Teoria e Cultura • v. 20, n. 1 (2025) • ISSN 2318-101X

“Fé, Cultura e Tradição”: escutando os Penitentes do Santa Marta

Marcelo de Medeiros Reis Filho

DOI: 10.34019/2318-101X.2025.v20.48335

Sumário rápido
  1. Resumo
  2. Abstract
  3. Resumen
  4. Introdução
  5. Os ensaios e as afinações
  6. Os Penitentes em Jornada
  7. Conclusão
  8. Bibliografia

Resumo

Este artigo é baseado em trabalho de campo conduzido na Favela Santa Marta, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Com inspiração na obra de Steven Feld (1996; 2018; 2020), o texto discute as histórias e tipos de escuta do Penitentes do Santa Marta, um grupo de Folia de Reis sediado na favela que carrega em seu nome. A Folia é uma festividade de tradição católica que faz referência à jornada dos Três Reis Magos e ao nascimento de Jesus, seguindo por casas e comércios oferecendo músicas, danças e chulas e recebendo alimentos e bebidas dos anfitriões, em um sistema de compartilhamento de dádivas (Brandão, 1981; Souza, 2020). O grupo é composto por instrumentistas, cantores e palhaços de faixas etárias variadas, indo de crianças a idosos, e majoritariamente pretos e pardos. A divisão de funções dentro da Folia também perpassa os gêneros, com mulheres e homens tocando, cantando, dançando ou empunhando a bandeira. Os membros, por mais que em maioria tenham residência ou origem no Santa Marta, também podem ser oriundos de outras localidades. Por meio de observações feitas nos ensaios e jornadas dos Penitentes, construo uma compreensão e escuta sobre as dinâmicas internas, relações com a tradição e filiações ao grupo. Paralelamente, analiso as formas de recitar e criar versos dos palhaços, a execução da percussão pelos ritmistas, e os modos de cantar dos mestres e contramestres. Com isso, desenho uma observação da fala dos corpos e dos instrumentos dos integrantes da Folia, notando os processos de escuta, memória e ensinamento presentes em suas jornadas.

Palavras-chave:
Acustemologia Folia de Reis Sociologia Urbana

Abstract

This article is based on fieldwork conducted in the Santa Marta Favela, in the South Zone of Rio de Janeiro. Inspired by the work of Steven Feld (1996; 2018; 2020), the text discusses the stories and types of listening of the Penitentes do Santa Marta, a Folia de Reis group based in the favela that bears its name. The Folia is a traditional Catholic festival that references the journey of the Three Wise Men and the birth of Jesus, going from homes and businesses offering music, dances and chulas and receiving food and drinks from the hosts, in a system of sharing gifts (Brandão, 1981; Souza, 2020). The group is composed of instrumentalists, singers and clowns of various ages, ranging from children to the elderly, and mostly black and brown. The division of roles within the Folia also cuts across genders, with women and men playing, singing, dancing, or holding the flag. Although the majority of members live or are from Santa Marta, they can also come from other locations. Through observations made during the Penitentes' rehearsals and journeys, we build an understanding and listening to the internal dynamics, relationships with tradition, and affiliations to the group. At the same time, we analyze the ways in which the clowns recite and create verses, the percussion performance of the percussionists, and the ways in which the masters and countermasters sing. With this, I draw an observation of the speech of the bodies and instruments of the Folia members, noting the processes of listening, memory, and teaching present in their journeys.

