Um retorno da sociedade na escala do indivíduo: subjetividade e política em Simmel e Durkheim

A Return of Society on the Scale of the Individual: Subjectivity and Politics in Simmel and Durkheim

Un retorno de la sociedad a escala del individuo: subjetividad y política en Simmel y Durkheim

Lucas van Hombeeck [1]

Resumo

Em contraponto à tendência contemporânea de recurso ao vocabulário psicológico para a interpretação política, reconhecida por termos como "patologização do social" (Martuccelli, 2007) e "psicologização da política" (Safatle, 2023; 2024), este artigo propõe uma leitura da relação entre individualismo e liberdade na teoria sociológica para dimensionar os dilemas do presente. Tendo como material primário os textos autorais e a recepção de Émile Durkheim e Georg Simmel, meu objetivo é levantar os elementos para uma contribuição sociológica ao debate em torno das subjetividades individuais e sua dimensão política hoje. Assim, ao mesmo tempo em que interpelo os autores do passado tentando situar sua mobilização para a análise de casos históricos potencialmente diferentes daqueles que serven de base empírica à teoria clássica, proponho uma espécie de "retorno da sociedade" (Botelho, 2019) no âmbito das sociologias do indivíduo -- a fim de, ao interpretar a estrutura de oportunidades estabelecida pelo processo de individuação, poder propor formas de ação estratégica sobre as práticas de si para a liberdade democrática.

Palavras-chave: Individualismo, liberdade, Émile Durkheim, Georg Simmel, teoria sociológica.

Abstract

In contrast to the contemporary trend of resorting to psychological vocabulary for political interpretation, named by terms such as "pathologization of the social" (Martuccelli, 2007) or "psychologization of politics" (Safatle, 2023; 2024), this article proposes a reading of the relationship between individualism and freedom in sociological theory to tackle present dilemmas. Drawing primarily on the original texts and reception of Émile Durkheim and Georg Simmel, my objective is to outline elements for a sociological contribution to the debate surrounding individual subjectivities and their political dimension today. Thus, while engaging the authors of the past in an attempt to situate their work towards the analysis of historical cases potentially different from those that empirically ground classical theory, I propose a sort of "return of society" (Botelho, 2019) within the field of the sociologies of the individual -- aiming to interpret the structure of opportunities established by the process of individuation, in order to propose forms of strategic action regarding practices of the self for democratic freedom.

Keywords: Individualism, freedom, Émile Durkheim, Georg Simmel, sociological theory.

Resumen

En contraste con la tendencia contemporánea de recurrir al vocabulario psicológico para la interpretación política, denominada con términos como "patologización de lo social" (Martuccelli, 2007) o "psicologización de la política" (Safatle, 2023; 2024), este artículo propone una lectura de la relación entre individualismo y libertad en la teoría sociológica para abordar los dilemas actuales. Basándome principalmente en los textos originales y en la recepción de Émile Durkheim y Georg Simmel, mi objetivo es esbozar elementos para una contribución sociológica al debate sobre las subjetividades individuales y su dimensión política hoy. Así, al involucrar a los autores del pasado en un intento de situar su obra hacia el análisis de casos históricos potencialmente distintos de aquellos que fundamentan empíricamente la teoría clásica, propongo una especie de "retorno de la sociedad" (Botelho, 2019) dentro del campo de las sociologías del individuo, con el objetivo de interpretar la estructura de oportunidades establecida por el proceso de individuación, a fin de proponer formas de acción estratégica respecto a las prácticas del yo para la libertad democrática.

Palabras clave: Individualismo, libertad, Émile Durkheim, Georg Simmel, teoría sociológica.

Introdução

Por volta da década de 1990, ganhou força na teoria sociológica um debate sobre a correlação entre os chamados processos de individualização, ou individuação, e aquilo que se entendia pelo termo mais geral da globalização (Beck, 1997, p. 26; Giddens, 1997, p. 117-118; Vandenberghe, 2014, p. 276 e ss.). A discussão se entrelaça com interpretações divergentes sobre as formas da modernização: seria o caso de se falar em variantes internas de uma modernidade comum, da co-ocorrência de múltiplas modernidades, ou da coexistência global entre modernos e outros-que-modernos? Em meio aos muitos desdobramentos da discussão que em parte dura até hoje, é possível perceber a fragilização de perspectivas etnocêntricas baseadas em dicotomias como as que, nos estudos da relação indivíduo-sociedade, opõem e hierarquizam holismo e individualismo, ou dividem as sociedades entre aquelas em que haveria ou não indivíduos.

Do ponto de vista epistemológico, esse tipo de prática divisória dicotômica depende de um conceit a priori de indivíduo a partir do qual fazer sua classificação, o que redunda numa posição colonial especialmente reforçada pela aliança entre as ideias de autonomia individual e humanismo. Parte da teoria contemporânea responde com uma crítica do conceito sociológico de individualismo, desconstruindo seus elementos internos para pluralizar as situações históricas analisáveis, agora pela lente das "variantes do individualismo" (Martuccelli, 2019). O que está em jogo, nessa perspectiva, é a interpretação e crítica sociológica dos meios, situações e provas sociais pelos quais os sujeitos são chamados a se constituírem enquanto indivíduos. Ocorre que, em diferentes experiências sociais, haverá a produção de formas de subjetivação igualmente diferentes, ainda que de certa maneira em diálogo com práticas e figurações historicamente dominantes. A teoria passa, dessa maneira, do individualismo aos individualismos, sem deixar de interpretar a relação entre as diferentes linhas de força de um mesmo processo social em escala global.

Ainda assim, persiste em algumas leituras daquela teoria sociológica da década de 1990 um diagnóstico segundo o qual ­-- na passagem da modernidade à pós-modernidade ou modernidade tardia -- a individuação apresentaria uma espécie de gradiente. Segundo essa visão, se na modernidade a individualidade estava apenas relativamente liberta de estruturas coletivas como a família, classe, religião, em contextos pós-modernos ou pós-tradicionais ela seria cada vez mais e apenas individual (Beck, 1997, p. 18; Giddens, 1997, p. 124-125, Vandenberghe, 2014, p. 296). Mas a ideia do gradiente, mesmo que afinada com certa figuração social voluntarista do sujeito muito visível atualmente ­-- a do indivíduo livre para agir como quiser, inclusive sobre si próprio, fazendo-se objeto de uma ação racional orientada à finalidade de reprogramação, construção de hábitos de sucesso, mobilidade social e desempenho sem limites condicionados pela estrutura -- merece ser problematizada.

Um discurso crítico que contesta essa figuração, relativamente bem sucedido em termos de sua circulação e adesão social, vem do campo das disciplinas "psi" e mobiliza a noção de inconsciente ou opacidade do sujeito[2] em suas análises. Isso é feito tanto para apontar a dimensão "ideológica" da ideia de um self-empreendedor quanto para descrever fenômenos como o "narcisismo", a "pulsão de morte" (Moreira Salles, 2020) e o "ressentimento" (Zucco, Samuels e Mello, 2024; França, 2025) que marcariam nosso presente. Esse discurso, no entanto, também tem tido seus limites apontados por atores das áreas das ciências sociais e da própria psicanálise, que denunciam o que chamam ora de uma "patologização da sociedade" (Martuccelli, 2007, p. 52-57), ora de uma "psicologização da política" (Safatle, 2023; 2024). Essas categorias buscam qualificar um debate operado, na visão dos autores, por um vocabulário em que as marcas subjetivas da opressão se fazem legíveis, mas ainda não podem se articular como demanda legítima comum, e que chegaria ao ponto de interditar parte da discussão necessária à reorientação estratégica contra o autoritarismo no presente.

