DOI 10.34019/1980-8518.2020.v20.27092
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Residência Multiprofissional: notas sobre uma
formação através do trabalho em saúde
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*
Resumo: Este ensaio tem por objetivo apresentar problematizações que conectam a Residência com a
totalidade social e histórica em que a mesma se insere. Trata centralmente de duas questões que podem
contribuir com o debate crítico no âmbito da modalidade Residência: a questão do financiamento e sua
relação com o trabalho em saúde; e uma discussão acerca da condição de assalariamento do trabalhador
da saúde e do residente enquanto trabalhador em formação. Parte do entendimento de que as Residências
Multiprofissionais em Saúde são uma modalidade de formação que se realiza através e pelo trabalho em
saúde, e ocupa estratégico na qualificação dos trabalhadores para o Sistema Único de Saúde (SUS).
Palavras Chave: Residência; Saúde; Trabalho em Saúde.
Multiprofessional Residence: notes on training through health work
Abstract: This essay aims to present problematizations that connect the Residence with the social and
historical totality in which it is inserted. It deals centrally with two issues that can contribute to the
critical debate in the Residency modality: the issue of financing and its relationship with health work;
and a discussion about the salaried condition of the health worker and the resident as a worker in training.
It is part of the understanding that Multiprofessional Residences in Health are a training modality that
is performed through and through health work, and occupies a strategic position in the qualification of
workers for the Unified Health System (SUS).
Keywords: Residency; Health; Health Work.
Submissão em 18/06/2019
Aprovado em 03/03/2020
*
Graduação em Serviço Social pela UNISINOS/RS, Especialização em Gestão de Serviços e Sistemas de Saúde
pela ENSP/FIOCRUZ, Mestre em Serviço Social pela UFRJ e Doutora em Serviço Social, com ênfase em Trabalho
e Política Social pela UERJ. Pesquisadora em Saúde Pública da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/FIOCRUZ). Também é Professora Adjunta da Escola de Serviço Social da
Universidade Federal Fluminense UFF/Niterói. Membro Pesquisadora do Núcleo Interinstitucional de Estudos e
Pesquisas sobre Teoria Social, Trabalho e Serviço Social - NUTSS.
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Introdução
A Residência Multiprofissional é uma formação em nível de pós-graduação lato senso
uma especialização. Contudo, um conjunto de especificidades na modalidade Residência,
dentre elas destaco: a) o fato de que a carga horária mínima para a certificação de uma
especialização é de 360 (trezentos e sessenta) horas, a Residência em Saúde tem uma duração
de dois anos, equivalente a uma carga horária mínima total de 5.760 (cinco mil setecentos e
sessenta) horas; b) a Residência é uma modalidade de ensino em serviço interministerial,
normatizada e acompanhada pelos Ministérios da Educação e da Saúde, sendo a Comissão
Nacional de Residência Multiprofissional da Saúde um tipo de espaço-síntese entre o processo
interministerial e sua relação com os programas (coordenadores, tutores, preceptores e
residentes) e com as entidades de representação das categorias profissionais (via Câmaras
Técnica); c) a Residência em Saúde é uma modalidade de formação que se realiza através e
pelo trabalho em saúde.
A opção neste ensaio não será por tratar esses pontos, acima destacados, como tópicos,
mas sim de analisá-los a luz de um processo de implicação tua que tem seu desfecho no
cotidiano dos serviços de saúde no Sistema Único de Saúde (SUS), tendo como questão medular
a afirmativa de que a Residência em Saúde é uma modalidade de formação que se realiza através
e pelo trabalho em saúde.
Essa afirmação contém em si um complexo de questões em movimento. Em que pese a
Residência ser uma modalidade de formação tipo especialização, ela não opera em termos
específicos, pois se realiza como formação na mediação entre ensino/educação, saúde e
trabalho.
Neste sentido, nosso objetivo neste ensaio é apresentar problematizações que conectam
a Residência com a totalidade social e histórica em que a mesma se insere, para tanto nossa
opção foi de tratar duas questões que podem contribuir com o debate crítico no âmbito da
modalidade Residência: a questão do financiamento e sua relação com o trabalho em saúde; e
uma discussão acerca da condição de assalariamento do trabalhador da saúde e do residente
enquanto trabalhador em formação.
Longe que esgotar qualquer discussão, o que buscamos com este ensaio é contribuir
com observações que consideram as contradições postas na modalidade Residência como
expressão do próprio Sistema de Saúde brasileiro.
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Trabalho em saúde: uma problematização acerca do financiamento
O trabalho em saúde é uma atividade essencial à vida de homens e mulheres e inscreve-
se na esfera de produção o material (MENDES-GONÇALVES, 1992). Pensando o Sistema
Único de Saúde (SUS), a finalidade do trabalho em saúde é o atendimento às necessidades de
saúde, estas entendidas como necessidades que se constituem social e historicamente e que se
manifestam nas dimensões individual e/ou coletiva.
No processo de saúde-doença existe um caráter social e uma determinação histórica
(LAURELL, 1983; LAURELL; NORIEGA, 1989). Além disso, o trabalho em saúde não é um
dado em si, uma abstração apartada da realidade; ao contrário, é nos marcos do modo de
produção capitalista um tipo de trabalho que participa do processo de reprodução social, como
também de forma indireta da valorização do capital.
E o campo de realização desse trabalho? O lócus é a política de saúde brasileira. Como
apontado por Bravo (1999; 2007), desde sua instituição – na Constituição Federal de 1988 e na
Lei Orgânica da Saúde o SUS convive com dois projetos em disputa: “o projeto de reforma
sanitária, construído na década de 1980 e inscrito na Constituição Brasileira de 1988, e o projeto
de saúde articulada ao mercado ou privatista, hegemônico na segunda metade da cada de
1990” (BRAVO, 2007, p.101).