Keywords:
Acoustemology Three Kings’ Day Urban Sociology

Resumen

Este artículo se basa en un trabajo de campo realizado en la favela Santa Marta, en la zona sur de Río de Janeiro. Inspirado en la obra de Steven Feld (1996; 2018; 2020), el texto aborda las historias y los tipos de escucha de los Penitentes do Santa Marta, un grupo de Folia de Reis con sede en la favela que lleva su nombre. La Folia es una festividad de tradición católica que hace referencia al viaje de los Tres Reyes Magos y al nacimiento de Jesús, recorriendo casas y comercios para ofrecer músicas, danzas y chulas, y recibiendo alimentos y bebidas de los anfitriones, en un sistema de intercambio de dones (Brandão, 1981; Souza, 2020). El grupo está conformado por instrumentistas, cantores y payasos de diversas edades, desde niños hasta ancianos, en su mayoría negros y mulatos. La división de funciones dentro de la Folia también atraviesa los géneros, con mujeres y hombres tocando, cantando, bailando o portando la bandera. Aunque la mayoría de los miembros reside o tiene origen en Santa Marta, también pueden provenir de otras localidades. A partir de observaciones realizadas en los ensayos y jornadas de los Penitentes, construyo una comprensión y una escucha sobre las dinámicas internas, las relaciones con la tradición y las filiaciones al grupo. Paralelamente, analizo las formas en que los payasos recitan y crean versos, la ejecución de la percusión por parte de los ritmistas y las maneras de cantar de los maestros y contramaestros. Con ello, elaboro una observación de la “voz” de los cuerpos y de los instrumentos de la Folia, destacando los procesos de escucha, memoria y enseñanza presentes en sus jornadas.

Palabras clave:
Acustemología Día de Reyes Sociología urbana

Introdução

Este artigo é baseado em trabalho de campo conduzido na favela Santa Marta, na Zona Sul do Rio de Janeiro, entre os anos de 2024 e 2025. A partir de observações feitas junto ao grupo Penitentes do Santa Marta, dedicado à celebração e manutenção da Folia de Reis1. Esta festividade pode ser definida como um circuito que “coloca em circulação um conjunto heterogêneo envolvendo santos, pessoas, antepassados, objetos sagrados e seculares, conhecimentos e rezas” (Souza, 2020, p.2). Enquanto objeto de estudo, pode-se pensar como um evento típico de regiões rurais e cidades de interior, como estudado por Brandão (1981) e Chaves (2014; 2021), mas também há uma cena de folias urbanas, como no Rio de Janeiro e região metropolitana, demonstrado por trabalhos como Rocha (1985), Bitter (2008) e Souza (2017; 2018; 2020). No caso desta pesquisa, acompanhei os Penitentes do Santa Marta em jornadas dentro e fora de sua favela, na capital fluminense.

Aponto que a Folia de Reis é uma festividade circular. A sua realização é ligada ao dia de nascimento de Cristo, ao final de dezembro, e o Dia de Reis, comemorado no sexto dia de janeiro. O grupo que faz a Folia tipicamente saí com instrumentos de corda, percussão e bandeira pelo território em que está fixado. Também há aqueles membros que podem se fantasiar com máscaras, adereços e afins, sendo chamados em algumas localidades de “palhaços”2. Então, os membros passam de casa em casa com sua cantoria. Essas casas são combinadas de antemão, passando por aquelas dos devotos dos Reis Magos, católicos locais e outros moradores que se relacionem com a cultura foliã. Dentro das residências, os grupos recebem onde dormir e o que comer, além de doações em dinheiro.

Os Penitentes do Santa Marta, por sua vez, se caracterizam por ser uma folia urbana. Isso significa que seu funcionamento é organizado a partir de um calendário que considera jornadas de trabalho, deslocamentos e custos associados à vida urbana no Rio de Janeiro, uma característica já notada por Rocha (1985) em seu trabalho junto aos Penitentes. Da mesma forma, a participação de seus membros em jornadas e ensaios também depende da organização de suas agendas de trabalho, estudo e folgas. A sua Jornada visita outras localidades além do Santa Marta, como a Ladeira dos Tabajaras, Cidade de Deus, Curicica, Rocinha e pontos de Botafogo, além de outras cidades em caso de convites externos. O último dia de sua Jornada também tem relação com sua localização, com a saída acontecendo no dia 20 de janeiro, quando se comemora o Dia de São Sebastião, padroeiro da cidade do Rio de Janeiro.

