Envolvimento no crime e modos de vivência juvenil: reflexões a partir de trajetórias nas periferias de Porto Alegre e Canoas (RS)
Youth involvement in crime and youth experiences: reflections from trajectories in the peripheries of Porto Alegre and Canoas (RS)
Involucramiento en el crimen y modos de vida juvenil: reflexiones a partir de trayectorias en las periferias de la Región Metropolitana de Porto Alegre
Marcelli Cipriani2
Bruna Rossi Koerich3
Pretendemos refletir sobre o envolvimento no crime discutindo aspectos relacionados a modos de vivenciar a juventude em periferias na Região Metropolitana de Porto Alegre. Partimos da noção de que o crime, como espaço de sociabilidades, também impacta a produção de identidades, atravessando estilos de vida, comportamentos e hábitos juvenis. Assim é que o crime é aqui remetido não aos negócios ilícitos, mas às relações sociais que adquirem significado em torno de sua vivência coletiva, em especial quanto ao tráfico de drogas. Já o envolvimento diz respeito, em sua acepção literal, à proximidade dos atores com as dinâmicas de facções criminais. Buscamos, então, compreender o envolvimento a partir de marcadores das vivências juvenis, analisando a relação de jovens envolvidos com o seu território, o lazer, as afetividades, o aparato estético e o consumo. Os dados utilizados no artigo foram coletados durante duas pesquisas mestrado, envolvendo diferentes ferramentas metodológicas como entrevistas e inserção etnográfica. Foi possível constatar, por meio dessa articulação, que a noção de envolvimento extrapola os limites da prática criminal e é polissêmico, adquirindo sentidos que oscilam de acordo com o contexto e o propósito de seu uso, bem como com o ator social que o utiliza.
Palavras-chave: juventudes; criminalidade; envolvimento criminal; vivências juvenis.
We aim to reflect on involvement in crime by discussing aspects related to ways of experiencing youth in the outskirts of Porto Alegre’s metropolitan region. We start from the notion that crime, as a space for social interactions, also impacts the production of identities, influencing juvenile lifestyles, behaviors, and habits. Thus, crime here is referred not only to illicit activities, but also to social relations that acquire meaning around collective experiences, especially regarding drug trafficking. The term "involvement" literally refers to the proximity of individuals to the dynamics of criminal factions. We seek to understand involvement from the perspective of youth experiences, analyzing how young people’s relationships with territory, leisure, affections, aesthetics, and consumption are shaped. The data used in this article were collected during two master's research projects, involving different methodological tools such as interviews and ethnographic fieldwork. This articulation revealed that the notion of involvement goes beyond the boundaries of criminal practice and is polysemic, acquiring meanings that shift depending on the context, purpose, and the social actor who uses the term.
Keywords: youth; criminality; criminal involvement; youth experiences.
Pretendemos reflexionar sobre el involucramiento en el crimen discutiendo aspectos relacionados con los modos de vivir la juventud en las periferias de la Región Metropolitana de Porto Alegre. Partimos de la noción de que el crimen, como espacio de sociabilidades, también impacta en la producción de identidades, atravesando estilos de vida y hábitos juveniles. Así, el crimen no se refiere aquí a los negocios ilícitos, sino a las relaciones sociales que adquieren significado en torno a su vivencia colectiva. Por su parte, el involucramiento alude, en su acepción literal, a la proximidad de los actores con las dinámicas que se desarrollan en torno a los grupos criminales. Buscamos, entonces, comprender el involucramiento a partir de marcadores de las vivencias juveniles, analizando la relación de los jóvenes involucrados con su territorio, el ocio, las afectividades, el aparato estético y el consumo. Los datos utilizados en el artículo fueron recolectados durante la realización de dos investigaciones de maestría. Fue posible constatar, a través de esta articulación, que la noción de involucramiento extrapola los límites de la práctica criminal, siendo esta solo uno de sus varios elementos posibles. Así, el término es polisémico, adquiriendo sentidos que oscilan según el contexto y el propósito de uso, así como según el actor social que lo emplea.
