A Pele do Som

Sumário rápido
  1. Introdução

Introdução

A pele do som: política dos corpos e ciência acústica no Brasil das décadas de 1920-1930

The skin of sound: The Politics of Bodies and Acoustic Science in Brazil during the 1920s and 1930s

Leonardo Carneiro Ventura 2

Resumo

O presente artigo analisa dois eventos vinculados à chamada ciência do som e suas intersecções com os embates políticos e culturais no Brasil das décadas de 1920 e 1930: o experimento acústico do pesquisador norte-americano Dayton C. Miller e sua repercussão no país; e o trabalho de João Lellis Cardoso, apresentado no Congresso da Língua Nacional Cantada de 1937. Ambos são tomados como sintomas de seu tempo e articulados ao projeto de construção de um imaginário nacional por meio do som. A partir desses estudos fonográficos, o artigo investiga como o som e o corpo feminino se entrelaçam na formulação de uma idealização da mulher brasileira, destacando mecanismos de disciplinarização dos corpos por meio da voz, do ritmo e da escuta. O texto discute ainda como tais dispositivos sonoros contribuíram para a formulação de um modelo normativo de feminilidade, revelando a dimensão política da escuta e das tecnologias do som na constituição de subjetividades e nações.

Palavras-chave:  Música. Ciência do som. Disciplinarização dos corpos. Arquivo sonoro.

Abstract

This article analyzes two events linked to the so-called science of sound and their intersections with the political and cultural struggles in Brazil during the 1920s and 1930s: the acoustic experiment conducted by American researcher Dayton C. Miller and its reception in Brazil, and the work of João Lellis Cardoso presented at the 1937 Congress of the National Sung Language. Both are approached as historical symptoms and connected to broader nation-building projects shaped through sound. Drawing on these phonographic studies, the article explores how sound and the female body intertwine in the formulation of an idealized Brazilian woman, highlighting mechanisms of bodily discipline through voice, rhythm, and listening. It further discusses how such sonic dispositifs contributed to the construction of a normative model of femininity, revealing the political dimension of listening and sound technologies in the formation of subjectivities and nations.

Keywords: Music; Science of sound; Disciplining of bodies; Sound archive.

Resumen

El presente artículo analiza dos eventos vinculados a la llamada ciencia del sonido y sus intersecciones con las disputas políticas y culturales en el Brasil de las décadas de 1920 y 1930: el experimento acústico del investigador estadounidense Dayton C. Miller y su repercusión en el país; y el trabajo de João Lellis Cardoso, presentado en el Congreso de la Lengua Nacional Cantada de 1937. Ambos son tomados como síntomas de su tiempo y articulados al proyecto de construcción de un imaginario nacional a través del sonido. A partir de estos estudios fonográficos, el artículo investiga cómo el sonido y el cuerpo femenino se entrelazan en la formulación de una idealización de la mujer brasileña, destacando mecanismos de disciplinamiento de los cuerpos mediante la voz, el ritmo y la escucha. El texto también discute cómo tales dispositivos sonoros contribuyeron a la formulación de un modelo normativo de feminidad, revelando la dimensión política de la escucha y de las tecnologías del sonido en la constitución de subjetividades y naciones.

Palabras clave: Música. Ciencia del sonido. Disciplinamiento de los cuerpos. Archivo sonoro.

Introdução

Este artigo investiga como, nas décadas de 1920 e 1930, o som foi mobilizado como operador simbólico na formação da nação brasileira, articulando ciência, cultura e poder. Ao tomar como eixo o Congresso da Língua Nacional Cantada, realizado em 1937, e os trabalhos de autores como João Lellis Cardoso e Mário de Andrade, discute-se a constituição de um arquivo sonoro nacional, forjado em meio às disputas ideológicas do período e aos projetos modernizadores do Estado Novo. O objetivo é compreender de que modo esse arquivo foi atravessado por políticas de gênero que impunham limites à atuação feminina na esfera pública - como o direito restrito ao voto - e delineavam um ideal de mulher brasileira ajustado a padrões morais, vocais e corporais específicos.

A análise parte do entrelaçamento entre ciência acústica, nacionalismo e disciplinarização dos corpos, destacando como o som - a voz, o ritmo e a escuta - foi pensado como forma de ordenar o social e moldar sensibilidades. A construção da “língua nacional cantada”, defendida por Mário de Andrade e institucionalizada pelo Departamento de Cultura de São Paulo, aparece aqui como parte de um projeto político mais amplo de normatização da cultura e do corpo, especialmente o corpo feminino. Ao abordar esses episódios como sintomas de seu tempo, o artigo propõe uma leitura crítica das tecnologias sonoras enquanto dispositivos de poder, revelando suas implicações na formulação de subjetividades e na naturalização de hierarquias de gênero e de identidade nacional.