Esses aspectos, além de outros, são destrinchados nas seções abaixo. Para fins de introdução ao leitor, aponto nesta seção alguns aspectos da formação e composição dos Penitentes. A Folia de Reis começa a se fazer presente no Santa Marta em meados da década de 1960, quando o mestre de um grupo folião da Ilha do Governador faleceu e o grupo teve sua saída realocada para a casa do Mestre Luiz na favela (Silva, 2024). O grupo, que já tinha grande participação de moradores do Santa Marta, agora se reposicionava na favela.

Atualmente, os membros dos Penitentes não são necessariamente moradores do Santa Marta. Eles também residem na Cidade de Deus, Bangu e Engenho da Rainha, dentre outras localidades. Esses membros, em sua maioria negros ou pardos, vão de crianças a idosos, passando por homens e mulheres que assumem diversas funções.

Percussionistas dos Penitentes sobem escada no Santa Marta.
Figura 1. Percussionistas dos Penitentes na tarde de Natal. Legenda: Percussionistas sobem escada no Santa Marta (O autor, 2024).

Na foto acima, podemos observar parte dos percussionistas dos Penitentes em sua Jornada do dia 25 de dezembro de 2024. Em meio às escadas iluminadas pelo sol, é possível perceber as típicas roupas azuis e brancas do grupo, com a camisa bicolor, enquanto calças e sapatos são brancos. Os chapéus, por sua vez, adotam tons de azul, branco e amarelo, com exceção da viseira preta na parte da frente.

Nessa imagem, observamos apenas parcialmente a composição do grupo. Ainda há, entre eles, o sanfoneiro, o mestre, os contramestres, as pastorinhas e os palhaços. O tamanho do grupo varia entre quinze e vinte pessoas, a depender da ocasião. Debruçando-me sobre as funções de cada membro, as observo assim: 1) Mestre: lidera as fileiras da Folia, toca o violão e canta; 2) Contramestre: canta e assume o lugar do Mestre na regência, é o segundo na fileira da Folia, pode levar a bandeira; 3) Pastorinha: canta e leva a bandeira; 4) Músicos: tocam os instrumentos de percussão ou a sanfona e 5) Palhaços: dançam, rimam e recolhem donativos.

A partir desta introdução, desenho um panorama da formação, composição atual e trajetos dos Penitentes do Santa Marta. Este momento, além de apresentar ao leitor as condições e interlocutores da pesquisa, também serve de alicerce para os debates que se desenrolam nas próximas seções. Dessa forma, exploraremos, em um primeiro momento, os processos de “afinação” (Chaves, 2021) nos ensaios dos Penitentes e, posteriormente, as escutas e controvérsias durante a Jornada da Folia.

Os ensaios e as afinações

No fim de setembro de 2024, enviei mensagem via WhatsApp para Juninho, mestre dos palhaços, perguntando quando seria o próximo ensaio dos Penitentes do Santa Marta. Recebi a informação de que seria dali a dois sábados, ou quinze dias, no dia cinco de outubro. Nessa mesma mensagem, recebi a confirmação de que poderia acompanhar os encontros.

Cheguei na parte baixa do Santa Marta perto das 19h, o horário em que o ensaio estava marcado. Para reiterar que o ensaio aconteceria, envio nova mensagem para Juninho perguntado se ele havia chegado e recebo a confirmação, junto de instruções via áudio sobre como chegar até a sede dos Penitentes. O caminho segue pelo pé–de–escada, virando à esquerda ao ver a Igreja Católica, entrando na Rua Mestre Diniz e subindo à direita logo após passar pela Igreja Batista em Santa Marta e uma birosca. O ponto de referência para achar a sede era Associação de Moradores e uma venda logo em frente.

Ao parar na frente desta venda, percebi a Associação de Moradores, mas não a sede dos Penitentes. Perguntei, então, à mulher sentada próxima à porta da Associação se ela sabia o local, logo me apontando para uma casa um pouco abaixo de onde estávamos. Eu olhei na direção da casa e reconheci Juninho, que acenou para mim da porta pintada de azul.

