A durée bergsoniana e a referencialidade extrínseca de objetos sonoros na música acusmática: em direção a aspectos estéticos e sociológicos do material musical2

The bergsonian durée and the extrinsic referentiality of sound objects in acousmatic music: towards esthetic and sociological aspects of musical material

La durée bergsoniana y la referencialidad extrínseca de los objetos sonoros en la música acusmática: hacia los aspectos estéticos y sociológicos del material musical

Gustavo Arima3

Resumo

Este artigo visa analisar os impactos temporais e espaciais da referencialidade extrínseca de objetos sonoros na música acusmática. Serão apresentados, primeiramente, os conceitos de objeto sonoro, proposto por Pierre Schaeffer, e de referencialidade extrínseca, a partir de Roman Jakobson e Jean-Jacques Nattiez. Posteriormente, o tema será analisado sob a ótica do conceito de durée proposto por Henri Bergson. Em seguida, proporemos que o uso de objetos sonoros dotados de forte conteúdo referencial constitui um caso de alegoria, segundo a definição de Walter Benjamin. Por fim, demonstraremos que os objetos sonoros extrinsecamente referenciais tornam possível que a temporalidade e espacialidade do mundo sejam tratados como materiais, nos termos de Theodor Adorno. Deste modo, poderemos propor consequências estéticas resultantes do uso, em música acusmática, de materiais retirados do mundo. Concluiremos, então, que estes objetos sonoros tendem a provocar uma relação dialética entre a percepção do tempo e do espaço no mundo e a percepção destes elementos dentro de uma obra.

Palavras-chave: música acusmática; referencialidade; objeto sonoro; estética musical

Abstract

This paper aims to analyze the temporal and spatial impacts of sound objects’ extrinsic referentiality in acousmatic music. The concepts of sound object, according to Pierre Schaeffer, and of extrinsic referentiality, based on Roman Jakobson and Jean-Jacques Nattiez, will be presented, then the subject will be analysed through the scope of the concept of durée, proposed by Henri Bergson. Afterwards it will be put forth that the use of sound objects with a relevant referential content constitutes a case of allegory, according to Walter Benjamin’s definition. Finally it will be shown that extrinsically referential sound objets make it possible for the world’s temporality and spatiality to be treated as material, in Thedor Adorno’s terms. Therefore we will be able to propose aesthetic consequences of the use, in acousmatic music, of materials collected from the world. It will be concluded that those sound objects tend to cause a dialectical relationship between the perception of time and space in the world, and the perception of those elements in a work of art.

Keywords: acousmatic music; referentiality; sound object; musical aesthetics

Resumen

Este artículo tiene como objetivo analizar los impactos temporales y espaciales de la referencialidad extrínseca de los objetos sonoros en la música acusmática. En primer lugar, se presentarán los conceptos de objeto sonoro, propuesto por Pierre Schaeffer, y de referencialidad extrínseca, a partir de Roman Jakobson y Jean-Jacques Nattiez. Posteriormente, el tema será abordado desde la perspectiva del concepto de durée propuesto por Henri Bergson. A continuación, proponemos que el uso de objetos sonoros dotados de un fuerte contenido referencial constituye un caso de alegoría, según la definición de Walter Benjamin. Finalmente, demostraremos que los objetos sonoros extrínsecamente referenciales hacen posible que la temporalidad y la espacialidad del mundo sean tratadas como materiales, en los términos de Theodor Adorno. De este modo, podremos proponer consecuencias estéticas derivadas del uso, en la música acusmática, de materiales tomados del mundo. Concluiremos, entonces, que estos objetos sonoros tienden a provocar una relación dialéctica entre la percepción del tiempo y del espacio en el mundo y la percepción de estos elementos dentro de una obra.

Palabras clave: acusmática; referencialidad; objeto sonoro; estética musical

Introdução

Analisaremos neste trabalho as consequências estéticas e sociológicas do potencial extrinsecamente referencial dos objetos sonoros, característica que fora excluída do conceito de objeto sonoro pelo teórico francês Pierre Schaeffer. Para tanto, primeiramente abordaremos o conceito de objeto sonoro segundo a definição de Schaeffer e os motivos pelos quais a referência de gravações sonoras a eventos, objetos e ações do mundo foram deixadas de lado. Em seguida, trataremos dos conceitos de durée e tempo como espaço na filosofia de Henri Bergson. Logo, a partir de Roman Jakobson e Jean-Jacques Nattiez, argumentaremos a favor da utilização do conceito de referencialidade extrínseca, visando restringir o conceito de referencialidade de acordo com a posição do objeto referenciado em relação ao seu referente. Definiremos, então, referencialidade extrínseca como a referência de um objeto sonoro ao mundo, em oposição à referência a aspectos intrínsecos à obra, como altura, duração, timbre e intensidade, ou à linguagem.

Tendo definido os conceitos principais a serem utilizados neste trabalho, voltaremos nosso olhar à música acusmática, termo que define uma música que é realizada em estúdio e difundida por alto-falantes em concerto. Recuperaremos alguns conceitos e proposições estéticas concernentes à espacialidade e temporalidade na música acusmática, buscando demonstrar que a inclusão da temporalidade do mundo em uma obra não insere, na durée musical, o espaço, de modo a obstar a vivência da durée, mas que, ao contrário, uma tal espacialidade, incorpora à vivência musical uma outra temporalidade, também de vivência, concorrendo para o reforço da durée.

Demonstraremos também que a clivagem espacial provocada pela presença de elementos extrínsecos gera, na música acusmática, uma dialética entre o espaço intrínseco e o espaço extrínseco. Aquele é, em si, divisível entre espaço interno – estruturado e definido por meio da composição musical – e espaço externo – o espaço da difusão sonora –, enquanto este, o espaço extrínseco, é definido pela percepção de um espaço exterior, distinto daquele da sala de concerto e também daquele proporcionado pelos posicionamentos e movimentações inscritos na obra.