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Tenho a lembrança, sobre o telhado de uma frágil casinha de tuaregue, no deserto maliano, de um céu vasto, pleno, cintilante, sussurrando silenciosamente uma música consubstancial aos primeiros tempos do mundo. (Onfray, 2018, p, 361)

Pitágoras ainda ressoa. A sua ideia de um universo embalado por uma música própria, envolvente de todos os mundos, conectora de todas as vidas, à qual deveríamos somar-nos, integrando-a com nossa voz, nossos timbres, nosso fazer e nosso ser musicais, fazendo vibrar o divino em nós, em uma sinfonia cósmica de carne e céu; a ideia de um universo no qual tudo faria sentido, pois movido pela mesma lógica sonora; a ideia de uma música presente em nossos ouvidos, desde o nascimento até a morte, de maneira que se tornaria indistinguível do silêncio, seja porque ambos - silêncio e música - são lados de uma mesma moeda, ou porque o som de tal música seria intensa demais para nossos ouvidos, como a luz do sol o é para nossos olhos, e por isso apenas o próprio Pitágoras (assim diz a tradição da Irmandade pitagoriana) seria capaz de ouvir; e, pelo mesmo motivo, novos instrumentos precisariam ser inventados para torná-la acessível à audição humana, assim como um dia existiriam telescópios capazes de nos fazer visíveis os corpos celestes antes inalcançáveis à nossa visão; essa ideia, consubstanciada na chamada música das esferas, imagem anunciada pelos pitagóricos, e retomada por pensadores subsequentes, é atrativa demais, confortante demais para ser definitivamente esquecida, apagada da história. (James, 1995)

Vinte e cinco séculos após a sua conceituação por Pitágoras de Samos, ela ainda encanta os ouvidos do século XXI. Onde quer que haja o desejo de aliança entre música e espaço, som e cosmos, a imagem da "música celestial" se faz ouvir . É certo que ela percorreu um longo caminho, desde os relatos da Irmandade pitagórica, até seu abafamento, iniciado a partir do século XVII. Antes, porém, de ser relegada ao misticismo pelas transformações do pensamento científico no século XVII – por não ser audível ao ser humano, tal música estaria fora do sistema empírico próprio da ciência moderna –, o modelo músico-matemático do universo imaginado por Pitágoras atravessaria a espessura histórica do pensamento ocidental até então.

Estaria presente nos escritos de Platão acerca da origem do cosmos, em especial no Timeu e na Republica, em sua busca por uma lógica invisível do funcionamento dos astros. Seria reescrita por Cícero. Adaptada para o cristianismo por Clemente de Alexandria, Agostinho e os primeiros Padres da Igreja. Popularizada por Isidoro de Sevilha e os primeiros enciclopedistas medievais. Teorizada por Boécio, Martianus Capela e os escritores em latim. Investigada teóricos da música medieval, de Guido d'Arezzo a Jean de Muris. Referenciada nos tratados de Vincenze Galilei e nos experimentos musicais infames de seu filho Galileo, assim como nos manuais de magia de Marsilio Ficino. Representada nos enredos das primeiras óperas e ballets da Renascença, além da música cabalística dos cultos herméticos e nos estudos astronômicos de Kepler. Ressoada pela música de Bach e Mozart (Idem).

Seu reino, portanto, era vasto quando a luz da razão inicia o processo de silenciamento de tudo que não fosse filho da visão, e a “música celestial” imaginada pelos filósofos de Samos começa a declinar como explicação razoável para o funcionamento do universo. Isaac Newton seria, talvez, o último cientista a enunciá-la abertamente. Embora a narrativa iluminista, que faria dele o pai da nova era, tenha se esforçado por apagar os rastros de um pensamento híbrido, ainda seduzido pelo canto das esferas celestes e deleitado com os saberes esotéricos (White, 2000).

Na segunda metade do século XIX, porém, a imagem de uma aliança entre música e espaço ressurge para embalar os sonhos de um grupo de pesquisadores. Nesse momento, o ouvido humano se torna modelo e objeto de estudo para a tecnologia de reprodução sonora. A ciência acústica então emergente trata o fenômeno sonoro como uma questão de recepção, isto é, de sensibilidade, mais do que de emissão. A escuta se torna o elemento central para um novo pensamento auditivo. Ela desloca a voz, a música, toda fonte de emissão sonora do foco das antigas teorias do som, para estabelecer-se como caminho para a compreensão do fenômeno sonoro. Em uma virada de jogo surpreendente, o corpo se apresenta como elo fundamental na cadeia do entendimento dos fenômenos sonoros e, insinuante, sedutor, conquista seu lugar na dança entre o som e o espaço.

Indícios de tal mudança na orientação das pesquisas estão em experimentos ralizados e obras publicadas no período, a exemplo da construção do fonoautógrafo, em 1857, pelo bibliotecário Leon Scott, e sua versão posterior por Alexander Graham Bell e Clarence Blake, em 1874, primeiro aparelho de reprodução sonora de que se tem registro, cujo mecanismo emula a anatomia do ouvido humano; ou da publicação da obra On the sensations of tone, de Hermann von Helmholtz, publicada em 1863, na qual o autor empreende uma ampla investigação físico-biológica para entender a origem das sensações sonoras, o que, parafraseando Barthes, poderíamos chamar o grão do ouvido.

