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Processos de gravação no contexto da improvisação musical livre: Rupturas espaciais e temporais nas performances musicais enquanto fatores que contrariam as propostas estéticas do campo
Autor: Guilherme Furtado Bartz 1

Resumo

Este artigo trata do problema estético-sonoro das improvisações livres que são gravadas e sobrepostas. Tal situação se apresenta como dilema ético-musical porque, tradicionalmente, as improvisações livres coletivas são feitas com os músicos compartilhando um mesmo tempo e espaço – por exemplo, quando livres improvisadores se reúnem para tocar ao vivo. Nesses casos ocorrem processos de interação e comunicação sonoros instantâneos entre os participantes, pois são elaborados improvisos livres em tempo real. Todavia, quando os improvisos são registrados por meio de gravações, que posteriormente são sobrepostas, não mais ocorre a habitual coparticipação dos músicos numa mesma instantaneidade/espacialidade. Constata-se, assim, o problema estético-sonoro da ruptura temporal e espacial entre os atos criativos dos músicos, que já não se apresentam como simultâneos. Diante disso, cabe perguntar: improvisos livres gravados e superpostos contêm, ainda, certas propriedades essenciais do campo da improvisação livre ou, pelo contrário, desvirtuam-no de maneira irreparável? Criações musicais elaboradas a partir de gravações sobrepostas podem ser de fato chamadas de “improvisos livres”? As reflexões aqui apresentadas partem de etnografia realizada entre 2020 e 2022 com os integrantes do

Laboratório de Improvisação Musical Livre da UFRGS durante a pandemia de coronavírus, situação que obrigou esses músicos a interagirem musicalmente por meios virtuais.

Palavras‑chave: Improvisação livre gravação estética musical Laboratório de Improvisação Musical Livre da UFRGS pandemia de coronavírus.

Abstract

This article addresses the aesthetic-sound problem of free improvisations that are recorded and overlapped. This situation presents itself as an ethical-musical dilemma because, traditionally, collective free improvisations are performed with musicians sharing the same time and space–for example, when free improvisers get together to play live. In these cases, instantaneous sound interaction and communication processes occur between the participants, as free improvisations are developed in real time. However, when improvisations are recorded and then overlapped, the usual co-participation of the musicians in the same instantaneity/spatiality no longer occurs. Thus, the aesthetic-sound problem of the temporal and spatial rupture between the creative acts of the musicians, which are no longer presented as simultaneous, is evident. In view of this, it is worth asking: do recorded and overlapped free improvisations still contain certain essential properties of the field of free improvisation or, on the contrary, do they distort it irreparably? Can musical creations made from overlapping recordings really be called “free improvisations”? The reflections presented here are based on an ethnography conducted between 2020 and 2022 with members of the Laboratório de Improvisação Musical Livre da UFRGS during the coronavirus pandemic, a situation that forced these musicians to interact musically through virtual means.

Keywords: Free improvisation; recording; musical aesthetics; Laboratório de Improvisação Musical Livre da UFRGS; coronavirus pandemic.

Keywords: Free improvisation recording musical aesthetics Laboratório de Improvisação Musical Livre da UFRGS coronavirus pandemic.

Resumen

Este artículo aborda el problema estético-sonoro de las improvisaciones libres que son grabadas y superpuestas. Tal situación se presenta como un dilema ético-musical porque, tradicionalmente, las improvisaciones libres colectivas se realizan con los músicos compartiendo un mismo tiempo y espacio —por ejemplo, cuando improvisadores libres se reúnen para tocar en vivo—. En esos casos se producen procesos sonoros de interacción y comunicación instantáneos entre los participantes, ya que se elaboran improvisaciones libres en tiempo real. Sin embargo, cuando las improvisaciones son registradas mediante grabaciones que posteriormente se superponen, ya no ocurre la habitual coparticipación de los músicos en una misma instantaneidad/espacialidad. Así, se constata el problema estético-sonoro de la ruptura temporal y espacial entre los actos creativos de los músicos, que dejan de ser simultáneos. Ante ello, cabe preguntarse: ¿las improvisaciones libres grabadas y superpuestas conservan todavía ciertas propiedades esenciales del campo de la improvisación libre o, por el contrario, lo desvirtúan de manera irreparable? ¿Las creaciones musicales elaboradas a partir de grabaciones superpuestas pueden realmente denominarse “improvisaciones libres”? Las reflexiones aquí presentadas parten de una etnografía realizada entre 2020 y 2022 con los integrantes del Laboratorio de Improvisación Musical Libre de la UFRGS durante la pandemia de coronavirus, situación que obligó a estos músicos a interactuar musicalmente por medios virtuales.

Palabras clave: Improvisación libre grabación estética musical Laboratorio Libre de Improvisación Musical UFRGS pandemia de coronavirus

Texto

Palabras clave: Improvisación libre; grabación; estética musical; Laboratorio Libre de Improvisación Musical UFRGS; pandemia de coronavirus

1. Os redirecionamentos de um projeto de pesquisa de doutorado causados pela pandemia e as novas questões investigativas que surgiram nesse processo

As reflexões desenvolvidas neste artigo partem de alguns aspectos investigados em minha tese de doutorado (Bartz, 2022) e de um trabalho apresentado no XI Encontro Nacional da Associação Brasileira de Etnomusicologia (Bartz, 2023). Durante meu doutorado (2018-2022), analisei comparativamente dois campos bastante distintos de prática musical – música erudita e improvisação livre –, buscando compreender como os músicos que atuam nessas duas áreas almejam atingir o que denominei como busca pela excelência na performance musical. Minha pesquisa envolveu a realização de etnografia e pesquisa bibliográfica, além de entrevistas com músicos. No que concerne ao campo da improvisação livre, objeto que constitui o foco deste artigo, efetuei uma extensa observação participante de caráter mais imersivo, colocando-me na condição de livre improvisador ao lado das pessoas que pesquisei.

Quando iniciei o doutorado, minha intenção era investigar situações de performances musicais ao vivo, nas quais os músicos interagiam em tempo real, compartilhando um mesmo espaço físico. Tais configurações são vislumbradas em ensaios, saraus, recitais, concertos e apresentações musicais em geral, ocorrendo tanto no âmbito da música erudita quanto na improvisação livre. Todavia, no começo de 2020, justamente quando eu tencionava começar meu trabalho de campo, irrompeu no Brasil a pandemia de Covid-19 – que, entre os reveses gerados, ocasionou o cancelamento de todas as atividades culturais e educacionais pelo país, medida tomada pelo poder público para impedir a aglomeração de pessoas e a consequente propagação do vírus.

Em função disso, como minha intenção era etnografar as atividades desenvolvidas no Laboratório de Improvisação Musical Livre da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e dado que, em março de 2020, as aulas da universidade foram suspensas, subitamente me vi impossibilitado de iniciar minha pesquisa de maneira presencial. Por cinco meses – março a agosto de 2020 – a universidade se manteve praticamente fechada, e somente em agosto houve a retomada do primeiro semestre letivo daquele ano, em formato virtual. Foi nessa época que pude iniciar minha etnografia (online) junto ao Laboratório, sendo que apenas no princípio de 2022 as aulas começaram a ser retomadas presencialmente2.

Contextualizo todo esse cenário adverso para destacar que meu planejamento inicial – etnografar improvisos livres performados ao vivo e num mesmo espaço físico – teve que ser radicalmente revisto, dado que as aulas do Laboratório precisaram ocorrer, durante quase um ano e meio, em formato virtual. Uma vez que esse coletivo – que se constitui enquanto disciplina eletiva da Graduação em Música da UFRGS – sempre apresentou um caráter eminentemente prático, sendo um espaço para que os alunos tocassem em conjunto, surgiu, diante de todos os envolvidos, a dúvida: qual alternativa haveria para contornar o problema de que, naquele momento de emergência sanitária, estava proibida a presença dos estudantes em sala de aula?

O professor do Laboratório, Adolfo Silva de Almeida Junior, vislumbrou a melhor solução: cada aluno gravaria suas improvisações livres em casa e as colocaria à disposição, na internet, para que os demais colegas improvisassem sobre elas, havendo um mínimo de improvisos – e combinações de improvisos – que cada aluno deveria realizar. O procedimento funcionou muito bem, pois, ao longo dos semestres que acompanhei a disciplina em seu formato virtual, foram disponibilizados cerca de trezentos improvisos – que poderiam ser gravações solo ou performances sobrepostas a outras gravações (que geravam duetos, trios, quartetos, quintetos etc.).

