How are acoustic-sound politics and poetics produced, communicated, shared, consumed, made objects of study, archived and constituted in collections, materially supported, expressed in language and performance? How do they translate or transport the debates on the representation of culture into written/aural modalities? What are the conditions of possibility for assigning value to events and objects in the universe of the so-called politics of sonority? These and other questions mobilize academic exploration interests in Social Sciences, in general, and here, we intend to explore them through the locution of sound cultures to approach an understanding of human diversity in the contemporary context characterized by the digitalization of social experience. We compose a transversal dialog, in the interstitial space between complementary fields of study. The articles in this dossier, after all, project reflections and debates around five thematic axes: a) phonographic production, dissemination, and consumption; b) the formation of collections, collecting, and sound curation; c) sociolinguistics, ritual, and performance; d) different types of materiality, and their capacity to produce value; e) digital technologies in the context of new media.
Keywords: Sound studies, phonography, performance, materialities, digitalization
Em tempos recentes, o desdobramento de debates acerca da representação da cultura em modalidade escrita / aural (Clifford & Marcus, 2016; Geertz, 1989; Scales, 2012) vem contribuindo para a criação de novos entendimentos a respeito de variadas políticas e poéticas acústico-sonoras. Esse movimento potencializa a abertura de áreas de investigação, bem como certo mapeamento e compreensão da diversidade humana, inscritos no interior de diferentes quadros disciplinares – antropologia, sociologia, comunicação, folclore, linguística etc.
Processos de registro, difusão e consumo fonográficos, em distintas arenas e escalas de produção; formação de acervos, coleções e produtos audiovisuais, em regimes de curadoria individual ou compartilhada; problemas no âmbito da emissão-recepção comunicacional, instigados pelo par linguagem e performance; circulação de materialidades musicais no interior de intrincadas cadeias de produção de valor; e a dupla possibilidade contemporânea de estar dentro (on) ou fora (off), são apenas algumas das abordagens teórico-etnográficas em tela, que envolvem efeitos concretos na objetivação da vida.
Tangenciando a categoria som, esses eixos de investigação a colocam como variável englobante, instrumento e condição físico-acústica para a consolidação de diferentes práticas e procedimentos de simbolização. Com a locução anglo-saxã culturas sonoras, em resumo, elegemos neste dossiê tópicos que marcam campos de estudos complementares e diálogos transversais. Tais esforços materializam movimento aglutinador de membros do Núcleo de Estudos Fonográficos (NuSon/PPGAS/MN), em parceria com o Núcleo de Antropologia Simétrica (NAnSi/PPGAS/MN), que visa dar conta de questões e debates comuns.
Para delimitação mais clara e sintética do arcabouço que aqui foi arregimentado, dividimos esta proposta em cinco eixos temáticos, descritos em detalhes mais adiante e permeados pelo que vem se convencionando chamar de sound studies. Intentamos dar conta de questões relacionadas com: a) a produção, a difusão e o consumo fonográfico; b) a formação de acervos, o colecionismo e curadorias sonoras; c) a sociolinguística, o ritual e a performance; d) diferentes tipos de materialidade e sua capacidade de produzir valor; e) tecnologias digitais no contexto das novas mídias.
Com artigos baseados em fontes bibliográficas e documentais, pesquisas de campo, observação participante e entrevistas, bem como abordagens relacionadas às metodologias de pesquisas de ação participativa, teoria crítica de raça, análise de redes e crítica do discurso, cultura material, etnometodologia, teoria fundamentada, entre outras, acreditamos trazer contribuições importantes para a reflexão contemporânea em diferentes áreas das ciências humanas, sobretudo a partir da conjugação entre material empírico e analítico.
Assim, apresentamos a seguir os cinco eixos que conduzem este dossiê, entremeados por uma apresentação dos artigos que o compõem, em busca de novos entendimentos acerca do papel do som na contemporaneidade, caracterizada ainda e, sobretudo, pela digitalização da experiência social.