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Encontraremos o herói de nossa história algumas décadas depois, no correr do século seguinte, preocupado com as possibilidades de controle da música sobre os gestos corporais; atento às demandas políticas de seu tempo e suas possíveis conexões com o som; e, à sua maneira, devedor dos trabalhos realizados por aquela linhagem de cientistas do fenômeno sonoro (Thompson, 2002). Quase podemos vê-lo debruçado sobre as imagens de emissões sonoras produzidas para ilustrar a sua fala no I Congresso da Língua Cantada, que deveria acontecer em 13 de julho de 1937, sob o inverno frio e seco de São Paulo.

A realização do Congresso marcava a posição de Mário de Andrade e dos modernistas na disputa política sobre uma questão linguística mais ampla. Tratava-se de reconhecer o movimento modernista como o grande renovador das artes e da estética nacional, a força revolucionária a libertar uma “identidade cultural brasileira”. De certa forma, tal insurgência contra os modelos tradicionais revelava-se uma catarse compensatória da derrota sofrida pelos paulistas na Revolta de 1924 contra o governo federal de Arthur Bernardes. A seguinte passagem de uma entrevista por Mário ao jornal A Noite, em dezembro de 1925, ressoa como em harmônicos, a nota fundamental de sua época:

Numa revolta o importante é não ficar marcando passo. A gente se excetua apenas o tempo necessário para conquistar mais liberdade e sobretudo visão melhor da torrente humana. Mas depois se reintegra na torrente, porque só mesmo dentro dela pode ser eficiente e fecundo. Pois até já não se fala que muitos de nós, modernistas brasileiros, estamos voltando para trás? Voltando nada! Não paramos na revolta, esse foi o jeito com que acertamos a primeira pergunta do nosso exame. [...] A revolta é uma quebra de tradição, revolta acabou, a tradição continua evoluindo. Todo mundo dormia na pasmaceira da nossa literatura oficial, nós gritamos “Alarma!” de sopetão e toda gente acordou e começou se mexendo. Agora querem que a gente continue gritando “Alarma!” toda a vida... Não carece mais pois tudo já se alarmou e trabalha. Repare que fuque-fuque agitado vai agora por nossa literatura. Pois nós seguimos o nosso caminho sem mais gritos de revolta (A Noite, 12 dez. 1925, p.1-2).

No discurso de abertura do Congresso, mais de uma década após, Mário deixará, mais uma vez, ressonar em suas palavras sua ambição de sempre, de estabelecer São Paulo como a capital cultural do Brasil, definidora, entre outros, do que seria o rosto sonoro nacional. O Congresso, para ele, encarnaria este ideal, igualando-se a outros movimentos mundo afora,

Por esse meio, travestido de pacifismo, pulsava um desejo de centralização da linha histórica nacional na cidade de São Paulo. Às vésperas da Segunda Guerra, igualava a cidade paulistana a outras como Paris, Bruxelas e Lisboa:

Não sei, meus Senhores, si estais bem conscientes da insensatez maravilhosa da nossa decisão de nos reunirmos neste Congresso da Língua Nacional Cantada. Enquanto a política rosna lá fora, fundando imperialismos absurdos, nacionalismos estufados e mil e uma facetas, por onde se odiarem os homens; através dos espaços arejados os congressos se correspondem na insensatez aparente da paz, do saber e da arte. É o Congresso Internacional de Folclore de Paris; é o Congresso das Cidades e Poderes organizado por Bruxelas, é o Congresso da Expansão Portuguesa no Mundo, em Lisboa. E é o Congresso da Língua Nacional Cantada, o primeiro congresso musical do Brasil, que neste momento abre a sua semana de pesquisas e de arte, nesta, de todos vós, cidade de São Paulo (Congresso, 1938, p. 707).

Quando organiza o Congresso da Língua Nacional Cantada, Mário de Andrade, ocupava desde 1935 o cargo de diretor do Departamento de Cultura de São Paulo. Estava, portanto, legitimado pelo aparelho de Estado para intervir como pesquisador em diversas práticas das camadas populares. Com tais recursos, ele conseguiria acessar desde cantorias de violeiros e coqueiros a sessões de cultos de catimbó, então tornados prática ilegal pela repressão instaurada com o Estado Novo. No ano seguinte ao Congresso, Mário enviaria a Missão de Pesquisas Folclóricas a estados do Norte e Nordeste para realizar o registro fonográfico (além de fotográfico e cinematográfico). Para Mário de Andrade, tais regiões, simbolizadas pelo que seria sua música, faria parte de um Outro de si mesmo que o Brasil desconheceria.

Durante a década de 1920, Mário de Andrade já era leitor de autores, nacionais e estrangeiros, autodenominados etnógrafos. Está, nesse momento, empenhado em compreender os procedimentos coletivos de criação dita popular, e para isso agencia leituras, entre outras, dos antropólogos Edward Tylor, Lucian Lévy-Bruhl e James Frazer, principalmente de seus estudos sobre a então chamada “mentalidade primitiva” (Souza, 2003). Dentro de tal lógica, o arquivo sonoro pensado para o Norte/Nordeste faria parte de um projeto maior que pretendia a montagem de diversas coleções folclóricas e etnográficas, além da elaboração de um acervo de aspectos culturais e físicos do povo brasileiro.