Trataremos, posteriormente, das decorrências destas conclusões para aspectos sociológicos do material musical, a partir de Theodor Adorno. Centraremos esta discussão em aspectos da transformação do material pela composição, no caso específico que ocorre quando o material é o mundo. Visamos, assim, investigar os impactos estéticos e culturais, que se dão de maneira dialética, entre mundo e obra, no caso específico de obras acusmáticas que lancem mão do uso de materiais com alto grau de reconhecibilidade, retirados do mundo.

Objeto sonoro

O conceito de objeto sonoro, conforme definição de Pierre Schaeffer (1966), está intimamente ligado à sua noção de escuta reduzida – fortemente influenciada pela fenomenologia husserliana, cuja aplicação foi questionada e discutida por autores como Brian Kane (2012) e Makis Solomos (1999). O conceito de escuta reduzida define uma escuta que visa ignorar, colocando fora de qualquer consideração, aspectos culturais e referenciais do som, de modo a analisar o som por si mesmo, em oposição ao som como veículo de informação. O objeto resultante deste tipo de escuta analítica é o objeto sonoro.

Tal proposta de Schaeffer visava uma sistematização, do ponto de vista analítico e composicional, de qualquer som existente, que, com a popularização dos aparatos tecnológicos de gravação e reprodução sonora, puderam passar a ser utilizados na composição musical. Esta proposta de caráter sistemático se insere no contexto da disputa entre dois grupos pioneiros dissidentes: a chamada escola de Colônia, encabeçada por nomes como Karlheinz Stockhausen, Herbert Eimert e Werner Meyer-Eppler e o grupo encabeçado por Schaeffer (Menezes, 2009, p. 31). Aqueles, que eram partidários do serialismo integral, viam nos desenvolvimentos tecnológicos a possibilidade de serializar todos os aspectos do som com maior precisão, enquanto estes buscavam uma sistematização por outras vias. Assim, Schaeffer propõe novos parâmetros para a análise do som, como critérios de massa, concernente à ocupação da tessitura e fatura, que diz respeito à sustentação do som.

Para atingir tal sistematização de novos parâmetros sonoros, embasada em certo cientificismo, era necessário considerar o objeto como um ente cuja existência dependesse de um tipo de escuta que abdicasse de qualquer referência à proveniência do som, a já mencionada escuta reduzida, que “nos livrando do banal, ‘cassando o natural’, bem como o cultural” (Schaeffer, 1966, p. 271), daria origem ao objeto sonoro.

O conceito schaefferiano de objeto sonoro se provou bastante eficaz para a análise de música eletroacústica, com influências também na música instrumental, além de permitir ampliar a reflexão, do ponto de vista composicional, acerca dos sons possíveis de serem utilizados em uma obra, bem como os critérios a partir dos quais eles podem ser agenciados. Tal influência dificilmente seria possível sem a radical exclusão, ainda que apenas ideal, de considerações a respeito dos aspectos culturais e referenciais do objeto sonoro. No entanto, uma vez que as contribuições do conceito, em sua proposta original, já estão sedimentadas, é necessário que retornemos àqueles aspectos excluídos do conceito de objeto sonoro, que jamais foram de fato excluídos da escuta. Analisaremos, neste trabalho, a influência que a referencialidade extrínseca exerce na temporalidade e espacialidade da música acusmática. Destarte, faz-se necessário que apresentemos as considerações de Henri Bergson a respeito do tempo, que baseará esta discussão, e o conceito de referencialidade extrínseca, que denota a capacidade de determinado objeto sonoro de referenciar lugares, ações e coisas, para além de seus dados espectrais e morfológicos.

Tempo em Bergson

Henri Bergson distingue duas utilizações do conceito de tempo, quais sejam, a durée e o tempo-espaço. A primeira constitui o tempo da vivência, puramente heterogênea, impossível de ser mensurada:

a pura durée poderia não ser senão uma sucessão de mudanças qualitativas que se fundem, que se penetram, sem contornos precisos, sem qualquer tendência a se exteriorizar umas em relação às outras, sem qualquer parentesco com o número: seria a heterogeneidade pura. […] desde o instante no qual se atribui à durée a menor homogeneidade, introduz-se sorrateiramente o espaço. (Bergson, 1926, p. 79)

O tempo como espaço, que surge a partir da homogeneidade, é o tempo cronológico, que só é mensurável por ser constituído de partes iguais. A cronologia do tempo-espaço, para o autor francês, nada tem a ver com sucessão de mudanças qualitativas da vivência, já que a sensação do passar do tempo é estranha a esta divisão igualitária, bem definida, que ele identifica conceitualmente com o espaço.

O tempo da vivência musical se aproxima, normalmente, da durée, uma vez que ele se estrutura, não como uma subdivisão do tempo, idêntica em todas as suas partes, mas como um fluxo contínuo, um tempo vivo, no qual as sensações perduram sem fronteiras definidas. Tal afirmação encontra respaldo em teóricos das mais variadas correntes de pensamento. Para Seth Kim-Cohen, por exemplo, “a música [...] marca apenas seu próprio tempo estrutural […]. A forma na música é feita no tempo e de tempo.” (Kim-Cohen, 2009, p. 70). O compositor Milton Babbitt, ao tratar da possibilidade de serialização das durações, afirma que “a mera identificação de igualdade duracional parece colocar problemas consideráveis para o ouvinte” (Babbitt, 2003, p. 176). Theodor Adorno, por sua vez, afirma que “o fator temporal objetivo em todos os parâmetros [cuja união sob um único denominador era defendida por Stockhausen] e o tempo experimental vivo do fenômeno não são de modo algum idênticos” (Adorno, 2018, p. 429). Pierre Schaeffer oferece uma explicação para o conceito de anamorfose temporal, que define a diferença entre o tempo medido e sua percepção, ao afirmar que “a duração musical é função direta da densidade de informação” (Schaeffer, 1966, p. 248).

Assim, propomos que é apenas em casos particulares, nos quais a densidade de informação se mantém estática e que a periodicidade de repetições exatas se faz abundantemente presentes – como é o caso de grande parte da música minimalista –, que o tempo da vivência musical é sobreposto pelo espaço, nos termos de Bergson. Mesmo na música tonal tradicional a métrica é contrabalanceada pela variação, de modo que, geralmente, a persistência de um pulso é escamoteada pela variação rítmica, harmônica e de densidade. Portanto, não obstante a subdivisão do pulso musical em partes iguais, a articulação dos demais parâmetros e a própria natureza da percepção musical a afastam, na maior parte dos casos, do conceito de tempo como espaço. No caso específico da música acusmática, na qual a repetição exata é rara, além da ausência frequente de periodicidade rítmica, tal afastamento do tempo-espaço e, consequentemente, aproximação da durée é ainda mais notável.

