos decretos
formais do Estado. Além disso, uma vez que a concorrência, forma fundamental das relações entre livres
produtores de mercadorias, é a grande niveladora, a igualdade jurídica tornou-se o principal brado de guerra da
burguesia.” (ENGELS, KAUTSKY, 2012, pp. 17-18)
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última. havia dito Marx na Miséria da filosofia que
“o Direito nada mais é que o
reconhecimento oficial do fato” (MARX, 2004, p. 84)
33
. Depois, em uma passagem bastante
citada por Pachukanis, Marx ainda aponta que na troca de mercadorias, os guardiões das
mercadorias devem
“reconhecer-se reciprocamente como proprietários privados.” (MARX,
1996 a, p. 79) E, assim, no Direito tem-se uma relação entre fato e reconhecimento que não
pode ser deixada de lado em hipótese alguma (Cf. LUKÁCS, 2013). Isto, em verdade, não
ocorre no autor da Teoria geral do Direito e o marxismo; porém, alguns de seus seguidores não
deixam de incorrer em algo do gênero e, deste modo, exacerbam a importância do Direito, tanto
na obra de Marx quanto na própria compreensão do modo de produção capitalista; por vezes,
tomam o reconhecimento jurídico como se constituísse, por si, os fatos econômicos; e, assim,
em verdade, o mundo das mercadorias pode até mesmo ser reconhecido oficial e estatalmente
por meio do Direito. Mas, nunca, ele “é” jurídico. Tal análise, que consideramos equivocada,
se dá, em grande parte, por certa ênfase na leitura pachukaniana e em uma leitura um tanto
quanto parcial do livro I de O capital. Por isso também, acreditamos, é importante trazer à tona
uma pequisa que enfoque nos diversos níveis de abstração e da exposição do texto marxiano,
tendo-se cuidado para não trazer a relação entre Direito e mercadoria como se a forma mercantil
fosse a única que desse uma base real ao Direito e como se a real compreensão da forma
mercadoria decorresse de elementos jurídicos, e não econômicos.
Para o que aqui nos diz respeito mais diretamente, devemos destacar que, já no livro II,
certo afastamento da exposição de Marx diante do capital produtivo, tendo-se, em alguns
momentos, o capital monetário e o comercial, e não o industrial, em destaque; a função do
Direito neste livro de O capital reflete este simultâneo afastamento e indissociabilidade entre a
esfera da produção de mais-valor e a circulação, em que o mais-valor pode ser ou não realizado.
Neste âmbito tem-se que o modo pelo qual o capital monetário opera passando por
títulos de propriedade que têm uma função bastante concreta no processo de circulação, mas
que podem ou não voltar-se do modo produtivo à produção capitalista de mercadorias. Assim,
tem-se um elemento essencial para a compreensão das crises capitalistas passando também pelo
Direito: a duplicidade que se coloca entre o mundo das mercadorias e os tulos que representam
a riqueza produzida de modo capitalista. Aqui, não poderemos tratar disso com todo o cuidado.
Porém, devemos destacar sobre as transações jurídicas que, como diz Marx no livro III, “sem
33
Para uma análise detida da questão, Cf. LUKÁCS, 2013.
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dúvida, essas transações são efetivamente determinados pelos refluxos reais. Mas isso não
aparece na própria transação.” (MARX, 1986 a, p. 262) Nelas, assim, “o verdadeiro movimento
circulatório do dinheiro como capital é, portanto, pressuposto da transação jurídica” (MARX,
1986 a, p. 263) de tal maneira que ela “é uma transação jurídica, que nada tem a ver com o
processo real de reprodução, mas apenas o encaminha” (MARX, 1986 a, p. 262). Com isso,
tem-se que a compreensão do Direito em Marx (mas em especial no livro II de O capital) passa
pelo entendimento dos meandros, não tanto das transações jurídicas, mas do movimento
circulatório do capital e do processo real de reprodução, que aparecem como supostos no livro
III (de onde tiramos as passagens acima), mas que são explanados no livro II, em que devemos
enfatizar certa centralidade do capital monetário, que traz consigo o caráter acentuado da
duplicidade que rapidamente mencionamos.
Se se considera a coisa como ela se verifica na realidade, então o capital
monetário latente que é acumulado para uso posterior consiste em: 1)
Depósitos em bancos: e é uma soma de dinheiro relativamente reduzida da
qual o banco realmente dispõe. Aqui a acumulação de capital monetário é
apenas nominal. O que realmente está acumulado são créditos monetários, que
só são conversíveis em prata à medida que chegam a ser convertidos em prata
porque ocorre um equilíbrio entre o dinheiro sacado e o dinheiro depositado.
O que se encontra como dinheiro nas os do banco é apenas uma soma
relativamente pequena. 2) Títulos públicos. Estes não são capital ao todo, mas
meros créditos sobre o produto anual da nação. 3) Ações. À medida que não
constituem fraude, são títulos de propriedade sobre um capital real pertencente
a uma corporação e de direito sobre a mais-valia que dele flui anualmente.
(MARX, 1985, pp. 256-257)
Marx sempre destaca o uso futuro do capital monetário, que está sempre em relação
indissolúvel com a esfera produtiva e, como já destacamos, com a acumulação de capital, que,
por sua vez, necessita do incremento da produção. A natureza dúplice do capital monetário se
liga à sua existência, por vezes, fictícia
34
e nominal, que se contrapõe àquilo que ele representa,
a “
‘imensa coleção de mercadorias” (MARX, 1996 a, p. 165)
, de que fala Marx no livro I. Ele
aparece como crédito, como expectativa de apropriação da riqueza, ao mesmo tempo em que
isto só se dá – ao menos na época de Marx – com uma base metálica, no caso acima, a prata
35
.
34
Marx tratará no livro III dos títulos do governo que, por vezes, não têm lastro direto algum na materialidade da
realidade efetiva, constituindo-se como capital fictício (Cf. MARX, 1986 a, b).
35
Marx, porém, menciona, ainda no livro I, os títulos de crédito, que se colocariam mediante uma espécie de
titularidade jurídica de direito privado: “apenas ao vencer o prazo fixado para o pagamento, o meio de pagamento
entra realmente em circulação, isto é, ele passa realmente das mãos do comprador para as do vendedor. O meio
circulante converteu-se em tesouro, ao interromper o processo de circulação em sua primeira fase ou ao ser
subtraída da circulação a forma transformada da mercadoria. O meio de pagamento entra na circulação, porém
depois que a mercadoria se retirou dela. O dinheiro não media o processo. Ele o fecha de modo autônomo,
como existência absoluta do valor de troca ou mercadoria geral. O vendedor converte sua mercadoria em dinheiro
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Ao se tratar dos títulos públicos, nota-se: estes também se mostram como créditos ligados à
produção futura de uma determinada nação; trata-se, tal qual no caso das ações, de um montante
de dinheiro que, operando como capital, é adiantado para que a produção de mais-valor possa
se dar; e, assim, com a posterior circulação do capital, os titulares do crédito se apropriam da
riqueza, ou melhor dizendo, de uma parcela desta que se coloca para além daquela necessária à
reprodução do capital. Isto acontece tendo-se nas figuras concretas do processo global de
produção, como os juros, a renda, o lucro a apropriação social, por meio da titularidade da
propriedade, de parcelas distintas do mais-valor. Esta apropriação é social ao passo que a
apropriação – que passa pela figura da propriedade – é privada.