A política de saúde ainda que tenha se constituído como universal, tem no seu interior
desde a criação do SUS, uma disputa entre interesses públicos e privados e essa relação traz
repercussões para a formação e o trabalho desenvolvidos na saúde.
As características do (des)financiamento do SUS são elementos-chave para a
compreensão do apequenamento do SUS em sua dimensão pública e universal, em razão de que
um financiamento adequado e estável é uma condição inegociável para que a política de saúde
possa cumprir sua finalidade, ou seja, atender as necessidades de saúde da população brasileira,
sendo a formação em saúde um ponto estratégico para a sustenção do próprio SUS.
O trabalho e a formação em saúde exigem uma série de meios para sua realização, sejam
recursos humanos qualificados, meios físicos, materiais de consumo, tempo, mobilidade etc. A
Residência é uma modalidade de formação que tem a característica de realizar-se através do
trabalho em saúde, ou seja, é uma formação pelo trabalho em saúde. Em se tratando de políticas
sociais públicas, é primordial destacar que a dimensão econômica se concretizada no perfil de
financiamento, pois cria, dificulta ou impossibilita as condições objetivas e necessárias para a
prática cotidiana desse tipo de trabalho, assim como da formação.
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Santos (2013) aponta o subfinanciamento federal como um dos obstáculos históricos ao
pleno desenvolvimento do SUS como direito social. Segundo Santos, o subfinanciamento tem
como consequências: o desinvestimento em equipamentos diagnóstico e terapêutico,
especialmente na atenção básica e média complexidade; esse subfinanciamento federal atinge
os níveis de atenção de forma desigual, sendo os repasses a municípios e Estados fragmentados
e numa lógica de programas e projetos e não com base na real necessidade de saúde;
limitações (impostas pela Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101, de
04/05/2000) na quantidade de trabalhadores na saúde, bem como uma gestão do trabalho, pois
esta se caracteriza pela precarização do trabalho em saúde via terceirização.
A esse contexto soma-se a Desvinculação das Receitas da União (DRU), criada pela
Ementa Constitucional 27/2000. A DRU fere princípios constitucionais ao desvincular parcelas
da receita arrecadada de finalidades fundamentais ao desenvolvimento do país no âmbito dos
direitos sociais (SCAFF, 2004). Ou seja, a DRU desvia recursos que haviam sido destinados à
saúde, educação, assistência social e previdência. Diferente dos processos de desvinculação
que a precederam, a DRU nem sequer refere quais seriam essas finalidades fundamentais de
interesse social.
Conforme Salvador (2010), os recursos da DRU têm sido utilizados, num processo de
ajuste estrutural, para a composição do superávit primário, promovendo a diminuição do gasto
público referente às políticas de seguridade social e educação em favor do pagamento de juros
da dívida externa brasileira.
Analisando os efeitos da DRU, em publicação no ano de 2004, Scaff faz observações
que permanecem atuais:
[...] entendo que o procedimento que vem sendo adotado pelo Governo
Federal para tratar desta matéria malfere a Constituição e a coloca em um
patamar idêntico ao de uma norma inoportuna, que impede a gestão financeira
saudável do Brasil. É a tese da ingovernabilidade que paira como ameaça à
concretização constitucional desde sua promulgação. A classe dirigente
brasileira se comporta como se a Constituição pudesse, e devesse, ser afastada
para a concretização de seus objetivos de governo, e não que o exercício do
governo devesse estar subsumido às normas constitucionais. A ideia de
Supremacia da Constituição não encontra guarida na cultura técnico-
burocrática brasileira (SCAFF, 2004, p. 49-50).
O processo de desvinculação das receitas fere a lógica de direitos sociais impressa na
Constituição Federal de 1988 ao transferir recursos destinados à seguridade social e educação
para o pagamento dos juros da dívida brasileira. Ou seja, explicitando na política econômica a
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relação de tensão entre os direitos sociais públicos e o incremento do mercado.
Netto ao apontar eixos que tangenciam o sentido do público e privado no capitalismo
em sua fase imperialista, nos apresenta direções que podem ser tomadas como fundamentais na
observação na política de saúde. Segundo Netto,
A mercantilização universal das relações sociais [...] num primeiro instante
monetariza as interações humanas e redunda, com a consolidação da ordem
monopólica, na medida delas pelas instituições que plasmam os serviços e
estes se organizam crescentemente segundo a estrutura do monopólio
(NETTO, 1996, p. 35).
Andreazzi (2012) esclarece a dinâmica entre público e privado no SUS como inscrita
numa relação que se estabelece entre o Estado e o mercado. Conforme a autora,
Trata-se de um frágil, fugaz e mutante ponto arbitrário de corte temporal e
geográfico de unidade de luta de contrários, pois mercado e Estado se
complementam e disputam ao mesmo tempo. Processo que decorre da
dinâmica de cooperação ou extração de excedente a partir dos diversos bens e
serviços necessários à produção do cuidado em saúde e da competição entre
seus respectivos agentes. E da dinâmica de reprodução da ordem através desse
instrumento privilegiado que é o Estado, a partir da luta de classes existente
em uma determinada formação social (ANDREAZZI, 2012, p. 31).
Nesse sentido, além do apequenamento das condições de existência e desenvolvimento
de um SUS público, estatal e universal, na política de saúde brasileira, vem se produzindo um
movimento objetivo de financiamento público da iniciativa privada e, ao mesmo tempo, de
incentivo à mercantilização da saúde. Ou seja, o se trata apenas da existência da oferta de
serviços privados suplementares, mas do financiamento desses serviços via renúncia fiscal.