Neste artigo trataremos acerca da incorporação de aspectos espaciais e temporais provenientes do mundo no seio do discurso musical. Tal fenômeno ocorre, na música eletroacústica, por meio da incorporação de objetos sonoros que apontam para elementos externos. Discutiremos brevemente, a seguir, acerca da pertinência do termo referencialidade extrínseca, que escolhemos utilizar.

Referencialidade extrínseca

Roman Jakobson (1973) afirma que os tipos de semiose, ou seja, de relação entre significante e significado, podem ser definidos a partir da interação entre dois pares de oposição: contiguidade/similaridade e efetivo/designado. Estes pares de oposição geram “uma contiguidade efetiva, uma contiguidade atribuída e uma similaridade efetiva” (Jakobson, 1973, p. 100), que correspondem, respectivamente, na semiótica pierceana, a índice, símbolo e ícone (Jakobson, 1973, p. 94). Nos três casos, o significado e o significante são coisas distintas. Trata-se, portanto, na terminologia do autor, de uma semiose extroversiva. No entanto, resta ainda uma possibilidade de combinação entre os dois pares de oposição: a similaridade designada, que Jakobson chama de semiose introversiva:

É precisamente essa combinação que se torna aparente na semiosis musical. A semiosis introversiva, a mensagem que se significa a si mesma, é indissoluvelmente ligada à função estética dos sistemas de signos e domina não somente a música, mas igualmente a poesia glossolálica, bem como a pintura e a escultura não figurativa (Jakobson, 1973, p. 100)

A questão da semiose introversiva é retomada por Jean-Jacques Nattiez, que afirma que o uso do termo semiose aplicado nesse contexto, “permite um escape de uma posição insustentável que toma […] o significado da linguagem humana como modelo para todos os tipos de significado, o significado musical em particular.” (Nattiez, 1990, p. 115).

Nattiez adota, a partir de Wilson Coker, a divisão da referencialidade intrínseca em “referencialidade intramusical e intermusical” (Nattiez, 1990, p. 116, grifos do autor), afirmando que Jakobson se manteve no âmbito da referencialidade intramusical, na qual determinado elemento ou momento de uma obra aponta para outros elementos ou momentos da mesma obra. A referencialidade intermusical é “aquilo através do qual nós associamos uma música particular com um universo musical maior, ao qual ela pertence.” (Nattiez, 1990, p. 117). Faz-se necessário pontuar que a chamada referencialidade intramusical é inerente à escritura musical, sendo, portanto, inconcebível sua ausência em uma obra, enquanto a referencialidade intermusical é um caso de intertextualidade, que também está sempre presente4.

A referencialidade extrínseca, por outro lado, está relacionada com interpretantes semânticos, através dos quais se atribui, no fazer ou na recepção da obra, diversos significados àquele evento musical. Dentre os exemplos apontados por Nattiez estão simbolismos relacionados a movimentos melódicos ascendentes ou descendentes e a questão do ethos de diferentes tonalidades. No nosso caso, como estamos tratando da possibilidade de uso de gravações de sons provenientes do mundo, ou de procedimentos de síntese a partir destes – seja processos de ressíntese, nos quais um som é analisado, decomposto, transformado e ressintetizado, seja processos de síntese a partir de modelos matemáticos derivados, por exemplo, do comportamento acústico de determinado corpo –, julgamos que convém distinguir entre, por um lado, a referencialidade que é invariavelmente um elemento constitutivo da escritura musical – referências e conexões dentro do âmbito da obra e referências intermusicais, como elementos da tradição musical – e, por outro, a referencialidade extrínseca, na qual o elemento referido está originalmente situado fora do discurso musical. Definimos, portanto, referencialidade extrínseca como a referência perceptível a elementos originalmente alheios à linguagem musical, ou seja, a gestos, ações, lugares e objetos provenientes do mundo.

Impactos da referencialidade extrínseca em aspectos temporais e espaciais

De um ponto de vista estético, a gravação e posterior utilização de elementos retirados do mundo, segundo nossa interpretação, consiste em um procedimento alegórico, conforme a definição de Walter Benjamin. A alegoria, contrastada pelo autor com o símbolo, diz respeito ao agenciamento de fragmentos do mundo, retirados da totalidade, de modo a fazê-los significar outra coisa. O símbolo, para Benjamin, aponta para a totalidade, para a significação inequívoca, enquanto seu “contraponto especulativo” (Benjamin, 2011, p. 171), a alegoria, tem um caráter dialético e ambíguo. Assim, o processo de gravação, edição e rearticulação de um elemento do mundo dentro de uma obra, consiste na retirada de um fragmento da totalidade que é utilizado com um fim estranho a sua origem. Os objetos sonoros resultantes de tais processos são amiúde utilizados não apenas por seu caráter simbólico, mas por elementos constitutivos que deles se depreendem. Um fragmento do mundo é, por estes meios, cristalizado em uma obra de arte, convertendo-se, assim, em ruína: “na alegoria o observador tem diante de si a facies hippocratica da história como paisagem primordial petrificada” (Benjamin, 2011, p. 176).

Através deste processo, a durée da gravação, bem como seu espaço e sua eventual semântica, se convertem em ruínas, nos termos do autor alemão. Tal processo, no entanto, não introduz o espaço, no sentido de Bergson, já que a vivência destes fragmentos dentro da obra gera um outro tipo de percepção heterogênea, que se funde à vivência do tempo musical, por meio de uma oposição qualitativa, que pode ser definida como uma sobreposição de outro tipo de vivência temporal, uma clivagem. O caráter heterogêneo tanto do espaço quanto da temporalidade que se inscrevem na obra através da gravação afastam, portanto, o conceito de espaço-tempo, que é marcado pela homogeneidade.