Tal situação, contudo, despertou-me certos questionamentos. Fundamentalmente, o problema central era: uma vez que a improvisação livre tradicionalmente se caracteriza por ser performada num mesmo tempo e espaço físico que são compartilhados pelos músicos – fator responsável por gerar uma interação e comunicação musicais instantâneas entre os performers –, os improvisos efetivados por meio de gravações (nos quais não ocorre, portanto, o compartilhamento de uma instantaneidade e espacialidade no fazer musical) poderiam ser, ainda assim, chamados de “livres”? Em outras palavras, improvisações livres gravadas e sobrepostas umas às outras deixariam de conter propriedades essenciais desse campo de performance musical, desvirtuando-o de maneira irreparável?

Explicitadas as circunstâncias que me levaram ao problema central analisado neste artigo, apresento a seguir um panorama sobre o campo da improvisação livre.

2. Improvisação livre

2.1. Origem, denominação e diversidade de práticas

Antes de tentar responder às perguntas formuladas acima, é importante descrever sucintamente o campo de performance musical genericamente conhecido como improvisação livre. Esta é uma prática nascida na Europa, na década de 1960, a partir da convergência de duas vertentes básicas, o free jazz e a música de vanguarda de tradição europeia; ou, como prefere Aragon (2019:19), de uma variedade de práticas oriundas de misturas diversas entre lógicas e rupturas verificadas no jazz e na música erudita3. Borgo (2022:5) ressalta ainda, mais contemporaneamente, a influência de outras músicas (eletrônica, popular, tradições não ocidentais etc.) nesse campo.

Por mais que algumas definições gerais tenham sido propostas, o modo como a improvisação livre é efetivada mundo afora tende a ser bastante heterogêneo, o que se evidencia a partir dos vários termos empregados para nomear tal prática musical, que são alvo de controvérsias. A designação “improvisação livre” não é unanimidade, pois, como destaca Aragon (2019:19), há quem chame esse campo musical de “improvisação não idiomática”, “improvisação total”, “improvised experimental music” ou “IEM”, “free improvised music” ou “FIM”, “música livre”, “improv”, “improvisação aberta” ou simplesmente “improvisação”. Borgo (2022:ix), por sua vez, prefere “open-form musical improvisation”.

Para que se tenha uma ideia das distintas abordagens encontradas nesse universo de performance musical, é importante mencionar o esboço de Costa (2017:8-11), que divide essa prática em alguns subgrupos: (a) solistas ou grupos de improvisação livre instrumental, quando emprega instrumentos convencionais; (b) solistas ou grupos de improvisação livre mistos, quando utiliza, além de instrumentos convencionais, outros recursos, tais como instrumentos eletrônicos, analógicos, digitais, informais, inventados, processamentos eletrônicos ao vivo etc.; (c) people who do noise4, vertente que afirma a indissolubilidade entre os sons criados e o performer que os produz, englobando formações variadas – acústica, instrumental, eletroacústica, circuit bending5 (hi e low tech), instrumentos inventados, objetos sonorizados, sintetizadores etc.; (d) música mista interativa, comprovisação e trabalhos de criação coletiva, que envolvem grupos de criação coletiva e colaborativa nos quais não se distinguem os papeis de “compositor” e “intérprete”, já que os participantes são, simultaneamente, performers e criadores, sendo que as performances podem ser, também, multimidiáticas, quando incorporam artes visuais, vídeos, movimento, dança etc.; (e) soundpainting e conducting, nos quais um regente atua como uma espécie de compositor em tempo real da música, guiando os improvisos dos músicos através de gestos convencionalmente instituídos – ou não – entre os participantes.

É importante frisar que as cinco categorias acima não esgotam todas as possibilidades encontradas no universo da improvisação livre, já que existem outras manifestações artísticas que também se valem de processos que podem remeter, direta ou indiretamente, aos procedimentos comumente encontrados nesse campo. Além disso, tais categorias não são fechadas em si mesmas – algumas se interpenetram, sendo comum encontrar artistas e grupos que atuam em mais de uma modalidade.

2.2. Direcionamentos estético-musicais

De maneira sucinta, pode-se caracterizar a improvisação livre como uma improvisação que busca o não idiomatismo – trata-se de uma criação musical espontânea que procura escapar dos idiomas (Bailey, 1993), referentes (Pressing, 1998:52) ou modelos (Nettl, 2004:80-81) musicais6. No entanto, essa definição é, em última instância, utópica ou ilusória, visto que nenhuma criação musical possui plena imunidade ao poder de referencialidade contido em todo e qualquer som. É justamente essa capacidade inerente de vinculação sonora que faz com que os improvisos livres sempre possam remeter, em algum nível, a organizações ou complexos sonoros reconhecíveis ou já mapeados. Apesar disso, não é de todo incorreto caracterizar tal prática musical como não idiomática, relativizando tal termo, pois uma de suas principais metas é propiciar aos músicos o maior grau de liberdade criativa possível, na medida em que os convida a prescindir, ao máximo, das “camisas-de-força” representadas pelos idiomas, referentes e modelos musicais.

Para que os performers consigam usufruir de toda a potencialidade oferecida pelo campo da improvisação livre, o ideal é que eles sejam capazes de se desapegar da “tábua de salvação” representada pelos mais variados idiomas, referentes e modelos, entendendo que tais recursos não devem guiar completamente suas criações musicais – caso contrário, seus improvisos já não merecem ser chamados de “livres”. Não é que a mera sugestão de idiomas, referentes e modelos deva ser totalmente abolida (como se ressaltou, essa suposição é, em última instância, utópica e ilusória), mas seu emprego precisa ser bem calculado. Isso faz com que os improvisos livres desenvolvam um complexo jogo entre ordem e caos (Borgo, 2022:127-128), no qual o previsível se contrapõe ao imprevisível.

Nesse sentido, verifica-se uma busca constante pelo novo, onde cada improviso se apresenta enquanto evento sonoro único e irreprisável. Improvisam-se músicas nunca antes ouvidas e que jamais poderão ser repetidas, numa performance ao vivo, do mesmo modo. A ênfase, aqui, está na impermanência da criação. Assim, aspectos e conceitos perduráveis como notação, partitura e obra têm pouquíssima empregabilidade ou serventia, já que a meta é a novidade, originalidade e imediatismo na elaboração artística.

Desse modo, nas performances de improvisação livre realizadas ao vivo, o antes e o depois adquirem, em termos temporais, uma relevância menor do que o agora. Tal campo valoriza o presente, enaltecendo o processo de construção musical em sua instantaneidade máxima. O material sonoro é construído e elaborado em tempo real, a partir das intervenções dos músicos, adquirindo sentido não antes, mas durante o fluxo interativo das performances – que delineiam seus caminhos em pleno devir.

2.3. Liberdade relativa

Apesar da aparente infinita gama de possibilidades oferecida por essa abordagem de improvisação musical, o adjetivo “livre”, que a caracteriza, também precisa ser colocado em xeque. Isso porque o termo “livre” pode passar a impressão de que essa proposta se constitui como uma oposição a todas as outras vertentes de improvisação existentes no planeta, que poderiam ser qualificadas, em maior ou menor medida, como mais condicionadas, confinadas, consolidadas, estabilizadas ou fixadas.

Em termos absolutos, como já destacado, essa característica libertária total não é praticável, uma vez que nenhuma improvisação pode ser exercida de forma completamente “livre”, sem qualquer tipo de amarra. Porém, se a expressão “livre” for tomada de forma relativa, o termo combina muito bem com a proposta do campo, dado que tal abordagem musical se consolida como portadora do maior grau de liberdade de atuação performática possível ao tentar prescindir de qualquer idioma, referente ou modelo. Mesmo assim, é preciso insistir: por que nenhum improviso pode ser qualificado, de fato, como plenamente “livre”?