O ensaio estava atrasado, afinal, alguns membros da Folia estavam vendo o jogo do Flamengo em um bar ali perto e outros não haviam chegado. Entre os membros que estavam vendo o jogo, que tinha começado às 19h, havia o próprio Mestre da Folia, Ronaldo. Fiquei, então, conversando com Juninho e outras pessoas que já estavam na sede. Enquanto estávamos no primeiro andar, percebi que a sala da casa tinha uma foto do avô e avó de Juninho, pais de Ronaldo, com o típico uniforme azul e branco dos Penitentes.

Por volta das 20h30, o ensaio começou. O encontro foi na laje localizada no terceiro pavimento da casa. Mestre Ronaldo, os contramestres, as pastorinhas e o sanfoneiro se posicionaram na parte central da laje. Os outros músicos se espalharam pelas laterais, apertados entre cadeiras que estavam distribuídas ao longo da laje.

Os instrumentos estavam guardados em uma pequena sala ao fundo da laje. Os Penitentes se dividiram entre aqueles que tocavam caixas, surdos, repique, chocalho, pratos, pandeiro sem pele e o rocar. Ao longo do ensaio, os membros trocavam de instrumentos entre si.

Neste ensaio, assim como em outros, Ronaldo tentava ditar o ritmo que os músicos deveriam executar. No exercício dessa função, era comum que ele carregasse um apito em seu pescoço, utilizado para indicar o início da música ou interrompê-la. As músicas ensaiadas, com temática de passagens bíblicas, eram cantadas com a sanfona acompanhando-as, enquanto os outros instrumentos apenas entravam em cena nos intervalos da parte cantada. Na figura abaixo, é possível observar uma cena de Mestre Ronaldo cantando, acompanhado de dois contramestres e duas pastorinhas, enquanto os músicos se distribuem ao redor deles.

Mestre Ronaldo canta com pastorinhas e contramestres; músicos ao redor, durante ensaio na sede.
Figura 2. Os Penitentes do Santa Marta em ensaio na sede do grupo. Legenda: Mestre Ronaldo canta acompanhado de pastorinhas e contramestres (O autor, 2024).

Nestes ensaios, o trabalho voltava-se para a “qualidade da comunicação e interação entre as pessoas” (Chaves, 2021, p.5). Os Penitentes, visando sua Jornada, estavam trabalhando de modo a afinar suas percepções entre si, seus instrumentos e as sonoridades emitidas. Ao mesmo tempo, membros mais antigos da Folia falavam daquele momento como um ensinamento aos mais jovens.

Em um dos encontros, Mestre Ronaldo reclamava que os músicos tocavam em ritmo de “escola de samba” e, em outra ocasião, dizia que sua “cultura estava escorrendo pelos dedos”. Essas reclamações eram mais audíveis quando os instrumentistas, geralmente os mais jovens, tocavam muito rapidamente a percussão. Também havia correções quando, por exemplo, os palhaços ensaiavam timidamente ou sem cumprir os ritos necessários.

Essa distinção entre o modo de tocar “como folia” e “como escola de samba” pode ser escutada da seguinte forma. A folia, então, deveria seguir os ritmos da chula, marcha ou da canção, compreendendo a sanfona como o instrumento que indica os diferentes momentos e o apito do mestre como o indicador da autoridade rítmica. Já a escola de samba, na visão do mestre Ronaldo, tocava em um ritmo diferente daquele de sua “tradição”, com a bateria em ritmo acelerado e sob influência menor da sanfona.

A manutenção rítmica da folia poderia ser compreendida, então, como uma forma de manter e transmitir a “tradição”. As influências de outros ritmos e gêneros, no caso abordado, levaria a um hibridismo que não é almejado pela autoridade do grupo. Noto, contudo, como a escuta e observação de outros grupos, como a Brilhante Estrela do Oriente (Morro da Formiga) e Sagrada Família da Mangueira (Morro da Mangueira), permitem acessar outras maneiras de executar e transmitir a Folia de Reis, com modos de pular, cantar e rítmicas que se assemelham ou afastam daquela dos Penitentes.