Tendo demonstrado que o tempo musical é, na maior parte dos casos, abarcável pelo conceito bergsoniano de durée e que o tempo da vivência no mundo é transferido à gravação sonora, ainda que de maneira alegórica, passaremos agora a investigar as relações, do ponto de vista da temporalidade e da espacialidade, que ocorrem na interação entre estas duas formas de durée.

Argumentamos que os objetos sonoros extrinsecamente referenciais provocam uma clivagem no tecido do tempo musical, eles enxertam neste o tempo do mundo – entendido como o tempo no qual gestos, ações e fenômenos acontecem – e também o tempo histórico, um “quando”. Ainda que esta marca temporal esteja presente também em objetos sonoros de outra natureza, são os extrinsecamente referenciais que fazem emergir um “quando” com maior clareza, uma vez que trazem, junto com o tempo histórico, um espaço, que igualmente cliva o tecido espacial da obra, se sobrepondo ao espaço intrínseco.

Tal constatação já foi realizada por Denise Garcia:

os signos sonoros com uma referencialidade extratextual trazem a evocação do espaço, mesmo estando fora de seu contexto: o som de uma porta que bate, o som de um carro, de um avião, de um pássaro, independentemente de terem sido gravados com a ressonância dos espaços onde estavam localizados, já nos remetem a esses espaços. (Garcia, 1998, p. 155).

E, posteriormente, por Denis Smalley:

Apesar de que eu intuitivamente perceba diferentes indícios de posição no espaço, particularmente a relação entre espaço próximo [proximate] e distante [distal]5, estes indícios não são os principais portadores de espaço [space-bearers]. É o comportamento das causas-fontes [source-causes] elas mesmas que transmite a principal informação espacial. […] As causas-fontes produzem espaço. (Smalley, 2007, p. 38)

Contrariamente à periodicidade aliada à estaticidade na densidade de informação – que não provoca uma clivagem, uma complexificação do tempo, mas, ao contrário, uma estaticidade que abole o tempo enquanto durée, uma vez que ele se torna homogêneo e divisível –, a referencialidade extrínseca se incorpora e complexifica a durée, já que a temporalidade da vivência do mundo, que é incorporada à obra, é, ela mesma, durée.

A clivagem temporal, que os objetos sonoros dotados de referencialidade extrínseca provocam na obra, não implica necessariamente que a incorporação desses aspectos espaciais extrínsecos atente contra a temporalidade musical, convertendo a obra em algo que não possa ser abarcado pelo conceito de música, mas, ao contrário, essa clivagem gera uma dialética entre o espaço intrínseco da obra e seu espaço extrínseco, que é anterior e se soma à dialética entre espaço interno e externo, segundo a diferenciação feita por Michel Chion (1988) que opõe o espaço composto, interno, ao espaço da difusão em concerto, externo. Tal reflexão acerca desta relação deriva do pensamento de Natasha Barrett (2002) e Flo Menezes (2006, p. 426-428), que discorda dela a respeito dessa oposição ser restrita à música eletroacústica. Menezes afirma que “mesmo no som instrumental, ambos os espaços estão constituídos” (Menezes, 2006, p. 427), o que possibilita a historicidade e “correlações com seu repertório histórico” (Menezes, 2006, p. 427) a partir da concepção que o compositor Luciano Berio tem acerca de uma história psicológica do instrumento.

O que temos chamado de clivagem no espaço e no tempo musical, apesar de não significar um abandono da durée, uma incorporação do espaço no tempo, que a destrói, constitui, no entanto, o tempo musical como espaço-tempo, no sentido que Garcia adota de Parret: “o texto musical se constitui estruturalmente como tempo-espaço […] esta terminologia não é metafórica, mas conceitual” (Parret apud Garcia, 1998, p. 116). Tal aparente contradição é explicada pela múltipla significação que o termo espaço adquire, conforme é utilizado por Bergson – espaço quantificável, mensurável, homogêneo – ou por autores que se filiam de certa forma à concepção de um espaço maleável, composto de formas particulares, povoado e dinâmico. Podemos notar que, em Bergson, o espaço, igualado ao número, destrói a durée – duração real da consciência, segundo o autor –, mas o espaço pode ser também entendido, seguindo uma tradição aristotélica6, como lugar, como posição relativa de um corpo, ou ainda como receptáculo de objetos naturais – o que se aproxima da concepção bergsoniana7 –, segundo uma tradição que vai do atomismo a Euler, ganhando maior protagonismo a partir de Newton8. Com Einstein, o espaço pode ser tido ainda, primeiramente, na teoria especial da relatividade, como contendo o tempo como sua quarta dimensão, e, posteriormente, com a relatividade geral, como campo. Segundo Munitz,

ao invés de um campo de trabalho fixo e rígido, surge agora a oportunidade para reconhecer variações na curvatura do espaço ou […] o uso de critérios de mensuração e cálculo não-euclidianos em diferentes partes do campo como um todo, de acordo com as variações na densidade de matéria ou energia. […]
Para além do campo, portanto, não há nada, e, ao contrário até da relatividade especial, nem mesmo “espaço vazio”. Nesse sentido, o campo na visão de Einstein substitui como concepção unitária tanto a matéria (ponderável ou imponderável) quanto o espaço. (Munitz, 1961, p. 99-100, grifo do autor).

O espaço-tempo como unidade possui ainda as características que, para Bergson, impedem a durée – nominalmente, sua relação com o número, ainda que o campo não esteja submetido à geometria euclidiana. O espaço como lugar, contudo – especialmente nos termos que é pensado por Heidegger9, que já inclui, ainda que não nos termos da física relativista, o tempo, não obsta a vivência pura, a durée bergsoniana. Segundo nossa concepção, é este espaço que se faz presente através dos objetos sonoros extrinsecamente referenciais.