Palabras clave: juventud; criminalidad; participación criminal; experiencias juveniles
Os cientistas sociais brasileiros têm, nas últimas duas décadas, intensificado a produção de estudos sobre as práticas sociais que circundam o crime por meio do enfoque nas experiências dos atores, bem como destacando o conjunto de relações e de representações sociais que advêm desse universo (Aquino, 2018; Hirata, 2018). Em atenção ao adensamento desse debate, propomos expor e analisar algumas das intersecções existentes entre os modos de vivência juvenil em periferias de Porto Alegre e o crime ou “mundo do crime” (Feltran, 2008) – aqui entendido como um espaço de sociabilidades que, embora tenha os negócios ilícitos como ponto de referência, participa da produção de identidades e atravessa estilos de vida, comportamentos e hábitos que ultrapassam, em alcance, os atores que neles se engajam.
Nessa análise, articulamos as experiências da juventude periférica e as práticas criminais por intermédio da noção de envolvimento no crime. Embora sua acepção literal indique – de acordo com nossos interlocutores – graus de participação nas dinâmicas de coletivos criminais, o termo aparece, quando é apropriado pelos agentes nas relações cotidianas, não só identificando atos do tráfico de drogas e dos assaltos, mas no âmbito da expansão de um “marco discursivo do crime” (Feltran, 2007). Assim, o envolvimento surge como categoria que afirma, mas também borra fronteiras entre as sociabilidades mais amplamente partilhadas em periferias e as sociabilidades que irradiam de grupos criminais – assumindo significados que são contingentes e variáveis de acordo com o contexto e com os usos nos quais é recursivamente reproduzido.
Lançamos mão de dados coletados durante a realização de duas pesquisas de mestrado, que tiveram suas respectivas dissertações defendidas no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS no ano de 2018 e 2019. Uma delas, cujo trabalho de campo foi realizado entre 2014 e 2017, contou com inserção etnográfica em uma unidade de execução de medidas socioeducativas de prestação de serviços à comunidade localizada na Região Metropolitana de Porto Alegre e abarcou o acompanhamento do total de 67 jovens, dos quais 10 passaram por um processo de entrevistas narrativas em profundidade (Koerich, 2018). Na outra, por sua vez, uma série de entrevistas foram aplicadas, entre 2015 e 2018, tanto com agentes da segurança pública, funcionários do sistema penitenciário e operadores do sistema de justiça, bem como com indivíduos presos na Cadeia Pública de Porto Alegre e com jovens em cumprimento de medidas socioeducativas de privação de liberdade, liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade (Cipriani, 2019).
Na primeira parte do artigo, buscamos compreender o envolvimento a partir de alguns marcadores das vivências juvenis, analisando as relações da juventude com elementos como o território, as afetividades, o lazer, o aparato estético e o consumo. Em seguida, trazemos considerações sobre como o envolvimento assume, nas relações travadas pelos jovens em periferias porto-alegrenses, um caráter polissêmico – com a categoria sendo utilizada, por vezes, para marcar quem é e quem não é concretamente envolvido no crime e, em outras, englobando todos aqueles que, embora não estejam associados com grupos criminais, partilham de códigos e participam de sociabilidades identificadas como próprias ao “mundo do crime”.
Argumentamos que, embora os próprios jovens possam vir a delimitar com clareza sua condição de envolvidos ou não envolvidos – mediante o critério de pertença a facções –, a maleabilidade do envolvimento se torna mais acentuada quando o ator social é tipificado por outrem – o que se dá tanto no que diz respeito ao processo de sujeição criminal levado a cabo por agentes da segurança pública (Misse, 1999), quanto por meio de classificações que são efetuadas por aqueles que, de fato, se identificam como envolvidos no crime. Em especial, essa operação participa das distinções, engatilhadas nas práticas sociais, que são feitas entre aliados e contras – atores identificados ou não como inimigos do grupo criminal ou de seu embolamento4 – e traz consequências palpáveis à integridade física dos jovens, posto que se encontra na base de uma política sobre a vida e a morte em que se intenta decidir, sem desviar do que está pelo certo, quem pode e quem não pode ser executado.