Existem vários argumentos em favor dessa suposição, mas me deterei em apenas dois. O primeiro diz respeito às especificidades técnico-corporais dos improvisadores: cada músico é portador de uma técnica corporal particular que, ao mesmo tempo que lhe faculta a execução musical, traz-lhe, também, limites sobre o que é ou não possível de ser feito, fisicamente. O segundo argumento se refere à biografia dos improvisadores: cada performer apresenta uma identidade musical própria, oriunda de sua formação, influências, experiências de vida etc. – aspectos que, querendo ou não, sempre transparecem no resultado sonoro criado. Assim, um improviso nunca pode ser chamado de “livre” – num sentido amplo do termo – porque é impossível, ao improvisador, escapar dos limites impostos por sua própria técnica e biografia. Mesmo que isso fosse possível, Borgo (2022:26) destaca que, por mais “livre” que um improviso aparente ser, ele dificilmente deixará de fundamentar-se ou remeter a estratégias básicas de elaboração musical, como estabilidade, interrupção, repetição, contraste etc. – fatores igualmente restritivos.

No entanto, tais impedimentos não devem ser encarados com desânimo. Se bem consideradas, essas e outras particularidades limitantes podem ser aproveitadas, inclusive, como estímulos para criações musicais que, ao menos, almejam ser mais “livres”. Isso porque são justamente as idiossincrasias dos músicos que inauguram infinitos mundos de possibilidades criativas, especialmente no caso das performances coletivas de música improvisada livremente, nas quais artistas com identidades singulares se reúnem com o intuito de elaborar criações sonoras imprevisíveis.

Tudo depende de como o livre improvisador encara e explora sua técnica e sua biografia musicais. Ao improvisar livremente, o performer deve mobilizar sua técnica instrumental ou vocal de modo que ela não se prenda aos artifícios usualmente encontrados nos idiomas musicais amplamente conhecidos: ele precisa escapar dos condicionamentos mais óbvios, caso contrário seu improviso pode ficar confinado em algum idioma, referente ou modelo já mapeado. Da mesma forma, sua biografia musical (formação, influências, experiências etc.) não pode emergir como um fator excessivamente limitante para a criação da música, ao ponto de incapacitá-lo para alçar novos voos rumo ao desconhecido e inexplorado.

Todavia, sabendo que um dos objetivos principais da improvisação livre (libertar-se dos idiomas, referentes e modelos musicais) constitui-se, no limite, como algo irrealizável, talvez o mais adequado seja afirmar que ela é obrigada, em algum nível, a sempre conviver com esses fatores restritivos, mas não ao ponto de adotar cegamente suas prerrogativas. Abordagens menos radicais – e mais praticáveis – da improvisação livre admitem, portanto, que as influências de idiomas, referentes e modelos externos estão autorizadas a se manifestar durante os processos criativos, sendo percebidas como material a ser trabalhado de maneira inventiva pelos músicos.

Aqui, cai-se num paradoxo: em certo sentido, proibir a ocorrência desses fatores limitantes não seria o mesmo que cercear a liberdade de uma improvisação que se diz “livre”? Em outras palavras, a improvisação apenas seria “livre” se não pudesse penetrar nas fronteiras de qualquer idioma, apenas se não se baseasse, por pouco que fosse, num modelo, apenas se não se valesse de algum referente? Mas isso não seria o equivalente a refreá-la em toda a sua potencialidade, tornando-a, portanto, menos “livre”? Tais contradições são de difícil resolução7.

Conforme Costa (2016:14, 72), a improvisação livre pode se efetivar tanto a partir da negação de territórios idiomáticos quanto por meio de processos de “sobreposição”, “colagem”, “raspagem” ou “transbordamento” de idiomas. Nesse sentido, alguns defendem que um improvisador que deseja atingir um maior nível de liberdade improvisatória precisa buscar conhecer vários estilos musicais, uma vez que uma fluência em distintos gêneros lhe proporcionaria uma visão mais global sobre a música e sobre os caminhos possíveis para transcender o fechamento de abordagens musicais específicas (Costa, 2016:48). Assim, o improvisador que transita por distintas estéticas musicais possivelmente tem uma chance maior de enxergar aquém e além das linguagens que lhe são familiares, compreendendo a virtualidade e relatividade de todos os materiais sonoros (Costa, 2016:195).

2.4. Improvisação livre solo e em conjunto

Além da classificação apresentada por Costa (2017:8-11) – referida acima –, proponho outra categorização da improvisação livre: entre improvisos livres realizados em formato solo ou em conjunto. No primeiro caso, tem-se a situação de um músico que improvisa sozinho, sem dialogar musicalmente com mais ninguém, sendo responsável por conceber e executar toda a música. No segundo caso, há a situação de dois ou mais músicos que tocam juntos, interagindo em termos sonoros e sendo responsáveis por dividir a criação da música. Dentro dessa segunda categoria, não há limite para o número de pessoas que podem improvisar de forma simultânea: podem ser duetos, trios, quartetos, quintetos etc. É claro que, quanto maior o grupo, mais complexo tenderá a ser o resultado musical.

Improvisar sozinho ou em conjunto implica abordagens distintas. Quando cria um improviso solo, o músico não sofre influências de estímulos sonoros originados por outros músicos, não sendo obrigado, portanto, a responder a eles ou ignorá-los. No improviso coletivo, contudo, os materiais sonoros produzidos por cada improvisador podem influenciar a improvisação elaborada pelos outros indivíduos, uma vez que surge, diante de todos, a necessidade de escolher entre dois caminhos: interação ou desvinculação.

Sobre esse último ponto, deve-se ressaltar que, na improvisação livre coletiva, nenhum músico é forçado a interagir musicalmente com os colegas, mas o esperado é que algum entrosamento ocorra, caso contrário surgem situações nas quais uma performance “solo” – no sentido de estar “surda” ao seu entorno – acaba simplesmente se sobrepondo a um ou mais improvisos, de maneira desconectada. Ainda que situações desse tipo possam, em hipótese, acontecer numa performance ao vivo, elas são raras e, sob certo ponto de vista, incoerentes, uma vez que o objetivo primordial de improvisar de forma coletiva é justamente criar situações de comunicação musical. O mesmo não se verifica em relação às improvisações livres que são gravadas e justapostas, pois, como se verá adiante, uma gravação não é capaz de responder criativamente a um músico que interage com ela.

Catalogar as improvisações livres nos formatos solo ou coletivo permite vislumbrar, ademais, que nos vários tipos de prática improvisatória existem níveis maiores ou menores de liberdade de atuação individual. O grau máximo de liberdade performática é encontrado na improvisação livre solo, já que, como mencionado, o músico que toca sozinho não precisa interagir com nenhum estímulo musical externo – ele faz a música como bem entender. Essa liberdade diminui à medida que mais músicos são instados a improvisar juntos, visto que os materiais sonoros criados a todo o instante passam a suscitar interações sonoras entre os participantes. Na realidade, quando o primeiro músico do grupo produz o primeiro som, os outros integrantes já notam sua liberdade cerceada, pois precisam começar a tocar levando em conta o estímulo sonoro inicial. Com isso, percebe-se que, ao longo de uma improvisação livre, qualquer acontecimento sonoro, por mais sutil, pode redundar em transformações significativas no tecido musical total, estimulando desenvolvimentos imprevisíveis (Borgo, 2022:117).

Retornando ao tema das limitações trazidas pelos fatores técnico-corporais e pelas biografias musicais, nota-se que, nas improvisações solo, cada indivíduo coloca em cena suas próprias vivências musicais, seu passado e sua história, seja para expressá-los ou rechaçá-los. Nas improvisações coletivas, por sua vez, várias naturezas musicais individuais se reúnem, gerando encontros únicos que produzem resultados sonoros muitas vezes inesperados. Se cada indivíduo representa um amálgama de idiomas, referentes e modelos, que se apresentam congregados graças a uma formação musical e uma técnica corporal específicas, a reunião de dois ou mais improvisadores numa performance musical coletiva tende a potencializar a complexidade resultante, na medida em que põe lado a lado, para interagir, totalidades diversas. O campo da improvisação livre se beneficia fartamente desses encontros, muitas vezes inusitados, entre diferentes músicos, uma vez que, com tais convergências, é possível colocar em diálogo as mais variadas identidades pessoais e musicais.