Pudemos ver, portanto, que o aspecto temporal dos objetos sonoros extrinsecamente referenciais insere na durée musical o tempo do quotidiano e que apenas no caso muito específico de objetos notadamente periódicos essa clivagem pode introduzir o espaço no sentido de Bergson – o espaço marcado pela homogeneidade. O espaço extrinsecamente referencial, quando se insere na obra, é um espaço heterogêneo, que não obsta a durée, mas, ao contrário, a reforça. O espaço introduzido pelos objetos extrinsecamente referenciais – e mesmo o espaço extrinsecamente referencial gerado por objetos sonoros não necessariamente referenciais per se – é o espaço da vivência, das sensações, da história.

Centraremos agora nossa atenção na relação entre articulação espacial e referencialidade extrínseca, na música acusmática. Consideramos que esta relação tem especial relevância, dado que o som se manifesta necessariamente no espaço e que os dados espaciais sonoros são percebidos, conscientemente ou não, sempre que escutamos. Disso se desprende o fato de que relações perceptivas entre objetos sonoros articulados no espaço e o comportamento espacial de sons quotidianos são não apenas possíveis, mas inevitáveis. O espaço e o comportamento espacial são aspectos que mesmo a obra menos extrinsecamente referencial não pode jamais evitar, mesmo no caso de uma obra monofônica, dado que o espaço sonoro tem a ver não apenas com a direção (direita, esquerda, atrás, na frente, etc.), mas também com a distância, percebida através da conjunção de dados espectrais, de dinâmica e reverberação, e com as supostas dimensões e constituição material do espaço interno da obra – também ligadas aos aspectos espectrais e de reverberação.

Devemos afirmar a priori que, para sons em geral e sons acusmáticos em particular, o que chamamos de espacialidade constitui-se por aspectos de localização e movimento – deixando momentaneamente de lado que para autores como Denis Smalley tais categorias de espaço, localização e movimento podem ser aplicadas ao espectro, o que julgamos ser um uso metafórico de tais conceitos, afinal, relações entre espectro e espaço – como alto e baixo significando agudo e grave, respectivamente – são culturais, já que segundo Nattiez, “na música grega, árabe e judaica essas associações são invertidas” (Nattiez, 1990, p. 122).

A localização é definida pelos critérios de posição em relação ao ouvinte, – por termos como direita, esquerda, acima e atrás –, pelo critério de distância, real ou ilusória, que se relacionam diretamente com dados espectrais, como proporção de bandas graves e agudas, reverberação e dinâmica. Ainda participa do critério de localização a possibilidade ou impossibilidade de se definir um ponto do espaço do qual provém o som – um som muito grave ou um som que soa simultaneamente em diversos alto-falantes com intensidade semelhante constituiriam um espaço ambiofônico nos termos de Annette Vande Gorne: “um espaço no qual não se pode determinar de onde vêm os sons, o ouvinte se banha em uma ambiência difusa” (Vande Gorne, 2002, p. 2).

A movimentação, por outro lado, pode ser definida como a mudança de uma localização para outra. Tanto a localização da qual se parte, quanto a localização na qual se chega pode ser definida por um ponto específico ou inespecífico, ou seja, pode-se partir de um ponto definível no espaço para chegar a um espaço ambiofônico e vice-versa. A movimentação pode ser definida em termos de metaforma, de acordo com o entendimento de François Bayle. Segundo ele “toda vigilância […] se estabelece necessariamente a partir de critérios de emergência, tornados possíveis por uma hierarquia de referências arquetípicas que constituem o dicionário de ‘formas de formas’” (Bayle, 1993, p. 186-187), afinal, “para Bayle, acusmático quer dizer ‘muito impregnado’ […] de vivências, de sons familiares, de formas conhecidas ou semi-conhecidas, sobretudo […] Para Bayle, a música acusmática é saturada de índices” (Thomas in Bayle, 1993, p. 171). Desta maneira, podemos pensar a espacialidade de acordo com arquétipos de movimento, provenientes, não apenas do âmbito sonoro, mas também da percepção visual, da propriocepção e da movimentação de qualquer corpo no espaço10.

A relação com esses arquétipos pode se dar de dois modos, os quais Natasha Barrett classifica como ilusão espacial e alusão espacial. “Na ilusão espacial, o espaço percebido parece real, mas estamos ouvindo uma ilusão em um espaço estéreo ou multicanal produzido através das imagens fantasmas11 de dois ou mais alto-falantes.” (Barrett, 2002, p. 313). Para tanto, é necessário que se sigam alguns aspectos do que ela chama de leis espaciais: “(1) O efeito da transmissão do som […] (2) As propriedades do campo reverberante […] (3) Tamanho da imagem do objeto e relações entre múltiplos objetos […] (4) Efeito Doppler12 e definição gestual-espacial” (Barrett, 2002, p. 131). A autora afirma que nem todos esses aspectos precisam ser rigorosamente seguidos para que se tenha a ilusão espacial, uma vez que nossa percepção compensaria pequenas inconsistências em relação às leis acústicas.

A alusão espacial, por outro lado, ocorre quando “o espaço é implicado sem uma direta ilusão, ou sem uma conexão direta com as leis acústicas inter-relacionadas de objetos soando nos espaços” (Barrett, 2002, p. 315). Um caso de alusão espacial se dá com o uso de objetos dotados de forte referencialidade extrínseca: ainda que as leis espaciais não sejam seguidas, se alude aos espaços originais desses sons.

Julgamos que para além da divisão já mencionada, proposta por Michel Chion (1988), segundo a qual a espacialidade em música acusmática pode ser dividida entre espaço interno, que diz respeito à estruturação fixada no suporte (mídia digital, CD, fita magnética etc.), sendo resultado direto do processo composicional, e espaço externo, influenciado por aspectos arquitetônicos, pelo número de alto-falantes, pelo espaço interno e pelas estratégias de difusão adotadas, faz-se necessário que introduzamos uma segunda distinção concernente ao espaço interno. Propomos, portanto, a definição de um espaço intrínseco e um espaço extrínseco, que se articulam dentro do espaço interno. Existem aspectos, conforme pudemos ver, que se articulam no espaço interno através de parâmetros intrínsecos, enquanto outros, como a alusão espacial e os espaços ligados à fonte, se articulam a partir de ligações extrínsecas. Há uma permanente interação entre, por um lado, espaço intrínseco e extrínseco, dentro do espaço interno, e, por outro lado, entre espaço interno e externo.