Mas se o objetivo da Missão de Pesquisas Folclóricas seria o de revelar uma “verdade” sonora da nação brasileira, o Congresso da Língua Nacional Cantada, acontecido no ano anterior, teria um escopo não menos ousado: sistematizar as diversas pronúncias da nação de maneira a uniformizá-las, tornando possível o ensino unívoco de um pretenso canto brasileiro. Os trabalhos de Edgar Roquette‐Pinto e João Lellis Cardoso, inscritos no congresso vão nesse sentido, buscando um método científico de captura das vozes populares, a fim de redirecioná-las para a confecção de um timbre nacional. Aqui também havia antecedentes históricos.

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Em 1827, o médico e físico James Rush publicara um livro que se tornaria um clássico do gênero: “A filosofia da voz humana”. Neste, pretendia apresentar um sistema de notação científico para os sons falados. O sistema fonético desenvolvido por ele utilizava matéria tanto da teoria musical como da semiótica. Um sistema pensado para abarcar toda e qualquer língua, de qualquer nação, numa espécie de gramática universal da voz. Rush buscava o poder sonoro da voz, isto é, a potência expressiva levando em consideração apenas o seu caráter audível; o que ele desejou, como bem traduziu R. W. Higgs, foi encontrar a música presente na fala. Por décadas sua obra será usada em aulas de oratória .

O interesse em montar um arquivo fonográfico de nações e culturas, o desejo de produzir um registro sonoro permanente mantinha uma ligação com o pensamento emergente da antropologia na segunda metade do século XIX. Na passagem dos séculos XIX e XX, os estudiosos de um folclore musical, movidos pelo discurso nacionalista, buscavam a essência de uma música nacional em seus respectivos países de origem. Encontraremos aqui os trabalhos de Béla Bartok, além de Zoltan Kodály na Hungria, Rimsky-Korsakov na Rússia, Peirce Granger, Cecil Sharp e Ralph Vaughan na Inglaterra.

Por outro lado, desde a sistematização dos estudos de musicologia com o artigo de Guido Adler, publicado em 1885, os pesquisadores da musicologia comparada se esforçavam por escrever a narrativa definitiva de uma música universal. Pensar musicalmente, afetar e sermos afetados pela música, nos faz humanos. A música em sua relação com o espaço onde é produzida. A música se torna, por esse viés, um caminho para a compreensão do social, no limite, do humano; uma porta de passagem do particular ao universal. Ethnos - mousike - logos: a música está novamente ligada à razão, ao discurso lógico. A escuta como caminho para pensar o outro, e a partir daí para o fazer científico (Rice, 2014).

Trazendo a análise para o contexto do Brasil da década de 1930, no interior do processo de elaboração do que seria uma cultura nacional, instaurado pelo Estado Novo, Mário de Andrade, antes de intelectual, ocupará o lugar do arquivista, do produtor da documentação e memória daquela ideia de nação. Sobre isso, sua participação na criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em janeiro de 1937, antes, portanto, do golpe do Estado Novo, diz bastante e já revela uma relação, até certo ponto, de cumplicidade com o governo Vargas, que será mantida mesmo após o 10 de novembro daquele ano. É na institucionalização de uma dada verdade sonora acerca do Brasil que Mário encontrará seu papel no teatro do poder estado-novista. Na sua sede singular de poder, em seu desejo de arquivo – Mário encontrará o impulso para se tornar instrumento da ordem do saber proposta pelo governo de Vargas (Deleuze; Foucault, 2012).

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Em 1937, portanto, o som tomava o lugar dos rifles na tentativa de impor ao país um regime aural, uma audibilidade para o que seria a “língua nacional”. O viés científico do evento pretendia legitimar uma opção essencialmente política de escuta. E é de se pensar se Lellis Cardoso, de alguma forma, ao ser escalado para palestrar no Congresso, sentiu-se convocado para um conflito em andamento. Fato é, ele fez mostrar suas armas.

No texto de sua comunicação, que compõe os Anais do Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada, Lellis Cardoso apresenta o dispositivo mecânico utilizado para a produção de seu estudo:

[...] além das fotografias que ilustram esta tese, outras tantas foram projetadas durante a leitura, tais como: fotografias da compressão de ondas, diversos tipos de analisadores e sintetizadores mecânicos de Kelvin, Michelson, Rowe, Mades, Chubb [...]”

Além disso, continua:

foram projetadas na tela, os diversos processos para a produção da vogal sintética – Marage, Koening, Helmholtz; e disposições de tubos de orgão destinadas á produção da vogal sintética” (Cardoso, 1938, p.522).

Neste ponto, o leitor-ouvinte destas páginas já consegue inferir o objeto de pesquisa de nossa personagem: Lellis Cardoso, como muitos de seu tempo, buscava realizar uma leitura científica do fenômeno sonoro. Mas para compreendermos melhor seu intento, precisamos recuar um pouco e conhecer a natureza de seu encontro com a música e com a ciência.