Para que coloquemos algo que diz respeito mais diretamente ao nosso tema: aqui, no
livro II, o Direito, por meio da propriedade privada, não tem um papel proeminente na produção
do mais-valor. Se Pachukanis, juntamente com a linhagem de autores que o segue, aponta a
esfera jurídica como essencial na extração do mais-valor, aqui, -se algo distinto: o direito
sobre parcela do mais-valor que flui na produção de uma sociedade por ões, bem como nos
rendimentos bancários, dos títulos do governo ou da terra, implica, não no papel central do
elemento jurídico na produção, mas para um papel bastante mediado e complexo na distribuição
do mais-valor. Ou seja, o Direito, sob este aspecto, passa longe de constituir a sociabilidade
capitalista, como quer Mascaro (2018); ele a toma como suposta e opera na superfície desta
sociedade, tendo como pressupostos tanto o movimento circulatório do capital quanto o
processo real de reprodução, que, como já dissemos, passa pela acumulação de capital. Tem-se
também outra implicação bastante importante para o estudo do Direito em Marx (e,
acreditamos, na sociedade capitalista): o direito sobre parcelas do mais-valor, que menciona
Marx ao tratar da relação entre o capital monetário colocado nas sociedades por ações e o capital
real de uma corporação, não passa tanto pela troca equivalente da circulação simples, mas pelo
papel do Direito na distribuição do mais-valor no processo global de produção; neste último a
titularidade da propriedade privada dá direito a parcelas da riqueza social, produzida na
produção capitalista de mercadorias. E isto se dá, não na equivalência dos papéis dos
para satisfazer a uma necessidade por meio do dinheiro, o entesourador, para preservar a mercadoria em forma de
dinheiro, o comprador que ficou devendo, para poder pagar. Se não pagar, seus bens são vendidos judicialmente.
A figura de valor da mercadoria, dinheiro, torna-se, portanto, agora um fim em si da venda, em virtude de uma
necessidade social que se origina das condições do próprio processo de circulação. O comprador retransforma
dinheiro em mercadoria antes de ter convertido mercadoria em dinheiro ou realiza a segunda metamorfose da
mercadoria antes da primeira. A mercadoria do vendedor circula, mas realiza seu preço somente sob a forma de
um título de crédito de direito privado.” (MARX, 1996 a, p. 256)
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possuidores de mercadorias (como em Pachukanis, que enfatiza a figura do sujeito de direito),
mas ao se ter como central funções bastante distintas dos agentes da produção, cuja posição
aparece no processo de circulação de mercadorias de modo bastante diferenciado e explícito.
Trata-se de algo colocado sobre o sistema capitalista da apropriação, que supõe a propriedade
privada. Mas os proprietários sequer aparecem como indiferenciados. O proprietário do
dinheiro diferencia-se substancialmente do proprietário da mercadoria força de trabalho, por
exemplo. O dinheiro, é verdade, é um grande nivelador, mas o desenvolvimento do capital
monetário pressupõe uma divisão do trabalho que ultrapassa em muito aquela visível na
equivalência inicialmente colocada nas trocas mercantis, de tal modo que este nivelamento se
dá entre os proprietários de dinheiro, e não é expandido de modo indiferenciado na sociedade.
E, assim, as formas econômicas do dinheiro e do capital, bem como as figuras dos juros, da
renda, e do lucro, por exemplo, supõem o direito que se coloca na troca de mercadorias (e
essencialmente na compra e venda da mercadoria força de trabalho), mas também trazem à tona
o reconhecimento da diferenciação entre os distintos tipos de proprietários que operam em meio
ao processo de circulação do capital. Neste nível de abstração, portanto, a análise de Marx é
bastante diferente daquela de Pachukanis.
A acumulação e a reprodução do capital, portanto, passam pelas trocas equivalentes,
analisadas por Marx principalmente no capítulo II do livro I de O capital. Porém, não se pode
ficar somente neste nível de abstração. No que, novamente, tem-se o aspecto dúplice
mencionado. Isto se dá tanto no capital monetário quanto nos direitos a ele conectados: no caso
das sociedades por ações, a parcela dos lucros das empresas depende da produção deste lucro
mesmo (que tem dependência tanto dos preços de custo quanto, de modo mais basilar, da
produção de mais-valor); nos títulos do governo, há os créditos sobre o produto anual de uma
nação. O aspecto dúplice se mostra quando a relação entre o capital monetário e o industrial
remete às diversas incertezas do processo produtivo. Os direitos a apropriação, assim, operam
ao passo que tais créditos sempre podem adquirir uma característica de mera ficção
36
. No livro
II, e principalmente no livro III (Cf. SARTORI, 2019 b, c), tal aspecto dúplice do capital
monetário ganhará destaque, não sendo pequeno o papel das formas jurídicas na constituição
do direito à apropriação de parcelas do mais-valor. Ao mesmo tempo, pelo que notamos aqui,
em Marx, o essencial o é o modo pelo qual operam as formas jurídicas na distribuição do
mais-valor, mas a maneira pela qual a autonomização das figuras econômicas (lucro, renda,
36
No livro III, ao tratar da renda, Marx desdobrará a questão remetendo à ficção jurídica. Cf. MARX, 1986 a, b.
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juros, por exemplo) permite que a apropriação da riqueza se dê na efetividade da sociedade. E,
assim, chega-se a uma conclusão essencial ao nosso tema: para tratar seriamente do Direito em
Marx, tal relação entre mercadorias e dinheiro, e entre o capital industrial e o capital monetário
é de grande relevo. E, é preciso que isto seja dito: Pachukanis, e seus seguidores, não chegam
a aprofundar este aspecto, trazendo como principal elemento de suas análises a relação entre a
forma mercadoria e aquilo que ele chama de forma jurídica, relação esta que estaria presente
principalmente do primeiro ao terceiro capítulos do livro I de O capital
37
.