Para mencionar apenas um exemplo, um debate recente sobre esse ponto opôs um grupo de cientistas políticos (Zucco, Samuels e Mello, 2024) e um psicanalista e professor de filosofia (Safatle, 2023; 2024) na discussão sobre os usos da categoria do "ressentimento" para a explicação de fenômenos políticos. Para Safatle, o uso do termo tenderia a produzir uma interpretação segundo a qual a adesão aos populismos contemporâneos seria uma expressão da irracionalidade das massas contra o avanço de políticas redistributivas. Esse comportamento, ao ser explicado pelo recurso à psicologia e a sistemas de motivações individuais, deixaria intocada a crítica da estrutura social -- produzindo uma explicação cômoda, baseada numa distinção moral, da ascensão global da extrema-direita. Em resposta, Zucco e seus colegas afirmaram, com o apoio de dados empíricos produzidos em surveys, que o ressentimento é uma variável explicativa do comportamento eleitoral no Brasil. Para isso, apontam a correlação estatística entre a percepção de perda de status de grupos sociais e sua probabilidade de votar em projetos autoritários. Na tréplica, Safatle chama atenção para a história da categoria usada na produção e interpretação dos dados quantitativos, bem como para a hipótese de que uma explicação mais objetiva do fenômeno da desdemocratização pode estar ligada não apenas à percepção da perda de status, mas à efetiva precarização das relações de trabalho dos indivíduos.

Num cenário como esse, o que fazer?

A proposta deste artigo é promover uma reconstrução de duas formulações sociológicas clássicas da relação indivíduo-sociedade, geralmente figuradas como opostas, discutindo criticamente e com o apoio das suas fortunas os elementos internos e as consequências políticas do individualismo moderno em cada uma delas. Um retorno da sociedade (Botelho, 2019) no domínio das sociologias do indivíduo. Mas o que isso significa?

Num livro lançado durante o início do último ciclo de desdemocratização brasileiro, André Botelho (2019) propôs a leitura de uma sequência do pensamento social como forma de resgatar uma sociologia política capaz de recolocar as discussões sobre a relação entre Estado e sociedade no Brasil. Segundo o autor, a tendência ao "institucionalismo" de explicações da área da ciência política forjadas nas últimas décadas produziu uma perspectiva em que as inovações institucionais pareciam descoladas de seu fundamento social. Assim, na relação entre Estado e sociedade, o discurso especializado se concentrou sobre um dos polos, sobrevalorizando a capacidade de democratização induzida pelas instituições e secundarizando a resistência ou preferência da sociedade por uma ou outra forma de administração do conflito. A ideia de retorno da sociedade, portanto, busca chamar a atenção àquilo

que, mesmo recalcado, pôde ter estado sempre presente em meio aos avanços institucionais democráticos: a velha sociedade brasileira, historicamente marcada por valores e práticas sociais e culturais autoritárias de socialização e de orientação das condutas, de afirmação das hierarquias nas mais diferentes relações sociais e de reiteração das desigualdades (2019, p. 18).

A expressão que serve de título ao livro de Botelho é também uma inversão do famoso trabalho de Alain Touraine, O retorno do ator (1984), que marcou o debate pós-estruturalista na teoria social europeia. Nesse sentido, o "retorno da sociedade" é uma convocação à análise da relação entre agência e estrutura num momento em que a ação de sujeitos como os movimentos sociais (e o próprio indivíduo) vem sendo interpretada com "excesso de voluntarismo" (Botelho, 2019, p. 19). Essa tendência analítica prejudicaria não só a objetividade da interpretação, que perdería de vista "as possibilidades e limites da ação coletiva" (ibidem), mas poderia ter um impacto negativo, a meu ver, igualmente teórico e político ao debilitar a sutileza do cálculo necessário à ação social (individual ou coletiva) para a democratização. Os indivíduos e movimentos não esperam a sociologia resolver seus problemas teóricos para agirem, é evidente, mas, ao abrir mão de uma perspectiva que combine igualmente agência e estrutura, ou possibilidades e limites da ação de maneira não-disjuntiva, nós cientistas sociais abrimos mão de uma forma de participação que historicamente serviu à aliança entre teorização e democratização da sociedade (Fernandes, 2021; Medeiros da Silva, 2018).

Assim, o objetivo deste artigo é interpelar o debate contemporâneo com uma leitura criativa dos clássicos que recoloque a discussão sobre a sociedade "na escala do indivíduo" (Martuccelli, 2007). Nesse sentido, seria possível inclusive mobilizar esses autores na interpretação de casos históricos diferentes daqueles que serviram de base empírica à teoria europeia, como os das variantes periféricas, latino-americanas ou brasileiras do individualismo. Isso porque uma das contribuições pretendidas está no resgate da compreensão do individualismo como fato social, de maneira que se reúnam os elementos para que possamos perguntar: de que maneira diferentes sociedades produzem diferentes tipos de indivíduos? Quais são os impasses políticos que expressões historicamente singulares dos individualismos apresentam para a democracia e o Estado moderno, requalificando as possibilidades e limites dessas mesmas formas políticas em contextos diferentes?

Em tensão crítico-compreensiva, essa abordagem permite capturar a relação perene da discussão sociológica com o conflito político nas diversas temporalidades em que esta se dá. Em Durkheim, o ponto de partida para a elaboração é o caso Dreyfus, como procuro demonstrar na primeira parte do artigo; no meu próprio caso, o que orienta o interesse na elaboração de uma perspectiva são as práticas e representações do sujeito mobilizadas nos últimos anos na arena política, seja no contexto do que vem sendo chamado de populismo (Arato e Cohen, 2022) ou da última pandemia (Hombeeck, 2020). A segunda interpelação teórica potencial, e é nesse sentido que a formulação simmeliana e sua fortuna são reconstituídas na segunda parte do artigo, é a da compreensão do individualismo como padrão de interação, figuração social do sujeito e devir histórico. Os impasses para a democracia, nessa perspectiva teórica, se relacionariam menos com a forma do Estado moderno e mais com um problema ético-político, além e aquém do poder jurídico.

Assim, o retorno aos clássicos se configura como um gesto comum da teoria contemporânea na constituição de uma história de seu próprio olhar, além de uma narrativa de um arquivo que serve como condição de possibilidade da emersão de um discurso autoral (Alexander, 1999; Weiss, 2019; Weiss e Benthien, 2017). Afinal, como a sociologia histórica demonstra, o que acontece no presente não é apenas atual, mais processual, e processos de individuação podem se servir de formas e padrões seculares de reprodução de desigualdades sob uma fachada de modernização[3]. Isso acontece especialmente em sociedades como a brasileira, profundamente marcada por experiências de autocracia, escravidão e desigualdades duráveis como as que vemos hoje. Mas a história não se fecha e, como diria Durkheim, nesse aspecto seguido por boa parte da teoria atual, não se trata de elaborar uma utopia de retorno a um estado prévio de suposta estabilidade de laços comunais como alternativa ao "individualismo", "hiperindividualismo" ou "atomização" contemporâneos (Giddens, 1997, p.130-131, Vandenberghe, 2014, p. 298). Mas de, considerando a estrutura de oportunidades estabelecida pelo processo de individuação, agir estrategicamente sobre práticas de si para a liberdade (em seu sentido positivo, enquanto superação das relações de dominação) bem como na disputa pelas figurações do sujeito em circulação na cultura.

Em Durkheim (e seus comentadores), a questão aparece num texto de intervenção do autor endereçado a um debate público acirrado de seu contexto, o já mencionado caso Dreyfus. Nele, se interpenetram os problemas do papel político e social do intelectual, a discussão sobre a ideia de individualismo mobilizada pelos atores da disputa, a autoridade moral do Estado, sua proteção de direitos individuais e possível forma democrática. Além desse texto, elementos dessa interpelação têm formulação em vários outros de seus escritos mais estritamente acadêmicos, como os que tratam da solidariedade, egoísmo e anomia, também legíveis em paralelo à fortuna crítica. E essa fortuna, bastante diversa, é composta desde pesquisas históricas e biográficas, do tipo vida-e-obra, até leituras criativas que estabelecem o clássico como uma espécie de precursor dos estudos culturais, por exemplo.

Já em Simmel, o individualismo está nas mudanças estruturais nas economias de interação afetadas por processos como a urbanização e a monetarização das trocas, assim como nas representações de modos de vida baseadas em figuras sociais. Diferente de Durkheim, seu enquadramento do problema proposto se articula menos em termos das relações entre Estado e sociedade e mais como uma reflexão ética que exprime as contradições dos conflitos entre indivíduo e sociedade na forma de uma estética. Sua fortuna, também marcada por uma grande diversidade, tem trabalhos que vão da organização e introdução de textos dispersos para um público novo, como foi o norte-americano em determinada altura, até apropriações heterodoxas que aproximam o clássico ao pensamento de filósofos continentais em atividade até bem recentemente.