Pudemos observar que, por um lado, os objetos sonoros extrinsecamente referenciais produzem uma clivagem na temporalidade musical, enxertando, de maneira alegórica, a temporalidade do mundo, o que acarreta em uma semelhante clivagem na espacialidade. Assim, por exemplo, em La condition captive (2003) da compositora francesa Christine Groult, os sons de cavalo e as vozes que aparecem na primeira metade da peça, inserem inequivocamente um certo espaço que não pode ser resumido aos aspectos posicionais e de movimentação, derivados imediatamente dos dados acústicos. Este espaço assim inserido dá início à uma relação dialética entre o espaço interno, às articulações dentro do espaço estereofônico da obra e o espaço extrínseco. Tal sorte de relação dialética pode ser frequentemente encontrada em obras que articulam, de maneira não predominantemente narrativa, sons retirados do mundo. No caso, no entanto, de paisagens sonoras, como em Presque rien nº 1 (1970) , de Luc Ferrari, o espaço extrínseco é preponderante ao ponto de não haver contraste ou tensão o suficiente entre este e o espaço interno, de modo que o que se percebe é uma paisagem ou uma gravação de campo. Ainda que tenha havido trabalho composicional, este se esconde sob o véu da verossimilhança.

Elementos extrínsecos como material

O conceito de material musical permeia boa parte da obra de Adorno, desde a Filosofia da Nova Música até a Teoria Estética. Compete-nos, portanto, fazer um apanhado geral do conceito. Em Filosofia da nova música, o autor parte da definição tradicional de material musical “como conceito essencial de todas as sonoridades de que dispõe o compositor” (ADORNO, 2011a, p. 35), conceito este que ele refuta com base em dois principais argumentos. Primeiramente, devido ao fato de que “o material de composição difere [de todas as sonoridades] do mesmo modo que a linguagem falada difere dos sons de que dispõe” (Adorno, 2011a, p. 35) e também porque, para o filósofo, o compositor não dispõe, de fato, de todas as sonoridades, já que o ouvido elimina, em caráter proibitivo, elementos musicais cuja função já não existe. Assim,

Mesmo o ouvido mais obtuso percebe a mesquinhez e planura do acorde de sétima diminuta ou de certas notas cromáticas da música de salão do século XIX. Para o ouvido tecnicamente experiente esse vago mal-estar se converte num preceito de proibição. Se tudo não é engano, o compositor já exclui hoje os meios da tonalidade, isto é, os de toda a música tradicional. E o faz, não tanto porque esses acordes tenham envelhecido e não correspondam à época, mas porque são falsos. Já não cumprem sua função. (Adorno, 2011a, p. 36-37)

Tal caráter de falsidade de certos materiais deriva da concepção adorniana segundo a qual o desenvolvimento do material musical está intimamente ligado ao desenvolvimento social histórico. O material musical é, destarte, “espírito sedimentado” (Adorno, 2011a, p. 36). Tal processo de sedimentação, no entanto, inclui um caráter de esquecimento, já que a carga histórica, quando desaparece do material de maneira evidente, se converte em uma qualidade. O filósofo alemão define, consequentemente, o material como “subjetividade primordial esquecida de sua própria natureza” (Adorno, 2011a, p. 36).

Tal esquecimento é um processo de reificação, é dizer, o processo histórico e social gerador de determinado material, ao mesmo tempo em que se solidifica enquanto tal, escamoteia sua origem histórica que se converte em uma característica do material: “no momento em que já não se pode reconhecer a expressão histórica de um acorde, este exige obrigatoriamente que tudo que o circunda leve em conta a carga histórica implicada e que se converteu numa qualidade sua.” (Adorno, 2011a, p. 36).

O processo de composição, portanto, pode ser entendido como um processo no qual o sujeito se confronta com tal sedimentação histórica. Para Adorno, assim, “as questões estéticas e sociológicas da música acham-se indissoluvelmente e constitutivamente mescladas entre si [...] pelo fato de que o estatuto estético e o conteúdo de verdade social dos próprios objetos artísticos têm a ver essencialmente um com o outro, por menos que ambos sejam imediatamente idênticos” (Adorno, 2011b, p. 366).

Jean Paul Olive (2009), ao concluir uma reflexão acerca da relação dialética entre história e natureza em Adorno afirma que:

De fato, a concepção de material musical, para Adorno, está intimamente ligada a essa reflexão sobre as relações entre natureza e história: tudo depende da maneira pela qual as obras incorporam essa dimensão do mito, seja pela repetição da força estática do mito em seu interior, seja pela incorporação da dimensão dinâmica graças à ação produzida no material. Em larga medida, o julgamento do musicólogo Adorno sobre os compositores dependerá justamente disso. (Olive, 2009, p. 91)

Olive (2009) aponta a influência do conceito de segunda natureza de Lukács, que, grosso modo, define a história cristalizada como natureza, e do conceito benjaminiano de alegoria, que, conforme já discutimos, define a expressão que é apenas possível pelo perecimento da significação. Um objeto alegórico é “incapaz de irradiar a partir de si próprio qualquer significado ou sentido” (Benjamin, 2011, p. 196), já que na alegoria a história se apresenta sob a forma de ruínas: “assim configurada, a história não se revela como processo de uma vida eterna, mas antes como o progredir de um inevitável declínio. [...] As alegorias são, no reino dos pensamentos, o que as ruínas são no reino das coisas” (Benjamin, 2011, p. 189).

O autor demonstra que estes dois conceitos permitem a Adorno a concepção dialética da relação entre natureza e história, que, como vimos, se relaciona com o conceito de material, já que nele, as relações históricas e sociais são introjetadas no material, em correlação com o esquecimento de sua gênese.