“Desse modo, afinar revela uma dupla natureza: de um lado, seu propósito é criar ordem, estabilidade, integração e coesão a partir de um ideal sonoro de equilíbrio. Afinal, como dizia o saudoso folião, ‘o som de um instrumento não deve roubar o som do outro’; além disso, afinar também é lidar com o desconhecido, com o perigo e com o mal que sempre está à espreita.” (Chaves, 2021, p. 19)

Aponto, então, como os ensaios podem ser compreendidos como um processo de afinar. Ao longo desses encontros, criam–se sentidos sonoros e corporais que integram e equilibram os membros dos Penitentes. Esses movimentos evidenciam a passagem de conhecimento sonoro e corporal entre seus integrantes, além de coordenar seus atos para quando a Jornada se iniciar.

Neste sentido, compreendo que os ensaios demonstraram a Folia como “uma reza, uma escola e uma história viva” (Rocha, 1985, p.44). Por meio de processos de aprendizado, disputas, desafinações e conjunções, os repertórios de escuta e corporeidade entram em formação visando a continuidade de uma tradição. Com essa observação e escuta, é possível compreender como “o sujeito passa a conhecer através de um processo contínuo, cumulativo e interativo de participação e reflexão” (Feld, 2020, p.198).

Por isso, Ronaldo dizia que “o ritmo é fundamental”. Além da noção rítmica, o Mestre apontava para a ideia de que “a Folia é um conjunto”, apontando para a necessidade de pensar em um jogo de cores e materiais entre as diferentes vestimentas dos palhaços. Para o Mestre e os membros mais velhos, era necessário ressaltar que a Folia não se faz individualmente, mas com uma escuta compartilhada entre seus membros para a execução ritual. Entre crianças correndo pela laje, as falas do Mestre e a cantoria, o conhecimento folião estava em construção e transmissão de seus repertórios de escuta, habilidades corporais e sensoriais.

Ensaio ao ar livre no Cantão; foliões em semicírculo, cantores ao centro, instrumentistas ao redor.
Figura 3. Penitentes ensaiam ao ar livre no Cantão, no Santa Marta. Legenda: semicírculo com cantores ao centro e músicos ao redor (O autor, 2024).

Na figura acima, observamos um ensaio dos Penitentes em espaço aberto, no Cantão. Este local é tipicamente usado para diversas festas na favela. Neste ensaio fora da sede, curiosos e transeuntes observavam enquanto os foliões cantavam e tocavam. Ali também é uma rota de passagem para acessar partes superiores do morro, também contando com a circulação de homens armados, mas sem que isso fosse um impeditivo para o ensaio.

Bitter (2008), em seu trabalho sobre a Folia de Reis na favela da Mangueira, notou como as relações desenvolvidas em campo permitiam a presença e circulação pelo território em segurança. Mesmo sob a presença ou passando perto de grupos armados, a proximidade com os Penitentes me permitiu conduzir o trabalho de campo sem indagações sobre a minha atividade. Nesta esfera das relações com interlocutores, a ocasião do ensaio em espaço aberto me marcou como a primeira vez em que me foi recomendado que eu não filmasse ou fotografasse direcionado a determinado local.

“Denomino de espaço compartilhado a referência ao comum, informada por uma partitura social que se esforça em manter uma harmonia…” (Dechelette, 2019, p.51)

Os ensaios, finalizados na semana anterior ao natal, possibilitaram notar como “o som emana tanto dos corpos quanto os penetra” (Feld, 2018, p.235). Dessa maneira, aponto como os Penitentes, por meio da afinação (Chaves, 2021) de suas práticas, estão gestando uma forma de conhecimento envolta nos processos de escuta e produção de sons.

Os Penitentes em Jornada: escutas, percalços e rituais

No dia 25 de dezembro de 2024, 11 horas da manhã, desci de um carro na Rua São Clemente e subi em direção ao pé–de–escada, a sequência de degraus coloridos que indica o início das escadarias da favela. Havia poucas pessoas andando pelas ruas e uma tímida movimentação nos comércios da subida do Santa Marta. O céu claro indicava o que seria um dia de intenso calor na Jornada dos Penitentes.