O Direito é, em verdade, um elo importante nesta correlação entre capital produtivo e
improdutivo, bem como na distribuição do mais-valor; ele opera tal relação, ao mesmo tempo
que o essencial nela é a divisão do trabalho que se coloca no seio da relação-capital mesma e
que dá ensejo às distintas figuras econômicas, como os juros, a renda, o lucro, etc; mesmo que
o momento jurídico não seja o elemento central este último passa pela própria constituição
objetiva das formas econômicas, e de sua relação com as figuras econômicas concretasele é
um elemento da constituição concreta e efetiva da distribuição da riqueza, mediante a
propriedade, no capitalismo. E isso, como dissemos, significa que o aspecto jurídico é
essencial na operacionalização das relações econômicas, mas as formas jurídicas não podem
determinar o conteúdo destas relações.
Marx é bastante claro o dizer que o Direito não pode determinar este processo, como
querem os socialistas vulgares (Cf, MARX, 1986 a, b)
38
. Ao mesmo tempo, ele não deixa de
destacar como que se opera na efetividade da sociedade capitalista por meio de contratos,
transações jurídicas, promessas de crédito, ficções jurídicas, etc. No que, também sob este
aspecto, uma correlação entre o processo de produção do mais-valor e a circulação do capital,
entre os agentes da produção, o Direito e os agentes da circulação. Marx traz algo importante
sobre este ponto ao destacar a relação entre a circulação de mercadorias, a sua produção e a
distribuição da riqueza social:
Os agentes da circulação precisam ser pagos pelos agentes da produção. Mas
se os capitalistas, que compram e vendem entre si, não criam produtos nem
valor, isso não se altera quando o volume de seu negócio os capacita e obriga
37
Sobre este ponto, Vinícius Casalino (2019) traz uma crítica decisiva a Pachukanis. Diz o autor brasileiro que o
autor da Teoria geral do Direito e o marxismo sequer é coerente com a análise do livro I, pois permanece ligado à
circulação simples, e não leva em conta sequer a autonomização da forma dinheiro. Diz-se que “não parece exagero
afirmar que o autor russo concentra esforços nos três primeiros capítulos de O capital, isto é, analisa a exposição
da forma mercantil e da circulação simples de mercadorias, mas relega a segundo plano a ressignificação que tais
categorias experimentam quando entra em cena a circulação do dinheiro como capital.” (CASALINO, 2019, p.
2884)
38
Para uma análise desta crítica de Marx, Cf. SARTORI, 2019 b.
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a transferir essa função a outros. Em rios negócios, compradores e
vendedores são pagos por meio de uma porcentagem do lucro. A frase de que
são pagos pelos consumidores não ajuda em nada. Os consumidores só podem
pagar à medida que eles mesmos, como agentes da produção, produzem para
si um equivalente em mercadorias ou se apropriam de tal equivalente dos
agentes da produção, seja mediante direito legal como seus associés etc.!, seja
mediante serviços pessoais. (MARX, 1985, p. 311)
Ao se ter em conta a reprodução ampliada do capital, a correlação entre capital produtivo
e improdutivo vem à tona na medida em que na circulação realiza-se o mais-valor, mas este
último não é produzido nesta esfera. Assim, de certo modo, são os agentes da produção que
pagam os da circulação. A divisão do trabalho que se coloca no capitalista coletivo (Cf. MARX,
1986 a, b) na grande indústria faz com que as diferentes funções na reprodução social sejam
executadas, não mais pelo mesmo agente, mas por agentes distintos. Assim, o lucro é uma
parcela do mais-valor e, posteriormente, uma parcela deste lucro coloca-se como um custo ao
agente da produção, que precisa dos agentes da circulação para que seja possível o consumo
das mercadorias produzidas.
Marx é explícito sobre tal relação: não é verdade que ambos, agentes da produção e da
circulação, sejam pagos pelos consumidores; em verdade, apesar das aparências, o incremento
da riqueza não está na esfera da circulação de mercadorias, mas na produção capitalista de
mercadorias, que, real e efetivamente, supõe a acumulação de capital
39
. O capital produtivo, de
imediato
40
, paga o improdutivo, trazendo nisto, ao mesmo tempo, o incremento da
produtividade que decorre da divisão do trabalho e custos decorrentes deste incremento. De
outro lado, porém, há de se perceber que, na reprodução do capital, os consumidores só podem
consumir na medida em que, ou são eles mesmos agentes da produção (trabalhadores ou
capitalistas) ou se apropriam de um equivalente em dinheiro (ou crédito) àquilo produzido pelos
agentes da produção. Assim, nota-se que, na reprodução do capital há uma importante
correlação a ser trazida à tona entre capital produtivo e improdutivo. E, perceba-se: nela, não é
só pelo trabalho que se apropria da riqueza social, mas também mediante a titularidade jurídica
39
Remetendo ao Direito, diz Marx no livro I: “os representantes consequentes da ilusão de que a mais-valia se
origina de um aumento nominal de preço ou do privilégio do vendedor de vender a mercadoria caro demais
pressupõem, portanto, uma classe que compra sem vender, por conseguinte, consome sem produzir. A
existência de tal classe é, do ponto de vista alcançado por nós até agora, o da circulação simples, ainda inexplicável.
Mas antecipemo-nos. O dinheiro, com que tal classe continuamente compra, deve fluir continuamente dos próprios
possuidores de mercadorias, sem intercâmbio, gratuitamente, por quaisquer títulos de direito e poder.” (MARX,
1996 a, p. 280-281)
40
De imediato porque isto, claro, depende da produção de mais-valor, sendo a noção de custos de produção
decorrente da atividade dos agentes da produção, ao mesmo tempo em que não se sustenta em si mesma, mas na
produção de mais-valor. (Cf. SARTORI, 2019 b, c)
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de parcelas da produção futura. Vê-se, assim, que o Direito, no livro II, tem uma função
importante no sistema de apropriação capitalista.
Em meio a esta divisão, a função dúplice do capital monetário se coloca real e
efetivamente. Marx diz que a apropriação deste equivalente pode ser dar mediante serviços
pessoais, por exemplo, ao se vender a força de trabalho. Mas pode dar-se também por meio de
direitos legais, como aqueles de um associado, por exemplo
41
. Ou seja, pode-se destacar aqui
um modo de aquisição de propriedade que se relaciona à produção na medida em que ao
trabalho é dado um equivalente em dinheiro. Porém, tem-se também o recebimento de dinheiro
que não depende do trabalho, mas da titularidade de um direito, como no caso da renda, dos
juros, e nas sociedades por ações. E, sobre este ponto, é preciso que enfatizemos a diferença
específica entre um caso e outro.