O tema renúncia fiscal vem sendo analisado por autores como Dain et al. (2002), Sayd
(2003), Ocké-Reis e Sophia (2009), Ocké-Reis e Santos (2011), Ocké-Reis (2013, 2014),
Mendes e Weiller (2015). De forma geral, esses autores apresentam elementos que apontam a
renúncia fiscal aos planos e seguros privados de saúde como fomentadora de iniquidades no
campo da saúde.
Os autores apontam, também, a necessidade de detalhamento acerca das informações da
renúncia fiscal no Brasil, assim como a urgência de que esses dados de gasto tributário sejam
integrados aos gastos públicos, dando visibilidade à questão. Esta questão apresentada pelos
autores reitera a interpretação de que na dinâmica da sociedade brasileira, historicamente,
um obscurecimento dos critérios do gasto público, característico de uma sociedade com
limitada participação social no que se refere à definição de prioridades de gasto público.
A renúncia fiscal na saúde acontece através da dedução de gastos no Imposto de Renda
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(IR). São deduções individuais no modelo completo de Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF)
referentes à contratação de planos de saúde e/ou despesas médicas/laboratoriais/hospitalares, e
são dedutíveis do Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ), os gastos das empresas com os
planos de saúde coletivos. A renúncia fiscal se dá, também, através de concessões fiscais às
entidades privadas sem fins lucrativos (dentre tantos outros, Hospital Israelita Albert Einstein,
Sociedade Beneficiente de Senhoras, Hospital Sirio-Libanês, Hospital Moinhos de Vento,
Hospital do Coração e as Santas Casas de Misericórdia) e à indústria químico-farmacêutica.
Sobre os planos de saúde, Ocké-Reis (2014) entende que uma das contradições postas
ao relacionar o padrão de financiamento do SUS com a renúncia fiscal aos planos de saúde
reside no fato de que os gastos com os planos diminuem os gastos de estratos superiores de
renda e, pela mesma via, concedem recursos a uma atividade econômica lucrativa, e esse
movimento se dá com prejuízo às ações do SUS que deveriam receber esses recursos públicos.
Andreazzi (2014) aponta elementos que complexificam o processo de financeirização
na saúde. Segundo a autora,
A financeirização do capital traz uma maior complexidade à questão, pois as empresas
de saúde, especialmente pela sua taxa de inovação, se tornam importantes para a reprodução
geral do capital, numa economia estagnada. Ou seja, muitas empresas contratadoras de planos
privados de saúde podem também ser grandes investidoras do mercado de ações e auferirem
rendimentos financeiros de empresas seguradoras (ANDREAZZI, 2014, p. 58).
Identifica-se, nesse contexto, um determinado padrão de ação estatal que restringe o
orçamento destinado à saúde pública e, ao mesmo tempo, concede subsídios ao setor privado
de saúde. Esse padrão relaciona-se com o movimento do capital no setor saúde. Como advertem
Bravo e Menezes,
O preceito constitucional da saúde como direito é ferido, ao ser substituído
por uma abordagem da saúde como mercadoria a ser mais amplamente
consumida, especialmente para as chamadas classes C e D, para impulsionar
o atual modelo de desenvolvimento. Essa medida pode ser a formalização final
para a instituição de um seguro saúde e para a criação de um Sistema Nacional
de Saúde integrado com o setor privado, tendo como consequência acabar com
o SUS ou torná-lo um sistema focalizado, consagrando o processo de
universalização excludente, que vem ocorrendo desde os anos 1990 com a
saída dos trabalhadores mais bem remunerados, que foram impulsionados à
compra de serviços no mercado privado devido ao sucateamento do SUS
(BRAVO; MENEZES, 2013, p.38-39).
Nesse sentido, a renúncia fiscal realizada pelo Estado brasileiro, a desvinculação das
receitas e outras formas de privatização se inscrevem no debate mais amplo acerca da relação
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entre público e privado, ou seja, são elementos que materializam a existência de dois projetos
em curso e desenvolvimento – o projeto privatista e a projeto da Reforma Sanitária.
É importante destacar que no Brasil esse “financiamento público do privado” acontece
numa dinâmica orçamentária que reforça as desigualdades sociais. Como esclarecido por
Salvador, no Brasil “o orçamento é financiado pelos pobres via impostos sobre o salário e por
meio de tributos indiretos, sendo apropriado pelos mais ricos, via transferência de recursos para
o mercado financeiro e acumulação de capital” (SALVADOR, 2012, p. 10).
Em que pese a regulamentação da EC29, através da Lei 141/2012, os recursos
financeiros destinados ao SUS permaneceram insuficientes. Como apontou Mendes (2012), o
gasto SUS que era 2,89% do PIB em 2000, passou a 3,9% do PIB, em 2012 (sendo 1,8% da
União, 1,1% dos Municípios e 1,0% dos Estados). Estudos de Mendes (2012, 2015) afirmam a
insuficiência desses valores para a sustentação de um sistema universal e integral. Na síntese
do autor,
O problemático financiamento do SUS, nesse cenário do capitalismo
contemporâneo em crise, transcorreu sobre um longo processo de tensões. No
plano interno da economia brasileira, as decisões de uma política econômica
restritiva/neoliberal, mantiveram-se muito firme durante todos os anos 1990 e
2000. Sob essa condução, assistiu-se à fragilidade do financiamento da
seguridade social, ao perder recursos de forma sistemática por meio do
mecanismo da DRU e sua renovação periódica nesses anos. Acrescente-se a
esse quadro, as medidas do governo federal para remanejamentos e cortes no
orçamento da seguridade social e da saúde, em particular, muitas vezes
justificados pelos problemas de caixa ou pelos riscos que as contas gerais do
governo sofriam, em razão de problemas para assegurar uma escala de
superávit primário condizente com as exigências do mundo da finança e com
os interesses das classes dominantes em enfrentarem a queda da lucratividade
no âmbito da produção (MENDES, 2015, p.79).