2.5. Sons, instrumentos musicais e músicos

O fato de a improvisação livre almejar o não idiomatismo como orientação estética faz com que novas abordagens sejam frequentemente buscadas em relação ao tratamento conferido ao som. Nesse sentido, espera-se que o livre improvisador saiba reconhecer o potencial de musicalidade contido em todo e qualquer som, provenha ele de qualquer meio acústico imaginável, entendendo que qualquer sonoridade pode ser empregada como matéria-prima para a improvisação livre.

Nesse universo, fontes sonoras inusitadas são bem-vindas, na medida em que suscitam novas descobertas acústicas: o chão, parede, mesa, panela, copo, folha de papel, sacola plástica, corpo humano etc. Na improvisação livre, qualquer objeto que vibra está autorizado a atuar como um “instrumento musical”. Da mesma forma, quando se empregam instrumentos musicais convencionais ou a voz, é interessante que os livres improvisadores saibam extrair desses meios acústicos novas sonoridades – através de técnicas expandidas ou abordagens imprevistas e inventadas.

Essa visão holística do som faz com que o campo da improvisação livre rompa com certas perspectivas musicais mais conservadoras – culturalmente ainda bastante arraigadas em nossas sociedades “pós-modernas” – que defendem a existência de sons “mais musicais” ou “menos musicais”, isto é, sons detentores de maior ou menor potencial de aproveitamento musical. Sob uma perspectiva tradicional, a matéria-prima sonora existe para ser apreendida, avaliada, classificada, valorada, aproveitada ou descartada, e, como consequência desse escalonamento, no nível mais baixo geralmente são posicionados os ruídos – sons que, supostamente, teriam uma baixa “utilidade” musical (Novak, 2015:126-127). No contexto da improvisação livre, contudo, os ruídos são eventos acústicos tão aproveitáveis quanto qualquer outro fenômeno sonoro.

Na medida em que qualquer som pode ser utilizado enquanto som musical, e qualquer meio produtor de som pode ser empregado, desdobram-se outras questões: quais pessoas estão aptas a exercer o papel de livres improvisadores? Esse campo performático se destina apenas a músicos profissionais ou, pelo contrário, a quaisquer indivíduos interessados? Qualquer pessoa detém as habilidades necessárias para se tornar um livre improvisador, mesmo não sendo, formalmente, um músico?

Parecem existir duas visões opostas sobre essas indagações (Aragon, 2019:149). Por um lado, há quem defenda que a improvisação livre demanda uma grande especialização, ao mesmo tempo que um amplo conhecimento musical, por parte de quem se aventura em seu território. Para alguns, essa seria uma área de atuação destinada exclusivamente a músicos de altíssimo nível: performers dotados de um exímio controle de seu instrumento (ou voz), vasto domínio de teoria e percepção musicais, extensa experiência e conhecimento sobre vários repertórios – de distintos gêneros e orientações estéticas – etc. O argumento principal por trás desse ponto de vista é que o livre improvisador deve, antes de tudo, conhecer a fundo o universo da música para, ao tocar ou cantar, ser capaz de desconstruir e reformular livremente muitos de seus pilares.

No entanto, há quem sustente exatamente o oposto. O fato de a improvisação livre tentar evitar os idiomas, referentes e modelos autorizaria, em tese, indivíduos que não conhecessem qualquer sistemática sonora a se embrenharem nesse mundo, pois a pouca formação ou completa ignorância no campo da música favoreceria uma experimentação das sonoridades sem preconceitos ou inclinações estéticas limitantes. Para quem defende essa visão, a improvisação livre surge como o melhor exemplo empírico de que, como argumentava Blacking (1973), todos os seres humanos são musicais, sendo a música uma capacidade de qualquer indivíduo. Nessa ótica, não existiria uma diferença de natureza entre músicos e não músicos, mas simplesmente de grau: há músicos mais ou menos experientes, que inclusive podem se juntar para empreender processos de criação coletiva. Tal perspectiva contribui para abolir hierarquizações, exclusivismos e elitismos no fazer musical, pois privilegia valores como igualdade, coletivismo e democratização (Aragon, 2019:165-166).

Ao seguir nessa direção, tal campo performático adquire um forte viés de “universalidade”: talvez a improvisação livre seja a abordagem musical mais inclusiva de todas, aquela com o maior potencial agregador, visto que paira (ou tenta pairar) acima das limitações impostas por idiomas, referentes e modelos mais fixos, que tendem a excluir todos aqueles performers que desconhecem ou não dominam suas regras. Sob essa ótica, a improvisação livre surge como um terreno franqueado a todos os interessados, especialmente a pessoas que estejam dispostas a viver genuinamente essa experiência.

No fundo, existe uma forte coesão por trás de todos esses argumentos: na improvisação livre, se não se pode delimitar a não música, também não se pode determinar o não músico (Aragon, 2019:104), ou, em outras palavras, se todos os sons são musicais, também todas as pessoas são musicistas (Aragon, 2019:160) – ou têm, em tese, potencial para assumir esse papel. No improviso livre, por conseguinte, o drama político da ruptura e do conflito (de sons e pessoas) – vigente na maioria dos gêneros musicais – é abolido, de forma ao mesmo tempo concreta e utópica, em favor de uma ampla igualdade de tratamento.

Entretanto, por mais cativantes que sejam essas perspectivas, seria errôneo subscrevê-las acriticamente, negligenciando problemas sociais e culturais inerentes a qualquer campo de atuação musical. Isso porque, como lembra Borgo (2022:xvi-xvii), “a retórica em torno da improvisação frequentemente celebra a ‘liberdade’ e o ‘igualitarismo’, mas as práticas que a cercam e compõem ainda se encontram muito enredadas nas estruturas inflexíveis do colonialismo, capitalismo, patriarcado e muito mais, mesmo que muitos de seus defensores mais eloquentes e em evidência estejam combatendo diligentemente este legado histórico”8.

2.6. Estratégias de interação musical e defesa de uma igualdade de participação entre os livres improvisadores

Há várias estratégias de interação musical que podem ser aproveitadas pelos músicos que improvisam livremente de maneira coletiva. Tendo em vista os objetivos deste texto, contudo, deter-me-ei em apenas um aspecto deste problema, que será retomado na parte final deste artigo. Em seus atos musicais, o livre improvisador, diante dos materiais sonoros propostos a todo momento pelos outros músicos que tocam com ele, pode, de maneira esquemática, seguir dois caminhos básicos: resposta e proposta (Costa, 2016:126-127).

A primeira situação (resposta) acontece quando o performer esboça uma sintonia com o elemento musical externo que lhe é apresentado, reforçando-o ou variando-o. O segundo caso(proposta) ocorre quando o livre improvisador desconsidera o material disponibilizado por outro músico, oferecendo, em troca, algo diferente, que pode ser aceito ou não por algum colega ou por todo o grupo. É claro que essa divisão binária apresenta um viés mais teórico do que prático, pois, em muitos casos, é difícil especificar, com clareza, se um dado material sonoro colocado em cena por determinado performer é uma proposta ou resposta. Porém, ao menos essas duas noções auxiliam na compreensão sobre como o fluxo das interações pode ser teorizado dentro do campo da improvisação livre.

Para que sejam possíveis respostas e propostas, deve-se atentar, ainda, para o postulado ético que defende que cada integrante do conjunto que improvisa livremente precisa ter a chance de, caso queira, oferecer materiais sonoros que possam se tornar uma força significativa no tecido geral dos diálogos musicais, de modo a poder transformá-los (Costa, 2016:89). Nesse processo, certamente há escolhas que funcionam melhor que outras, isto é, que fomentam desempenhos mais ricos e dinâmicos e que sustentam, do início ao fim da performance, o interesse dos músicos e dos demais ouvintes (Costa, 2016:142). Tais escolhas tendem a ser feitas no calor do momento, e não de forma prévia à efetivação do improviso. Nesse sentido, Borgo (2022:10) argumenta que os melhores improvisos livres são os que fazem transparecer uma grande sincronia entre os músicos, não tanto em níveis estritamente sonoros, mas mais no que concerne às intenções e inspirações criativas.

Encerradas estas considerações gerais sobre a improvisação livre, apresentarei, a partir de agora, como essa prática musical era efetivada no âmbito do Laboratório de Improvisação Musical Livre da UFRGS durante os quase dois anos em que etnografei esse coletivo.