Falar em juventude, desde um ponto de vista sociológico, é reconhecer uma gama de possibilidades de vivências, marcadas pela diversidade, de forma que as similaridades encontradas nessa parcela da população não encubram especificidades de classe, gênero, raça/etnia etc. Desse modo, diferentes perspectivas de estudo sobre a juventude partem do esforço para entendê-la a partir do contexto histórico e sócio-espacial, analisando de que forma a estrutura social vivenciada pelos jovens possibilita as singularidades e especificidades enfrentadas por esse grupo (Koerich, 2018). Nesse sentido, o recurso a marcadores observáveis em distintas escalas possibilita compreender a relação entre as trajetórias biográficas e os contextos sociais em que elas estão inseridas, seja em sua dimensão local ou macroestrutural.
Na presente seção, propomos refletir sobre alguns marcadores presentes na vida de jovens moradores das periferias urbanas que se relacionam de forma difusa e complexa com o crime, podendo evidenciar ou criar perspectivas de envolvimento juvenil. Partimos da noção de que o crime, enquanto manifesto pelas dinâmicas de grupos criminais, faz gravitar elementos de uma identidade cultural com base nas relações de pertencimento, que são constituídas em torno de um conjunto de regras sociais e sociabilidades partilhadas não exclusivamente por seus membros, mas também por jovens que circundam esse mundo.
Longe de imaginar que as vivências juvenis acontecem de maneira homogênea, buscamos compreender certa adoção de semelhantes “estilos de vida” (Giddens, 2002) que acabam por se relacionar com a perspectiva do envolvimento, para além da prática de atividades ilícitas em si. Assim é que abordamos, aqui, aspectos como o território, o consumo cultural e os aparatos estéticos não como elementos independentes nas trajetórias juvenis, tampouco como partes que compõem identidades fixas e hermeticamente fechadas em si. Ao contrário, os tomamos como marcadores que se inter-relacionam em um movimento complexo e constante na conformação das múltiplas vivências juvenis.
A relação entre traços das identidades juvenis – assentadas não em aspectos ontológicos, mas em fluxos e em devires –, o substrato urbano e a noção de envolvimento, por exemplo, podem ser vistas a partir de diferentes perspectivas. Se, por um lado, é possível focar no debate acerca do direito juvenil ao substrato urbano (no âmbito da gramática legal, presente no Estatuto da Juventude), podemos, por outro, repensar essa dimensão por intermédio das relações afetivas com o espaço de vivência, considerando-se como elas são marcadas pela sensação daquilo que já é bastante conhecido da existência de um espaço com registros de memórias. Nesse sentido, toma-se o substrato a partir do espectro das relações de poder que nele se projetam e das práticas sociais que dele se apropriam – configurando, em decorrência, territórios como "campos de força" (Souza, 1995, p. 97).
Em tal sentido, a territorialização de certos bairros ou partes de bairros por grupos criminais acaba por compor ou até sobrepor identidades sócio-espaciais marcadas sob fronteiras geográficas. Nesse movimento, pertencer a uma comunidade (e associar-se identitariamente a ela) pode se mesclar – ou mesmo se confundir – com o envolvimento, o que se dá por meio da sensação de pertencimento com o grupo ou da identificação com elementos simbólicos que partem do embolamento hegemônico no substrato. Isso ocorre na medida em que as limitações territoriais não são as mesmas do espaço geográfico, havendo, nas definições fronteiriças sobre as vilas, a justaposição de territorialidades de diferentes escalas5. Assim, podemos notar, nos campos de pesquisa, uma oscilação entre limites geográficos ou sociopolíticos, espaços comerciais (bocas de venda de drogas) e caracterizados por laços afetivos e de solidariedade.