O tensionamento da coexistência entre interesses privados e públicos atua fortemente
nas bases materiais e subjetivas do trabalho em saúde no SUS e, por conseguinte, nas bases
para o desenvolvimento da Residência Multiprofissional em Saúde. Ou seja, ainda que a
Residência seja formação em saúde, é essencial analisá-la como um terreno e expressão de
múltiplas dimensões que tocam e interagem com esta formação “pelo” e “para otrabalho em
saúde.
Na Residência atuam mutuamente vários sujeitos: as instituições, os coordenadores de
programa, os docentes, os tutores, os preceptores, os demais trabalhadores inseridos nos
serviços, os usuários e os residentes. Todos esses não são sujeitos em abstrato, estão submetido
às contingências objetivas do processo de reestruturação produtiva na saúde, processo este
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marcado, dentre outras questões, pela privatização dos serviços, desoneração fiscal,
intensificação do trabalho em saúde, precarização dos vínculos e das condições para sua
realização no SUS.
Cumpre destacar que até 2009 o financiamento de bolsas para os programas de
Residências (médica, uni e multiprofissional) era realizado pelo Ministério da Saúde. Tal
cenário se altera em 2009 quando o Ministério da Educação lança o projeto “Implantação do
Programa de Residência Integrada Multiprofissional em Saúde da rede de Hospitais
Universitários Federais”. A partir de 2010, com a participação do MEC, o aumento do
número de bolsas e, também, um novo perfil dos programas de Residência, agora voltados para
a atuação em hospitais (BRASIL, 2014).
No que se refere ao financiamento das bolsas na viragem de foco para as Residências
hospitalares, Silva (2018) aponta que houve um aumento de cerca de 700% no financiamento
de bolsa para a Residência entre os anos de 2010 e 2014. Tal dado aponta o caráter estratégico
da formação Residência.
No que se refere aos rumos da gestão do trabalho em saúde nas instituições vinculadas
ao MEC, é fundamental destacar a Portaria MEC 442 de 2012, pois nesta Portaria foi
delegada à Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) o exercício das
competências previstas nos incisos VII a IX do Art. 18 do Decreto 7.690/2012. Ou seja,
passou à competência da EBSERH: coordenar, acompanhar e avaliar a execução das atividades
de gestão dos hospitais vinculados às instituições federais de ensino superior; apoiar
tecnicamente e elaborar instrumentos de melhoria da gestão dos hospitais vinculados às
instituições federais de ensino superior; elaborar matriz de distribuição de recursos para os
hospitais vinculados às instituições federais de ensino superior, baseada nas informações
prestadas pelos hospitais.
Segundo a avaliação do MEC, manifestada no documento “A democratização e
expansão da educação superior no país 2003-2014”:
[...] o governo federal criou a EBSERH, como parte de um conjunto de
medidas para viabilizar a reestruturação dos hospitais universitários
federais. Desde 2010, por meio do Programa Nacional de Reestruturação dos
Hospitais Universitários Federais (REHUF), foram adotadas medidas que
contemplam a reestruturação física e tecnológica das unidades, com a
modernização do parque tecnológico, a revisão do financiamento da rede, com
aumento progressivo do orçamento destinado às instituições, a melhoria dos
processos de gestão, a recuperação do quadro de recursos humanos dos
hospitais e o aprimoramento das atividades hospitalares vinculadas ao ensino,
pesquisa e extensão, bem como a assistência à saúde (BRASIL, 2014, p.18,
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grifos nossos).
Como dito, a partir de 2010 uma expansão dos programas de Residência, a partir
do aumento da participação do MEC no financiamento de bolsas. Essa expansão ocorreu
principalmente nos programas de Residência desenvolvidos em hospitais federais de ensino.
Em 2011, negando a autonomia universitária, a gestão estatal e o controle social democrático
da gestão pública, o governo apresenta a EBSERH como “modelo para os hospitais
universitários federais”. Na análise de Correia (2014),
A entrega dos Hospitais Universitários (HUs) para uma empresa com
personalidade jurídica de direito privado rompe com o caráter eminentemente
público da Universidade e permite que a lógica do setor privado seja
predominante neste espaço. Está em jogo a quebra da autonomia universitária,
da liberdade de ensinar, estudar e pesquisar, em um Hospital Universitário, a
partir da necessidade em saúde e do processo de formação profissional. A
predominância da lógica mercantil, neste espaço, leva à priorização dos
interesses do mercado privado da educação e da saúde, da indústria de
equipamentos e medicamentos (CORREIA, 2014, p.46).
Nessa perspectiva, a EBSERH é mais uma das formas que materializam da disputa entre
os interesses privados e públicos presentes no Estado brasileiro e, neste caso, no cotidiano do
SUS e da modalidade Residência, numa questão estratégica: nos sentidos da formação e do
trabalho, justamente no encontro entre as políticas de educação e saúde. Como apontou Cardoso
(2014),
A EBSERH representa a redução do Estado enquanto responsável pelas
políticas de educação superior no país assim como seus frutos para a
população, já que por sua lógica não seria mais responsabilidade do Estado
promover a saúde, por exemplo, mas sim financiá-la e oferecê-la como
parceria entre o Estado e o capital, sob a forma de contratos de gestão. [...]
realiza-se uma enorme reconfiguração do Estado com o singelo argumento de
que se está apenas a regulamentar algo que muito devia ter sido feito
(CARDOSO, 2014, p. 40).