A fonografia, atualmente, participa do estabelecimento de redes sociotécnicas (Katz, 2004; Wainer, 2024, 2025) que perfazem discussões ético-jurídicas e consentimentos, vislumbrados na figura dos direitos autorais, mas ainda em técnicas de gravação, decupagem e transcrição. Pensar seus aspectos diferenciais, tendo em vista o fenômeno triádico produção-difusão-consumo, mostra-se procedimento fundamental para compreensão, por exemplo, dos usos atuais das plataformas de mídia, que sugerem uma atuação engajada e materialmente situada por parte dos profissionais do segmento audiovisual.
A reconfiguração da noção de registro, associada às tecnologias de suporte e às políticas de representação, tem levado autores como Fonseca (2010) a assinalarem que dispositivos e equipamentos de eletrificação trazem à tona o tema da autenticidade em projetos baseados em laços comunitários. De fato, assim como a fotografia, vista freqüentemente como uma representação do mundo real, um fonograma muitas vezes pode ser confundido com o fenômeno musical em si (Turino, 2008). No entanto, a consolidação de disputas em torno de representações identitárias parece celebrar a diversificação dos discursos sonoros, a partir de apropriações locais das tecnologias.
Em lugar do silenciamento de vozes, do controle da participação e da monotonia de versões unilaterais sobre as subjetividades, “processos contemporâneos de representação e criação [...] do mundo têm procurado contemplar a heteroglossia de éticas e estéticas envolvidas na produção de situações de gravação, edição e difusão de fonogramas” (Pereira, 2016, p. 36). Em virtude disso, cumpre fazer notar os modos pelos quais o som se faz conhecer em variados contextos, a fim de instituir não somente verdades parciais, engajadas e incompletas (Clifford & Marcus, 2016), mas relatos nos quais se assume que o poético e o político são fenômenos inseparáveis.
As playlists de aplicativos, softwares e websites voltados para o mercado fonográfico não nos tornariam mais dependentes de escolhas direcionadas por máquinas que, cada vez mais perfeitas (Simondon, 2018), parecem remeter ao chamado Grande Irmão (Orwell, 2009) ou ao universo da Matrix (1999)? Em que medida os efeitos emocionais que se desencadeiam em nossos corpos quando ouvimos música são o produto de algoritmos e não de pessoas? Muitas das atuais preferências de consumo parecem ser guiadas por algum mecanismo de inteligência a respeito do qual a grande maioria da população pouco ou nada sabe.
Essas são algumas das questões angariadas neste primeiro eixo de reflexão, no qual se inserem os trabalhos de Caio de Souza – “Wired ancestrality: recording the Grupo de Capoeira Angola Estrela do Norte” – e Carmem Furtado – “Da vontade de fazer música à gravação em pequenos estúdios caseiros: a emergência da produção musical local em Cabo Verde”.
O trabalho de Souza, crucialmente posicionado na encruzilhada entre música e ancestralidade, apresenta densa e instigante reflexão sobre as potencialidades e entraves dos processos de gravação de culturas sonoras afro-diaspóricas, tendo o estudo de caso do álbum Coco Maduro como linha de força. Seu texto fornece importante acicate investigativo ao articular a prática etnográfica, estudos de som e engenharia, analisando como a dimensão espiritual, presente especialmente a partir do conceito de axé, é materializada no processo de gravação, tensionando limites entre técnica, território e ritual.
Furtado, por sua vez, investiga os processos que permitiram o surgimento de uma cena musical independente em Cabo Verde, centrada nos estúdios caseiros e suas práticas de gravação. A partir desta linha de força, o texto demonstra como o criar musical está articulado às redes de sociabilidade, circulação migratória e ao acesso às tecnologias digitais, trazendo importante desafio aos modelos tradicionais de autoria, produção e legitimidade musical. Ao endereçar as tensões em torno do conceito de ka múzika, a autora fornece reflexão sobre como os sentidos de música, criatividade e autoria são (re)definidos a partir do contexto cabo-verdiano contemporâneo.
Para examinar em que medida os processos e curadorias sonoras, em seu espectro de abrangência, estão vinculados ao problema do colecionamento, da produção e da coleta de dados, tomamos o museu, este espaço dedicado às musas (Stocking Jr., 1985), como um ambiente paradigmático, mas não único, de definição simbólica da identidade e uso de certos objetos. Se a materialidade era concebida, até a segunda metade do século XX (Abreu, 2008), como evidência, apresentando certa ilusão de estabilidade, atualmente, ela centraliza disputas de narrativas ao redor de sua recolha, preservação e interpretação, enquanto história.