Além disso, a relação com o território foi apontada por vários jovens, em ambos os campos, como fator determinante para o envolvimento inicial nos embolamentos, em uma postura de “defesa” do território contra a dinâmica de suas tomadas por grupos forasteiros. No âmbito das relações de conflito, esse momento-chave torna-se uma espécie de indutor de passagem entre estágios de envolvimento: após relatar as possibilidades de se desvencilhar do grupo em casos de inserção pontual ou temporária, um adolescente fez uma ressalva a Cipriani (2019, p. 205): “mas se estoura a guerra e tu tá na boca tu não tem escolha, né? Tem que honrar a tua vila, tem que honrar o embolamento”. Nesses casos, o jovem – embora seja apenas um vendedor e não se considere envolvido – precisa provar que está pela firma, o que denota a disposição de arriscar a própria vida não apenas para resguardar o território da facção, mas também para proteger e apoiar os seus companheiros. Caso não o faça, perderá a chance de receber benefícios, como a concessão de um ferro e descontos na compra do pacote de drogas para revenda, além de ficar com sua moral prejudicada entre os demais.
As configurações territoriais alteram também a dinâmica de circulação e o uso dos espaços locais pelos jovens. Alguns deles apontaram, inclusive, que a reordenação de territorialidades do tráfico motivou a evasão escolar, dadas as restrições de circulação decorrentes de mudanças de gestão nas vilas. Para Cipriani (2019, p. 169), um adolescente declarou que parou de ir até a escola, pois fazer o trajeto até o local impunha passar por um território dos contras: “daqui a pouco passa uns conhecidos de carro e te vê.... Te agarram na hora”. “É só cair na rua errada que já era”. Algo semelhante foi relatado a Koerich (2018), com o jovem lançando mão da categoria de embolado como uma expansão do termo envolvido6:
Aí dona, eu parei de estudar porque eu não podia mais cruzar por ali para ir para a escola [...] Na real, força de gente faz isso. Não precisa nem ser envolvido né? As vezes é só o cara se dar bem com os guris que os cara já pensam ‘Oh, aquele ali é embolado com os guris lá de baixo’ (Entrevista realizada em 2017).
Dentro de um mesmo bairro, há restrições de mobilidade de acordo com a vila ou a “parada” de residência. Com isso, os jovens residentes das periferias urbanas, que já possuem sua circulação restrita devido à exploração do medo e da insegurança utilizada como forma de consolidar segregações sócio-espaciais (Souza, 2008, 2016; Sposito, 2016), acabam tendo suas possibilidades de circulação ainda mais limitadas. O cenário de disputas pautadas entre grupos criminais, nesse sentido, intensifica o fechamento dos bairros – aprofundando a segregação sócio-espacial a que a juventude periférica já estava sujeita e superpondo, a esse processo, elementos de outra ordem sociopolítico-espacial, a partir da dinâmica dos embolamentos, frentes de aliança faccionais (Cipriani, 2019).
Tendo em vista a baixa oferta de espaços de lazer para os jovens nas periferias, muitas vezes o espaço da rua, aqui entendido de forma ampla como o espaço público – seja a rua literalmente, sejam praças e equipamentos semelhantes – se consolida como um lócus para a interação juvenil. Como esse espaço, não raro, é também o local onde ocorre a comercialização de drogas, a interação juvenil e as atividades ilícitas se mesclam, ampliando o espectro do ser envolvido, uma vez que o envolvimento de muitos jovens se tece a partir da prática de socializar fora de sua casa, de estar na rua.
Ademais, muitas vezes, os espaços públicos são representados como espaços de envolvimento por aqueles que estão fora do cotidiano das dinâmicas da sociabilidade juvenil. Conforme destacado por Koerich (2019), é comum que, durante os processos de entrevistas realizadas no início da execução das medidas socioeducativas de meio aberto, familiares culpabilizem a permanência no espaço da rua pelo envolvimento de seus filhos.7 São recorrentes, ainda, discursos que criminalizam o “ficar na rua” – o que é associado à idéia de tempo livre – por distintos atores institucionais das políticas de segurança pública.