Intensificadas na conjuntura mais recente, as contrarreformas na saúde e na educação,
expressam, em termos de Residência e de formação no campo da saúde em geral, um quadro
agudo e sobreposto de precarização da universidade pública, acompanhado da ampliação do
ensino privado e de baixa qualidade, somado a precarização dos serviços e condições de
trabalho no SUS.
Ampliando e reeditando os processos de financeirização dos recursos do fundo público,
entra em tela a Emenda Constitucional 95 (EC 95, antiga Proposta de Emenda à Constituição
55/2016), proposta no primeiro mês do governo golpista de Temer. Além do congelamento
dos gastos públicos por vinte anos, no que tange à saúde e a educação, há a desvinculação das
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despesas primárias. Significa que o percentual mínimo de despesas estipulado na Constituição
de 1988 foi substituído pela racionalidade baseada no limite de gastos realizados no ano
anterior. Em nome de uma pretensa austeridade econômica tem-se como resultado prático
decisões macroeconômicas de alto impacto social no sentido do reforço das desigualdades e do
não-acesso dos trabalhadores à políticas sociais públicas.
Como apontam Rossi et al (2018), “a austeridade é uma ideia força, poderosa quando
transformada em discurso, perigosa quando aplicada politicamente (ROSSI; DWECK;
ARANTES, 2018, p. 14). Como apontam os autores, em termos conceituais, a austeridade fiscal
seria um instrumento utilizado em tempos de desaceleração do crescimento, voltando-se para a
diminuição dos gastos blicos em detrimento do aumento de impostos, com vistas à retomada
do crescimento econômico, contudo sua aplicação, especialmente no Brasil, tem significado o
aprofundamento das contrarreformas neoliberais. Rossi e Dweck (2016) apontam que a
inauguração de novo regime fiscal pela via de emenda constitucional tem sentido com o
objetivo de desvincular as receitas destinadas à saúde e educação.
A EC 95 promove o que Dweck et al (2018, p.48) chamaram de austeridade permanente:
um novo pacto (anti-)social. E pode-se afirmar que o “novo” pacto (anti-)social é de fato mais
uma expressão do pacto social a brasileira, presente desde a “independência” deste país.
Conforme assinalou Fernandes (1976), a independência brasileira é o marco do rompimento do
estatuto de colônia, contudo esse “rompimento” não altera as condições internas da ordem
social vigente. Ou seja, desde a “independência” do Brasil são preservadas estruturas sociais e
econômicas baseadas no trabalho escravo (em tempos atuais revisitado), no latifúndio, na
concentração de renda e na concentração do poder nas mãos da elite brasileira.
O recurso à utilização, ainda que de forma brevíssima, das análises de Fernandes se faz
necessário para pontuar que a concepção de capitalismo dependente e combinado está na base
da interpretação de Fernandes sobre as estruturas sociais e econômicas brasileiras. Daí
depreende-se que na leitura fernandiana o “arcaico” não se apresenta como residual, mas como
funcionalidade ao capitalismo nas economias dependentes em processo de modernização
conservadora.
Nesse sentido, conforme o autor, em economias como a brasileira uma convivência
tensionada e funcional entre o “arcaico” e o “moderno
1
”, ou seja, o processo de modernização
1
“Arcaico” e “moderno” converteram-se em termos “clássicos” para a descrição analítica da “dualidade”
brasileira. Como observou Fernandes, "as fases novas não eliminam as anteriores: ao contrário coexistem e
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se realiza mantendo estruturas da antiga sociedade colonial, onde a concentração de renda e a
concentração do poder encontrava-se nas mãos daquela elite brasileira que em tempos de
modernização atende pelo nome de “burguesia dependente”. Nessa esteira, a reprodução
capitalista na sua versão subdesenvolvida não é um infortúnio, mas sim uma condição
necessária ao desenvolvimento capitalista central. Como apontou Fernandes,
[...] o subdesenvolvimento, onde ele surge e se mantém, não é uma mera cópia
frustrada de algo maior nem uma fatalidade. Mas uma escolha, se não
realizada, pelo menos aceita socialmente, e que depende, para ser condenado
e superado, de outras escolhas da mesma natureza, que forcem os homens a
confiar em si mesmos ou em sua civilização e a visarem o futuro
(FERNANDES, 1968, p. 57).
As análises de Fernandes (1968, 1976) acerca da formação social, econômica e cultural
permanecem atuais, é patente que no Brasil o surgimento do “novo”, a realização da mudança
e da “modernização” aconteceram de forma a garantir a continuidade do que está posto, do
“antigo” que é capaz de conservar estruturas econômicas de exploração. Como apontado, a EC
95 é um dos exemplos mais recentes. As análises de Souza e Soares (2019) sobre o recuo
civilizatório brasileiro mais recente, afirmam os efeitos, mas também apontam caminhos de
resistência, dizem as autoras:
Os danos avistados e vivenciados pelas medidas implementadas são
evidentes: a agudização das expressões da questão social e a negligência às
demandas do trabalho. Assim, é preciso afirmar a natureza econômica que
move a ascensão conservadora ora vivenciada. [...] Diante de uma sociedade
periférica e dependente, com uma trajetória de limitada proteção social e uma
inserção subalterna na economia mundial, as contrarreformas se apresentam
ainda mais nefastas para o conjunto da classe trabalhadora. Esta classe que
pouco vivenciou de um marco civilizatório, pouco terá para contar sobre essa
breve gina da nossa história se não se organizar e resistir a este bárbaro
cenário. A única certeza é que só a luta muda a vida, e que não estamos diante
do fim da história (SOUZA; SOARES, 2019, p.26).