No primeiro caso, tratado sobretudo no livro I de O capital, não “injustiças”
42
, mas
o processo capitalista de trabalho, em que “o capitalista comprou a força de trabalho pelo seu
valor de 1 dia. A ele pertence seu valor de uso durante uma jornada de trabalho. Obteve assim
o direito de fazer o trabalhador trabalhar para ele durante 1 dia” (MARX, 1996 a, p. 345-346).
Trata-se daquilo que, em grande parte corretamente, é destacado por Pachukanis (2017). No
entanto, o outro lado da moeda é muito distinto: tem-se a apropriação do mais-valor que foi
produzido pelos agentes da produção, mais precisamente pelo trabalho produtivo (Cf.
COTRIM, 2013); esta apropriação se deve à titularidade de uma ação ou de uma cota da
corporação. E, assim, a distribuição do mais-valor não se dá somente ao se ter em conta o
equivalente de trabalho, como no livro I, mas ao se ter em conta a propriedade privada e sua
titularidade (Cf. GRESPAN, 2011, 2019). Neste sentido, há, até certo ponto, um divórcio entre
a função exercida na produção e a propriedade decorrente desta
43
: a partir do momento em que
é essencial ao capital o incremento da divisão do trabalho para a acumulação de capital na
grande indústria, para ser mais preciso a correlação entre capital produtivo e improdutivo é
conformada a partir dos meandros da produção capitalista de mercadorias, mas tem no momento
41
No livro III, Marx trata de trocas que não são exatamente equivalentes e em cujo preço estão arbitrariedades;
estas últimas, por sua vez, também passam pela mediação do Direito. (Cf. SARTORI, 2019 b, c)
42
Aponta Marx que “o valor de uso da força de trabalho, o próprio trabalho, pertence tão pouco ao seu vendedor,
quanto o valor de uso do óleo vendido, ao comerciante que o vendeu. O possuidor de dinheiro pagou o valor de
um dia da força de trabalho; pertence-lhe, portanto, a utilização dela durante o dia, o trabalho de uma jornada. A
circunstância de que a manutenção diária da força de trabalho só custa meia jornada de trabalho, apesar de a força
de trabalho poder operar, trabalhar um dia inteiro, e por isso, o valor que sua utilização cria durante um dia é o
dobro de seu próprio valor de um dia, é grande sorte para o comprador, mas, de modo algum, uma injustiça contra
o vendedor” (MARX, 1996 a, p. 311). Sobre a questão da justiça em Marx, Cf. SARTORI, 2017 b.
43
Para uma análise desta questão, Cf. SARTORI, 2019 c.
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jurídico algo importante para a distribuição do mais-valor.
O Direito, assim, tem uma função importante no modo pelo qual os agentes da produção
e da circulação se relacionam. Porém, como já dissemos, isto remete sempre ao solo da
produção que, por sua vez, determina a relação estabelecida entre as diversas formas e figuras
econômicas. O direito à apropriação de uma cota do lucro futuro de determinada empresa, por
exemplo, consegue ser efetivo diante de uma proporção correta entre os diferentes
departamentos (I e II) da economia capitalista. Sem a produção de meios de produção (c) para
determinada quantidade de assalariados (v), o consumo, por exemplo, fica prejudicado na
medida em que estes trabalhadores acabam não sendo empregados na produção. Sem
trabalhadores para abundantes meios de produção, estes últimos ficam ociosos também. No
livro II Marx trata disto e, para nosso tema, é preciso que se diga que o direito de apropriar-se
de parcela da riqueza tem relação com isto:
Ou a massa dos meios de produção precisa ser suficiente para absorver a
massa de trabalho, para ser transformada em produto por intermédio dela.
Caso não houvesse meios de produção suficientes, então o trabalho excedente
de que o comprador dispõe não seria utilizável; seu direito de dispor dele não
levaria a nada. Caso houvesse mais meios de produção do que trabalho
disponível, então não seriam saturados de trabalho, não seriam transformados
em produto. (MARX, 1985, p. 311)
Note-se como que o essencial para Marx não está no direito à apropriação do fruto do
trabalho excedente, mas na possibilidade mesmo de este trabalho excedente produzir mais-
valor. Se é verdade que este direito a se apropriar do produto decorrente do tempo de trabalho
é importante para que se perceba como que o Direito reconhece as bases da relação-capital, há
de se ir além deste ponto. A função do Direito não está somente na correlação entre a produção
capitalista de mercadorias, a força de trabalho e produção de mais-valor; tem-se também uma
dimensão importante da esfera jurídica que se coloca quando aos direitos e ao título de
propriedade não necessariamente correspondem, de imediato, equivalentes. No caso que aqui
tratamos, isto pode se dar na medida em que há uma desproporção entre capital constante (c) e
capital variável (v); isto também pode se dar ao passo que a produção de meios de produção
(departamento II) está em descompasso com a produção de bens de consumo (departamento I).
Ou seja, aquilo que propicia a real apropriação da riqueza não é o direito a uma cota desta, mas
o processo econômico subjacente à apropriação da riqueza, que é operada por meio destes
direitos. Assim, a natureza dúplice do capital monetário – essencial para o processo de
circulação do capital se mostra ao passo que aos tulos de propriedade, aos créditos e às
expectativas decorrentes imediatamente das formas jurídicas pode ou não corresponder uma
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riqueza real. Tal elemento é essencial para o tratamento das crises comerciais e financeiras, por
exemplo (Cf. FOSTER; MAGDOFF, 2009). E, na esteira do que estamos colocando neste texto,
podemos dizer: o essencial para a compreensão destas crises está no entendimento da
reprodução ampliada do capital, da queda tendencial da taxa de lucro, na correlação entre as
formas e as figuras econômicas, em suma, na contradição entre o desenvolvimento das forças
produtivas e as relações de produção. Porém, não como negar que a análise do Direito em
Marx, e no capitalismo, passe por esta natureza plice do capital monetário. Em um nível mais
concreto de abstração que aquele do livro I o se tem a relação entre o Direito e a forma
mercantil, mas também o modo pelo qual a forma dinheiro, trazida à tona no capital monetário,
traz consigo aspectos de grande relevo para a crítica ao Direito e ao capitalismo.
O papel do Direito diante das figuras concretas do capital pode ser tratado no livro
III. No entanto, podemos notar também no nível de abstração do livro II que ele é bastante
importante nesta seara. Para o que nos diz respeito mais diretamente, devemos destacar que este
aspecto já é preparado por Marx, até certo ponto, em suas determinações ligadas à reprodução
do capital, no livro II. Neste último livro, as formas mais simples do capital monetário têm
destaque, ao passo que, com a mediação do fetichismo do dinheiro, ao tratar do processo global
de produção, as figuras mais irracionais do capital ganham destaque posteriormente, no livro
III, com o capital portador de juros e a renda. Em meio a estes, em oposição ao entesouramento
e ao reinvestimento na produção, tem-se o capital monetário colocado em relação à produção
futura e correlacionado a títulos jurídicos e documentos legais, que podem ou não ser fruto de
fraude, da especulação, etc. Isto, porém, não pode ser tratado neste momento. Fica, porém, a
importância do capital monetário no processo de circulação, como vimos, relacionado à
reprodução e à acumulação de capital.