Como se vê, são autores e recepções bastante diferentes entre si. E é daí mesmo que parece vir o maior ganho de sua leitura, se não propriamente comparada, pelo menos simultânea. A relação indivíduo-sociedade é fundamental para a organização do pensamento de ambos (Lukes, 1973, p. 19-20; Waizbort, 2013, p. 491), mas o que se quer dizer por isso em cada um é bastante distinto. Em Durkheim, a dicotomia entre o social e o individual é uma função metodológica da distinção ontológica entre dois planos de realidade, o que estressa ao máximo o ponto da autonomia do social, irredutível à soma das partes. Em Simmel, também há polaridades, mas elas têm apenas a função instrumental de capturar a dinâmica de um movimento. Sua ênfase na interação contingente, em oposição à pura determinação social da conduta, faz um giro de perspectiva que permite ver as coisas de outro ângulo, como era do gosto do autor em suas aulas e conferências públicas na Berlim da virada do século.

As ideias, imagens e figurações não são apenas produtos sociais, mas também produtores de sociação. E a teoria é também ela mesma uma figuração, que atende a interesses e oportunidades do seu tempo presente, mas, ao mesmo tempo, os supera. Por isso (re)ler os clássicos, para produzir curtos circuitos políticos e cognitivos entre perspectivas e historicidades. Para fazê-los capazes de um lampejo em um momento de perigo. Repetindo o gesto de olhar para o passado, espero poder oferecer à leitura uma pequena diferença de perspectiva para o presente.

Durkheim: individualismo, autoridade e a religião da humanidade

Em 1898, em meio à crise aberta na opinião pública francesa a respeito do caso Dreyfus, Émile Durkheim publica na Revue bleue o artigo O individualismo e os intelectuais (2016). O texto de intervenção pode ser lido como um ponto de inflexão no pensamento do autor em torno do problema do individualismo (Miller, 2016), cronologicamente situado entre os livros mais rotineiramente referenciados Da divisão do trabalho social ([1893] 1999) e As formas elementares da vida religiosa ([1912] 2003). Naquele ensaio, é possível perceber ao mesmo tempo a interpretação dada pelo teórico ao papel do intelectual na vida política da sociedade moderna bem como seu próprio movimento individual, relacionado a esse papel, de discutir e precisar os princípios que regem as posições e ideias em jogo numa determinada disputa (Durkheim, 2016, p. 39). Uma dessas ideias, usada de maneira pejorativa pelos anti-dreyfusards que defendiam a prevalência da razão de Estado e da imagem do exército sobre o devido processo legal, no caso concreto, é justamente o individualismo (Lukes, 1973, p. 9-10).

Nesta seção, procuro reconstruir a concepção de individualismo presente na obra de Durkheim em seus embates com o utilitarismo economicista de seu tempo, de um lado, e em sua relação com a filosofia política revolucionária iluminista, de outro (Lukes, 1969; 1972, p. 340; Vandenberghe, 2014, p. 270). Assim, sua formulação do individualismo moral aparece como um ponto central da discussão sobre liberdade em voga no contexto republicano francês -- às voltas com o problema da autoridade moral e da solidariedade social ­-- sem deixar de lado configurações problemáticas da relação indivíduo-sociedade, como as que ele denomina egoísmo e anomia, e que também discutirei em maior detalhe em paralelo com sua fortuna crítica.

O caráter altamente situado do texto de que parto para essa reconstrução, quase um panfleto em sua fatura e circulação, demonstra um pouco da importância política da discussão conceitual na época (e ainda hoje) ­e permite uma leitura da recepção crítica por ângulos menos rotinizados. Como Steven Lukes propõe em sua biografia do autor (1972), Durkheim opera no artigo uma inversão do argumento anti-Dreyfusard segundo o qual a nação não poderia arriscar sua unidade em nome do destino de uma só pessoa. Sua afirmação, em contrário, é a de que o valor da dignidade humana (e do direito a um julgamento justo) é um dos únicos que poderiam compor a unidade moral de uma sociedade tão diferenciada (2016, p. 342)[4].

Dessa forma, Durkheim qualifica o individualismo moral distinguindo o termo de certa confusão com o que chama de "egoísmo utilitário de Spencer e dos economistas" (2016, p. 41). Esta última seria apenas uma dimensão do fenômeno social, marcada pela ignorância dos "interesses superiores aos interesses individuais", sem os quais "toda vida comum seria impossível" (ibidem). O "outro individualismo", pra além daquele dos economistas, seria "o de Kant e de Rousseau, o dos espiritualistas, o que a Declaração dos Direitos do Homem tentou com mais ou menos sucesso traduzir em fórmulas" (2016, p. 43). Nele, longe das preferências ou apetites individuais, as maneiras de agir consideradas morais "são aquelas que podem convir a todos os meninos indistintamente, ou seja, que estejam implicadas na noção do homem em geral" (ibidem).

Num cenário histórico de convulsão social em que os partidários da "ordem" rapidamente acorreram a argumentos sobre a "decadência" da sociedade francesa para legitimar a punição ao oficial Dreyfus (Brunetière, [1898] 2016), Durkheim avança sua tese a respeito do caráter propriamente sagrado, "no sentido ritual do termo", da noção de pessoa humana abstratamente compartilhada.

Desse ponto de vista, o individualismo em Durkheim não só é irredutível à "anarquia", ou aos interesses utilitaristas pressupostos pelos economistas, mas se configura no "único sistema de crenças que pode garantir a unidade moral do país" (Durkheim, 2016, p. 53). Essa religião moderna merece ser assim chamada, explica o autor, pelo simples fato de consistir numa série de práticas e ideias associadas a uma representação social de fundo, capaz de produzir adesão a uma moral situada acima dos fins privados. Essa moral individualista, explorada no argumento por meio de seus representantes filosóficos é, portanto, apenas a expressão racional da religião da humanidade numa era desencantada.

Ou seja, para surpresa dos críticos conservadores contra os quais o texto se insurge, não só essa moral não se opõe aos fundamentos do cristianismo como os aprofunda (Lukes, 1969, p. 15). Para Durkheim, ao associar o valor das condutas à intenção, "coisa íntima por excelência" (2016, p. 57), essa matriz religiosa alça o indivíduo naquilo que tem de mais abstrato e compartilhado à posição de centralidade na definição do que pode ser considerado como valor legítimo. A tarefa da Terceira República, que o intelectual busca interpelar, seria a de colocar o individualismo e as liberdades civis a serviço do desenvolvimento das faculdades individuais, da dignidade e da justiça. Sua legitimidade derivaria da força da própria noção de indivíduo abstratamente compartilhada, cuja proteção, na forma do reconhecimento e garantia de direitos, daria materialidade à noção de democracia do autor.

Embora a articulação entre individualismo e política não seja frequentemente enunciada como um dos grandes temas em Durkheim, cumpre destacar que seus dois termos têm papel importante na reflexão que estrutura a sua obra a respeito das formas de mudança e coesão social na passagem das sociedades para a modernidade. Fazendo um recuo a Da divisão do trabalho social (1999), é possível visitar a esse respeito a conhecida dicotomia entre os tipos de solidariedade orgânica e mecânica associados respectivamente às sociedades complexas e segmentares. Nessa passagem, o que se percebe é a evolução de uma dinâmica de solidariedade por semelhança para uma situação em que a divisão do trabalho simultaneamente aprofunda as diferenças do indivíduo em relação ao coletivo e aumenta sua dependência em relação a seus semelhantes (Souza, 2018, p. 656-660).

Essa evolução, no entanto, não acontece de maneira igual em todas as sociedades ou contínua e linear no interior de cada uma delas. Ocorre, portanto, que o processo de modernização pode incorrer também em formas do individualismo prejudiciais à coesão social, diferentes daquela analisada (e mesmo defendida) em O individualismo e os intelectuais. É a elas que Durkheim se refere basicamente pelas categorias do egoísmo e da anomia. Antes de passar propriamente à política, portanto, mas introduzindo problemas que serão importantes para a interpretação das concepções de liberdade e democracia do autor, vale reconstruir as diferenças entre aquelas categorias e o individualismo moral, como forma de melhor qualificá-lo no contraste. Como pano de fundo, fica o dilema entre liberdade individual e coesão social: é no sentido de apresentar duas configurações problemáticas que o egoísmo e a anomia aparecem ora como patologia, ora como produtos de um laço social engendrado na contradição entre modernidade e capitalismo.