Esse processo de organização é um desafio posto aos trabalhadores e trabalhadoras
brasileiras, aqui especialmente tratados, os trabalhadores e trabalhadoras da saúde, inclusive
em na condição de residentes. A política de saúde, o trabalho e a formação em saúde são
atravessados e condicionados pelas formas históricas que o capitalismo assume na
particularidade brasileira, operar nessa realidade solicita desvelá-la. E esse desvelamento é
efetivo se agregar esforços coletivos de análise, pesquisa e resistência (luta!) na efetivação e
engendram um sistema econômico capitalista segmentado, no qual as diferentes estruturas compõem um todo,
articulado com base nos elementos capitalistas das diversas estruturas em vários estágios de diferenciação
econômica" (FERNANDES, 1968, p. 96).
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ampliação dos princípios do SUS. Corroborando com as análises de Souza e Soares (2019), a
luta pela saúde como um direito social é uma luta civilizatória.
Com isso o que queremos enfatizar é que a formação via Residência não pode ser
discutida sem considerarmos as facetas da política de saúde brasileira (inclusive as expressões
que assume nas instituições que realizam as Residências em Saúde) e sua relação com o
desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Desconsiderar as estruturas econômicas e sociais
que fundam a lógica do direito social no Brasil, especialmente aqui tratado o SUS, esvazia
qualquer análise acerca do trabalho e da formação em saúde para atuação no SUS. Obviamente
afirmar que essa correlação existe não significa simplificá-la ou tratá-la como afirmação
retórica, nossa intenção aqui é apontar que esse é um território de estudo que merece pesquisa
e sistematização.
no campo do Serviço Social importantes estudos que discutem criticamente e num
plano macro a relação entre política e desenvolvimento capitalista, podemos citar a vasta
produção de Maria Inês Souza Bravo, tratando especialmente a política de saúde, e também os
estudos de Elaine Rossetti Behring e Ivanete Salete Boschetti no debate da política social. A
discussão está posta, contudo é necessário utilizá-la como base nas mediações com o
desvelamento da realidade das instituições, dos serviços de saúde, das Residências em Saúde.
Alguns desafios para uma formação pela via do trabalho
Como afirmado aqui a Residência guarda a particularidade de tratar diretamente da
relação entre trabalho e formação profissional para o SUS. Na expressão desta particularidade
encontramos contradições postas no próprio sistema de saúde no que se refere à lógica do
trabalho na sociedade capitalista e a formação dos trabalhadores da saúde no Brasil.
A Residência Multiprofissional é definida como modalidade de ensino de s-graduação
lato sensu, desenvolvida em regime de dedicação exclusiva, voltada para a educação em serviço
e abrangendo as profissões da área da saúde
2
, com exceção da Medicina. São elas: Biomedicina,
Ciências Biológicas, Educação sica, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia,
Medicina Veterinária, Nutrição, Odontologia, Psicologia, Serviço Social e Terapia Ocupacional.
Conforme a Lei 11.129/2005, a Residência consiste em um programa de cooperação
intersetorial, para favorecer a inserção qualificada dos jovens profissionais da saúde no mercado
2
Conforme a Resolução nº 287/1998 do Conselho Nacional de Saúde (CNS).
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de trabalho, particularmente em áreas prioritárias do Sistema Único de Saúde (SUS).
A regulamentação da Residência não médica (uni e multiprofissional) acontece em uma
Lei que tratava de qualificação para a inserção de jovens no mercado de trabalho, e esta
legislação não estabelecia mediação com a política de formação de recursos humanos para o
SUS. O elemento progressista estava em referir-se à modalidade Residência enfatizando a
atuação nas áreas prioritárias do SUS, ainda que esse enfoque tenha sido precedido do incentivo
a inserção no mercado de trabalho de forma genérica.
Esta formação ocupa um lugar estratégico podendo, sob uma ótica, contribuir para uma
formação profissional multiprofissional no sentido da efetivação do SUS a partir das
necessidades de saúde da população e da leitura de uma realidade social atravessada por
desigualdades e inacessibilidade a direitos, como também, sob outra ótica, a formação pode ser
utilizada como forma de substituição e precarização das condições de trabalho no SUS.
A potencialidade da Residência multiprofissional em saúde consiste em sintonizar
formação e trabalho, bem como em situar as necessidades de saúde da população usuária como
eixo norteador da qualificação de profissionais da saúde, tomando o cotidiano dos serviços do
SUS como lócus de ensino e aprendizagem.
Entendemos que a formação pelo trabalho oferecida pela modalidade Residência se
em um processo social e histórico, sendo fundamental apreendê-la não somente por si mesma,
mas à luz de problematizações que possibilitem mediações com a totalidade.
Nesse sentido, partindo do pressuposto que a Residência é uma formação que acontece
pelo trabalho em saúde, não obstante haver diferenciações na realização do trabalho de um
“operário” e na realização do trabalho de um trabalhador da saúde, ambos realizam “seus
trabalhos” sob a égide do modo de produção capitalista, portanto ambos vivenciam
cotidianamente a injunção do capital. Em outras palavras, no modo de produção capitalista o
trabalho em saúde participa do processo de reprodução social, voltando-se para a reprodução
de sua mercadoria mais valiosa a força de trabalho. Dessa forma, em sua atuação no SUS, o
trabalho em saúde se manifesta como um trabalho improdutivo.