Quando tem seu nome incluído na lista de palestrantes do I Congresso da Língua Cantada, Lellis Cardoso ocupa o cargo de professor do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Antes disso fora aluno de piano, ali formado, e chegara a atuar como 1o Secretário do Centro Dramático e Musical Dr. Gomes Cardim, departamento daquela instituição (Andrade, 1942). Mas para João Lellis Cardoso não bastara a música. Cursaria ainda ciências políticas e sociais e se formaria bacharel pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Nesta, ele ministraria cursos dentro da área de antropologia.

Em certa medida, a atmosfera cultural do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo já apontava nessa direção, promovendo em seus alunos e alunas discussões sobre o lugar da música na construção da sociedade. De forma que muito de suas pesquisas nasceriam do encontro dessa formação cruzada, da arte musical com a sociologia.

Também por isso, se tornaria assistente técnico da divisão de tecnopsicologia do Instituto de Organização Racional do Trabalho. O IDORT fora criado em 1931 por um grupo de empresários brasileiros com o objetivo de disseminar no país uma organização científica e racionalista do trabalho. Seu propósito consistia em articular a implementação do taylorismo no país. Mas sob o timbre dessa nota, vibravam ressonâncias políticas mais profundas.

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No Brasil do final dos anos 1930, o corpo está em pauta na elaboração de um projeto de nação. Dirigentes públicos, teóricos, intelectuais de todos os matizes procuram pensar a melhor estratégia para o aproveitamento dos corpos na construção nacional. Uma pedagogia corporal, envolvendo práticas de higiene e disciplina, circula entre inúmeras revistas especializadas. A ciência da educação física brilha como caminho para o aperfeiçoamento espiritual através do adestramento das carnes.

O controle da presença das mulheres nos espaços públicos, sua predestinação ao trabalho doméstico como esteio do lar, visam à manutenção do ambiente familiar como campo de continuação ideológica do capital, como espelho da ordem de funcionamento industrial. Isto inclui a apropriação do corpo feminino como potência de reprodução da força de trabalho. Trata-se de harmonizar a nação diluindo os conflitos de classes, e transformando, supostamente, o Brasil em uma sociedade acórdica, funcional, com as elites comandando e as massas produzindo (Lenharo, 1986).

A revista do IDORT integrava o corpus teórico para a legitimização científica do domínio da massa social. Daí seus estudos promovidos no sentido da racionalização dos sentidos, da otimização produtiva do corpo por meio da ponderação dos estímulos externos, do ordenamento lógico e estético dos espaços fabris, dos escritórios, das escolas, do espaço público. Lellis Cardoso publicara alguns artigos na revista, dentre os quais, “A psicologia da música e a sua aplicação no meio escolar” (n. 43, julho de 1935), no qual discorria sobre a importância da musicalidade como parâmetro de seleção, disciplina e aperfeiçoamento dos corpos. Propunha a investigação científica da percepção musical na busca por um melhor aproveitamento das atenções no trabalho operário (Téo, 2016).

Ao indicar o acompanhamento dos alunos desde as primeiras séries, mapeando suas capacidades musicais e auxiliando no sentido do desenvolvimento adequado do corpo, do caráter, do temperamento, por meio da música, Lellis Cardoso retoma o método grego antigo de educação moral, cívica e corporal que pensava os modos musicais como vetor de construção do caráter humano.

Na sua comunicação apresentada no I Congresso da Língua Cantada, intitulada “A fonofotografia e a fonética”, o som e a escuta surgem como sujeitos de uma fabricação imaginária do mundo, são matéria de significação da existência, possuem o código de ordenação das relações possíveis entre as pessoas e entre estas e o universo que ocupam. Sim, para Lellis Cardoso, Pitágoras ainda ressoava – porém, com harmônicos próprios do período.

Para Lellis Cardoso, o ponto central da discussão será a possibilidade de sincronização entre os movimentos corporais e o ritmo falado, trazendo embutida uma proposta educacional de disciplinarização dos corpos pela fala (lembremos o projeto do canto orfeônico em gestação, por Heitor Villa-Lobos, desde o início da década de 1930).

Em linhas gerais, seus estudos vão no sentido de, a partir da tradução visual das frequências sonoras, pensar os efeitos do fenômeno sonoro sobre a fisiologia humana e vice-versa, tendo como recorte o caso brasileiro. Inscrito dentro do programa estético do congresso, a proposta dialogava com o sonho de Mário de Andrade de produzir uma imagem sonora do tipo brasileiro (Téo, 2016).

De início, seu texto discorre sobre a aparelhagem então disponível para a visualização da das ondas sonoras. O objetivo seria o maior entendimento do fenômeno sonoro, para o seu melhor controle e possível eliminação do “barulho das fabricas, das ruas, que tanto prejudica o trabalhador e produz a fadiga” (Cardoso, 1938, p.523). A personagem principal de sua investigação, entretanto, é a voz humana. Para além de filtrar o ambiente do que seriam os sonidos tóxicos à boa organização do trabalho fabril, importava a Lellis Cardoso a promoção da voz como potência disciplinadora dos corpos:

O ritmo na palavra é o fluir dos movimentos subordinados a uma medição, ele governa os movimentos do corpo em ajustamento harmonioso, dá um sentimento de poder, de facilidade e de graça. os movimentos rítmicos na prosa e verso tem uma base fisiológica, que se caracteriza pela alternação da tensão e afrouxamento das cordas vocais. quando o som é produzido dá‐se essa alternação na laringe (Congresso, 1938, p. 526).