3. O Laboratório de Improvisação Musical Livre da UFRGS

3.1. O Laboratório e seus participantes

O Laboratório de Improvisação Musical Livre da UFRGS foi criado em 2011 pelo professor Adolfo Silva de Almeida Junior, que o coordena até hoje. O espaço destina-se a duas atividades paralelas: funciona tanto como uma disciplina regular do currículo da Graduação em Música da UFRGS9 quanto como um Curso de Extensão10. Os encontros são realizados uma vez por semana e têm duração de uma hora e meia.

Quando decidi etnografar o Laboratório e seus integrantes, optei por me inserir nesse grupo não apenas como um pesquisador que observaria de fora as performances, mas como alguém que participaria ativamente delas. Essa escolha metodológica fez com que eu mergulhasse nessa investigação enquanto músico e aluno, criando os improvisos junto com os demais colegas do Laboratório e com o professor Adolfo. Isso me permitiu vivenciar por dentro a experiência de improvisar livremente, enfrentando os mesmos desafios que os demais participantes. Dito de outro modo, ao acompanhar as atividades desse coletivo pela internet, evitei uma postura de lurker – alguém que busca uma neutralidade, que evita se manifestar etc. (Garcia et al., 2009:58-59; Polivanov, 2014:64). Meu engajamento foi intenso. Como consequência, por ter uma formação e trajetória musical como pianista de música erudita, minha entrada e permanência no Laboratório produziu em mim experiências de deslocamento e estranhamento bastante desafiadoras, ao mesmo tempo que valiosas, em termos artísticos.

Já referi anteriormente que, dos cinco semestres letivos em que realizei minha etnografia, os três primeiros aconteceram na modalidade virtual – devido à pandemia –, o quarto, no formato híbrido, e o quinto, na forma presencial. Essas circunstâncias me possibilitaram perceber diferenças significativas quando se comparavam os contextos virtual e presencial das aulas, pois a experiência de improvisar livremente ao vivo ou por meio de gravações era completamente distinta. Em minha investigação, logo percebi que seria impossível ignorar tais contrastes, e as duas situações acabaram se tornando alvo de análise e comparação em minha tese (Bartz, 2022). Neste artigo, porém, minha atenção se volta, sobretudo, para as improvisações livres feitas através de processos de gravação.

Todavia, antes de explorar esse assunto, que será discutido em pormenores mais adiante, julgo importante detalhar o perfil das pessoas que frequentavam o Laboratório. Esse coletivo era formado, principalmente, por estudantes da Graduação em Música da UFRGS, que tinham as mais variadas preferências musicais: MPB, jazz, rock, blues, música evangélica, música erudita etc. Dentro da proposta conceitual da improvisação livre, essa pluralidade de orientações era benéfica ao Laboratório, uma vez que enriquecia e diversificava as interações musicais entre os frequentadores.

Além disso, o Laboratório era aberto a não músicos – ou melhor, a pessoas que não tinham a prática da música tão desenvolvida (se partirmos do pressuposto, já referido, que todos os seres humanos são, em alguma medida, musicais). O Laboratório também recebia alunos de outros cursos da UFRGS, tal como teatro e dança, e pessoas da sociedade em geral que não eram, necessariamente, universitários. Essa abertura acentuou-se ainda mais quando o professor Adolfo permitiu que, em algumas aulas presenciais, os estudantes pudessem levar convidados de fora, que poderiam ser músicos ou não ter nenhuma experiência nessa área. A esses visitantes era permitido improvisar livremente com os alunos oficialmente matriculados na disciplina. Essa diversidade de participantes ia ao encontro das crenças do professor Adolfo e de uma significativa vertente do campo da improvisação livre que defendem que esse fazer musical deve ser receptivo a quaisquer pessoas interessadas.

3.2. Alguns princípios norteadores dos improvisos livres feitos no Laboratório

Quando passei a conhecer melhor o funcionamento do Laboratório, entendi o porquê de o espaço receber esse nome. Tal qual um laboratório de ciências, os encontros se constituíam, ali, como uma oportunidade para incessantes experiências, testes e descobertas – não científicas, mas musicais. E, do mesmo modo que, num local destinado à realização de experimentos científicos, a criatividade individual surge como um fator importante a ser posto em prática pelos indivíduos, ela também não pode ser exercida sem limites: no Laboratório de Improvisação Musical Livre existiam algumas – ainda que parcas – regras a serem observadas pelos frequentadores.

O professor Adolfo insistia, sobretudo, que os livres improvisadores deveriam ter um compromisso moral com a atividade, engajando-se de corpo e alma nos processos criativos. Para ele, improvisar livremente não era o mesmo que tocar por tocar, de forma maquinal, ou fingir, brincando, que se toca uma música. É claro que a diversão não estava, de partida, excluída do processo, mas era preciso agir com discernimento e propósito. Sua visão se alinhava com alguns apontamentos de Borgo (2022:28), que salienta certas emoções ou estados mentais extáticos por vezes atingidos por livres improvisadores.

Para Adolfo, o músico que tocava de forma gratuita, sem levar a sério o que fazia, corria o risco de não atrair o ouvinte (real ou imaginado) para a apreciação estética de sua música. Assim, um dos objetivos do livre improvisador era elaborar improvisos que despertassem o interesse dos ouvintes, fossem estes uma plateia ou apenas os outros performers que estivessem tocando junto com ele.

Aliada a esse princípio, havia uma segunda orientação: quando tocavam em conjunto, os livres improvisadores precisavam aprender a dosar suas participações individuais. Para que um improviso livre soasse de forma relativamente equilibrada, cada instrumentista (ou cantor) deveria “calcular” o tamanho da contribuição que poderia fornecer. Tratava-se de uma questão matemática: em tese, num dueto cada músico seria responsável por 50% da música; num trio, por 33,3%; num quarteto, por 25%; e assim por diante. Se, num quinteto, um dos músicos decidisse tocar como se a música fosse 60% sua, só restaria 10% para cada um dos outros improvisadores (caso a divisão restante fosse igualitária). Como se percebe, em casos como esse as participações tornar-se-iam excessivamente desequilibradas.

Não é que tais assimetrias fossem proibidas – é normal que um ou outro músico se sobressaísse em alguns momentos –, mas, se a disparidade fosse muito acentuada, feria-se o princípio ético que defendia que todos os improvisadores do grupo deveriam ter a mesma chance de (se quisessem) oferecer materiais sonoros que pudessem se tornar uma força significativa no tecido geral do discurso musical.

É claro que a tentativa de “monopolizar” a execução de um improviso livre feito em grupo poderia gerar, por vezes, uma disputa entre músicos. Quando um performer começava a se sobressair, outro colega poderia decidir enfrentá-lo, também buscando espaço pela primazia da narrativa musical. Tal situação poderia gerar resultados acústicos bastante interessantes, mas, quando muitos músicos decidiam fazer isso simultaneamente, havia o risco de que a improvisação se transformasse numa enorme cacofonia de sons, e os ouvintes teriam dificuldades para distinguir qualquer ideia musical. Tais situações não estavam proibidas, mas seu abuso costumava sobrecarregar a música, aturdindo performers e espectadores.

No Laboratório, cada integrante poderia dominar, com certa desenvoltura, um ou dois instrumentos musicais específicos, mas isso não significava que, nas performances, os estudantes sempre tocariam os instrumentos que lhes eram familiares. Como a busca pelo experimentalismo e pela novidade eram uma premissa no Laboratório, evitava-se ao máximo o lugar-comum e a previsibilidade, em todos os níveis possíveis. Isso fazia com que fossem raros os casos em que um mesmo grupo fosse mantido para a realização de dois improvisos em sequência – ou seja, sempre se buscava um revezamento entre os participantes.

Além disso, nos casos em que os músicos não podiam ser substituídos (por haver poucos alunos nas aulas presenciais, logo que estas foram retomadas após o auge da pandemia), alteravam-se os instrumentos musicais em uso: o pianista passava para a tumbadora, o flautista pegava a ocarina, o saxofonista tocava o violão etc. Isso fazia com que muitas vezes os performers se arriscassem em instrumentos que tocavam com pouca ou nenhuma desenvoltura – nada mais adequado para estimular um “verdadeiro” improviso livre.

