A cosmofobia moderna e a crítica contracolonial de Antônio Bispo dos Santos

Modern Cosmophobia and the Countercolonial Critique of Antônio Bispo dos Santos

La cosmofobia moderna y la crítica contracolonial de Antônio Bispo dos Santos

SANTOS, Antônio Bispo dos. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu Editora/PISEAGRAMA, 2023.

[1]Ingrid Daniely Vale dos Santos

Palavras-chave:

Comunidades tradicionais; Cosmofobia; Epistemologia.

Keywords:

Traditional Communities; Cosmophobia; Epistemology.

Palabras clave:

Comunidades tradicionales; Cosmofobia; Epistemología.

Antônio Bispo dos Santos, também conhecido como Nêgo Bispo, nasceu em 1959 no Vale do Rio Berlengas, no Piauí. Seu aprendizado inicial foi conduzido por experientes mestres artesãos do quilombo Saco-Curtume, localizado no município de São João do Piauí. Foi o primeiro de sua família a ter acesso à alfabetização. Pensador social brasileiro que advogou por uma perspectiva científica enraizada nas epistemologias. Suas publicações, incluem Quilombos, modos e significados (2007) e Colonização, Quilombos: modos e significados (2015), exploram essa nova interpretação do mundo da ciência, sabedoria e conhecimento. Além disso, desempenhou um papel crucial como líder quilombola[2], participou ativamente na Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí (CECOQ/PI) e na Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ). Nêgo Bispo faleceu em dezembro de 2023 devido a uma parada cardiorrespiratória.

A cosmopercepção de Nêgo Bispo é uma construção intelectual enraizada em sua formação quilombola. Esta cosmopercepção se manifesta como um modo de entender e interpretar o mundo que é intrinsecamente ligado às experiências e saberes das comunidades rurais negras, ou, como Bispo as denomina, comunidades afro-pindorâmicas. Este termo é empregado em substituição a nomenclaturas estabelecidas pelos colonizadores, e visa uma rearticulação da identidade das comunidades tradicionais (Santos, 2023; Silva, 2023).

A terra dá, a terra quer (2023) é centralizada na definição de cosmofobia e na exposição da crítica contracolonial de Antônio Bispo dos Santos. A noção de cosmofobia é introduzida como um conceito-chave para compreender as dinâmicas sociais e ecológicas[3] subjacentes às práticas contemporâneas de consumo e gestão territorial. Santos (2023) argumenta que a cosmofobia, entendida como um medo irracional ou aversão ao cosmos, está intrinsecamente ligada a um sistema operacional cruel caracterizado por acumulação, desconexão, expropriação e extração desnecessária de recursos. Esta lógica, segundo o autor, também contribui significativamente para a geração de resíduos em larga escala, uma vez que as sociedades, impulsionadas por um consumo excessivo e desmedido, acumulam mais do que o necessário.

Nesse mesmo sentido, Fraser e Jaeggi (2020) oferecem uma análise crítica do território sob a perspectiva do pensamento moderno ocidental, e argumentam que a terra é frequentemente interpretada e utilizada dentro de um quadro mercantilista. Na concepção do pensamento moderno ocidental, o território é interpretado segundo uma perspectiva mercantilista, na qual porções de tierra são passíveis de expropriação e apropriação para fomentar a expansão e redefinição do capitalismo (Fraser; Jaeggi, 2020). Afinal, "as cidades são estruturas colonialistas. Nem todos os povos da cidade são povos colonialistas, mas a cidade é um território colonialista." (Santos, 2023, p. 22).

Em sua análise sobre a globalização, Santos (2023) é crítico a tendência de homogeneização cultural e econômica, frequentemente articulada através da promoção de ideais como a unificação monetária e linguística. Esta retórica, ao sugerir uma "moeda única" e uma "língua única", reflete uma perspectiva que limita a diversidade de pensamentos e identidades culturais. Tal perspectiva é interpretada como uma extensão do eurocentrismo, um paradigma que historicamente centraliza a Europa como o núcleo de referência cultural, religiosa e intelectual (Santos, 2023, p. 31). De maneira distinta, para o autor, "enquanto a sociedade se faz com os iguais, a comunidade se faz com os diversos" (Santos, 2023, p. 29).