Deste modo, diz Marx sobre o capital monetário e suas diversas figuras:
A forma mais simples em que esse capital monetário latente adicional pode
apresentar-se é a de tesouro. E possível que esse tesouro seja ouro ou prata
adicionais, obtido direta ou indiretamente no intercâmbio com os países que
produzem metais nobres. E desse modo cresce de maneira absoluta o
tesouro monetário dentro de um país. Por outro lado, é possível - e esta é a
maioria dos casos - que esse tesouro seja apenas dinheiro retirado da
circulação interna que, na mão de capitalistas individuais, assumiu a forma de
tesouro. Além disso, é possível que esse capital monetário latente consista
apenas em signos de valor - aqui ainda fazemos abstração do dinheiro
creditício -, ou também em meros direitos constatados por documentos legais,
títulos jurídicos! do capitalista contra terceiros. Em todos esses casos,
qualquer que seja a forma de existência desse capital monetário adicional, ele
representa, à medida que é capital in specie apenas títulos jurídicos adicionais,
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mantidos em reserva por capitalista, sobre a produção anual adicional, futura,
da sociedade. (MARX, 1985, pp. 238-239)
O entesouramento, na efetividade da sociedade capitalista, é muito incomum. Tem-se,
em geral, a necessidade de empréstimos e, assim, cria-se uma dependência do capital produtivo
diante do capital portador de juros (Cf. MARX, 1986 a, b). Ao passo que o tesouro representaria
a retirada do capital monetário de circulação em forma de dinheiro para futuro investimento,
ou o acúmulo de metais preciosos, algo distinto se dá quando o capital monetário aparece como
mero signo de valor.
Para o que nos diz respeito aqui, deve-se destacar que, neste caso, a expectativa do
direito a apropriação se coloca como central. Documentos legais e títulos jurídicos aparecem
como o meio pelo qual é possível operacionalizar a apropriação da riqueza social. E, assim, as
transações jurídicas aparecem como o elo intermediário entre a produção futura de mais-valor
e a apropriação de parcela deste mais-valor, que pode ou não ser efetivamente produzido. Neste
sentido, percebe-se, novamente como que o capital monetário, também por meio do Direito,
intervém no processo de circulação do capital estabelecendo um liame entre o capital produtivo
e o improdutivo, e pode ser importante para a análise das crises. Para a compreensão do Direito
em O capital, portanto, não basta a forma mercadoria; é preciso tratar, percebe-se pela análise
do livro II, também da forma dinheiro. A função do Direito no processo imediato de produção
precisa ser vista ao se ter em conta também a reprodução e a acumulação de capital e, portanto,
não só o capital industrial, mas sua relação com o capital monetário no processo de circulação.
Claro, ainda seria preciso analisar a função do Direito em meio às figuras econômicas como
juros, renda, lucro; no entanto, isto – que também não foi abordado por Pachukanis – envolve
uma análise detalhada do livro III. Se, em parte, isto já foi iniciado (Cf. SARTORI, 2019 b, c),
ainda é preciso que se escave com cuidado O capital de Marx em sua totalidade. Ele vem sendo
enfatizado somente de modo parcial, principalmente, por meio de uma visão pachukaniana do
livro I e isto precisa se modificar.
Apontamentos finais
O estudo do livro II de O capital propicia que a contraditoriedade da sociedade
capitalista possa ser enxergada, também, no que diz respeito ao Direito. No livro I, a gênese e
a conformação das principais formas econômicas do modo de produção capitalista se
explicitam, chegando, ao fim do livro ao processo pelo qual abre-se espaço para a supressão da
própria relação-capital. Este processo, claro, se explicita ao se analisar o papel do Direito
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também: vai-se da função que este tem na compra e venda da força de trabalho por meio da
vontade livre, passa-se pelo modo pelo qual a luta pela diminuição da jornada de trabalho
redunda na limitação desta vontade então, os
“trabalhadores têm de reunir suas cabeças e
como classe conquistar uma lei estatal, uma barreira social intransponível, que os impeça a si
mesmos de venderem a si e à sua descendência, por meio de contrato voluntário com o capital,
à noite e à escravidão!” (MARX, 1996 a, p. 414) e se chega, por fim, ao modo pelo qual,
depois de analisar o papel das legislações sanguinárias na assim chamada acumulação primitiva,
não são as reivindicações jurídicas a subverter as relações de produção; antes, trata-se “da
expropriação de poucos usurpadores pela massa do povo” (MARX, 1996 b, p. 381). Para os
nossos propósitos neste artigo, dois pontos a serem destacados: primeiramente, de se
apontar que Pachukanis vem a enfatizar com cuidado somente o primeiro elemento que
destacamos no livro I. E, assim, até mesmo esta parte da obra de Marx precisa de uma
investigação mais cuidadosa. Em segundo lugar, podemos destacar que, no livro II, ao tratar do
“sistema de apropriação capitalista” (MARX, 1996 b, p. 381), Marx começa a mostrar como
que a propriedade privada - antes vista como decorrente do trabalho, ou da apropriação da força
de trabalho por meio da relação social de assalariamento – passa a ter uma correlação bastante
mais mediada com o trabalho. Pelo que vimos, é possível se apropriar da riqueza social em
correlação com o capital produtivo. Porém, o capital monetário na figura dos agentes da
circulação e que é essencial ao processo de circulação, à reprodução e à acumulação de capital
- é remunerado, de certo modo, não devido à produtividade do seu trabalho, mas a partir de
parcelas da riqueza produzida pelos agentes da produção, envolvidos no processo de trabalho.
Ou seja, o próprio processo mediante o qual ganho de produtividade com a divisão do
trabalho entre entre capital industrial, comercial e monetário faz com que o princípio burguês
de repartição da riqueza (o quantum de trabalho) seja imediatamente negado. A apropriação do
mais-valor passa a se dar, não tanto de acordo com o trabalho dos agentes econômicos, mas em
função da titularidade da propriedade. Por mais que isto se dê de modo bastante mediado – até
mesmo porque, por vezes, não é possível saber se a produção efetivamente produzirá mais-
valor, ou se haverá equilíbrio entre capital constante (c) e variável (v), ou se há equilíbrio entre
os departamentos que produzem bens de produção (II) ou de consumo (I) uma negação,
dentro do próprio capitalismo, do sistema de apropriação capitalista. Entende-se melhor porque
Marx diz no livro I que “a propriedade privada capitalista […] é a primeira negação da
propriedade privada individual” (MARX, 1996 b, p. 381).