No capitalismo todo trabalho é assalariado e valoriza o capital. Contudo, essa
valorização pode acontecer de forma direta, como meio direto de produção de mais-valia, o que
quer dizer que se realiza como trabalho produtivo
3
; ou de forma indireta, como trabalho
3
Conforme Marx, “[...] só é produtivo aquele trabalho – e só é trabalhador produtivo aquele que emprega a força
de trabalho que diretamente produza mais-valia; portanto, o trabalho que seja consumido diretamente no
processo de produção com vistas à valorização do capital” (MARX, 1978, p.70).
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improdutivo (MARX, 1978). Desse modo, o trabalho em saúde circunscrito ao SUS é trabalho
improdutivo. Marx explicita a diferença entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo. Diz-
nos:
Uma cantora que entoa como um pássaro é um trabalhador improdutivo. Na
medida em que vende seu canto, é assalariada ou comerciante. Mas, a mesma
cantora, contratada por um empresário, que a faz cantar para ganhar dinheiro,
é um trabalhador produtivo que produz diretamente capital. Um mestre-
escola que é contratado com outros para valorizar, mediante seu trabalho, o
dinheiro do empresário da instituição que trafica com o conhecimento, é
trabalhador produtivo (MARX, 1978, p.76).
O trabalho em saúde é improdutivo, pois se caracteriza como um “serviço útil” e o
como um produto ou mercadoria acabada convertida imediatamente em valorização do capital.
Ou seja, a realização do trabalho em saúde não produz a separação entre o produto do trabalho
e o trabalhador, há uma relativa autonomia no exercício do trabalho em saúde.
É essencial destacar que nossa compreensão da autonomia no trabalho em saúde difere-
se radicalmente das elaborações no campo da micropolítica
4
, pois essas sustentam a ideia de
altos veis de autonomia na realização do trabalho em saúde. Autores como Franco e Merhy
(2012), que tratam o trabalho em saúde como “trabalho vivo em ato”, defendem a existência de
um “auto-governo na realização deste tipo de trabalho. Segundo a análise micropolítica
representada por esses autores, esse “alto nível de autonomia” está posto porque o “auto-
governo” é entendido, por eles, como atributo do trabalho”, e a subjetividade como “operadora
da realidade”. Nas palavras de Franco e Merhy (2012),
“[...] o trabalhador tenha [tem] sua atividade presidida por altos graus de
liberdade, pois o seu principal atributo é justamente o auto-governo que exerce
sobre seu próprio processo de trabalho, ainda mais no caso do trabalho em
saúde que é sempre relacional [...] o reconhecimento por nós de que a
subjetividade é operadora de realidade, ou seja, o modo singular como cada
um significa o trabalho e o cuidado agencia o modo como se produz o agir em
saúde (FRANCO; MERHY, 2012, p. 152).
Merhy e Franco (2009) afirmam o “trabalho em saúde” como o “trabalho vivo em ato”,
sendo o caráter imaterial
5
um pressuposto. Conforme os autores, o “trabalho vivo em ato” seria:
[...] o trabalho humano no exato momento em que é executado e que determina
a produção do cuidado. [...] O ‘trabalho em saúde’ é centrado no ‘trabalho
4
Tem em Michel Foucault seu mais conhecido interlocutor. A micropolítica refuta qualquer tipo de análise a partir
de modelos explicativos da realidade social ou das subjetividades. Na ideia micropolítica a luta de classe, por
exemplo, é um sistema de modelização do psiquismo. Tal ideia está presente em Micropolítica: cartografias do
desejo, livro de Guattari e Rolnik (2005).
5
Franco e Merhy (2012) entendem a dimensão imaterial inspirados nas elaborações de Maurizio Lazzarato,
Antonio Negri e Michael Hardt – como inerente ao “trabalho vivo”.
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vivo em ato’, à semelhança do trabalho em educação; e a efetivação da
‘tecnologia leve’ do ‘trabalho vivo em ato’, na saúde, expressa-se como
processo de produção de ‘relações intercessoras’ em uma de suas dimensões-
chave, o seu encontro com o usuário final, que ‘representa’, em última
instância, as necessidades de saúde, como sua intencionalidade, e, portanto,
quem pode, com seu interesse particular, ‘publicizar as distintas
intencionalidades dos vários outros agentes na cena do ‘trabalho em saúde’
(MERHY; FRANCO, 2009, p. 430-431, grifos nossos).
Não discordamos da existência de uma dimensão subjetiva, não no trabalho em saúde,
mas na vida humana em geral. Entretanto, entendemos que a possibilidade de articulação e
construção do trabalho em saúde sedimentado a partir da dimensão subjetiva tem limitações
referentes ao processo de negação da perspectiva histórica como dimensão fundamental para a
leitura da realidade e do próprio homem como ser social
6
. Em outro texto sobre “processo e
tecnologias de trabalho na saúde” os mesmos autores afirmam que o trato dessa temática se
a partir da adoção da:
(...) ideia segundo a qual uma dimensão subjetiva nos atos produtivos do
cuidado, potencializada pela constatação de que o trabalho em saúde se
sempre em um encontro, mediado por certa ética do cuidado. Sendo assim o
elemento humano é central, garante o caráter produtor do cuidado, isto é, o
modelo assistencial não se configura por uma determinação [...], mas por
atos de produção imanentes ao próprio processo, gerados pelos
trabalhadores em relação. A mudança no trabalho resulta em um processo de
reestruturação produtiva, que por sua vez pode levar ou não a uma ruptura
com o modelo atual. O que configura a mudança no modelo produtivo do
cuidado é uma inversão no núcleo tecnológico dos processos de trabalho, que
seja capaz de operar uma inversão nas tecnologias de trabalho, com
centralidade para o trabalho vivo e o uso predominante das tecnologias
relacionais (FRANCO; MERHY, 2012, p. 151, grifos nossos).