A princípio, egoísmo e anomia descrevem tipos de suicídio em O suicídio (2000), enquanto a segunda categoria qualifica um dos tipos indesejáveis da moderna divisão do trabalho (1999). Embora haja certa concordância na literatura secundária em relação ao caráter ambíguo e até contraditório das qualificações (Bowring, 2016, p. 9-12; Giddens, 1998a, p. 122) não é incomum se ler que, em síntese, o egoísmo em Durkheim é caracterizado por um déficit de integração do indivíduo em relação ao grupo, enquanto a anomia derivaria de uma regulação deficiente dos objetivos da ação ou dos limites das ambições e desejos humanos. Em relação ao segundo termo, dois exemplos são frequentemente citados: a anomia econômica, consequência da ideologia do progresso, e a anomia sexual, derivada do afrouxamento do laço matrimonial pela popularização do divórcio (Besnard, 2005, p. 71). Assim, o egoísmo seria cerebral e introspectivo, e a anomia passional e emotiva (Bowring, 2016, p. 9).

Contudo, interpretações como a de Giddens (1998, p.152-3) chamam a atenção para o caráter socialmente produzido do desejo cuja regulação insuficiente causaría a anomia. É a ele que o intérprete atribui a historicidade das ambições sem limites, mas conclui com uma formulação ainda bastante ambígua ao dizer que "o remédio da anomia não consiste na reimposição da disciplina moral tradicional, repressiva, mas no avanço futuro da moralidade liberal do individualismo" (idem, p. 155). Assim, ainda que reconheça sua dimensão social, Giddens qualifica o fenômeno como um déficit regulatório derivado das mudanças sociais envolvidas na transição da solidariedade mecânica para a orgânica. Algo como uma situação em que o velho já morreu, mas o novo ainda não pode nascer.

É num sentido bem diferente que Bowring (2016, p. 9-12) fará a leitura dessas mesmas ambiguidades. Partindo da constatação a respeito da dimensão mental ou intelectual ­-- e portanto social -- da anomia e passando pela explicação de Durkheim da relação entre a popularização do divórcio e a baixa incidência da dimensão sexual do fenômeno entre as mulheres, ele conclui que "para os homens, na análise de Durkheim, claramente não se trata (ou não apenas) de um déficit civilizatório mas de uma 'hipercivilização o que produz a tendência anômica'" (Durkheim apud Bowring, 2016, p. 10, tradução minha, ênfase do original). A respeito da mesma doutrina do progresso citada anteriormente, e no sentido da leitura acima, Bowring cita passagens de O suicídio em que se lê que "toda a moralidade da perfeição e do progresso é [\...] inseparável de uma certa quantidade de anomia" (Durkheim apud Bowring, 2016, p. 10, tradução minha)[5]. Assim, para Bowring, não faria sentido qualificar esse fenômeno como um incremento dos sentidos "biológicos" do corpo ou de apetites pré-sociais na ação do indivíduo, em oposição à sua dimensão social-significativa.

A mesma leitura alternativa da ambiguidade é feita pelo autor em relação ao egoísmo. Com base na oscilação textual do próprio Durkheim entre uma qualificação positiva e negativa do fenômeno, Bowring se detém sobre a relativamente alta incidência do suicídio egoísta entre intelectuais analisada em O suicídio com um argumento semelhante. Sobre a intelligentsia, cita-se trecho de Durkheim atribuindo o fato ao "estado de individualismo moral" em que esta geralmente se encontra (Durkheim apud Bowring, 2016, p. 11, tradução minha). Ou seja, novamente o fenômeno conta com bases textuais na teoria para ser compreendido não como uma falta de integração do indivíduo em relação a uma moral compartilhada, mais como característica própria de determinado laço social. O individualismo transformado em religião secular da modernidade não se confunde com a anomia ou o egoísmo, mas pode se assemelhar a eles o suficiente, em determinadas situações, para promovê-los.

Assim, fica claro o propósito mais interventivo de Durkheim quando, ao caracterizar o individualismo como forma de solidariedade moderna, propõe que esta tende a se organizar em torno de consensos normativos cada vez mais frouxos e abstratos em torno de ideias como a de equidade (Marske, 1987, p. 10-11). Sem desvencilhar totalmente o individualismo moral, que tem por efeito o reconhecimento de uma dignidade humana universalmente compartilhada, das suas formas ou dimensões anômicas e egoístas, o clássico termina Da divisão do trabalho social com o conhecido enunciado de que a tarefa das sociedades modernas é uma tarefa de justiça. O individualismo, portanto, como campo de forças e dimensão do conflito social, é também pressuposto do raciocínio político. Isso na medida em que coloca tarefas e obstáculos à realização dos indivíduos e da sociedade em simultaneidade de autonomia e participação, além de definir um papel específico para o Estado nesse processo (em que a liberdade aparece como valor de primeira ordem) (Souza, 2018, p. 659).

Se é verdade que a divisão do trabalho cria uma realidade não apenas material, mas moral a que se chama solidariedade orgânica, determinadas formas desse trabalho podem se associar a dimensões anômicas, egoístas e por isso mesmo até suicidas dos processos de individuação em curso nas sociedades. A esse tipo de individualismo associado ao livre mercado, fundado sobre os princípios da competição e do progresso de tendência anômica, pode se opor, no entanto, a ação política mediada pelo Estado; seja na função de libertar os indivíduos de relações de dominação tradicional por meio da igualdade jurídica (Lukes, 1972, p. 324); seja fomentando uma moral universalista de reconhecimento compartilhado de direitos e de coesão a partir de laços de interdependência e convivência na diferença (Souza, 2018, p. 659-660). Dessa forma, como aponta Giddens (1998a), é que a sociologia política e a reflexão sobre o individualismo se interpenetram profundamente em Durkheim.

Um dos nexos fundamentais dessa relação, já aludido no início desta seção, mas que vale retomar, está naquilo que o intérprete considerou "o principal problema sociológico com o qual Durkheim se ocupou em todas a suas principais obras: a teoria da autoridade moral" (Giddens, 1998a, p. 105). Numa leitura de contexto, Giddens chama especial atenção aos efeitos da Revolução Francesa e da vitória alemã sobre a França de 1870-1871 sobre o pensamento do nosso autor, que se via no século XIX diante de uma sociedade marcada pela combinação desigual de rupturas e permanências políticas captadas em parte, e desde cedo, pelo Tocqueville de O Antigo Regime e a Revolução (2009). Na comparação com a situação alemã e as preocupações teóricas de Max Weber, com quem Durkheim compartilhava o problema da autoridade e da dominação, o comentador escreve que enquanto entre os germânicos o estudo do Estado moderno passava primordialmente por uma preocupação com o "capitalismo", na França "o problema estava colocado dentro do contexto do confronto duradouro entre o 'individualismo', incorporado nos ideais da Revolução, e as reivindicações morais da hierocracia católica" (idem:106)[6].

O conceito de individualismo moral, portanto, conforme explicitado na intervenção de Durkheim no caso Dreyfus, tinha como fonte imediata os ideais da Revolução de 1789. Diante da decadência da autoridade moral religiosa enquanto código universalmente compartilhado, quase como aquilo que poderíamos considerar uma consequência do "desencantamento do mundo" weberiano, o "culto do indivíduo" era "a única forma moral possível numa sociedade industrial que possuísse uma divisão do trabalho altamente diferenciada" (Giddens, 1998, p. 108). E o Estado, na perspectiva durkheimiana, é um agente moral cuja força reguladora se exerce pelo costume e pela lei (idem, p. 115) na sua tarefa de implementação and fomento dos direitos individuais (idem, p. 125). A "democracia", assim, é no autor algo que diz respeito "à relação entre o agente político diferenciado ­­-- o Estado -- e as outras estruturas institucionais da sociedade: mais especificamente [\...] ao grau em que houvesse reciprocidade de comunicação entre Estado e sociedade" (idem, p. 128). E as associações profissionais, por sua vez, seriam instâncias de mediação entre Estado e indivíduo que garantiriam essa relação de comunicação, prevenindo a dissolução ou indiferenciação entre indivíduo e sociedade (ou vontade coletiva) numa forma política autocrática.