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Assim, a partir do estudo da reprodução ampliada do capital, vê-se em ato, o o
fetichismo do dinheiro (o que vimos ser essencial para a compreensão do Direito em Marx e,
acreditamos, no capitalismo); tem-se também o modo pelo qual, mediante o papel que vem
adquirir as transações jurídicas, os contratos e os títulos jurídicos, o sistema de apropriação
burguês entra em contradição consigo mesmo. A apropriação a partir do tempo de trabalho e da
troca equivalente (tratados por Pachukanis a partir do livro I) passa a ceder espaço para o papel
proeminente que adquire a propriedade privada burguesa reconhecida juridicamente pelo
Estado. E isto, segundo Marx, traz à tona, ao mesmo tempo, a possibilidade de supressão do
sistema capitalista de produção (e, assim, da negação da lei do valor) e a possibilidade de sua
manutenção, sem que se tenha
a “expropriação de poucos usurpadores pela massa do povo”
(MARX, 1996 b, p. 381), e, assim, a superação da sociedade capitalista. Esta última, agora,
nega seus próprios pressupostos originários e passa constituir-se como um entrave para que se
estabeleça “a propriedade individual sobre o fundamento do conquistado na era capitalista: a
cooperação e a propriedade comum da terra e dos meios de produção produzidos pelo próprio
trabalho” (MARX, 1996 b, p. 381). As consequências desta última possibilidade são tratadas
no livro III por Marx quando ele traz à tona o papel das sociedades por ações e das cooperativas
(Cf. MARX, 1986 a, b; SARTORI, 2019 c). Aqui, para os nossos fins, devemos destacar algo
essencial: o modo pelo qual o autor de O capital, no livro II, trata da correlação entre capital
monetário e produtivo explicita algumas questões importantes sobre o anacronismo do sistema
de apropriação capitalista e, em meio a estas, tem-se o Direito colocando-se como um elo
essencial no já anacrônico sistema capitalista de apropriação.
No livro II, e nas Teorias do mais-valor
44
, Marx mostra como que o outro lado do
crescimento do capital monetário e das mediações entre a produção e o consumo as quais, por
meio da divisão do trabalho geraram ganho de produtividade e desenvolvimento de forças
produtivas é o gigantismo do Estado e uma posição acrítica quanto aos juristas, a igreja e
quanto a diversos elementos contra os quais a burguesia se insurgiu anteriormente. Marx diz,
44
Aponta Marx a tendência na sociedade capitalista ao crescimento das camadas intermediárias que se interpõem
na produção; inclusive, destaca os juristas em meio a estas camadas: como os trabalhadores improdutivos
políticos. Podia-se admitir que excetuados a horda de criados, os soldados, marinheiros, policiais, funcionários
subalternos etc., concubinas, palhaços, malabaristas esses trabalhadores improdutivos no conjunto teriam melhor
nível de cultura que os anteriores trabalhadores improdutivos, e sobretudo que o número de artistas, músicos,
advogados, médicos, homens de letras, professores, inventores etc., mal pagos, teria também aumentado. No seio
da própria classe produtiva acresceram os intermediários comerciais, e em particular os empregados na construção
de máquinas, nas ferrovias, na mineração e escavação; além disso os trabalhadores que na agricultura se dedicam
a criar gado, produzem materiais químicos, minerais para adubos etc.” (MARX, 1980, p. 199)
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assim, que “a sociedade burguesa passa a produzir, em sua própria forma, tudo que combatera
na forma feudal ou absolutista” (MARX, 1980. p. 154). E, desta maneira, o conhecimento que
poderia se colocar a serviço do maior desenvolvimento das forças produtivas volta-se contra
este na medida em que se tem como efetiva
a dependência das classes ideológicas etc. para
com os capitalistas” (MARX, 1980, p. 154)
45
.
Deste modo, ao mesmo tempo, ao se analisar o
papel que o Direito tem no livro II, percebe-se do modo pelo qual sua função é um sintoma do
anacronismo do sistema de apropriação capitalista, mas, ao mesmo tempo, passa longe de trazer
qualquer solução a isto; antes, a esfera jurídica tem uma função bastante importante na
operacionalização deste sistema de apropriação na medida em que este se coloca como
anacrônico. O movimento do Direito expressa, portanto, ao mesmo tempo, a negação da
propriedade privada individual, a afirmação da propriedade privada capitalista e a possibilidade
– mas não a efetividade – da negação desta última. As referências ao Direito no livro II trazem
consigo esta marca, que pode ser relacionada ao aspecto dúplice do capital monetário, que opera
também por meio das diversas formas jurídicas. Estas formas, assim, operacionalizam
figuras econômicas autonomizadas que ganham proeminência na medida em que a produção
capitalista (baseada na apropriação do trabalho alheio, e no trabalho abstrato) entra em
contradição com a forma de apropriação capitalista, que não parte mais, imediatamente, da
necessidade de se apropriar da riqueza por meio do trabalho. A centralidade que adquire o
reconhecimento oficial dos títulos de propriedade explicita dois aspectos antagônicos: o
anacronismo de um modo de produção baseado no tempo de trabalho socialmente necessário,
e a forma pela qual, por meio da titularidade jurídica, a riqueza não é apropriada social,
comunitária e racionalmente, mas de modo privado, a partir de uma forma social em que “o
45
Veja-se a passagem completa de Marx: “a economia política no período clássico, do mesmo modo que a própria
burguesia no período inicial de autoafirmação, porta-se de maneira severa e crítica com a maquinaria
governamental etc. Mais tarde percebe e como a prática também evidencia – pela experiência apreende que brota
de sua própria organização a necessidade da combinação social de todas essas classes, em parte por completo
improdutivas. Até onde aqueles ‘trabalhadores improdutivos’ o criam meios de fruição e, por isso, comprá-los
dependa totalmente do modo como o agente da produção quer despender o salário ou o lucro, e até onde, ao
contrário, são necessários ou se façam necessários em virtude de doenças (caso dos médicos) ou de fraquezas
espirituais (caso dos padres) ou de conflitos entre os interesses privados e os nacionais (caso dos administradores
públicos, juristas, policiais, soldados), o vistos por A. Smith, pelo próprio capitalista industrial e pela classe
trabalhadora, como falsos custos de produção, que importa reduzir o mais possível, ao mínimo necessário e na
base da mais baixa remuneração dos serviços. A sociedade burguesa passa a produzir, em sua própria forma, tudo
que combatera na forma feudal ou absolutista. Tarefa principal dos sicofantas dessa sociedade, sobretudo os dos
‘níveis mais altos’ é portanto, em primeiro lugar, restaurar no plano teórico o segmento meramente parasitário
desses ‘trabalhadores improdutivos’ ou ainda justificar as exigências exageradas da fração para ela indispensável.