Grande parte do seu estudo se dedica à voz e, em especial, à sua presença na música. Ao falar sobre a fisiologia do ritmo e da entonação das palavras na música, Lellis Cardoso propõe uma definição científica dos parâmetros de altura, timbre, intensidade e duração. Neste ponto, o autor ecoa a investigação empreendida por Hermann von Helmholtz, em sua obra On the sensations of tone, publicada em 1863.

Por sob a máscara da pesquisa científica, porém, soava o projeto de disciplinarização dos corpos para o trabalho. O maquinário ideológico burguês, com seu capital imagético, afundava suas garras nas entranhas do social, idealizando a exploração do inconsciente em prol do capital. A utilização do esfigômetro, aparelho medidor das vibrações das artérias, proposta por Lellis Cardoso para o mapeamento e orquestração do ritmo corporal, sintomatiza tal pretensão de estabelecimento de um tempo para o trabalho:

O instrumento possui uma alavanca que uma vez bem ajustada, marcará o tempo musical que o paciente ouve. Ou seja, tal pessoa ao ouvir a música, sem perceber fica influenciada pelo ritmo, cujas marcações são feitas pelo esfigmógrafo. Os movimentos reais podem ser, por exemplo: marcar com o pé, com a cabeça, com o braço. É comum também marcar o tempo com os músculos da garganta e da língua ou pelos músculos maiores da coxa, do antebraço. Certas pessoas, para marcar o tempo, inclinam o corpo inteiramente, pois, tal atitude é uma forma extrema de ação coordenada de toda a musculatura do corpo na reação do tempo. Estes movimentos maiores, com os movimentos incipientes, são em geral, um tanto inconscientes, visto que podemos marcar o tempo com alguma parte do corpo, sem que o percebamos (Congresso, 1938, p. 546‐7).

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Um desenho de Cândido Portinari, feito com nanquim preto e vermelho, encomendado por Mário de Andrade para ilustrar a capa do programa do Congresso, é revelador da pulsão disciplinadora que vibrava por detrás dos trabalhos apresentados [ver figura 1].

Figura 1
Figura 1. Figura 1: CANDIDO PORTINARI, Programa do Congresso da Língua Nacional Cantada: ilustração de capa, 1937. 1 cartaz. Acervo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP), Coleção Mário de Andrade.

As silhuetas dos corpos ressoam as figuras de som estampadas na partitura à frente do coro, imagem da irmanização entre música e carne, pele e som. Mas podemos questionar se não é a pauta musical que projeta sua ordem sobre os corpos femininos, fazendo-lhes introjetar a ordem, espelhar a disposição das notas musicais em uma sequência melódica-harmônica bem construída, comandada pela batuta em riste do regente.

A opção pela figura da mulher, cuja feminilidade mal logra escapar à unidade do desenho, pelos raros traços de vermelho estampando laços nas cabeças de duas coristas, não foi obra do acaso. Em 1932, no Brasil, era editado o decreto-lei de Getúlio Vargas estabelecendo o voto feminino, apesar das restrições impostas: poderiam votar as mulheres viúvas ou solteiras com renda própria; as mulheres casadas, mesmo que também tivessem renda própria, fruto de atividade profissional, só poderiam votar se autorizadas pelo marido.

A luta das mulheres pelo voto feminino atravessara os diversos regimes políticos do país, iniciada ainda nos anos finais da monarquia, e se fizera presente desde o início da Primeira República. Mas nos anos anteriores à década de 1930 ganhara força com a atuação da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino – herdeira da Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher, atuante entre 1919 e 1922 (Marques, 2018). O movimento sufragista seria apenas um dos símbolos das novas reivindicações feitas pelas mulheres visando a uma maior participação política e maior presença no espaço público.

No mesmo período, o cinema lançava uma figura padronizada da mulher. Uma nova gramática da imagem, dos gestos, se fazia traduzir pela indústria holywoodiana, internacionalizando uma estereotipia do feminino e do masculino, impondo legendas não escritas do como portar-se, como vestir-se, como amar, prontas a serem traduzidas à linguagem dos hábitos locais. Greta Garbo, a “woman-mistery”, Joan Crawford, a “sound-girl”, Sue Carol, a “jazz-baby”, Lilian Gish, a “romantic-baby”; Lilian Harvey, Brigite Helm, Marlene Dietrich, “uma Greta Garbo traduzida em alemão”, servem de modelos de corporeidades e subjetividades femininas.