Ao chegar na porta da sede, na Rua Mestre Diniz, percebi o movimento de chegada dos membros dos Penitentes. Neste momento, avistei Juninho e o cumprimentei, assim como outros membros que já me reconheciam. Enquanto aguardava perto da venda do Marcelinho, conheci uma mulher, anonimizada aqui como Joana, e seu pequeno cachorro da cor caramelo, Aladim.

Ela descia a escada com o cachorro em um braço e uma cerveja na mão oposta quando avistou alguns membros da Folia e eu perto da sede. Ao perceber a movimentação, me perguntou se a Folia ia sair e eu confirmei. Diante disso, me disse que “amava a Folia” e “sempre acompanhava”. Por não saber que a Folia sairia naquele horário, ela estava descendo para passear com o cachorro, mas a partir deste momento resolveu acompanhar a Jornada.

Conforme os foliões colocaram–se em fila para subir o morro, eu e Joana nos posicionamos ao fim dela para acompanhá-los. Subir em fila, nesse caso, não era somente uma questão de perfilação típica dos Penitentes, mas também a única opção para o grupo avançar pelas escadas. Esta disposição dos corpos, claro, também nos ensina sobre como a Folia se organiza: a bandeira vai na frente, o mestre e contramestres logo atrás, seguidos, então, pelo sanfoneiro e os demais músicos. Os palhaços se distribuem em vários pontos da fila, estando entre os músicos ou ao final da fila, mas dificilmente à frente da bandeira.

Músicos em fila sobem as escadas do Santa Marta; um palhaço está entre eles.
Figura 4. Os Penitentes no início da Jornada no dia de Natal de 2024. Legenda: músicos em fila sobem as escadas; palhaço entre eles (O autor, 2024).

Enquanto subiam as escadas, os Penitentes tocavam a percussão em ritmo acelerado, com a sanfona acompanhando e os palhaços fazendo intervenções orais. Devido à data, também era comum que os palhaços gritassem “feliz natal” para quem os acompanhava nas janelas e portas.

Para acompanhá-los em alguns caminhos, também tive que interromper a gravação de áudios e evitar fotografias ou vídeos em determinados trechos. Essa posição veio de um discernimento adquirido após, em alguns ensaios e momentos de Jornada, ser orientado a não gravar ou fotografar visando a direção de pessoas armadas presentes no território. A Jornada, porém, não sofreu interrupções devido a esses grupos.

Ao chegarmos na primeira casa a ser visitada, o forte calor fez com que alguns palhaços se desmascarassem enquanto a cantoria acontecia diante da anfitriã. O Mestre, acompanhado dos contramestres e pastorinhas, cantava “Em 25 de dezembro…” enquanto ficamos próximos da residência nos hidratando.

Quatro palhaços dos Penitentes posam na saída da sede; máscaras, capas e cores variadas.
Figura 5. Palhaços dos Penitentes do Santa Marta no Natal de 2024. Legenda: O Bruxo, Théo, PH e Juninho na saída da sede (O autor, 2024).

Na Jornada, os palhaços não apenas chamam atenção pelos pulos, falas e rimas, mas também pelas vestimentas. É comum que adultos e crianças os parem para fotos, assim como reações de medo de crianças menores. A entrada do palhaço em uma casa acontece em meio à chula: o apito sibila, a sanfona toca, a bateria acelera; ele grita “Aí, rapaziada”, a bateria para, e ele declama seus versos, sempre pedindo licença para a entrada.

Como observado por Souza (2017), em São Gonçalo, os palhaços se apresentam após as refeições e bebidas serem servidas. No caso do Santa Marta, são servidos salgadinhos fritos, cachorro-quente, empadão e até strogonoff; entre as bebidas, água, cerveja e refrigerante.

Reformulando as proposições de Brandão (1981) para o meio urbano, aponto como os Penitentes estão envoltos numa circulação de “bens de pequeno valor material e de bens de um acreditado grande valor simbólico‑religioso”. Os bens materiais são os donativos em dinheiro, além do oferecimento de alimentos e bebidas; o valor simbólico‑religioso advém da recepção da bandeira e das canções.