Concluídas as observações sobre as atividades do Laboratório de Improvisação Musical Livre da UFRGS, deter-me-ei agora nas especificidades dos improvisos livres efetivados a partir de gravações, dentro daquele coletivo de pessoas.

4. Improvisações livres feitas a partir de gravações

4.1. As circunstâncias que levaram os participantes do Laboratório a gravar seus improvisos livres

Nesta seção, darei especial atenção aos improvisos livres feitos a partir de gravações, modalidade de performance colocada em prática no contexto do Laboratório principalmente durante o período mais intenso da pandemia de Covid-1911. Como se viu, a solução encontrada pelo professor Adolfo para contornar a proibição de reunir presencialmente os alunos em sala de aula foi fazer com que os estudantes gravassem, em suas residências, certo número de improvisos livres, disponibilizando-os na internet (através da plataforma Moodle) para que os demais alunos pudessem tocar sobre eles. Ao longo daquele período, cerca de trezentas performances foram compartilhadas – desempenhos que poderiam ser gravações solo ou performances sobrepostas a outras gravações (que geravam duetos, trios, quartetos etc.).

Todavia, o leitor pode se perguntar: por que os alunos não improvisavam em tempo real, de suas residências, durante os encontros virtuais? A opção de improvisar ao vivo, pela internet, não era viável devido, principalmente, à lentidão das conexões. Para que isso fosse possível, cada aluno deveria ter em casa uma internet de alta velocidade, o que era raro em vista da realidade socioeconômica de muitos estudantes. Além disso, mesmo que todos possuíssem conexões muito boas, elas dificilmente eliminariam completamente a latência – o intervalo temporal existente entre o começo do estímulo sonoro e a apreensão desse estímulo (e, consequentemente, a reação musical a ele) por parte dos outros músicos que o escutam.

Há uma grande diferença a ser ressaltada aqui. Em improvisações ao vivo e presenciais, os músicos ouvem de imediato todos os sons que são gerados pelos colegas, podendo reagir a eles prontamente. Nas conexões pela internet, porém, sempre se nota um interstício temporal significativo que separa uma ação de uma reação, fator que rompe completamente com a instantaneidade das interações. Por isso, a menos que se aceitasse a latência como um elemento constituinte do próprio improviso livre (o que não estava entre os objetivos do Laboratório), tornava-se impossível improvisar coletivamente, de forma simultânea, por meio de conexões virtuais remotas.

Ao longo de cada semestre letivo, dentre todas as gravações disponibilizadas no Moodle, o professor Adolfo escolhia as que julgava mais interessantes para incluí-las na página do SoundCloud do Laboratório12. Nesse repositório sempre constam as últimas três horas de música produzida pelos livres improvisadores do Laboratório. Trata-se de um material público, de livre acesso, e o fato de haver uma curadoria sobre toda a produção dos alunos também servia – e serve ainda hoje – como estímulo para que eles se empenhassem nas performances, já que elas poderiam ser postadas nesse canal de divulgação. Neste repositório o leitor poderá escutar exemplos de improvisações livres feitas ao vivo e a partir de gravações sobrepostas.

4.2. Improvisando livremente sobre gravações de outros improvisos livres

Veja-se agora, em pormenores, como funcionava o processo acima descrito. Um aluno, em sua casa, utilizava, por exemplo, um piano para improvisar livremente por três minutos. Em seguida, ele disponibilizava a gravação de sua performance no Moodle. Todos os demais estudantes do Laboratório tinham acesso a essa música e poderiam, se quisessem, improvisar sobre ela. Em dado momento, outro aluno, por exemplo, um percussionista, decidia aproveitar esse material, valendo-se de um chocalho para improvisar sobre a gravação inicial. Então um terceiro estudante, violonista, escutava as duas gravações sobrepostas e acrescentava a sua parte. Depois, um quarto músico, tecladista, ouvia o trio e decidia empregar um sintetizador para justapor um novo material musical. E assim por diante. Não havia limites para o número de acréscimos que poderiam ser feitos, ainda que o máximo que testemunhei foram improvisações em seis camadas.

Havia, ainda, uma segunda opção: um mesmo aluno poderia improvisar sobre gravações de improvisos que ele mesmo tivesse feito. Desse modo, surgiam duetos, trios, quartetos etc. criados por um único livre improvisador. Eu mesmo experimentei várias improvisações nesse sentido.

Todavia, neste ponto é necessário trazer a pergunta crucial: esses procedimentos não são essencialmente diferentes das improvisações ao vivo, nas quais os músicos compartilham um mesmo espaço e tempo? A resposta é: claro que são diferentes. Vejamos os motivos.

Em primeiro lugar, deve-se ressaltar que, quando decidia improvisar sobre a gravação de um colega, um estudante poderia adotar duas estratégias básicas: ouvir uma ou mais vezes a improvisação de base antes de começar a executar seu improviso, ou simplesmente deixar a gravação tocar sem qualquer conhecimento prévio a seu respeito – simulando, portanto, uma situação de performance ao vivo. O professor Adolfo nos aconselhava a experimentar as duas possibilidades.

No primeiro caso, quanto mais vezes o aluno ouvisse o improviso livre de base, mais previsível a música se tornaria para ele, o que lhe permitia planejar de maneira antecipada, às vezes em detalhes, as ações musicais que tomaria ao sobrepor a sua parte. No segundo caso, a surpresa era absoluta, já que era impossível antever o tipo de sonoridade que emanaria dos alto falantes ou fones de ouvido13.

Essas duas abordagens antagônicas despertam reflexões importantes quando se considera um aspecto elementar do campo da improvisação livre. Para ir direto ao ponto, deve-se admitir que um músico que escuta várias vezes a gravação de uma improvisação livre, antes de começar a improvisar sobre ela, em certo sentido burla o preceito estético básico do campo que diz respeito à imprevisibilidade dos processos criativos. Assim, um músico que ouve, por exemplo, cinco vezes uma música antes de tocar sobre ela está, em muitos sentidos, “mais preparado” para a tarefa do que outro performer que não a escuta sequer uma vez.

Seria muito difícil afirmar quantos participantes do Laboratório costumavam adotar essas estratégias ou em que extensão isso era feito. Porém, após escutar certas improvisações de colegas, notava que, em alguns casos, era bastante improvável que um improviso sobreposto fosse fruto de uma execução completamente “espontânea”, dada a grande adequação entre todos os materiais sonoros.

Todavia, é preciso fazer uma ressalva aqui. Não há dúvida que um livre improvisador que escuta várias vezes uma gravação, antes de improvisar sobre ela, acostuma-se com a música, e quanto mais ele ouvi-la, mais previsível ela se tornará para ele. Contudo, deve-se ter o cuidado de não supervalorizar esse entendimento, uma vez que a memória musical humana não costuma ser tão fiel e exata quanto se imagina – é difícil antecipar, com precisão e em detalhes, tudo o que vai acontecer numa música de, por exemplo, três minutos, principalmente quando se trata de improvisações livres, cujos desenvolvimentos musicais são difíceis de serem previstos e apreendidos. Assim, por mais que um músico decida ouvir uma dúzia de vezes uma improvisação livre antes de tocar sobre ela, isso não retirará completamente o caráter improvisado de suas ações durante sua performance.

Outro aspecto interessante é que, quando um músico gravava e disponibilizava aos colegas um improviso livre, ele nunca conseguia prever o tipo de aproveitamento que seu material teria nas mãos de outras pessoas. Assim, uma linha melódica que inicialmente havia sido concebida para estar num primeiro plano poderia virar uma segunda voz para outra melodia mais notável, agregada por outro improvisador, ou então manter sua função original, quando o segundo improviso anexado adquiria um caráter de acompanhamento.

Como consequência, a ordem dos improvisos adicionados não refletia a importância que cada material individual teria na versão final da música: às vezes, num quarteto, o primeiro improviso gravado conseguia manter sua preeminência como material principal do início ao fim dos processos, sobrevivendo aos acréscimos que sofria, e às vezes o segundo, terceiro ou quarto improviso acabava assumindo o primeiro plano no contexto da soma das gravações. Em outros casos, todas as improvisações aditadas apresentavam a mesma relevância. Em suma, não havia regras nesse sentido, uma vez que era impossível adivinhar a aplicação e o aproveitamento que cada material sonoro poderia ter e sofrer.