A utilização de gravações na composição musical, sob este aspecto, pode parecer ir contra a classificação deste tipo de objeto sonoro como material, no sentido adorniano, já que a origem histórica e social se encontram bastante evidentes, é dizer, os signos audíveis presentes no registro fonográfico documentam sua origem geográfica, social e histórica, tanto por traços provenientes da própria tecnologia empregada, tais como ruído de fita e qualidade do microfone, quanto por traços provenientes do ambiente, como sons de fundo e tipos de reverberação, além do próprio objeto gravado. No entanto, não se encontra aí seu caráter relevante para a estruturação musical, segundo o que temos discutido neste trabalho, mas no fato de que esta gravação, ou qualquer outra, impacta nos caráteres temporal e espacial da obra. O material musical que é empregado com o uso deste tipo de sonoridade é, assim, não o objeto, a ação e o espaço específico que foi gravado, mas a temporalidade e espacialidade do mundo, que deve ser incorporada à trama da composição.

Os meios técnicos empregados tanto no fazer artístico, quanto na produção de produtos da indústria cultural são idênticos em um primeiro momento, já que tanto o ato de gravação que visa a utilização do material em um futuro processo de elaboração, de escritura, quanto aquele que pretende transformar uma performance em commodity, consistem em uma reificação de um processo temporal. Argumento que o primeiro não difere muito, de um ponto de vista qualitativo, da reificação do som em uma partitura, que constitui um ponto fundamental, tanto para a noção de material, quanto para a própria existência da música, dentro da cultura ocidental hegemônica a partir da Idade Média. O que há de diferente entre a escrita e a gravação é o objeto da reificação, enquanto na escrita, como bem apontou Paddison (2004), há a reificação da temporalidade como espacialidade, na gravação, há a reificação do tempo e do espaço em um suporte, que já não existe fora do tempo, como a partitura, mas no qual o tempo e o espaço se cristalizaram, como ruína. A composição com este tipo de material, reflete ou equivale, então, à elaboração acerca do tempo e do espaço. Trata-se de uma segunda vivência, de um tempo que não pudera ser vivido. É, paradoxalmente, uma vivência da impossibilidade da vivência. O espaço que surge, como espaço percebido, é constituído de uma rede de evidências fictas de um espaço real, sendo, ainda assim um espaço no qual está presente o sujeito reificado da escritura, o sujeito da composição. Neste processo alegórico, portanto, o tempo e o espaço são os materiais composicionais e estes são impactados pela composição, já que, para Adorno, “se o material não é estático, se fazer justiça ao material significa bem mais do que explorar com destreza todas as suas possibilidades, então isso significa que o material, por sua vez, será modificado pela própria composição” (Adorno, 2018, p. 391).

Assim, em uma obra como Gesang der Jünglige (1955-56) de Karlheiz Stockhausen, pioneira por, em plena disputa entre os serialistas da escola de Colônia – da qual o compositor fazia parte – e os discípulos de Schaeffer, lançar mão de sons gravados em uma obra serial, a proveniência dos sons faz parte da estrutura musical da obra, já que abre um campo de oposição entre o orgânico e o inorgânico, entre a precisão dos equipamentos tecnológicos e a imprecisão relativa da voz humana. O mesmo se dá em Visage (1961) de Luciano Berio, na qual a voz de Cathy Berberian realiza uma espécie de história da vocalidade, de modo que a voz de uma pessoa se converte na voz da história da linguagem. Tais relações, ditas extra-musicais, complexificam a temporalidade musical, abrindo novos espaços críticos e de significado, alterando a percepção destes elementos, inclusive fora da obra.

No último parágrafo de Vers une musique informelle, Adorno, ao descrever seu ideal de música informal, retoma a objeção à música dodecafônica da Segunda Escola de Viena, segundo a qual, não obstante os avanços no campo das possibilidades de organização das alturas, as estruturas rítmicas e métricas ainda eram indiferenciáveis da música tonal. O autor argumenta, então, que “É indispensável, para o ideal de uma música informal, que tal constatação seja assimilada à experiência composicional” (Adorno, 2018, p. 441), concluindo que “a música informal aumentaria a flexibilidade da rítmica a um grau ainda não imaginado. Nessa e em outras dimensões, seria uma imagem da liberdade.” (Adorno, 2018, p. 441). Em boa parte da música acusmática, ao invés de um pensamento rítmico, há o que Flo Menezes (2018, p. 64) chama de pensamento temporal durativo. Ou seja, não mais se parte da relação mecanizada da subdivisão do tempo em pulsos de igual duração, mas antes, da escolha composicional da permanência do objeto, em uma relação subjetiva com o material. Tal liberdade no campo das durações passa, por além de complexificações técnicas no âmbito do serialismo integral, pela percepção de que poucas coisas no mundo são precisamente periódicas. Os meios técnicos de gravação e a composição com estes sons podem ter contribuído neste sentido.

Em Crystal Counterpoint, de Åke Parmerud, há uma estruturação temporal que parte de uma paisagem sonora de festa e, como se houvesse um zoom no som das taças, a percepção se volta para este timbre, que é articulado durante todo o restante da peça. Há aí um processo de suspensão temporal e de uma escuta vertiginosa sobre o micro-universo dos sons das taças de cristal. O objeto sonoro, assim, é retirado de uma situação social, reificado como material, de modo a ser possível empregá-lo em uma estrutura musical. Com isso, a temporalidade e a espacialidade originárias se dissolvem, sem jamais se obliterarem completamente. O que se articula, para além das alturas, intensidades, durações, morfologias e timbres, é a própria temporalidade do mundo, que se converte em objeto da composição musical sendo, portanto, de algum modo alterado pela própria composição.

Para Adorno, a composição musical e a arte em geral, permitem o escape de uma posição determinista, demonstram que outras possibilidades existem, ainda que o sujeito seja condicionado social e culturalmente, ainda que este sujeito seja tão reificado quanto seu material. O uso do espaço e do tempo da durée do mundo, assim, abre a possibilidade de que existem outras maneiras de vivenciar o tempo e de ocupar o espaço. Segundo Paddison, comentando uma citação de Adorno segundo a qual do mesmo modo que uma obra musical comprime o tempo, a possibilidade de que as coisas sejam diferentes se torna concreta:

A experiência do tempo musical é vista com um modelo para a reconciliação do eu com o mundo, uma experiência que, em um mundo real caracterizado pela alienação, não é possível fora do continuum temporal da música [...] uma concepção dialética da experiência estética também significa a capacidade de formar um julgamento, como reflexão crítica da disjunção entre tempo musical e tempo empírico, a tensão entre a experiência estética da obra e a experiência do mundo (Paddison, 2004, p. 177)