A obra apresenta uma crítica penetrante ao programa habitacional, o "Minha Casa, Minha Vida[4] é o programa mais colonialista nas políticas de habitação. Foi um ataque brutal, violento, perverso, racista, institucionalmente colonialista." (Santos, 2023, p. 60). O autor discorre sobre as implicações arquitetônicas e socioculturais do programa na vida dos quilombos e da favela, e cita o exemplo da remoção da "laje das favelas" e do "quintal dos quilombos", partes essenciais da arquitetura destas comunidades que foram excluídas nas casas oferecidas pelo programa (Santos, 2023, p. 60). Para Santos (2023) trata de uma imposição de uma visão de mundo que desconsidera e desvaloriza as formas de vida e de organização espacial desses grupos.

Nêgo Bispo defende que "existem modos de vida fuera da colonização, mas política não. Toda política é um instrumento colonialista." (Santos, 2023, p. 47). Para o autor, "qualquer governo de um Estado colonialista será um governo colonialista. É preciso contracolonizar a estrutura organizativa." (Santos, 2023, p. 74). Bispo aponta como exemplo a composição do Ministério do Desenvolvimento Agrário, que frequentemente inclui gestores do Sul do Brasil. Santos (2023) argumenta que a perspectiva desses sulistas sobre assessoria técnica difere significativamente daquela do povo da caatinga. Além disso, segundo o autor, na realidade, não existe uma diferença substancial entre as gestões de esquerda e de direita. Ele enfatiza que o Estado, em sua essência, mantém uma natureza colonialista e abstrata, independente da orientação política da administração em vigor. "Não existe governo bom para Estado ruim." (Santos, 2023, p. 74)

Nêgo Bispo propõe uma análise sociológica sobre duas formas de colonialismo: o "colonialismo universal" e o "colonialismo de submissão". O primeiro termo descreve a onipresença de práticas e ideologias coloniais em uma escala global, enquanto o segundo aborda a internalização de atitudes subservientes pelos colonizados, características de uma forma mais insidiosa de colonialismo. Em paralelo a esta análise, Jessé Souza (2022) oferece uma crítica incisiva à elite brasileira. Apesar de não utilizar o termo colonialismo de submissão, Souza (2022) sugere que a elite brasileira se assemelha cada vez mais à americana, e adota preconceitos e perspectivas alinhadas com o Norte Global, que é caracterizado por ser colonizador, branco, patriarcal, cristão e capitalista. argumenta que esses preconceitos são utilizados pela elite brasileira como uma ferramenta venenosa, disseminados através da imprensa e das instituições educacionais (Souza, 2022; Santos, 2023).

Essa análise de Souza (2022) complementa a perspectiva de Bispo (2023) ao destacar como as estruturas de poder e as ideologias coloniais são perpetuadas e reforçadas dentro do próprio Brasil, não apenas em relação ao exterior, mas também nas interações internas, particularmente pela elite do país. Ambas as abordagens ressaltam a complexidade e a persistência das dinâmicas coloniais na sociedade contemporânea.

Por fim, Santos (2023) aborda o processo de transição energética em curso no Brasil, e destaca as implicações históricas e socioambientais desse fenômeno. Através de um paralelo entre a exploração colonial do pau-brasil e a atual exploração de recursos naturais como o vento e o sol para a produção de energia elétrica. Essa comparação sugere uma continuidade de práticas extrativistas e exploratórias, agora manifestadas na forma de captação de energia eólica e solar, particularmente nas regiões do Piauí, Rio Grande do Norte e outros estados do Nordeste (Medeiros; Maia, 2023).

O processo de transição energética no Brasil é contextualizado como uma estratégia para diversificar a matriz energética nacional, com o objetivo de reduzir a dependência de hidrelétricas e diminuir o uso de combustíveis fósseis. Esta mudança é motivada pela necessidade de responder às questões do aquecimento global, causado principalmente pela queima de combustíveis fósseis (Medeiros; Maia, 2023). No entanto, Bispo (2023) ressalta que essa transição vem acompanhada de desafios socioambientais significativos que ainda necessitam ser adequadamente abordados.