Outro ponto importante é que nem sempre era fácil lidar com as tecnologias e técnicas de gravação, pois muitos estudantes tinham que contornar dificuldades específicas nesse sentido. O fato de as gravações precisarem ser feitas pelos alunos em suas residências trazia, para muitos, empecilhos como: falta de um gravador ou microfone adequados, acústica inapropriada do local de gravação, ruídos de fundo etc. As discrepâncias materiais eram de vários níveis: havia alunos que possuíam bons equipamentos em casa (mesas de som, amplificadores, caixas de som, microfones, processadores de áudio, interfaces de áudio, monitores de áudio, cabos de conexão etc.), enquanto outros se valiam apenas de seus celulares para a realização de todos os procedimentos necessários. O professor Adolfo recomendava o uso de softwares gratuitos destinados à gravação e edição de áudio (como o Audacity), mas outras opções também eram encontradas pelos estudantes, que muitas vezes aprendiam a lidar com os programas de maneira autodidata.

Outro problema comum, mas bastante importante, era conseguir um acertado equilíbrio entre os volumes das várias gravações sobrepostas, uma vez que estas deveriam manter, comparativamente, um mesmo grau de importância. Para respeitar a ética da igualdade de participação – já referida –, um músico deveria gravar sua parte com um volume bastante próximo ao da gravação que ele havia escolhido para interagir, caso contrário seu improviso poderia “cobrir” a performance do outro músico, relegando-a para um segundo plano. Havia distintos meios de buscar essa paridade de volumes, que variavam conforme os processos de gravação e mixagem empregados por cada estudante.

5. Considerações finais: divergências entre improvisação e gravação

Nesta última parte, reflito sobre algumas inconformidades existentes entre o ato de improvisar e o ato de gravar os improvisos. Brown, Goldblatt & Gracyk (2018:249-250), refletindo sobre o improviso no jazz14, apontam que a improvisação musical corresponde a um processo de criação intrínseco ao momento da performance, e que, para apreciar em essência esse acontecimento, é necessário que os ouvintes presenciem ao vivo a singularidade das ações dos músicos. Porém, quando os ouvintes não testemunham tal evento ao vivo, a única opção de acesso à performance improvisada ocorre por meio de algum registro da mesma – digamos, uma gravação sonora.

No entanto, a gravação estabelece uma fratura no tempo: os ouvintes que escutam o registro da performance não compartilham a instantaneidade da experiência com os artistas que criaram a música. Além disso, a gravação permite a repetição do evento performático (caso o ouvinte a escute várias vezes), o que acaba enfraquecendo o aspecto singular intrínseco à atividade improvisatória, isto é, ser um acontecimento único no tempo. O resultado disso é a estabilidade e previsibilidade na apreciação auditiva – princípios opostos aos valores da improvisação, que preza justamente a surpresa da experiência, sua imprevisibilidade.

Se esse argumento é válido no que concerne aos ouvintes, ele também se aplica aos músicos que improvisam sobre improvisos gravados. Em procedimentos desse tipo, também se constata uma grave ruptura temporal entre os atos criativos que são paulatinamente postos em camadas, mas que “deveriam” – para fazer jus à proposta estética original do campo – se apresentar como simultâneos. Além disso, do mesmo modo que se observa em relação aos ouvintes, os performers que escutam mais de uma vez um improviso livre antes de tocar sobre ele contribuem para enfraquecer uma propriedade intrínseca à atividade: ser um evento único no tempo. Músicos que adotam essa estratégia tornam, portanto, mais estáveis e previsíveis músicas que, para eles, “deveriam” ser completamente instáveis e imprevisíveis.

Isso faz com que, no contexto da improvisação livre, o ato de gravar as performances não se harmonize com os valores de transitoriedade priorizados pelo campo, pois o “aprisionamento” da música numa atemporalidade acaba rompendo com a tão desejada sensação de unicidade que cada desempenho ao vivo sempre transmite aos ouvintes15.

Essas constatações conduzem a outros pontos de atrito. Nesse sentido, deve-se ressaltar que a diferença básica entre improvisar em grupo, ao vivo, e por meio de gravações é que as gravações não interagem ativamente com os músicos que tocam com elas. Por isso, se nas situações de improvisação livre nas quais os músicos dividem um mesmo espaço e tempo é possível (ao menos em tese) alcançar uma total comunicação entre os participantes, diante de uma gravação isso é impossível – ou melhor, é possível apenas pelo lado do músico que improvisa sobre a gravação.

O músico que improvisa em cima da gravação pode interagir com ela de forma “livre” (na realidade, nem tão livre assim, pois ela acaba servindo como um guia ou base para seu desempenho), mas a gravação não pode modificar a si mesma para interagir com o músico. Isso faz com que a comunicação e interação musicais ocorram somente por uma das vias, e não pelas duas vias, como tradicionalmente se faz em performances ao vivo. Desse modo, fere-se a propriedade tão cara ao campo da improvisação livre que diz respeito à instantaneidade dos processos criativos. Quando as improvisações livres passam a ser feitas num tempo e espaço diferidos, os diálogos possíveis entre as performances se tornam mais ilusórios e artificiais.

Foi ressaltado que, num improviso livre coletivo ao vivo, nenhum músico é obrigado a se relacionar musicalmente com os demais performers, mas a esperança é que tal entrosamento aconteça, senão surgem situações de ausência de comunicação entre os executantes – como se um performer “se isolasse” do grupo. Todavia, é exatamente esse tipo de problema que acomete, inevitavelmente, os improvisos livres gravados e sobrepostos. A interação acontece aqui, de fato, apenas pelo lado do improvisador que sobrepõe seu material sonoro aos materiais já existentes. É claro que, se esse amálgama for bem feito, pode-se transmitir a ideia de que todos os materiais interagiram e foram produzidos em tempo real, ainda que isso seja falso.

Como consequência, comprometem-se as estratégias, anteriormente explicadas, de proposta e resposta (Costa, 2016:126-127)16. A gravação de um improviso livre solo somente pode apresentar propostas em relação a um segundo improviso livre que lhe seja superposto, mas jamais respostas. Esse segundo improviso livre, por sua vez, pode conter tanto propostas quando respostas, mas elas nunca serão de fato acolhidas pelo primeiro improviso, uma vez que ele já se apresenta “fechado”, formatado. Caso esses dois improvisos gravados sejam somados e recebam a intervenção de um terceiro improviso livre, a situação se repetirá de forma análoga: as duas gravações iniciais, aditadas, não poderão responder ativamente ao terceiro improviso livre – apenas lhe apresentar propostas. E assim sucessivamente, conforme mais improvisos gravados venham a ser adicionados, uns sobre os outros.

Veja-se, abaixo, duas figuras que comparam a improvisação livre feita ao vivo com a improvisação livre criada a partir de gravações sobrepostas, tomando como exemplo um quarteto de músicos. No gráfico fica explícito que há bem menos flechas amarelas (respostas) nos improvisos livres construídos a partir de gravações sobrepostas, enquanto o número de flechas vermelhas (propostas) se mantém igual nos dois tipos de situação. Isso significa que, nas improvisações ao vivo, as propostas e respostas podem envolver todos os performers, ao passo que, nas improvisações gravadas e sobrepostas em camadas, o número de possíveis respostas decresce, no exemplo dado, para a metade.

Figura 1 – Improvisação livre feita ao vivo (12 flechas vermelhas e 12 amarelas). Fonte: elaborado pelo autor.

Figura 2 - Improvisação livre com gravações sobrepostas (12 flechas vermelhas e 6 amarelas). Fonte: elaborado pelo autor.

A impossibilidade de garantir, nos improvisos livres gravados e sobrepostos, uma isonomia na ocorrência de propostas e respostas acaba comprometendo o preceito ético fundamental, destacado anteriormente, que defende que cada integrante do grupo tem, por princípio, as mesmas chances de oferecer materiais sonoros que possam se tornar uma força significativa no tecido geral dos diálogos musicais (Costa, 2016:89). Ora, um músico do Laboratório não tinha permissão para alterar a gravação de um improviso livre alheio, para que seu conteúdo dialogasse com as ideias musicais que ele mesmo desejava apresentar – fazer isso seria antiético. Tomando esse caso como exemplo, observa-se que situações de busca por uma equidade real entre propostas e respostas apenas podem acontecer nas improvisações livres feitas com performers que compartilham um mesmo espaço e tempo – isto é, tais negociações ocorrem somente no “calor” dos desempenhos coletivos ao vivo.