É evidente a correlação que se estabelecer, daí, entre determinado tipo de individualismo e determinada forma de governo ou, em termos mais gerais, entre Estado e sociedade. Para não reduzir Durkheim ao nacionalismo metodológico e ao a-historicismo de que é tantas vezes (injustamente) acusado, no entanto, é necessário repetir o que já se disse a respeito do problema no autor: para ele, diferentes laços sociais, práticas e processos de individualização, associadas a formas de vida, profissões e diferenças de todo tipo existem em conflito nas situações históricas. Mas entre essas diferenças é possível identificar formas mais e menos democráticas, tanto de governo quanto de individualismo.

Para Durkheim, a sociedade é a "instância moral primordial" (Cohn, 1999, p. 36) que une seus membros num mundo dividido em sentidos e funções; o individualismo, aquilo que na modernidade se estabelece enquanto unidade moral possível, dada a enorme diferenciação interior por que passam as sociedades. E o Estado é o "órgão capaz de produzir uma consciência clara do que convém à sociedade e de aplicá-la pela via da law, sempre em conformidade com sua tarefa maior, que é a de assegurar os direitos individuais" (idem, p. 37). O liberalismo em Durkheim, portanto, embora não se livre das contradições que existen entre os valores revolucionários burgueses e o capitalismo, como apontado especialmente por Marske, se formula de uma maneira peculiar porque não se funda no interesse, mas na adesão moral dos indivíduos à sociedade (Cohn, 1999; Pinheiro Filho, 2004).

Isso significa que ideais abstratos como o de justiça e liberdade se tornam centrais para a política tanto na arena discursiva como na das práticas em geral. E que ainda que a sociedade se divida em inúmeras frações, é possível encontrar representações transversais que tenham a aderência de muitas ou quase todas elas (Pinheiro Filho, 2004). É a isso que Gabriel Cohn atribui o potencial de diálogo da theory durkheimiana com a noção contemporânea de complexidade[7] (idem, p. 34-5), o que o leva a ler no autor uma utopia não explicitada em que a sociedade é a um tempo, no limite, "plenitude da participação associada à plenitude da realização pessoal" (idem, p. 36). É que, tragicamente, o autor lida de forma não-disjuntiva com "dualidades irredutíveis (o individual e o social, o sagrado e o profano e assim por diante) e uma concepção de fundo marcada pelo anseio à unidade íntegra, à plenitude da experiência e da consciência" (ibidem).

É nesse sentido que, para uma última formulação do nosso problema, é possível ler na teoria durkheimiana tardia (principalmente a partir de As formas elementares da vida religiosa [2003]) a base de uma sociologia política da cultura em que as mediações entre individualismo e política, moralidade e poder se tornam particularmente visíveis. Esta é a aposta de Jeffrey Alexander (1988; Alexander e Smith, 2005), que traça na introdução a Durkheimian sociology: cultural studies (1988) toda uma linhagem que chega aos estudos culturais do fim da década de 1980 a partir das proposições fundamentais do clássico em torno da autonomia do simbólico e seu papel nas sociedades seculares. Nesse livro, Hans-Peter Muller (1988) desenvolve uma teoria crítica da religião civil em Robert Bellah em situações de crise de legitimidade do Estado moderno. Para isso, entrelaça "os níveis cultural, institucional e individual de uma forma que elucide a interação entre eles ­-- entre a religião secular do individualismo moral, a configuração institucional de uma ordem social diferenciada e os contornos da autonomia individual" (Muller, 1988, p. 141, tradução minha). Assim, conclui, é que "dessa perspectiva, uma crise de legitimidade pode surgir se as performances econômica e política do Estado ignorarem os imperativos culturais da ordem social" (idem, p. 133, tradução minha). Ou, em outras palavras, se o Estado ignorar os fundamentos sociais de sua autoridade moral, de que a variante local do individualismo é um dos elementos centrais.

Como quis demonstrar, a teoria durkheimiana e sua fortuna podem ser mobilizadas no estudo da relação entre individualismo e política de maneira a reinserir a cultura -- e de um modo geral, a sociedade -- no raciocínio sobre o Estado e as formas de governo de maneira não-disjuntiva. A articulação entre esses polos, para finalizar a interpretação da contribuição pretendida do clássico e seus leitores, permite posicionar Durkheim contemporaneamente num entre-lugar de processos de individuação e subjetivação em curso in dinâmicas locais e globais de média e longa duração. Por um lado, ao levar em consideração o elemento macrohistórico da mudança na realidade moral do individualismo; por outro, ao levar a sério as figurações sociais do sujeito livre, repertório fundamental dos atores em sua luta entre a emancipação e a sujeição.

Simmel: individualidade, formas sociais e a estética como política

Nas palavras de Leopoldo Waizbort, o tema do indivíduo e sociedade em Simmel é uma espécie de "baixo contínuo" que perpassa toda sua filosofia da cultura e theory do moderno (2013, p. 491). Para além da pertinência da metáfora musical, arte cuja relação com o princípio do movimento Simmel reputava moderna por excelência (2016), essa condição impõe algumas escolhas diante da fragmentariedade e assistematicidade do trabalho do autor, as quais permitiriam a abordagem deste e de outros problemas quase que de qualquer ponto de partida. Nesta seção, faço uma reconstrução de suas formulações sobre o individualismo a partir de três de seus ensaios e sua crítica contemporânea. São textos, inicialmente, sobre o dinheiro, as grandes cidades e as concepções históricas do indivíduo nos séculos XVIII e XIX na Europa, mas cujas teses se encontram num sentido de exploração processual e relacional da subjetividade moderna, seus móveis e dimensões.

Se por um lado o individualismo em Simmel excede as fronteiras de uma questão estritamente sociológica, convertendo-se em aspecto central de sua filosofia da vida (Pyyhtinen, 2010), por outro é possível capturar suas contribuições para o debate sociológico com uma visada que conjugue duas vertentes. Estas duas frentes, ou faces de um mesmo objeto, são a ideológica e aquela relativa a processos alteradores dos padrões de relação na modernidade (Alves e Maciel, 2017). Longe de descrever variáveis independentes, trata-se de uma dicotomia instrumental, usada com a finalidade analítica de compreender uma dinâmica do pensamento ao estilo do autor (Vandenberghe, 2005, p. 18).

A vertente ideológica é aquela ligada à investigação de formas de representação e da conformação cultural de tipos de individualismo. Exemplo de estudo nesse sentido é o conhecido trecho das Questões fundamentais da sociologia, ilustrativamente nomeado "Indivíduo e sociedade nas concepções de vida dos séculos XVIII e XIX (exemplo de sociologia filosófica)" (2006, p. 83-118). Já a vertente associada aos processos alteradores dos padrões de relação é aquela que investiga de forma mais imediata o dinheiro, a divisão do trabalho, a urbanização, e outros temas afins. Sobre estes últimos, são especialmente ilustrativos os ensaios "O dinheiro na cultura moderna" (2013) e "As grandes cidades e a vida do espírito" (2005).

No primeiro deles ([1896] 2013), é possível ler uma das elaborações do individualismo moderno mais frequentemente atribuídas a Simmel: a do indivíduo como interseção, ou ponto de cruzamento, dos círculos sociais (Waizbort, 2013, p. 489). Numa interpretação que procura extrair sentido das muitas mudanças de seu tempo, o autor começa por demarcar uma oposição em relação aos padrões de interação da Idade Média europeia, em que a pessoa se encontrava em permanente vínculo com a comunidade e a propriedade comunal. Em suas palavras, "sua personalidade estava fundida a círculos de interesse objetivos ou sociais, e estes, por sua vez, recebiam seu caráter das pessoas que os mantinham de maneira imediata" (2013, p. 51).

Essa fusão, ou unidade, se quebra na modernidade na forma de uma separação entre sujeito e objeto afetada, em seus dois polos, pela economia monetária. Assim, a uma crescente impessoalidade do ato econômico corresponde um incremento da autonomia e independência da pessoa, que passa a integrar laços em que a coincidência entre personalidade and relações materiais é dissolvida pela mediação do dinheiro. Passa-se assim de um regime de associação como o das guildas, que se traduzem em verdadeiras "comunidades de vida" integradas pela pessoa em sua totalidade, ao das sociedades anônimas, no limite, que não exigem senão a contribuição em dinheiro do indivíduo e se orientam pelo simples interesse de sua valorização. A separação e a reserva dos agentes, nesse novo arranjo, são fundamentais para a forma da cooperação, em tudo diferente daquela que vigora nos regimes que pressupõem e produzem pessoas enquanto totalidades (e não indivíduos dotados de múltiplas facetas discretas).