Considerações finais

Partimos, ao longo deste artigo, de considerações a respeito do conceito de objeto sonoro, conforme proposto por Schaeffer, apontamos os motivos pelos quais os elementos extrínsecos foram retirados do conceito, e os motivos pelos quais julgamos que estes deveriam ser incorporados ao objeto sonoro. Em seguida, tratamos de algumas consequências destes dados extrínsecos para a espacialidade e temporalidade na música acusmática, partindo da definição bergsoniana de durée, e definimos o procedimento de trabalho com sons com forte carga referencial como um caso do conceito benjaminiano de alegoria. Propusemos, por fim, que estes sons permitem a articulação do tempo e do espaço como material composicional, segundo a concepção de Adorno. Visamos, com isto, apontar algumas consequências e possibilidades estéticas do uso de materiais retirados do mundo na música acusmática.

Pudemos discutir, portanto, algumas implicações estéticas da incorporação de elementos tipicamente considerados como extra-musicais dentro de uma obra musical, especificamente dentro do campo da música acusmática, no qual o trabalho com este tipo de material é parte do métier. Concluímos, portanto, que, para além das possibilidades semânticas, como o uso político deste tipo de material em obras como Red Bird: A Political Prisioner’s Dream (1978), de Trevor Wishart, ou Hymnus - Il cielo andrà verso il fondo (2020), de Flo Menezes, mesmo em obras como Sk(etch) de Leah Reid, na qual não há qualquer conotação explícita neste sentido, o tempo do mundo ainda é articulado de modo que, mesmo sendo retirado do mundo, ainda comunica algo a respeito dele. O tempo e o espaço, reificados enquanto material, permitem o confronto do sujeito composicional com estes aspectos do mundo. Por outro lado, a utilização destes materiais e sua articulação composicional alteram os objetos no mundo, que passam a poder ser lidos de novas maneiras.

Propomos, portanto que as modificações que o material sofre na composição, entendendo, neste caso, material como o tempo e o espaço do mundo, enquanto alegoria, concorrem para a refutação dialética de uma concepção utilitária e reificada de ambos, que é onipresente nos nossos tempos. O tempo e o espaço, reificados por meio da gravação sonora, quando articulados composicionalmente, apontam dialeticamente para a reificação do tempo e do espaço como um todo.

Referências

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Notas de rodapé

  1. O presente artigo apresenta e desenvolve temas pesquisados durante a pesquisa de mestrado do autor, que foi financiada pela FAPESP (processo nº 2022/02741-7).
  2. Mestre e Bacharel em Música pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3471-8358.
  3. Lembremo-nos da colocação de Roland Barthes, segundo a qual nenhum texto surge ex nihilo, “todo texto é um intertexto” (Barthes, 1968, p. 1013).
  4. Tais conceitos referem-se, respectivamente, ao som mais próximo e ao mais distante do ouvinte.
  5. No livro IV da Física, Aristóteles afirma “Se, então, o lugar […] não é nem a forma, nem a matéria, nem alguma extensão que está sempre presente e diferente da extensão do objeto que que muda de posição, deve ser que o lugar é […] o limite do corpo que contém, que está em contato com o corpo contido (por ‘corpo contido’ quero dizer aquele corpo que é mutável através da locomoção)” (Aristóteles, 1993, p. 28).
  6. Em Bergson, o espaço “é o que nos permite distinguir diversas sensações idênticas e simultâneas: é portanto um princípio de diferenciação diferente da diferenciação qualitativa, e, por conseguinte, uma realidade sem qualidade” (Bergson, 1926, p. 72) . Ele afirma ainda que “a concepção de um meio vazio homogêneo é algo extraordinário, e parece exigir uma espécie de reação contra essa heterogeneidade que constitui o fundo mesmo de nossa experiência” (Bergson, 1926, p. 74). O espaço é, portanto, um construto da inteligência humana que só pode existir em oposição à consciência genuína, marcada pela heterogeneidade da durée.
  7. O filósofo Milton Munitz define esses dois conceitos de espaço da seguinte forma: “a origem do conceito de espaço se localiza nas necessidades gêmeas de prover alguma base para especificar a posição onde objetos materiais estão localizados e um meio pelo qual pode-se dizer que eles se movem. Cada demanda deu origem a sua concepção de espaço tipicamente orientada, a qual, conforme se torna mais elaborada, busca abarcar a outra em seu próprio quadro de ideias” (Munitz, 1961, p. 94, grifos do autor)
  8. Em Heidegger, a questão da proximidade e distância tem mais a ver com a presença fenomenológica do que com o intervalo, entendido como distância mensurável: “de início, ao ouvirmos e vermos, desconsideramos o que, do ponto de vista dos intervalos, se acha “mais próximo”. Ver e ouvir são sentidos da distância, não devido ao seu alcance, mas porque, distanciando-se a presença neles se mantém de forma predominante. Para quem usa óculos, por exemplo, que do ponto de vista do intervalo, estão tão próximos que os “trazemos no nariz”, esse instrumento de uso, do ponto de vista do mundo circundante, acha-se mais distante do que o quadro pendurado na parede em frente” (Heidegger, 2005, p. 155)
  9. É neste sentido que podemos falar, por exemplo, de um som que se expande ou se contrai no espaço.
  10. Imagens ou fontes fantasmas dizem respeito à percepção de que determinado som provém de um ponto no qual não há alto-falantes: um som de mesma intensidade soando em dois alto-falantes simultaneamente soará como se estivesse vindo de um ponto médio entre eles. As fontes fantasma podem variar de acordo com a proporção de volume, relações de fase entre as ondas sonoras e pequenos atrasos temporais entre o som de um alto-falante e de outro.
  11. Trata-se de um fenômeno físico que faz com que uma fonte sonora móvel soe mais aguda enquanto se aproxima e mais grave ao se afastar. Isto se deve à influência da velocidade de movimentação no comprimento de onda e, portanto, na frequência que chega ao ouvinte. Tal fenômeno pode ser percebido, por exemplo, no som de carros de corrida passando em frente ao público.