“Deus lhe pague a bela ceia… Que Deus lhe pague a bela oferta que você deu à bandeira.” (Penitentes do Santa Marta, 2024)

É também importante notar como esse repertório pode entrar em disputa ou contestação, como escutamos nas cobranças de Mestre Ronaldo nos ensaios. Ao longo da Jornada de Natal, também pude escutar o descontentamento do Mestre com alguns comportamentos de seus foliões. O ritmo que alguns instrumentistas tocavam, segundo ele, “não era de folia”.

O repertório demanda habilidades corporais. Na retirada da bandeira, é comum que os Penitentes ergam seus chapéus enquanto cantam para agradecer o anfitrião. A bandeira é percebida enquanto “capaz de mediar, de forma orgânica, o plano dos homens… com o plano supramundano” (Bitter, 2008, p.110). Assim, gestos e sons se entremeiam na intermediação com o divino, especialmente nas “entregas” e “retiradas”.

Retirada: foliões com chapéus erguidos, anfitrião segura a bandeira; laje próxima à estação do Plano Inclinado.
Figura 6. Os Penitentes agradecem ao anfitrião no Natal de 2024. Legenda: chapéus erguidos e bandeira ao lado (O autor, 2024).

Nesse momento de retirada, é comum que se diga: “Deus cure toda doença, descoberta ou escondida”. Ao entoar essas palavras, o Mestre reitera a conexão com o divino por meio da sonoridade — aqui, das palavras.

“Tento mostrar como essas práticas emitem atmosferas sônicas… molda práticas e sensações religiosas.” (Eisenlohr, 2024, p.4)

Assim, as sonoridades, somadas aos corpos sencientes, proporcionam acesso ao divino. A Folia trabalha com essa mediação e ressonância sonora a partir de canções, rimas e instrumentalizações.

Este foi também o dia em que presenciei um forró no intervalo entre a apresentação dos palhaços e o momento de servir alimentos: o sanfoneiro Russo puxou melodias conhecidas; Juninho acompanhou no pandeiro. O forró é manifestação de destaque na favela; interlocutores apontam danças no pé‑de‑escada como tradição decorrente de migração nordestina (Silva, 2023).

“Determinados sons urbanos têm um ritmo próprio… deixam os seus ‘rastros nos corpos humanos’.” (Oosterbaan, 2009, p.86)

Compreendo o forró como fusão de tempo, memória e corpo — não apenas “pausa”, mas instrumento de rememoração para os foliões. Isso remete à formação de orientações corporais baseadas na audição e vocalização (Feld, 1996).

Em outra ocasião, na Ladeira dos Tabajaras, a apresentação ocorreu na rua. Motos, kombis e pedestres aguardavam; uma barbearia reduziu o volume após solicitação do anfitrião. A disputa entre privado e público, identidades e gostos pessoais, aparece também em Trotta (2020).

Conclusão

Neste artigo, exploro a formação de repertórios sensíveis e corporais a partir de histórias e tipos de escuta (Feld, 2018) entre os Penitentes do Santa Marta. Acompanhei o grupo em ensaios e Jornadas (2024–2025) e compreendi modos de afinar (Chaves, 2021) processos de tocar, escutar e vocalizar.

A afinação visa produzir e reproduzir aquilo que é considerado, por mestres e contramestres, a maneira apropriada de uma situação ritual. As sonoridades — junto de vestimentas e orientações corporais — marcam início, meio e fim do ritual, demarcado por entrada/saída da bandeira e chula. Disputas emergem sobre o “ritmo da folia” ou a “postura de um palhaço”.

Percebo a formação de um mundo sonoro (Feld, 2018) típico da Folia de Reis. Para integrá‑lo, aprende‑se posições, canções e melodias, evitando desafinar o ritual. A escuta e o corpo atravessam não apenas os foliões, mas também anfitriões e públicos, produzindo histórias de escuta e filiações sonoras.

Bibliografia

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Notas

  1. “Acustemologia” é a junção de acústica + epistemologia: saber que se forma pela escuta (Feld, 2018).
  2. Em diferentes regiões, “palhaços” podem receber outros nomes e executar variações rituais (Souza, 2017; Bitter, 2008).

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