O autor questiona:

Qual será o impacto disso sobre as dunas? Os cataventos vão alterar as correntes de vento. Em alguns lugares o vento vai ficar mais fraco e em outros, mais forte. Alguns viventes precisam do vento. Sem ele, como vão se movimentar? Qual será o impacto dos ventos sintetizados sobre a movimentação das abelhas? As pessoas certamente não estão atentas a isso. Estão roubando o nosso vento, estão roubando o nosso sol (Santos, 2023, p. 99).

O trabalho de Nêgo Bispo representa um esforço significativo na construção do pensamento social brasileiro para expandir o entendimento das dinâmicas sociais, culturais e históricas, particularmente em relação às comunidades afro-pindorâmicas. Nêgo Bispo desafia a homogeneização e a exclusão epistêmica, e promove uma maior inclusão de saberes e perspectivas diversificadas no discurso acadêmico e social.

A terra dá, a terra quer destaca a existência de múltiplas realidades simultâneas, e desafia a ideia de um mundo homogêneo caracterizado por uma única moeda, língua e um limitado conjunto de perspectivas. O trabalho de Nêgo Bispo representa um esforço significativo na construção do pensamento social brasileiro para expandir o entendimento das dinâmicas sociais, culturais e históricas, particularmente em relação às comunidades afro-pindorâmicas. Nêgo Bispo desafia a homogeneização e a exclusão epistêmica, e promove uma maior inclusão de saberes e perspectivas diversificadas no discurso acadêmico e social. O livro enfatiza a importância de entender, aceitar e integrar harmoniosamente essas diferentes realidades e modos de vida.

Referências

FRASER, N.; JAEGGI, R. Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2020.

MEDEIROS, Étore; MAIA, Iano Flávio. Expansão de eólicas ameaça comunidades e Caatinga no semiárido do Rio Grande do Norte. A Pública , 29 jul. 2023. Disponível em: https://apublica.org/2023/07/expansao-de-eolicas-ameaca-comunidades-e-caatinga-no-semiarido-do-rio-grande-do-norte/. Acesso em: 20 de janeiro de 2024.

SANTOS, Antônio Bispo dos. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu Editora/PISEAGRAMA, 2023.

SILVA, Érica Luciana de Souza. Resenha de "A terra dá, a terra quer", de Antônio Bispo dos Santos. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/resenhas/ensaio/1841-a-terra-da-a-terra-quer-antonio-bispo-dos-santos. Acesso em: 20 de janeiro de 2024.

SOUZA, Jessé. Brasil dos humilhados: uma denúncia da ideologia elitista. Rio de Janeiro, 2022. Editora Civilização Brasileira. 5. ed.

Notas

[1] Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Segurança Internacional (GEPSI, Distrito Federal, Brasil), do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB, Distrito Federal, Brasil). É mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN, Natal, Brasil) e possui MBA em Logística Internacional e Comércio Exterior pela Universidade Potiguar (UnP, Natal, Brasil). É graduada em Relações Internacionais pela UnP.

[2] Santos (2023, p.49) comenta que, no quilombo, ninguém queria ser líder da associação quilombola porque a única função dessa posição era lidar com o governo. No quilombo, as decisões e a organização são feitas de forma comunitária em atividades como mutirões, velórios, festas, aniversários, missas, nos terreiros e nos trabalhos na roça.

[3] "Ecologia é uma palavra utilizada pelos acadêmicos. No quilombo, não existe ecologia, existe roça de quilombo, a roça de aldeia, a roça de ribeirinho, a roça de pescador." (Santos, 2023, p.100)

[4] O Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV), criado em 2009 pelo Governo Lula, visa facilitar a compra de moradia para famílias com renda de até 9 mil reais, subsidiando especialmente aquelas com renda até 1,8 mil reais. Sob Jair Bolsonaro (2019-2022), foi renomeado para Casa Verde e Amarela. Em fevereiro de 2023, o presidente Lula retomou e recriou o PMCMV, substituindo o programa Casa Verde e Amarela.