Proclamou-se, na realidade, a dependência das classes ideológicas etc. para com os capitalistas. (MARX, 1980, p.
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poder social torna-se, assim, poder privado da pessoa privada” (MARX, 1996 a, p. 252). O
Direito, assim, é um importante elemento na operacionalização da distribuição da riqueza
decorrente de uma sociedade em que há uma flagrante contradição entre as forças produtivas e
as relações de produção.
também um elemento, por assim dizer, ideológico sobre este processo. E ele deve
ser trazido à tona. No próprio livro II, tem-se aspectos a serem destacados. Ao tratar da
reprodução do capital, e, em especial, da manutenção do capital fixo por parte dos
trabalhadores, Marx traz um ponto bastante importante sobre o tema. Diz ele, remetendo ao
ponto de vista jurídico burguês:
O capital fixo exige também dispêndio positivo de trabalho para sua
manutenção. A maquinaria precisa ser limpa periodicamente. Trata-se aqui de
trabalho adicional, sem o qual ela se toma inutilizável; de mera defesa contra
influências prejudiciais dos elementos, que são inseparáveis do processo de
produção, portanto de manutenção, no sentido literal, da capacidade de operar.
O tempo de vida normal do capital fixo se calcula, naturalmente, admitindo-
se que estejam preenchidas as condições em que pode funcionar normalmente
durante esse tempo, como se supõe que, se um homem vive em média 30 anos,
ele se lave. Não se trata aqui da reposição do trabalho contido na máquina,
mas de trabalho adicional contínuo que seu uso torna necessário. Não se trata
de trabalho feito pela máquina, mas feito sobre ela, no qual ela o é agente
da produção, mas matéria-prima. O capital investido nesse trabalho, embora
não entre no processo de trabalho propriamente dito, ao qual o produto deve
sua origem, faz parte do capital fluido. Esse trabalho tem de ser continuamente
despendido na produção, seu valor, portanto, continuamente reposto pelo
valor do produto. O capital despendido nele pertence à parte do capital fluído
que tem de cobrir os falsos custos gerais e que, mediante um cálculo da média
anual, deve se repartir pelo produto-valor. Vimos que na indústria
propriamente dita esse trabalho de limpeza é executado gratuitamente pelos
trabalhadores nos momentos de descanso, motivo pelo qual o realizam muitas
vezes durante o próprio processo de produção, onde se toma a causa da
maioria dos acidentes. Esse trabalho não conta no preço do produto. O
consumidor o recebe, nesta medida, gratuitamente. Por outro lado, o
capitalista obtém, desse modo, os custos de manutenção de sua máquina de
graça. O trabalhador paga com sua própria pessoa e isso constitui um dos
mistérios da autoconservação do capital, os quais constituem de fato um
direito do trabalhador sobre a maquinaria e o tornam, mesmo do ponto de vista
jurídico burguês, co-proprietário dela. (MARX, 1985, pp. 127-128)
Na passagem, Marx trata de uma questão típica da reprodução capitalista, ligada à
conservação da maquinaria e ao modo pelo qual a acumulação de capital se com dispêndio
de tempo de trabalho tanto para que se preserve o capital constante (c), aqui visto como capital
fixo. Aborda, mesmo que de modo pressuposto, também as condições para que se tenha o
consumo necessário para a reprodução física e moral da força de trabalho, que compõe o capital
variável (v).
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Vê-se, assim, que, segundo o autor, o investimento na produção não se para que
ela possa ser incrementada, mas também para que as condições de trabalho (e os próprios meios
de produção, cuja titularidade é do capitalista) sejam mantidos. Tratar-se-ia de uma espécie de
capital fluído, que irá cobrir aquilo que Marx chama de falsos custos, e que não se conforma
como trabalho propriamente produtivo. Marx destaca que isto se dá, em sua época, ao passo
que os trabalhadores que operam as quinas, por vezes, também as limpam e fazem a
manutenção delas; e, deste modo, trabalham na própria reprodução dos meios de produção que
lhes são estranhos e que se colocam como uma potência estranha à sua atividade. A pessoa do
trabalhador, deste modo, é vilipendiada para que a maquinaria seja preservada. O domínio das
coisas sobre os homens, trazido no livro I com referência à noção de reificação, aparece aqui,
no livro II em ato. No entanto, de se destacar que, neste processo, tal atividade do trabalhador,
do ponto de vista do Direito burguês, faria do trabalhador, em verdade, co-proprietário da
maquinaria. E, assim, temos algo de grande relevo para o tema que nos propomos a abordar
aqui. duas questões importantes na passagem: a primeira delas diz respeito ao modo pelo
qual o ponto de vista jurídico burguês de que fala Marx na passagem é, até certo ponto, negado
no próprio capitalismo. O segundo aspecto diz respeito à noção de pessoa que figura na
passagem em correlação com o Direito.
Não necessariamente o próprio trabalhador que trabalha com determinados meios de
produção faz a manutenção destes
46
. Se não fosse este o caso, a manutenção da maquinaria
constaria ao empresário como um custo de produção, a ser pago, seja a uma outra empresa, seja
a trabalhadores do ramo. No entanto, para o que nos diz respeito neste artigo, nota-se que o fato
de os trabalhadores fazerem a manutenção da maquinaria, a limpeza desta, em seus horários de
descanso, do ponto de vista do Direito burguês – que liga o trabalho à apropriação, tal qual em
Locke, por exemplo
47
–, faz com que eles devessem ser co-proprietários da maquinaria. Neste
momento, eles não venderam a sua força de trabalho aos burgueses e, portanto, aquilo produzido
não é direito do proprietário do meio de produção. Isto, porém, no modo de produção capitalista,
46
Na continuação da passagem, diz Marx que “em diversos ramos da produção, porém, em que a maquinaria tem
de ser retirada do processo de produção para sua limpeza e, por isso, esta o pode ser feita no meio-tempo, como,
por exemplo, no caso das locomotivas, esse trabalho de manutenção figura entre os custos correntes, portanto
como elemento do capital fluido. Depois de funcionar no máximo 3 dias, uma locomotiva tem de ser levada à
oficina para limpeza; a caldeira tem de esfriar primeiro para não se estragar com a lavagem.” (MARX, 1985, pp.