Associada a essa dinâmica, para o autor, vem a ampliação e multiplicação dos círculos sociais dos agentes que, mediados pelo dinheiro, aprofundam a divisão do trabalho, aceleram as trocas e aumentam sua interdependência. Se em épocas anteriores a dependência do sujeito se reduzia a alguns pares determinados, com quem nutria relações personalizadas, na modernidade o número de fornecedores com o qual se interage cresce, ao passo que a dependência em relação à contraparte determinada diminui. "[T]al relação deve gerar um forte individualismo, pois não é o isolamento perante os outros, e sim a relação com eles, embora sem consideração por quem exatamente se trata [\...] o que aliena os homens uns dos outros e remete cada um a si mesmo." (Simmel, 2013, p. 56)

Assim, o dinheiro articula tendências aparentemente contraditórias da cultura moderna numa mudança qualitativa das interações: de um lado, há o nivelamento e abrangência cada vez maiores de círculos sociais que conectam conteúdos cada vez mais remotos; de outro, o desenvolvimento da individualidade, da autonomia da pessoa e sua interdependência. O dinheiro é capaz de fazer isso por ser, a um tempo, um meio que atende aos interesses mais distintos, possibilitando sua equalização, e que possibilita a reserva, a individualização e a liberdade em relação aos laços de fixidez locais e comunais.

A liberdade produzida nesse arranjo, portanto, tem uma conotação eminentemente negativa. Usando como exemplo o instituto jurídico da solvência de obrigações pessoais pela prestação pecuniária, Simmel associa à liberdade representada por essa faculdade um esvaziamento dos conteúdos da vida, o afrouxamento da sua substância e sentimento de vacuidade por parte dos atores (Simmel, 2013, p. 58). A impossibilidade da expressão dos aspectos qualitativos dos objetos em sua forma quantitativa (valor) é o que explica, quando generalizada, algo da "insatisfação" e "inquietação" de sua época (Simmel, 2013, p. 59). No domínio psicológico, o processo corresponderá ao caráter blasé das camadas abastadas; no da ação social, à autonomização do dinheiro como valor e objetivo e à colonização dos fins pelos meios da ação.

Essas teses são estruturantes da concepção da modernidade em Simmel, de que o processo de individuação é um polo fundamental, e se repetirão em outros de seus ensaios. Em "As grandes cidades e a vida do espírito" [1903], espécie de versão ampliada do capítulo final de Filosofia do dinheiro (2005, p. 590), é possível ler o development do individualismo contra o pano de fundo da urbanização e do espaço da metrópole como locus da intensificação da economia monetária e da divisão do trabalho. Desde seu parágrafo de abertura, o que está em jogo é "a pretensão do indivíduo de preservar a autonomia e a peculiaridade de sua existência frente às superioridades da sociedade, da herança histórica, da cultura exterior e da técnica de vida" (Simmel, 2005, p. 577).

Para o autor, no entanto, ao mesmo tempo em que a disjunção moderna entre os domínios subjetivo e objetivo da existência se reveste de um caráter trágico (2014), a sociedade é algo constituído na e pela interação, entre forças e formas que medeiam os indivíduos (Frisby, 1992, p. 11). Diferente de Durkheim, segundo qual o individualismo pode ser interpretado como um fato social agindo sobre os indivíduos, cujas consciências se cingem entre uma dimensão social e outra íntima às quais não é possível aderir simultaneamente (1999), em Simmel a oposição entre as dimensões social e singular da consciência pode chegar a sínteses da contradição -- como ocorre no fenômeno da moda (Pyyhtinen, 2010, p. 142; Vandenberghe, 2005, p. 107). No caso citado, havería ao mesmo tempo a obediência a uma regra social e um impulso de diferenciação: o indivíduo moderno aspira a uma totalidade que inclui todos os seus contrastes. Assim é que, pela reflexão sobre a urbanização, é possível discutir aspectos de estruturas subjetivas, formas e contradições do individualismo e seus tipos (e vice versa).

Nas palavras do autor, "o fundamento psicológico sobre o qual se eleva o tipo das individualidades da cidade grande é a intensificação da vida nervosa, que resulta da mudança rápida e ininterrupta de impressões interiores e exteriores" (2005, p. 577-578, grifo do original). É com base nesse enunciado que Simmel retoma no novo ensaio o argumento sobre a economia monetária, sua objetivação e despersonalização das trocas no espaço da cidade, para aprofundar a tese já enunciada sobre o caráter blasé das camadas abastadas, agora expandindo-a aos habitantes da grande cidade (2005, p. 581). A essa "incapacidade de reagir aos novos estímulos com uma energia que lhes seja adequada" (ibidem) por conta de sua intensidade, repetição e prevalência do caráter quantitativo sobre o qualitativo, ele adiciona a afortunada categoria do "embotamento" da percepção frente à distinção das coisas. Essa dinâmica, ligada também à ideia de "reserva" como medida de uma liberdade pessoal paradoxalmente produzida pela experiência da multidão-solidão, remete novamente à ampliação e multiplicação dos círculos sociais como fator produtivo-produzido do e pelo indivíduo.

Se em "O dinheiro na cultura moderna" deu-se maior ênfase a um aspecto negativo da liberdade, que rompeu com os laços sociais fixadores da pessoa ao local e comunal, agora entrará em cena um aspecto positivo do mesmo processo. Trata-se daquela liberdade, posterior à ideologia igualitarista, que os indivíduos têm de diferenciarem-se entre si; uma liberdade para o cultivo e expressão das singularidades. O espaço urbano, com todas as características mencionadas, será a arena em que dois tipos de individualismo existem em conflito: o quantitativo e o qualitativo; o do século XVIII e o do XIX; o de Rousseau e o de Goethe. É sobre estas duas expressões do fenômeno que o "exemplo de sociologia filosófica" do autor se deterá, no excurso final de suas Questões fundamentais da sociologia ([1917] 2006). Nele, a preocupação "filosófica" da sociologia é em parte uma epistemologia e, em parte, algo próximo a uma sociologia das ideias (ou de uma metafísica da sociologia, para Pyyhtinen [2010, p. 34]).

Simmel retoma nesse texto, com o qual exploro a chamada vertente ideológica de sua elaboração do individualismo, o problema fundamental da vida individual como base do conflito entre indivíduo e sociedade. Para isso, recorre à perspectiva das mudanças qualitativas nas "concepções de vida" do XVIII e XIX europeus. Aquele conflito entre indivíduo e sociedade, construtivo ou destrutivo, existe para o autor no complexo de forças e formas dentro e fora do ente dividido in partes, que se colidem pela determinação da ação individual. Se essa divisão existe, ela não permite, no entanto, que falemos de um divíduo: para ele "A contraposição entre o todo [sociedade] --- que exige de seus elementos a unilateralidade das funções parciais --- e a parte [indivíduo] --- que pretende ser ela mesma um todo --- não se resolve a princípio" (2006, p. 84).

Partindo de uma dicotomia para romper com outras, portanto, o ensaio recusa a oposição entre egoísmo e altruísmo, que reputa falsa. Isso porque a "autoperfeição individual" alçada à condição de valor objetivo realiza um ideal do mundo, no mundo, para o mundo. O efeito para a sociedade da elaboração e prática de um regime de si é o domínio da ética por excelência para Simmel, que recusa a disciplina na sua feição kantiana do "dever" em favor do desenvolvimento de uma ideia de "lei individual", de aspirações nietzschianas, por cada singularidade. Seguindo o percurso histórico a que se propõe, no entanto, e sem deixar de lado a relação entre as duas formulações da filosofia moral supracitadas, ele segue para a exploração do que interpreta como a sublimação do conflito entre o social e o humano no século XVIII pela elaboração da necessidade abstrata de liberdade individual.

Essa concepção de liberdade, que está na base do que ficará conhecido na theory simmeliana como individualismo quantitativo, é aquela de feição negativa, que emancipa em relação às "amarras com que a sociedade enquanto tal amarrou o indivíduo" (idem, p. 91). Ela está na ideia de Rousseau da violação do ser humano pela sociedade como origem de todo mal; na Revolução Francesa e sua proibição das associações de trabalhadores em guildas e corporações; em Kant e sua concepção do "eu" portador do mundo cognoscível cuja autonomia absoluta é o valor ético por definição. Nesse universo, se as formas sociais "tradicionais" do XVIII são interpretadas como repressão das energias do indivíduo, sua liberdade em relação a elas é formulada como um estado "natural" (idem, p. 93).