A representação de alteridades passa pela forma como certos grupos organizam sua cultura material, sensibilidades e temporalidades, em processos que envolvem classificação, sistematização e legitimação. Através dos poderes de ressonância e maravilhamento produzidos por certos objetos (Greenblat, 1991), dimensões afetivas da memória e suas moralidades são determinadas também por outros sujeitos, detentores de bens culturais, os quais mediam e propõem novas ordens discursivas. Uma dimensão histórica e patrimonial, portanto, deve ser observada nas criações, documentos e poderes que atuam para legitimá-la, espera-se, de forma não excludente, considerando marcos como a Constituição de 1988.
Como forma de inventariar exemplos, lembramos que alguns dos efeitos do pós-colonialismo têm sido a reivindicação de repatriamento de certos objetos, a realização de curadorias compartilhadas e o reaprendizado de ofícios por parte de povos originários, os quais passam a utilizá-los como fonte de pesquisas e estudo. Seja em museus, estúdios de gravação, salas de aula ou oficinas de construção, a criação de saberes híbridos vem ressignificando espaços e práticas de colecionamento, a partir de ideias de participação coletiva e da atuação de novos agentes.
Cuidando para não remontar a uma perspectiva colonial, precisamos mais que nunca desnaturalizar arquivos depositários, centro de documentação, playlists musicais, bem como outros procedimentos memorialísticos e patrimoniais. Em lugar de grandes narrativas, cumpre revalorizar caminhos tradicionais e novas lógicas de registro, exposição e gerenciamento de acervos, os quais devem estimular uma construção ativa de cidadania e certo protagonismo por parte de grupos tradicionalmente invisibilizados (Abreu, 2008; Filho & Abreu, 2007).
Ao buscar acolher aqui propostas que se dispõem a descolonizar o pensamento e anunciar formas outras de transmissão de saber, bem como processos de conhecimento que fundamentam epistemologias e racionalidades renovadoras, deparamo-nos com o trabalho de Leonardo Carneiro Ventura – “A pele do som: política dos corpos e ciência acústica no Brasil das décadas de 1920-1930”.
Este autor analisa as articulações entre a ciência sonora, a disciplina corporal e o projeto nacional no Brasil, entre as décadas de 1920 e 1930. A partir dos experimentos do físico estadunidense Dayton C. Miller e da atuação do pesquisador brasileiro João Lellis Cardoso no I Congresso da Língua Nacional Cantada, Ventura aponta como a ciência acústica foi mobilizada para moldar sensibilidades, normatizar corpos e projetar uma identidade sonora para o país. A escuta, antes tratada como percepção sensível, é transformada em instrumento técnico e político, no cerne de uma pedagogia nacional que combina som, controle e ideologia. O que se tem, então, é um convite à reflexão sobre como o universo sonoro pode ser instrumento de dominação e fabricação de subjetividades.
Este eixo assume como temas de interesse questões inerentes à fala, à música e às paisagens sonoras em geral, a partir de seus distintos valores enunciativos. Considerando tradição investigativa que envolve historiadores, filólogos, folcloristas, antropólogos, entre outros, pretende-se evidenciar os imbricamentos entre certos pares de categorias fundamentais: oral / oralidade, tradição / literatura oral, folclore / testemunho oral, aural / auralidade – em geral, também associados à seletividade da escuta e a regimes específicos de produção do conhecimento.
Nas chamadas etnografias da fala ou em regimes especialmente orais de produção e gestão da vida social, natural e espiritual se apresentam problemas de criatividade-variação-cânone, bem como ênfases no estatuto de transmissibilidade das culturas (Goody, 1992). Despontam, ainda, debates metodológicos cruciais: quais as diferenças entre uma história oral, um relato de vida, uma trajetória e uma biografia? Seguimos o pressuposto de que diferentes gêneros atuam como conjuntos de convenções discursivas, abertas e flexíveis, estruturáveis e estruturantes (Bourdieu, 1989).