Em boa medida, o trabalho apresentado por Lellis Cardoso reverbera tal empenho na busca por uma harmonização social das vozes. Não por acaso sua pesquisa se inspira nos estudos de Dayton C. Miller, cuja técnica nomeada fonofotografia, fora desenvolvida pelo físico americano ainda no início do século XX. No texto preparado para o Congresso, Lellis Cardoso informa que nosso pesquisador dos sons prepara “a tradução portuguesa da obra de Miller, “The Science of Musical Sounds”, a ser publicada na sequência de “The Psychology of Musical Talent” de Seashore” (Cardoso, 1938, p.516).

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De fato, Dayton Clarence Miller já estampara as páginas de alguns jornais no Brasil com um experimento baseado em sua técnica fonofotográfica. Em 22 de junho de 1922, O Jornal, do Rio de Janeiro, repercutia aquela que seria uma conquista tecnológica na leitura dos sons. O texto do artigo, intitulado “A música do semblante”, e cujo subtítulo é bastante significativo, “O rosto da mulher é uma partitura”, apresenta a experiência:

O professor Dayton C. Miller, de Cleveland, acaba de fazer uma maravilhosa revelação: ‘O rosto da mulher é uma composição musical e como tal pode cientificamente ser executado com ritmo melódico em qualquer instrumento.

O professor Miller declara haver encontrado a razão melódica, que há milênios inspira poetas. De agora por diante, as liras, as odes, os epinícios, as églogas, os sonetos vão ficar relegados; o inspirado pode compor óperas, sinfonias, calcadas no motivo, que solfejou lendo a partitura - o rosto da mulher (o Jornal, 22 jun. 1922).

Dayton Miller estava a par do interesse científico, desde pelo menos meados do século XIX, pela imagem do som, tendo inclusive escrito uma obra voltada para contar o que seria uma primeira história da ciência do som, intitulada Anecdotal history of the science of sound to the beginning of the 20th century. Publicado em 1932, o livro era a versão ampliada do texto homônimo lido em novembro daquele ano no VIII Encontro da Sociedade Acústica da América, fundada cinco anos antes na Universidade de Michigan. Então presidente da sociedade, Miller fizera uma conferência no encontro da sociedade com o tema de uma história da acústica, desde Pitágoras até a atualidade.

De fato, desde Isaac Newton, os físicos buscavam encontrar nas frequências das notas e cores alguma relação entre música e luz, para então dominar a lógica do seu efeito sobre o ouvido e o olho. No palácio dos saberes arquitetado desde Kant, a arte fora um espaço fugidio, infenso a qualquer tentativa de delimitação e explicação científica (Nature Magazine, 13 jan. 1870). Em meados do século XIX, cientistas se esforçavam por localizar no corpo humano as áreas de funcionamento da razão e da sensibilidade. No relato de suas experiências, a música falaria direto ao corpo, prescindiria da razão para fazer efeito, para tocar as pessoas. Para tais especialistas, o som seria uma espécie a mais de grafia do mundo. Estudá-lo, compreendê-lo possibilitaria obter a chave para uma escuta universal, através da qual todos os seus segredos se revelariam.

Em 1872, por exemplo, o antropólogo inglês Edward Burnett Tylor inventara um método para produzir o que seria uma representação pictórica do som. Apenas um ano antes, Tylor havia publicado a obra que lhe faria fama: Cultura primitiva. Para Tylor, era preciso enxergar a música, torná-la acessível também aos olhos, como fosse a audição, sozinha, incapaz de abraçar toda a estranheza dos sons. Para Tylor, a música era uma linguagem através da qual o antropólogo teria acesso à cultura do Outro. Seu experimento pretendia ver o som, associando cada emissão sonora a um padrão de vibração específico. Assim, Tylor comparava o que dizia ser a imagem vibratória do som de um apito com aquela produzida pelo acorde de um piano. O som riscaria no ar sua escrita - até agora – invisível ao olho humano (Tylor, 1872).

Figura 2
Figura 2. Figura 2: Em meados do século XIX, além de E. B. Tylor, experimentos físicos buscavam revelar uma imagem do som. Na imagem, a ilustração de um aparelho projetado pelo engenheiro acústico Ernest Mercadier em 1872 para grafar os sons. (Mercadier, 1872)

Em 1908, ele já inventara um aparelho batizado Phonodeik, capaz de registrar fotograficamente as ondas sonoras. Miller estava interessado em descobrir como as características físicas das notas musicais se relacionavam com a sua beleza e seu efeito sobre as pessoas. Obtivera fama tanto no seu país natal, Estados Unidos, como na Europa, promovendo exibições com seu aparelho, projetando em uma tela o padrão de ondas produzido pela vibração sonora na pronúncia de determinadas palavras e outros sons. Foi questão de tempo para, encantado com o próprio invento, fazer o caminho contrário e, enxergando um rosto no cruzamento das linhas grafadas, encontrar os sons, as notas que lhes fossem correspondentes. 3

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Voltando à matéria de O jornal, o articulista prossegue:

Expliquemos a descoberta.