Outro aspecto problemático diz respeito ao tamanho das participações individuais e ao modo como os desempenhos são dosados. Anteriormente foi explicado que, numa performance em que os livres improvisadores dividem um mesmo tempo e espaço, dependendo do número de indivíduos que tocam juntos, cada integrante terá uma determinada cota de participação (num dueto, cada performer será responsável por 50% da música; num trio, por 33,3%; e assim por diante). Essa negociação acontece, sempre, em tempo real, e quando um livre improvisador decide assumir a primazia do discurso musical, outro músico pode contestá-lo, enfrentando-o na busca pela hegemonia.

Em improvisos livres gravados e sobrepostos, tais “duelos” tendem a se tornar desiguais. Isso porque um músico que escuta várias vezes um improviso livre antes de tocar sobre ele acaba conhecendo previamente o tipo de discurso musical sobre o qual intervirá, o que lhe traz uma série de vantagens – dentre elas um poder maior para decidir se sua performance ficará num segundo plano em relação aos materiais de base ou se seu desempenho assumirá uma linha de frente na música. Mais uma vez, infringe-se, aqui, ao princípio da igualdade preliminar das participações individuais. Para que esse preceito venha a ser respeitado no contexto das gravações, somente se poderá contar com o bom senso dos performers (numa performance ao vivo, ainda que esse bom senso não exista por parte de algum músico do grupo, sempre há a possibilidade de que os demais integrantes o contestem musicalmente, contrapondo-se às iniciativas egoístas do performer que deseja aparecer mais que os outros).

Por óbvio, improvisos livres criados a partir de gravações superpostas também inviabilizam a tão importante comunicação visual verificada nas situações de performance ao vivo, nas quais os músicos compartilham uma mesma temporalidade e espacialidade. Sob essas condições de atuação, os olhares, gestos e movimentos dos corpos dos performers costumam contribuir, em alguma medida, para o mútuo entendimento e direcionamento dos discursos musicais, algo semelhante ao que acontece, por exemplo, no contexto da música erudita (Schütz, 1951:94-95). Essa comunicação visual inexiste no âmbito das gravações, fato que reforça o argumento de que as criações musicais que se valem de processos de gravação apresentam uma menor interação e comunicação mútuas entre os participantes.

Diante disso, a tão característica instantaneidade do fazer musical perde força, fazendo com que o antes e o depois ganhem primazia, em detrimento do agora. Ao contrário do que acontece nos improvisos livres realizados num tempo e espaço compartilhados pelos músicos, nesse novo cenário já não se valoriza tanto o momento presente, isto é, já não se enaltece o processo de construção musical em sua imediaticidade máxima.

Em vista de todos esses dilemas, retornam as perguntas formuladas no início deste artigo: os improvisos efetivados por meio de gravações (nos quais não ocorre o compartilhamento de uma instantaneidade e espacialidade no fazer musical) podem ser, ainda assim, chamados de “livres”? Improvisações livres gravadas e sobrepostas não deixam de conter propriedades essenciais desse campo de performance musical, desvirtuando-o de maneira irreparável?

Em minha opinião, esse não é o caso. A improvisação livre consumada a partir da sobreposição de improvisos livres gravados continua contendo as propriedades típicas desse campo, ainda que de modo atenuado. É como se tais estratégias de elaboração apenas enfraquecessem um pouco mais o adjetivo “livre” que nomeia tal prática musical. No entanto, como se viu que nenhum improviso merece ser qualificado como plenamente “liberto”, dado que a ninguém é possível criar uma música que parta do nada absoluto (pois, em última instância, não há como escapar do poder de referencialidade contido em todo e qualquer som), essa é uma modalidade de improviso apenas “menos livre” que aquela realizada em formatos tradicionais (ao vivo). Na realidade, as improvisações livres criadas a partir de gravações superpostas precisam ser vistas como mais uma possibilidade de manifestação musical encontrada dentro desse grande campo estético-sonoro dotado de matizes tão variados, que é chamado, genericamente, de “improvisação livre”.

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Notas

  1. B acharel em Música (Composição) pela UFRGS (2008); bacharel em Comunicação Social (Jornalismo) pela PUCRS (2011); mestre em Antropologia Social pela UFRGS (2018); e doutor em Antropologia Social pela UFRGS (2022). Atualmente é mestrando em Música (Etnomusicologia/Musicologia) pela UFRGS. ↩ voltar
  2. A pandemia fez com que, dos cinco semestres letivos em que frequentei o Laboratório, os três primeiros (agosto de 2020 a novembro de 2021) ocorressem num formato totalmente virtual, enquanto o quarto semestre (janeiro a maio de 2022) acontecesse num formato híbrido – aulas à distância e presenciais – e o quinto (junho a outubro de 2022) se desse na modalidade presencial. ↩ voltar
  3. Para um contexto mais abrangente sobre o nascimento da improvisação livre, ver Toop (2016). ↩ voltar
  4. O termo se refere às pessoas que criam música noise , caracterizada pelo emprego de ruídos. ↩ voltar
  5. Técnica que envolve a modificação de circuitos eletrônicos (por exemplo, em brinquedos ou outros dispositivos) para criar sons e efeitos sonoros inesperados. ↩ voltar
  6. Esses três conceitos assemelham-se no sentido de denotarem “pontos de apoio” para as improvisações musicais – por exemplo, um acorde ou sequência harmônica, uma pulsação regular, uma escala, uma estrutura formal, uma atmosfera ou ambientação sonoras, enfim, qualquer elemento que possa orientar ou circunscrever o improviso. ↩ voltar
  7. Para outras reflexões filosóficas a respeito da improvisação, não apenas no campo da música, ver Peters (2009). ↩ voltar
  8. Tradução minha do inglês. ↩ voltar
  9. Na verdade, são duas disciplinas complementares, que se alternam a cada semestre: Laboratório de Improvisação Musical Livre I e Laboratório de Improvisação Musical Livre II . ↩ voltar
  10. Denominado Projeto de Extensão Núcleo de Música Improvisada . ↩ voltar
  11. Refiro-me aos três primeiros semestres letivos em que realizei minha etnografia e, em menor medida, também ao quarto semestre. ↩ voltar
  12. A página pode ser visitada neste link: https://soundcloud.com/nucleo-musica-improvisada – último acesso em 16 de julho de 2025. ↩ voltar
  13. Eu costumava improvisar seguindo um meio termo entre essas duas propostas: gostava de escutar apenas uma vez alguns trechos das improvisações dos outros colegas, principalmente no intuito de captar o clima da música, mas também para escolher algum timbre adequado que pudesse explorar em meu piano digital – instrumento que utilizava para tocar –, algo que de alguma forma se ajustasse às intenções da música original. Desse modo, acabava conhecendo um pouco a improvisação livre sobre a qual sobreporia meu próprio improviso, mas não ao ponto de me familiarizar com ela. ↩ voltar
  14. Apesar do enfoque desses autores ser no jazz, acredito que as mesmas reflexões podem ser aplicadas ao âmbito da improvisação livre. ↩ voltar
  15. No entanto, tendo em vista as circunstâncias que o mundo passava no momento em que realizei minha etnografia – a pandemia global de Covid-19 –, a única alternativa encontrada para dar continuidade às aulas do Laboratório foi deixar de lado todos esses problemas teóricos, pois havia uma urgência de ordem prática a ser resolvida. Dito de outro modo: no contexto investigado, as ações de improvisar e gravar precisaram “fazer as pazes”, caso contrário as atividades do Laboratório teriam que se manter suspensas até o retorno presencial das aulas. ↩ voltar
  16. Para lembrar: as respostas acontecem quando um performer esboça uma sintonia com um elemento musical externo que lhe é apresentado, reforçando-o ou variando-o. As propostas ocorrem quando um livre improvisador desconsidera o material disponibilizado por outro músico, oferecendo, em troca, um material diferente, que pode ser aceito ou não por algum colega ou por todo o grupo. ↩ voltar