Aqui mesclam-se elementos de tempo e espaço. Estar na rua é a expressão de estar desocupado – e, sob o ponto de vista da família, estar suscetível a se envolver com as pessoas erradas. Uma das principais demandas familiares na reivindicação de políticas públicas para a juventude passa a ser, nesse sentido, a garantia de que os jovens não estejam na rua (Koerich, 2016,p. 272). Essa noção converge com os discursos institucionais das políticas e ações para as juventudes, reforçando uma lógica de proteção que é baseada na lógica produtivista do tempo, que não necessariamente corresponde às percepções do tempo cotidiano dos jovens (Franch-Gutièrrez, 2008).
As restrições presentes na dinâmica de circulação, bem como as imbricações existentes entre identidades e territórios, geram mudanças em outros marcadores de sociabilidade nos cotidianos juvenis, como as festas e sociais. As sociais, como são chamadas as festas de ruas8 que são feitas por iniciativa da população jovem e moradora dos bairros em que ocorrem, correspondem a formas de apropriação e ocupação do espaço público protagonizadas pela juventude das periferias, que – com pouca opção e praticamente nenhum acesso à mobilidade, particularmente durante a noite – organiza-se para promover alternativas de lazer na vila.
As sociais, que são espaços importantes para as interações juvenis, costumam estar imbuídas de marcadores espaciais – normalmente, carregam o nome da vila ou de trechos da vila – e territoriais, refletindo as territorialidades do tráfico, mais especificamente as dos embolamentos. Embora esses eventos não sejam necessariamente organizados por integrantes de grupos criminais, há alguns que são – caso em que são embalados por músicas que reproduzem, em suas letras, as dinâmicas da guerra. Em todos eles, entretanto, os convites feitos em plataformas virtuais privilegiam a divisão entre aliados e contras, e a eventual presença desses últimos – ainda que não sejam envolvidos de fato, mas que residam em bairros territorializados por rivais – deve ser acompanhada por cupinxas, amigos que possam dar respaldo, caso seja necessário, de que o forasteiro é sereno e não envolvido (Cipriani, 2019).
O papel das identificações territoriais nas vivências juvenis também se relaciona com as afetividades presentes nos cotidianos dos jovens. Entendemos afetividade, aqui, como um conjunto de relações sociais marcadas pelo afeto de forma ampla, podendo envolver as relações consanguíneas, as relações entre pares e as relações pautadas pela sexualidade juvenil. Não são incomuns, nesse sentido, episódios em que os jovens iniciam a participação em atividades ilícitas para apoiar alguém da sua rede de afetos – como, por exemplo, guardando bens roubados a pedido dos familiares (Koerich, 2018, p. 98-99). Esse apoio não reflete ou acarreta, inevitavelmente, o envolvimento do ponto de vista da integração nas redes articuladas por grupos criminais, tampouco a partilha de códigos específicos que delas irradiam. Todavia, na medida em que o apoio opera sob a expectativa de reciprocidade9, não raro abre espaço para graus de envolvimento ou os acirra, dado que pode ser identificado como um sinal de adesão mais ampla ao grupo.
Assim, a noção de parceria entre cupinxas emerge não apenas na relação existente entre os jovens envolvidos de fato, mas também nas múltiplas relações dos jovens com seus amigos, vizinhos e conhecidos desde a infância. Os círculos de proximidade e as esferas de sociabilidade mais amplas da juventude moradora de periferias, nesse sentido, confundem-se com as que partem do crime, e um ato assentado na parceria com um indivíduo pode vir a ser traduzido, nas relações e práticas cotidianas, como um ato de aliança para com o grupo criminal. Embora a retribuição ao apoio não seja necessariamente prevista quando da parceria entre amigos, ela pode ser requerida em um momento seguinte, quando – pelas decorrências que advêm do próprio apoio, como um aprisionamento ou a exposição a algum tipo de violência, é necessário solicitar auxílios ou favores.