Cumpre atentar, assim, para a importância das hesitações, dos atos falhos, dos erros de prosódia e dos silêncios que atuam na construção de personas ou fachadas, mas ainda, na consecução de métodos de investigação, como as entrevistas. Se as gravações correm o risco de serem apagadas ou perdidas, até que ponto a oralidade e a escrita devem ser pensadas como instâncias opostas e não complementares? Problemas como o da seletividade da memória e seus mistérios, bem como a questão da transmissão de fórmulas orais durante o ato das performances, merecem aqui consideração.
Além disso, a atuação de performers e audiências em contextos rituais (Perelman, 1987), tendo em vista suas expectativas, propósitos e capacidades de estabilizarem ou subverterem ordens, misturam-se com a faculdade dos falantes de manipularem as convenções dos gêneros em resposta e serviço às mudanças sociais. Finnegan (1992) fala sobre o uso de fórmulas, a memória e a escrita nos “estudos de tradições orais” ou da “arte verbal”. Esses termos servem, afinal, para compreendermos situações mundanas e discursos altamente formalizados, que vão de conversações e eventos musicais à oratória política.
Ao incluirmos características tais como: forma, função, efeito, conteúdo, valor de verdade, tom, distribuição social, contextos de uso e orientação dos discursos (BAUMAN, 1992), enfim, desejamos dar margem a um conjunto de pesquisas diversificado, como os trabalhos de Guilherme Furtado Bartz – “Processos de gravação no contexto da improvisação musical livre: rupturas espaciais e temporais nas performances musicais enquanto fatores que contrariam as propostas estéticas do campo” –, Caio Padilha – “Willemen, Villemin, Vilemão: a escrita como corruptela da escuta de um rabequeiro analfabeto” –, e Marcelo Reis Filho – “‘Fé, Cultura e Tradição’: escutando os Penitentes do Santa Marta” –, que tem na tríade oral / aural / escrito, sua razão de ser.
O primeiro se dedica à uma reflexão etnográfica e teórica sobre os impactos da virtualização das práticas musicais durante a pandemia de Covid-19. A partir da experiência do Laboratório de Improvisação Musical Livre da UFRGS, Bartz observa os efeitos da gravação e sobreposição de improvisos individuais na lógica estética e ética deste tipo de performance, que historicamente se sustenta na co-presença, na escuta compartilhada e na criação em tempo real. O autor argumenta que tais práticas em contexto de isolamento social introduziram assimetrias e fragilizaram aspectos basilares do exercício de improvisação coletiva. Em um segundo movimento, reconhece que o campo não é invalidado por tais adaptações, mas sim expandido e complexificado ao repensar o próprio sentido do que é ser “livre” neste tipo de contexto.
Padilha, por sua vez, propõe uma análise das práticas de letramento da escuta e representação gráfica do som no Brasil, a partir da primeira metade do século XX. Utilizando registros envolvendo os rabequeiros Vilemão Trindade, Fabião das Queimadas e José Gerôncio, bem como seus respectivos ouvintes, Mário de Andrade, Câmara Cascudo e Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, o autor lança luz sobre como a escrita musical e literária atuou não apenas como registro, mas como aparato seletivo, interpretativo e normativo que molda a forma como se ouviu e fixou o som popular. A escuta profissional, mediada por pianos, diapasões e partituras transformou a dimensão do improviso e da oralidade em transcrições mensuráveis, apagando ou estilizando os desvios, hesitações e expressividades próprias de uma musicalidade “destemperada”. A atenção sobre as reverberações epistemológicas e políticas do “letramento da escuta”, de acordo com o autor, denuncia hierarquias raciais, sociais e estéticas inscritas na produção do folclore musical brasileiro.
Baseado em trabalho de campo conduzido na Favela Santa Marta e com inspiração na proposta acustemológica de Steven Feld, o artigo de Reis Filho, por sua vez, investiga como os Penitentes constroem repertórios sonoros e corporais por meio de ensaios, jornadas e interações com o território, em um contexto urbano marcado por deslocamentos, tensões e práticas de devoção. Fechando este eixo, a investigação propõe uma escuta como prática encarnada, relacional e formativa, que afina corpos, tempos e memórias e inscreve a Folia como uma forma de conhecimento e resistência. A partir de sua proposta, evidenciam-se conflitos, disputas de legitimidade, emoções e gestos, que constituem a prática foliã no meio urbano em uma intercalibragem de antropologia do som, práticas de devoção e experiências estéticas periféricas.