Ainda dialogando com Franco e Merhy (2012), destacamos que na análise das
características e potencialidades do trabalho em saúde os autores partem da ideia tomada
como um dado posto na realidade de que uma autonomia inquestionável no exercício do
trabalho em saúde, seja realizado na esfera da saúde pública ou privada. Contudo, duas
problemáticas se colocam aqui: 1) os autores não diferenciam a esfera pública da privada,
tratando como uniformes determinações extremamente diferenciadas; 2) a autonomia não é
absoluta e sim relativa, e essa relatividade está posta como determinação histórico-social, seja
pela condição de trabalhador assalariado, pelas hierarquias presentes (e ainda não superadas)
6
Fazemos referência ao conceito de ser social na tradição marxista, especialmente a partir da exposição lukacsiana,
segundo a qual é atribuído ao trabalho “[...] e às suas consequências – imediatas e mediatas – uma prioridade com
relação a outras formas de atividade, isso deve ser entendido num sentido puramente ontológico. Ou seja: o
trabalho é antes de mais nada, em termos genéticos, o ponto de partida da humanização do homem, do refinamento
de suas faculdades, processo do qual não se deve esquecer o domínio sobre si mesmo” (LUKÁCS, 1979, p. 87).
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historicamente nas instituições de saúde no Brasil, ou pelas condições materiais e objetivas
(recursos humanos, recursos materiais, estruturas físicas, insumos etc.) postas em todas as
instituições ou serviços. Que fique claro que, entendê-la como uma autonomia relativa não
implica, de forma alguma, em retirar do trabalho em saúde, ainda que sob o marco de
desenvolvimento do capitalismo, sua dimensão estratégica que abre, diante dos limites
elencados, possibilidades de criação, espontaneidade e proposição. E, principalmente, urge não
colocar sob os ombros dos trabalhadores da saúde a responsabilidade individual de produção
qualificada das práticas em saúde.
No que se refere ao processo de trabalho, entendermos que na sociedade capitalista não
possibilidade de altos níveis de autonomia. Isto porque na condição de trabalhador
assalariado uma relação de compra e venda da força de trabalho dos sujeitos. Ou seja, é uma
relação mediada pela sociabilidade capitalista que torna a força de trabalho mais uma
mercadoria, o que significa controlar como essa força de trabalho se desenvolve, que meios e
instrumentos utiliza e sob quais condições se realiza. Dito de outra forma, trata-se de relações
contratuais que se estabelecem pela mediação do Estado e do empresariado, havendo,
obviamente, diferenciações nas correlações de poder nessas distintas esferas.
Mais do que isso, na sociabilidade capitalista o trabalho é capturado com o objetivo
único de reprodução do capital, e dessa forma, o trabalho é fundamental e, ao mesmo tempo,
submetido às implicações da supremacia dos interesses privados e da divisão do trabalho. Em
se tratando de saúde, o trabalho e a formação não se desenvolvem numa esfera apartada desse
contexto social e histórico, daí a impossibilidade de altos níveis de autonomia dos trabalhadores
da saúde e dos residentes, trabalhadores em formação.
Considerações não finais sobre um processo em disputa...
Nosso objetivo ao considerar o padrão de financiamento da política de saúde, bem como
alguns de seus desdobramentos, como um componente para a discussão do trabalho em saúde
e da formação via Residência foi o de tentar demonstrar que questões postas no âmbito da
política influenciam, atuam e determinam parâmetros nas práticas de saúde nas instituições e
serviços de saúde. Entendemos que o padrão de financiamento, dentre outras questões, aponta
pistas para analisarmos os sentidos assumidos pela política de saúde na sua relação com a
sociedade e com o mercado; e determina condições objetivas e materiais para a realização do
cotidiano do trabalho em saúde e formação para o SUS (recursos humanos, recursos de
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infraestrutura, insumos etc.). Em nossa percepção, uma análise do trabalho e da formação em
saúde que desconsidera os aspectos econômicos que atuam sobre a política de saúde, e que
aparecem de forma mediata nas instituições e serviços, é altamente funcional à lógica de
valorização do capital.
No mesmo sentido buscamos apresentar elementos da relação entre trabalho e formação
em saúde e a condição de assalariamento própria do modo de produção capitalista.
A Residência como um encontro entre as políticas de saúde e educação ocupa um lugar
estratégico podendo, sob um prisma, contribuir para uma formação profissional no sentido da
efetivação do SUS a partir das necessidades de saúde da população e da leitura de uma realidade
social atravessada por desigualdades e inacessibilidade a direitos, como também, sob outra
ótica, operar como forma de substituição e precarização das condições de trabalho no SUS.
Esses caminhos são representações dos projetos em disputa nas políticas de saúde e de
educação, sendo a Residência também uma arena em disputa. Onde reside a força da
Residência? Dentre outros lugares, na possibilidade de buscar realizar-se orientada por valores,
princípios e lutas em defesa do SUS público, universal e de qualidade, assim como na relação
direta os interesses da classe trabalhadora – os usuários e usuárias do SUS.
Por fim, tendo o devir como horizonte, fiquemos com a fala de Leandro Konder (1997):
Então, em função deste crescimento do novo empirismo, as pessoas olham em
volta e confundem o real com o existente, confundem o que elas veem, o que
elas constatam à volta delas, com a realidade como um todo. Ora, a realidade
é muito mais do que o existente, porque ela é o existente mais o possível.
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