Há muitos anos se vinha tentando fotografar o som. Fizeram-se chapas ultrassensíveis que podiam receber a impressão resultante da onda sonora. Verificou-se que as notas se assinalavam na fotografia, por uma série de curvas, sempre diversas, conforme se sucediam. O professor Miller se pôs a estudar em cotejo com a fotografia do som o rosto de uma mulher. Mandou fotografar uma melodia completa e examinou as curvas produzidas.

Encontrou na chapa ondulações que correspondiam, aqui, ali, às curvas do perfil feminino. Continuou os estudos e transportou para o papel o formoso perfil de uma moçoila e começou a fotografar notas e melodias, até que correspondessem as suas curvas de sonoridade com o desenho do perfil da moça. Depois identificou as notas, transladou-as para a pauta e foi ao piano. Era um conjunto musical agradável. Estava encontrada a chave musical da beleza feminina (O Jornal, 22 jun. 1922, p. 3). [Grifo meu]

Reproduzido como foi em vários jornais, podemos apenas imaginar o impacto que o artigo teve sobre as sensibilidades e as fantasias da época: 4

A possibilidade de fotografar as ondas sonoras põe em evidência um vasto campo de investigações. Chegar-se-á talvez a determinar o caráter do indivíduo pelas melodias extraídas de seu rosto. O semblante traduzido em sons poderá revelar coisas que os psicanalistas ainda não descobriram. As experiências do professor Miller estão sendo seguidas com interesse. Daqui a esperança que o moderno trovador, trasladando para a música os encantos de um rosto, achará uma melodia, ou, segundo o temperamento individual e cada um, poderá ser um trecho de ópera, opereta, uma romanza, etc. (O Jornal, 22 jun. 1922, p. 3)

A dicotomia entre o que seria a dimensão racional dos saberes humanos e a emotiva, à qual estaria associada a música, é o ponto de partida para se pensar a diferença entre o masculino e o feminino, localizando a mulher, por sua pretensa intimidade com a arte musical, no interior do espectro da sensibilidade, da irracionalidade. Além disso, a conexão entre a música e a feminilidade, agora confirmada por um evento científico, era remetida à dimensão do natural. A naturalização do feminino e, por contraponto, do masculino, era reforçada tendo como referência o fenômeno sonoro. Vai-se buscar na linguagem musical a manutenção dos antigos códigos de comportamento que definiam o homem e a mulher.

Figura 3
Figura 3. Figura 3: Ilustração do artigo sobre o experimento de Dayton C. Miller. Os sistemas de pauta dupla, com duas claves (de sol, superior, e de fá, inferior) caracterizam a música escrita para piano. O perfil feminino, por sua vez, de corte “à la garçonne”, sugere uma típica melindrosa dos anos 1920, livre dos espartilhos, e entusiasta de ritmos como o jazz e o charleston. (Música, 1922, p. 3).

O texto mal esconde o desejo de controle da feminilidade, força de subversão que desde a chegada do regime republicano ameaçava, como símbolo de sua derrocada, a hierarquia patriarcal. Conhecida em seus segredos, mapeada pelo poder dos sons, ela poderia ser novamente domada, docilizada em forma de música, mantida em seu lugar de subserviência, de admiração, mas também de contenção pelos homens, lastro de manutenção que era de instituições agora em perigo, como a família:

‘E’, conclui o professor Miller, toda mulher possui essa partitura. Há em toda mulher essa música que bem acompanhada parece uma música do céu.

A música extraída do rosto de Lady Manners já tem algumas edições de milhares e tem grande procura. Toda mulher tem essa música.’ (Idem)

A silhueta feminina era transmutada uma linha melódica, posta à venda em casas de partitura, enquanto a música se tornava uma armadilha a mais para a captura das mulheres, em um país onde, há muito e cada vez mais, ser “bela” era (como ainda é), ao mesmo tempo, uma obrigação e uma desculpa para a posse de seus corpos.

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Cada qual à sua maneira, Dayton Clarence Miller e João Lellis Cardoso pontuam seus lugares na história da ciência do som, sob a qual vibra por consonância uma contranarrativa de gerência dos corpos. Se, em seu momento histórico, seus experimentos e pesquisas surgem como evidências de uma realidade física, elas são tratadas no presente artigo como sintomas de disputas políticas e discursivas em que antigos e novos atores se enfrentam, ajudando a construir, pelo encontro (e pelo embate) de suas falas, imagens de um Brasil moderno. Exploradores do som e da voz, eles participarão da narrativa fabulosa de uma nação em forma de canto. Com eles, não resta dúvida de que a manufatura de um arquivo sonoro para o Brasil é coetâneo também desse desejo de manipulação, transformação e modelagem do som e – principalmente – das carnes.

Referências

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Notas

  1. Doutor em história pela Universidade Federal de Pernambuco, com graduação em música pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
  2. Miller foi também apaixonado pela música, tendo se tornado um exímio flautista, organista e pianista, no que fora inspirado pela mãe, organista na igreja frequentada por sua família (Fletcher, 1943).
  3. Por exemplo, em O Cachoeirano: Órgão do Povo, de Espírito Santo, em 5 de julho, com o título “Micrologos”, e no Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, em 16 outubro, com o título “O rosto da mulher”, ambos de 1922.