Este eixo surge a partir do reconhecimento da importância e do papel das materialidades na criação e constituição de valor dos objetos sonoros. Tendo como influência a chamada organologia crítica, remontamos a uma perspectiva que ressalta sua centralidade para o crescente debate a respeito das qualidades e propensões físicas do som, em que pesem seus processos de emissão, percepção e os meios de que se utilizam para a propagação no espaço.
Ao levarmos em conta as tecnologias que mediam e agenciam a experiência pós-industrial, notamos uma participação ou ao menos um olhar atencioso de diferentes campos das humanidades à contribuição das “coisas”, em variados regimes de circulação e uso. Esses entes, com efeito, parecem ativar, para além de suas sonoridades características, um universo de políticas, ao passo em que demarcam circuitos audiovisuais como arenas de sociabilidade nas quais valores e dinâmicas de distinção e prestígio são constantemente discutidas e remodeladas (Oliveira, 2018; 2025).
O crescente interesse pelas materialidades no campo da organologia (Bates, 2012; Dawe, 2007; Oliveira, 2018, 2025; Qureshi, 2000), afinal, tem contribuído para uma compreensão ampliada de como objetos, dispositivos e técnicas não apenas influenciam a produção e a difusão da música, mas também integram circuitos complexos de valorização simbólica e econômica (Appadurai, 2008; Baudrillard, 2012). Da construção artesanal nas oficinas aos elaborados ambientes expositivos das lojas de instrumentos (Oliveira, 2019), passando ainda pelos modos de gravação e registro sonoro (Brady, 1999; Katz, 2004), há uma incorporação crescente desses elementos nos marcos analíticos e etnográficos contemporâneos.
Se formos às últimas consequências, afinal, verificaremos que esses grupamentos estão presentes desde a difusão de repertórios que povoam as imaginações nacionais, através da radiodifusão, até as técnicas e processos de registro voltados para múltiplos públicos e suportes. Estudos que dêem conta tanto de seu caráter instrumental, quanto de sua operação agentiva, assim: a) oferecem potencial entendimento acerca de uma recepção em pequena ou grande escala; b) propõem reconhecimentos de formas outras de gerar, negociar e organizar mercados, incorporando segmentos de público e expressão cultural diversa.
Esta abordagem possibilita, finalmente, que pensemos os sons enquanto objetos com início, meio e fim, os quais também se constituem a partir de materialidades e características apreensíveis. Ao percebermos o que, como e onde algo soa, tal como o artigo de Gustavo Arima – “A durée bergsoniana e a referencialidade extrínseca de objetos sonoros na música acusmática: em direção a aspectos estéticos e sociológicos do material musical” –, estamos investigando situações, políticas, práticas e tecnologias que partem da concretude para os processos nos quais estão envolvidas, os quais, muitas vezes, permanecem apenas em segundo plano.
Neste trabalho, o autor versa sobre como os sons provenientes do mundo afetam a experiência estética na música acusmática. Em uma abordagem fortemente ancorada na filosofia do tempo de Henri Bergson, na noção de alegoria de Walter Benjamin e da teoria crítica de Theodor Adorno, ele argumenta que esses elementos introduzem uma clivagem temporal e espacial na obra, sem romper com a durée musical, mas antes a complexificando. Em vez de ruído documental, os objetos extraídos do mundo são tratados como ruínas sonoras que provocam uma dialética entre o tempo vivido e o tempo da composição, entre espaço interno e externo. E ao explorar os efeitos estéticos, espaciais e sociológicos da gravação e composição com sons extrinsecamente referenciais, propõe-se que tempo e espaço tornam-se, eles próprios, materiais composicionais.
Desta sorte, a música acusmática, ao incorporar fragmentos do real, abre novas possibilidades críticas para a escuta e para a experiência estética, trazendo interessante contribuição para os campos da teoria musical, da filosofia da arte e dos estudos de som – especialmente ao tensionar os limites entre obra e mundo.