Essa emancipação, no entanto, impõe seus próprios paradoxos: numa de suas contradições internas, ela implica que num cenário de desigualdades "a liberdade dos privilegiados iria se desenvolver a custa da liberdade dos oprimidos" (idem, p. 94). A plena liberdade, assim, só poderia se desenvolver com a total igualdade. A relação entre esses princípios estabelecería uma antinomia que, para Simmel, só se resolve no extremo negativo da ausência de propriedade e de poder, e que pode ser ilustrada pela proposição de Goethe que associa, de um lado, a igualdade à subordinação à norma universal e, de outro, a liberdade à busca pelo incondicionado. A solução possível para o impasse seria uma interpretação do valor da fraternidade como altruísmo, no sentido da renúncia moral ao privilégio. Esse, no entanto, foi um problema que o século XVIII europeu não resolveu, ficando restrito ao par igualdade-liberdade na tarefa de destruction da ordem do Antigo Regime.

No século XIX, já num segundo passo do argumento da vertente ideológica do problema em Simmel, o conceit de individualidade visto até aqui se desdobra em um novo tipo de individualismo: o da incomparabilidade do individual. "Tão logo o eu se fortificou suficientemente no sentimento de igualdade e universalidade", explica o autor, "ele buscou mais uma vez a desigualdade, mas somente aquela estabelecida de dentro para outside. [\...] não se trata mais de ser um indivíduo livre, e sim que esse indivíduo seja específico e insubstituível" (idem, p. 111). A forma desse individualismo, de extração romântica, é identificada pelo autor no romance de formação Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe. Trata-se do paradigma da Bildung[8] como desenvolvimento da lei interior e objetivo civilizatório atribuído às práticas de subjetivação, uma espécie de enraizamento "no fundamento metafísico das coisas" (idem, p. 114) da diferenciação coproduzida pela divisão do trabalho.

Daí é que se chame esse individualismo de qualitativo, em oposição ao quantitativo do século XVIII. Ambos estão em relação estreita com a divisão do trabalho e a lógica da livre concorrência, como fenômenos de um mesmo processo. Se a concorrência pressupõe uma igualdade geral apta a produzir os melhores resultados pela competição, a divisão do trabalho é responsável pela solidariedade fundada na interdependência e no desenvolvimento de si como a entrega a um chamado, no sentido religioso. Já no plano político, o liberalismo do XVIII se limitaría a restringir pela law a liberdade dos entes indiferenciados na medida de sua igualdade, enquanto no XIX um antiliberalismo que aspira à produção de um "organismo total" busca conferir a cada um engajado na divisão do trabalho seu próprio lugar. "A especificidade dos indivíduos exige assim uma poderosa constituição política que lhes outorga um lugar, mas que, no mesmo movimento, se torna sua dona."[9] (idem, p. 116)

Diferente da abordagem durkheimiana, em que se investiga um substrato social que ao mesmo tempo conforma um individualismo e dá substância à autoridade moral do Estado, com Simmel é mais rentável trabalhar, portanto, em termos de uma ética que exprime as contradições do conflito indivíduo-sociedade na forma de uma estética. Se o primeiro autor parecia preocupado com a interpelação e construção intelectual da República francesa por uma sociologização (com aspirações instituintes) dos ideais revolucionários burgueses, o segundo se afasta dos debates sobre a social-democracia de seu tempo para investir cada vez mais na análise das formas culturais e sociais no sentido de um panteísmo estético[10], como maneira de compreender e elaborar "uma determinada atitude espiritual em relação ao mundo e à vida" (Simmel apud Waizbort, 2013, p. 7).

É nesse sentido que Levine (1971, p. xliii) interpreta seu interesse por protoformas sociais, formas lúdicas de socialização e formas objetivas da cultura enquanto objetos de uma sociologia e de uma cultura filosófica. Por protoformas, entende-se um estágio fragmentário e preliminar da emergência de formas de interação, ainda não plenamente objetivadas, durante uma ruptura da experiência imediata por algum tipo de estresse ou nova necessidade social. Nesse momento, além de não terem atingido autonomia, as formas sociais estão diretamente ligadas aos interesses práticos e exigências de adaptação da situação em jogo. Localizam-se, de certa forma, entre os indivíduos and a cultura, entre o subjetivo e o objetivo: pela ligação direta with a satisfação de necessidades práticas e pelo potencial não-realizado de abstração e autonomização (Levine, 1971, p. xliii).

Essas protoformas da vida social ganham autonomia em relação aos impulsos mais momentâneos do processo vital de duas maneiras. Pela combinação e organização em estruturas institucionalizadas (Gebilde), como Estados, sindicatos ou estruturas familiares, numa objetivação ainda ligada à práxis, em primeiro lugar. E, em segundo lugar, pela transformação direta de protocultura acumulada em formas puras da cultura objetiva. Nesse caso, o que se verifica são interações orientadas não para uma finalidade prática, mas para a fruição das suas próprias formas. É a essas que se pode chamar de formas lúdicas de socialização ("play" forms of sociality [Levine, 1971, p. xxvi]).

Nelas, a ausência de conteúdo prático remete a um desejo de participar da sociedade enquanto um fim em si mesma. "Em vez da busca sistemática da satisfação de interesses eróticos, pode-se jogar com os mesmos na forma da coqueteria. Em vez da persecução a sério de objetivos políticos ou econômicos, pode-se jogar agressivamente numa competição esportiva", exemplifica Levine (ibidem, tradução minha), fazendo referência a formas de socialização trabalhadas notavelmente pela sociologia simmeliana. "A forma da sociabilidade, assim, existe como a forma lúdica arquetípica de toda a socialização humana. Em todos esses modos de interação, a ênfase é na boa forma (good form)" (idem, p. xxvii, tradução minha, grifo do original).

Assim, para além da afinidade anunciada com o domínio estético na interpretação do social pelo uso da categoria de forma e o interesse pelo que seria a sua qualidade ou beleza, cabe chamar a atenção para a relação entre os elementos acima, fundamentais para a contribuição simmeliana, e a noção de liberdade com que se relacionam. Les protoformas sociais, primeiramente, por permitirem a observação da experiência individual no exercício de sua criatividade, inventando interações para a solução de problemas da vida antes de uma codificação que as transforme numa espécie de a priori da ação. As formas objetivas da cultura enquanto produtos do espírito livre em sua singularidade e estilo, como são as obras de arte de Goethe ou Rembrandt. E as formas lúdicas de socialização, e a sociabilidade em geral, enquanto modos de associação em que "a nota dominante é um sentimento de liberdade pessoal" (idem, p. xliii).

Em Durkheim, o foco recai sobre a relação entre o individualismo moral, a autoridade, e a função do Estado na garantia da liberdade do indivíduo e do corpo político. Lá, estão sempre a espreita o egoísmo e a anomia como frutos das contradições do processo social que, na ausência de endereçamento, podem abolir a fronteira entre os termos da relação e legitimar autocracias. Como solução, ganha destaque o papel de comunicação e mediação que associações e instituições como as de caráter profissional desempenham entre Estado e sociedade, garantindo o caráter republicano e democrático da regulação.

Se em Simmel a exploração do tema do individualismo pode ser feita por suas vertentes ideológica e de padrões de interação -- de modo semelhante ao que acontece no próprio Durkheim em sua trajetória do "material" ao "moral" -- sua leitura mais situacional do social e suas concepções da liberdade como valor e prática recolocam o problema de outra perspectiva. Desta vez, remetendo às gramáticas interativas como fatores mais ou menos construtivos das possibilidades de expressão, criatividade e cultivo dos indivíduos e da cultura política como um todo. Daí a importância, para ele, das protoformas sociais, formas lúdicas de socialização e formas objetivas da cultura enquanto objetos sociológicos e de uma cultura filosófica. É a construção desta, em sua dimensão política, mas sobretudo estética, que pode ser considerada o projeto de Simmel, necessariamente inacabado por colocar no centro da cena o conflito e a mudança social.