127-128)
47
Para Marx, neste ponto, tem-se a posição da economia política: “a concepção de Locke é da maior importância
porque é a expressão clássica das ideias jurídicas da sociedade burguesa em oposição à feudal, e além disso sua
filosofia serviu de base a todas as ideias desenvolvidas por toda a economia inglesa posterior.” (MARX,1980, p.
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não poderia ser colocado em prática; e, assim, a posição segundo a qual o produto do trabalho
é daquele que produz entra em contradição com o modo pelo qual a riqueza vem a ser dividida
em meio ao desenvolvimento do capitalismo. Se em um primeiro momento, na proeminência
do capital industrial nascente, o burguês realizava o trabalho de supervisão, isto não se dá mais
depois de determinado momento. Um assalariado passa a realizar tal trabalho. (Cf. MARX,
1986, a, b; SARTORI, 2019 c) Tem-se também que, com o aumento da função do capital
monetário no processo de circulação do capital, bem como no processo global de produção, não
são os agentes da produção que se apropriam da riqueza social, mas também, entre outros,
os agentes da circulação
48
. A concepção burguesa de Direito precisa mudar substancialmente.
Ela, depois de determinado momento do desenvolvimento capitalista, traz, não mais a
apropriação por meio do trabalho como algo essencial, mas os direitos à apropriação que
decorrem da titularidade jurídica.
Marx, assim, de certo modo, traz um tema central para a compreensão do Direito: a
centralidade da propriedade privada nesta esfera do ser social. Acreditamos que, com uma
leitura atenta do livro II, tal questão possa ser esclarecida, ultrapassando em muito uma crítica
ao Direito que – em grande parte acertadamente – traz consigo a correlação entre mercadoria e
Direito. Para que se perceba, tanto do modo pelo qual a ideologia jurídica se desenvolve, quanto
da maneira pela qual ela expressa relações de produção anacrônicas, há de se analisar as
contradições que marcam as formas e as figuras econômicas do modo de produção capitalista.
Somente então, pode-se enxergar como que se coloca o Direito, bem como seu movimento, por
assim dizer interno.
Ao analisar o livro II, porém, de se notar ainda algo mais: Marx, ao mesmo tempo
que trata do Direito, traz à tona a noção de pessoa. E, na passagem, resta claro: não é porque o
autor de O capital traz em conjunto as duas noções, que se tem uma crítica à categoria sujeito
de direito, central na crítica pachukaniana, como central. O movimento do sujeito automático
do capital se impõe sobre a individualidade dos trabalhadores de modo que “o trabalhador paga
com sua própria pessoa” (MARX, 1985, pp. 127) para que a maquinaria possa se manter.
Novamente, tal qual no livro I (Cf. SARTORI, 2019 a) o que se tem não é tanto uma crítica à
noção importante para os juristas – de sujeito de direito, mas a exposição de como o processo
produtivo capitalista se impõe aos trabalhadores trazendo, em ato, a reificação de sua atividade,
48
Aqui não podemos falar de outras camadas e classes sociais. No entanto, principalmente no livro III (1986 a, b)
e nas Teorias do mais-valor (1980) Marx dá importantes apontamentos sobre o tema.
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que é mediada pelas formas econômicas tratadas em O capital. O trabalhador paga com sua
pessoa dispendendo energia vital para que as quinas se preservem e, assim, o processo de
extração de mais-valor possa continuar. Deparamo-nos, portanto, com o entrelaçamento de
formas econômicas – mercadoria, dinheiro, capital, mas também, neste caso, uma forma
antediluviana de manutenção da maquinaria –, e não com um processo em que o Direito seja o
essencial. Certamente, também neste caso, de um modo ou doutro, opera-se por meio do Direito
na superfície da sociedade; porém, o movimento do processo produtivo se dá por meio do
entrelaçamento contraditório de formas e figuras econômicas. Ou seja, é preciso que se
compreenda esta dialética peculiar, bem como o papel que cumprem o fetichismo da mercadoria
e do dinheiro nela; o importante passa longe de ser o fetichismo jurídico. Embora uma crítica
ao Direito seja essencial, ela somente abre as portas para que seja possível a compreensão do
processo econômico que determina o conteúdo das formas jurídicas.
Também aqui, não se pode confundir o reconhecimento jurídico com os fatos
econômicos. Por mais que os últimos não possam se colocar como se colocam sem a mediação
do Direito, eles não “são” jurídicos. As trocas mercantis estão situadas na esfera da circulação
e em meio ao processo de circulação de capital, tendo consigo o desenvolvimento do capital
monetário como suposto. Tem-se também o entrelaçamento entre o capital produtivo e o
improdutivo. Esta esfera, por sua vez, depende da proporção entre o capital constante (c) e o
variável (v), bem como entre o departamento de produção de bens de consumo (I) e de bens de
produção (II). Os contratos, o direito à apropriação da riqueza social, as transações jurídicas,
bem como as expectativas jurídicas podem se colocar sob o solo destas relações de produção.
Exercem, portanto, um papel de enorme importância no encaminhamento destas relações, mas,
como simples formas, não determinam seu conteúdo. Ao analisar o livro II, vê-se isto em ato.
Nota-se também que o elemento dúplice do capital monetário precisa de uma representação por
meio de tulos jurídicos. E, deste modo, também aqui, o Direito cumpre um papel de enorme
relevo, mas, ao mesmo tempo, tem uma dependência diante do solo da produção. E, como
vimos, tal aspecto pode ser importante, inclusive, para que se pense o modo pelo qual as crises
do sistema capitalista de produção perpassam embora não de modo essencial por um
elemento jurídico. O livro II, portanto, traz um tema essencial ao marxismo, aquele das crises
do modo de produção capitalista.
Por isso também, o tratamento deste livro de O capital pode ser de grande relevo. O
caráter contraditório da sociedade capitalista, bem como o modo pelo qual ela traz consigo a
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negação potencial de elementos essenciais dela aparece em ato ao se analisar o processo de
circulação. No que diz respeito ao Direito, abre-se um flanco bastante importante nos estudos
da obra de Marx, do modo de produção capitalista e, acreditamos, da própria crítica ao Direito:
em O capital, apontamentos importantes que remetem às razões e aos fundamentos da
centralidade da propriedade privada, da titularidade jurídica, das transações jurídicas e também
dos contratos na jurisprudência. Ao tratar do livro II, acreditamos, é possível avançar
substancialmente nos estudos críticos sobre o Direito, indo muito além daquilo tratado
classicamente por Pachukanis em seu importante livro. Em meio à reprodução e à acumulação
de capital aparecem temas essenciais, tanto ao estudo de Marx, quanto da crítica marxista ao
Direito e da compreensão crítica do modo de produção capitalista.
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