As transformações no campo das mídias e tecnologias, por fim, vêm produzindo formas até então desconhecidas de distribuição e consumo do som, tendo em vista especificidades culturais locais que parecem passar, de modo nunca igualmente vivido, pelo uso de mecanismos online (Crawford, 2012; Wellman, 2001). Em um mundo onde a natureza digital se impõe, blogs, canais de compartilhamento de vídeos e redes sociais, bem como ipads, smartphones e tablets partilham funções em comum, que permitem a criação de narrativas com as quais outros podem se identificar a qualquer momento.
O estabelecimento desta cultura de convergência (Jenkins, 2006) tirou as audiências de uma posição passiva, convidando usuários a se comunicarem por meio de media cada vez mais integrados à vida cotidiana. Ao potencializar mecanismos de participação interventivos, eles transformaram os ambientes sociais e a forma como as pessoas interagem (Amaral, 2012, p. 135), assumindo, enfim, a posição de ferramentas utilizadas para o desenvolvimento de práticas criativas e exploratórias, em torno de novas idéias, materiais e informações (Ganguin & Hoblitz, 2012, p. 36).
Segundo Noronha e Sousa et al. (2012), a democratização das mídias digitais e sua conexão em rede têm feito com que o público interaja de forma ativa, produzindo interpretações, apropriações e se tornando, afinal, “um agente de propagação de histórias” (p. 167). Os trending topics do X (Twitter), por exemplo, demonstram a capacidade viral de divulgação das mídias digitais, que permitem, simultaneamente ou de forma isolada, a criação de redes pelas ligações estabelecidas entre utilizadores, suas conversações ou conteúdo difundido (Amaral, 2012, p. 144).
Precisamos, afinal, nos debruçar sobre os limites perpetrados por uma indústria cultural que possui contornos distintos dos explorados pioneiramente por Theodor Adorno e Walter Benjamin. Fenômenos recentes, como a pandemia decorrente da Covid-19, por exemplo, certamente contribuíram para uma reconfiguração do mercado audiovisual. Nesta economia política da produção sonora e da escuta (Attali, 2011), os conteúdos gerados parecem ter se tornado uma variável indispensável para a construção de laços sociais, embora sua distribuição não possa ser categorizada em escalas fechadas, até pela variedade e diversidade das plataformas digitais.
Como funcionam os algoritmos do Youtube, Google, Instagram ou Tik Tok? Até que ponto nossos gostos estão sendo, de fato, regidos e reformulados por esses sistemas altamente eficientes de direcionamento das informações? Examinar de que modo formas contemporâneas de representação do mundo tecnológico promovem ambivalências discursivas, tal como o artigo de Carlos Sánchez – “El presente aquí y ahora: una lectura poético-política de la inserción de composiciones del músico Hermeto Pascoal en el mundo blockchain” –, parece ser mais um caminho frutífero para entendermos ambientes marcados por incertezas e precariedades, mas também por um alto grau de reconhecimento e certificações de autoridade e sucesso.
O texto desse autor reflete sobre as transformações nas formas de circulação, consumo e sentido da música no contexto das tecnologias da Web3. A partir de uma etnografia situada, Sánchez relata sua tentativa de adquirir, via NFT, uma partitura de Hermeto Pascoal leiloada na plataforma phonogram.me e, a partir deste movimento, explora criticamente os paradoxos das experiências sonoras na era da blockchain: democratização aparente, virtualização extrema e promessas de futuro que, na prática, recolocam antigas formas de controle e alienação.
Dialogando com Walter Benjamin, Antonio Jardim e autores contemporâneos, o artigo propõe que essa ferramenta não deve ser vista como ruptura histórica ou inovação pura, mas como “mônada”: a condensação de tensões e promessas de sua época. Ao refletir sobre o esvaziamento da aura e a substituição da experiência poética da obra por seus suportes, questiona-se, finalmente, o que resta da arte quando a autenticidade é criptografada, o que nos convida a repensar a política do sensível em tempos de virtualização acelerada e mercantilização da criação.
Boas leituras!
Considerando os materiais que se apresentam nessa coletânea, acreditamos que este Dossiê contribui para uma atualização importante dos estudos sobre som, fonografia, performance, materialidades e digitalização, os quais apontam, sem dúvidas, para diferentes campos e matrizes disciplinares. Esperamos que você possa desfrutar desta proposta e das problemáticas apresentadas, as quais dialogam com debates fundamentais do mundo contemporâneo e desnaturalizam questões por vezes tomadas como dadas.