Conclusão

A mobilização do significante da liberdade na cena política global dos últimos anos é um dispositivo recorrente, dentro de uma retórica mais ampla, que configura limites entre o eu e o outro, o público e o privado, o abuso e a norma. Um dispositivo de subjetivação, portanto, que interpela os atores e mobiliza sua agência em favor de projetos políticos. Mas essa liberdade, ao contrário do que afirma alguma ciência política (ou sociologia) que subestima o peso da cultura na análise, não é só uma ideia. Ou melhor: é pelo fato de ser uma ideia implicada com determinadas representações e técnicas do sujeito que ela é parte do próprio campo estratégico que participa da definição do presente (e do papel da sociologia nele). Afinal, os atos de discurso dos atores políticos integram sistemas de produção de verdade, regimes de autoridade e práticas de subjetivação que governam a sociedade (Miller e Rose, 2008, p. 6). E o que os indivíduos podem querer ser e fazer está, em grande parte, related com o que lhes é oferecido enquanto representação pela situação cultural em que se encontram. Com base nessas representações, então, é que acontece o trabalho de cuidado e composição de si, o trabalho do indivíduo (Araujo e Martuccelli, 2010).

Na introdução deste artigo, sugeri que a repetição do gesto contemporâneo de releitura dos clássicos seria capaz de produzir um repertório para a reflexão sobre os desafios à democracia que determinadas configurações da relação entre individualismo e liberdade podem impor. Fora de uma prescrição normativa a respeito de qual sería a melhor composição dessa relação em um ou outro caso, me parece que o ganho analítico de um trabalho como esse é estabelecer um campo problemático a partir do qual enxergar a relação entre política e sociedade indo das condutas e interações mais microscópicas até as estruturas transhistóricas que participam do comportamento e consciência dos agentes, ainda que de maneira não-reflexiva. É em parte por isso que optei pelo contraste de dois autores e fortunas que operam em escalas tão diferentes.

Afinal, de que maneira a theory interpreta o papel do indivíduo na sociedade? Como identidades coletivas se interseccionam com interpelações singulares, e qual é o papel das figurações sociais do sujeito nesse processo? Faz sentido, dadas as condições do debate atual, mobilizar a polaridade indivíduo-sociedade para dar conta do problema? Em qual de suas formulações?

Algumas dessas perguntas só podem ser respondidas por uma sociologia política da cultura que leve a sério a dimensão estética do jogo de figurações e práticas de que a vida social é feita, ao mesmo tempo em que considere a história como componente estrutural da interpretação. Para isso, são fundamentais noções por meio das quais se faça possível matizar as gramáticas de mudança e permanência que compõem as relações sociais. É em parte a este projeto que tenho me dedicado nos últimos anos, por meio de uma leitura do pensamento social brasileiro em que se faça visível esse repertório de maneira diacrônica (Hombeeck, 2020; 2025). Se, para Durkheim, "o individualismo é um fenômeno que não começa em lugar nenhum, mas que se desenvolve, sem parar, ao longo de toda a história" (1999, p. 154) talvez seja possível pensar, então, que ele começa (ou pode começar) em todos os lugares; que o individualismo não pode ser considerado fora do lugar: não há lugar de que ele seja próprio. Daí a importância de uma reflexão sobre uma variante brasileira desse fato social, especialmente em sua função de suporte para as tendências autocráticas de um processo político que teima em reeditar seu passado.

Muitas formulações contemporâneas do princípio da liberdade que vêm circundando a comunicação pública estão largamente associadas àquela dimensão negativa, de ausência de impedimento à ação, que vimos ser discutida pelos autores e fortunas mobilizados. Liberdade, aqui, sería não contar com qualquer tipo de regulação apta a limitar a autonomia individual em favor da promoção do bem comum. Diante do problema político configurado por essas formas, que no limite impedem a formação de uma solidariedade apta a combater desigualdades, surgem outras leituras possíveis do mesmo princípio, baseadas na interpretação da liberdade como ausência de dominação ou como autonomia coletiva (entendida como conjunto de relações produtoras de igualdade). Não se trata, portanto, de opor individualismo e coletivismo ou holismo. Mas de, no limite, perceber o indivíduo como ambiente da sociedade (Corsi, 2015), ou a vida individual como base do conflito indivíduo-sociedade (Simmel, 2006). E, portanto, de interpretar a dimensão política do pensamento em sua relação com uma estrutura de oportunidades criada pelos processos de individuação ­-- pelo qual as sociedades produzem structuralmente tipos de indivíduos -- e a ação ética legível nas práticas de si orientadas para a liberdade.

Afinal, mesmo a ação coletiva, ou a constituição de sujeitos despersonalizados e desterritorializados, passa por uma elaboração de quem faz parte do movimento. Essa estética de si orientada para a prática da liberdade tem o potencial de agir em meio a culturas do indivíduo que produzem egoísmo, anomia e formas de reprodução social implicadas com desigualdades seculares. Não se trata aqui de resgatar um ideal de Bildung para preencher a lacuna entre o subjetivo ou objetivo, ou atingir qualquer ponto de salvação ou unidade última entre o Eu e o mundo. Mas de partir da própria fratura, e de sua história, para atuar nas bordas de lógicas (discursivas, normativas, éticas) de produção de subjetividades que nos fazem lutar por nossa própria sujeição como se estivéssemos lutando por nossa liberdade. Com Durkheim, Simmel e os comentários às suas obras, ficamos um pouco mais equipados para abordar esses problemas em sua complexidade. Para abrir, com o passado, uma perspectiva sobre o presente; para dimensionar, como numa prática, a força das ideias.

Notas

[1] Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/UFRJ) com bolsa Nota 10 (Faperj) e período sanduíche na New School for Social Research. Professor substituto do Departamento de Sociologia da UFRJ.

[2] Para um comentário sobre a contribuição da teoria psicanalítica à crítica de uma abordagem historicista do pensamento social, em especial no que se refere à ideia de transparência da intenção autoral, ver o texto canônico para a discussão da leitura dos clássicos de Alexander (1999, p. 77-78).

[3] Não quero dizer com isso que há formas mais e menos "autênticas" de modernização, muito pelo contrário: uso o termo fachada como ele ocorre em algumas traduções da tradição do interacionismo simbólico, na qual o jogo de máscaras da interação é a única realidade observável da apresentação dos agentes. Com esse vocabulário, de visível memória simmeliana, procuro chamar a atenção para as diferentes fisionomias da modernização em experiências históricas diversas, entre as quais não há igualdade ou diferença absolutas, mas uma semelhança que permite a comunicação, ainda que com irritações recíprocas.

[4] Para uma perspectiva sobre essa afirmação de Durkheim no contexto do debate sobre laicidade e pós-secularidade, especialmente em torno de sua sociologia da educação e do projeto para uma moralidade republicana, ver Weiss, 2017.

[5] Nesse ponto, a perspectiva de Bowring é semelhante à de Lukes (1972, p. 23).

[6] Para uma análise comparada do debate sobre o individualismo na França e na Alemanha, ver também Lukes, 1973; Para uma reconstrução extensiva do problema da moral em Durkheim, incluindo a questão da autoridade numa ordem pós-tradicional, ver Rosati e Weiss, 2015.

[7] Para uma reconstrução do debate envolvendo o problema da complexidade a partir da crítica da teoria clássica feita por Niklas Luhmann, ver Rodrigues e Neves, 2017.

[8] Para uma qualificação da Bildung enquanto projeto estético e filosófico, ver Koselleck, 2012 e Moretti, 2020. O próprio Simmel faz uma reflexão mais direta sobre a Bildung em sua relação com a ideia de "cultura" no clássico "O conceito e a tragédia da cultura" (2014), ainda que de maneira crítica e mais próxima da formulação nietzschiana do legado romântico. Para um diálogo mais contemporâneo com a Bildung in perspectiva com a cultura brasileira, ver Botelho, Hoelz e Bittencourt, 2022, em especial na parte 2, "Bildung e depois" e também Botelho e Hombeeck, 2022.

[9] Para um comentário sobre o individualismo na Alemanha, inserindo a posição de Simmel no contexto da "semântica histórica" do romantismo e antiliberalismo, ver Lukes, 1973, p. 17-22.

[10] Para uma interpretação com menos ênfase na dimensão estética e maior atenção ao aspecto teológico do panteísmo simmeliano, ver Vandenberghe, 2005.

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