Porém, para além das práticas ilícitas, o apoio pode ser mobilizado em nível discursivo, pautando graus de envolvimento por meio de redes afetivas ou de contato, que servem a fins protetivos ou performativos, apesar de não haver engajamento do ator dos negócios ilícitos. Assim, jovens sem ou com menor envolvimento acionam com frequência recursos como o “não mexe comigo, que sou amigo de fulano”. Nesse sentido, não é necessário ser envolvido, mas conhecer quem o é e anunciar, com isso, a expectativa da existência do apoio de um amigo caso seja necessário. Em contextos como esses, conforme aponta Prates (2020), “todos conhecem algum envolvido [...], mesmo que em algumas circunstâncias a ligação seja negada ou apareça sempre como uma dúvida” (p. 88) (grifos nossos).
O reconhecimento entre os jovens possui inúmeros e distintos marcadores, de acordo com cada relação social que é estabelecida entre eles. Contudo, em nossos campos, o marcador identificado como preponderante na busca para ser reconhecido foi a presença de bens de consumo. A ostentação da posse de certos produtos e bens opera, nesse sentido, como a expressão do sucesso de uma trajetória. O consumo, portanto, não é só uma forma de satisfazer o desejo momentâneo de ter algo, mas apresenta forte relação com o reconhecimento que esse ter vai gerar perante os demais jovens. O ter e o ser não se dissociam, mas se retroalimentam pelo intuito de gerar prazer ao se ter um duplo desejo atendido: o consumo em si e o reconhecimento por ele gerado (Koerich, 2018).
O ato de consumir, em uma sociedade de consumidores, torna-se essencial para o reconhecimento de um indivíduo enquanto parte integrante de seu meio social, uma vez que essa sociedade promove, encoraja ou reforça estilos de vida e estratégias existenciais consumistas, rejeitando opções culturais alternativas (Bauman, 2008) Porém, o dinheiro utilizado como via de acesso ao consumo precisa ser colocado em perspectiva, considerando-se o rompimento da expectativa de uma universalização aceitável da garantia de obtenção de interesses, em especial diante da associação entre a oferta incessante de bens para consumo e a existência de graus de desnormalização para consumir (Misse, 1999). Nesse sentido, o acesso a esses bens também é trazido como uma das formas de, por meio do envolvimento no crime, os adolescentes operarem assimetrias de poder, seja possibilitando que redimensionem a revolta que sentem, seja lhes conferindo algum acesso à dignidade (Cipriani, 2019, pp. 203-204).
Os padrões de consumo presentes nas juventudes das periferias urbanas são compartilhados pelos jovens em diferentes situações juvenis. Em certa medida, durante a realização da pesquisa, encontramos diversos relatos sobre a importância de aparatos estéticos para chamar a atenção das meninas. Sob essa chave, a prática da sexualidade – tão presente nessa fase da vida – relaciona-se fortemente com a forma como esses jovens se vestem e se “mostram” em geral: “andar bonito e cheio da grana”, “pegar as gurias, andar de carro roubado por aí” e “andar bonito e pegar umas mina”, etc., foram algumas das justificativas oferecidas por jovens ao envolvimento, nas circunstâncias em que essas razões se referiam à dimensão do consumo.
Alguns símbolos também nos foram apontados como marcadores de “sucesso” – como o tênis escama de peixe, as camisetas de time, os cordões ou correntes de prata, as roupas da “Quick” e “Oakley” e os bonés de marca. Para um dos jovens entrevistados, todavia, essas preferências e desejos não seriam da ordem do mundo do crime, na medida em que não indicariam que “o cara era envolvido" mas mostrariam "que o cara tem grana” (Koerich, 2018). De fato, do ponto de vista individual, são as roupas que oferecem à juventude que vive em periferias as melhores oportunidades para que fujam da identificação quanto à pobreza, ou ao menos lhes conferem a ilusão de poderem dela fugir (Zaluar, 2000). Juntamente ao carro – cujo acesso é muito mais difícil – a roupa de certas marcas é um bem de consumo amplamente desejado, e de sua obtenção advêm efeitos positivos para a autoestima do jovem e para suas relações sociais.
Esses itens, contudo, não raro são vistos como indícios de uma associação no crime – o que decorre, em parte, de seu valor elevado, incompatível com as condições de vida da maioria dos jovens moradores de periferias. Um tênis escama de peixe, por exemplo, custava cerca de mil reais durante a realização dos campos de pesquisa (razão pela qual também era chamado de tênis de mil10 pelos jovens entrevistados). O acesso a tais bens de consumo pode ser facilitado pela compra de tênis roubados daqueles que são representados como playboys – e, aí, insere-se uma gama de artimanhas para conseguir um tênis que seja do tamanho correto (ou o mais próximo possível). Também, através da aquisição de tênis que são revendidos usados, muitas vezes por parte de integrantes do que é considerado, localmente, como uma elite periférica, e mesmo por aqueles que já os haviam comprado de outras pessoas. Aqui, então, ainda há a diferenciação simbólica entre os novos e antigos modelos, bem como a referente entre o "tênis tirado da caixa" e aquele que já foi utilizado.
A satisfação desses interesses ultrapassa, como já trazido, o mero consumismo – na medida em que, mais do que bens de consumo, esses elementos são encarados como um recurso para o alcance do respeito e o reconhecimento dos demais. Concomitantemente, os tênis – assim como a ida ao barbeiro, o aparelho nos dentes, o uso de perfume etc. – são elementos que, viabilizados pelo acesso ao dinheiro, possibilitam que os jovens reajam à desilusão e à raiva diante das injustiças da vida e das desigualdades sociais, bem como que possam viver a revolta acumulada pela privação das possibilidades de satisfação de interesses e de acesso à dignidade no decorrer do tempo.
Esses signos estéticos carregam níveis variáveis de significado no que tange à ponte de passagem para o reconhecimento – o que depende das trajetórias de vida de cada jovem. Todavia, apesar dessa gradação, eles certamente pautam a sociabilidade juvenil em uma escala que transcende o nível de envolvimento de jovens com atos infracionais. De outro lado, são elementos recorrentemente encarados, por atores externos, como partes de uma “estética do crime”, integrando os critérios para que o jovem tenha – como se diz tanto no jargão policial quanto entre a juventude envolvida – a cara do crime. Assim, enquanto a vivência de marcadores juvenis gera maior reconhecimento entre os pares, também pode colocar os jovens na “mira” dos contras e dos agentes de segurança pública.
Em janeiro de 2016, uma série de homicídios, cometidos em bairros de periferia de Porto Alegre, marcaram o início do que ficou conhecido como a guerra das facções – período que compreendeu intensas disputas entre dois embolamentos situados na capital e na região metropolitana do estado. A primeira das mortes ocorridas naquele mês vitimou um jovem que, supostamente, não era envolvido – embora circulasse pelos espaços de sociabilidade do “mundo do crime” e se relacionasse com indivíduos que integravam coletivos criminais. Na época, algumas manifestações em grupos de WhatsApp de residentes naquele bairro, bem como de jovens em plataformas virtuais, marcavam a ausência de envolvimento da vítima como uma sinalização de que o crime havia ultrapassado uma fronteira inaceitável, alcançando quem dele não fazia parte.
Esse elemento também é o que conceitua, nos bairros periféricos, os moradores – termo usado não para se referir a quem vive em determinada região, mas àqueles que, lá morando, não são envolvidos no crime. O estabelecimento de fronteiras entre moradores e envolvidos recupera, no cotidiano das periferias, a clássica oposição entre “trabalhadores” e “bandidos” (Zaluar, 2000) – cujos pactos sociais de convivência costumam pressupor alguns princípios de não-interferência, como no que diz respeito ao uso da violência física. Nesses momentos, a alusão ao envolvimento é tanto utilizada como um recurso pelos moradores, quanto implica uma distinção no plano da ética do crime, já que um dos principais critérios a legitimar o cometimento de homicídios, no crime, é o alvo: afora cobranças que se dão interior do embolamento, eles devem atingir os contras e não os moradores. Nesses casos, entende-se que foram pelo certo.
Todavia, enquanto os moradores tratam-se de atores identificados de forma mais clara como de fora do crime – com, nesses casos, a ausência de envolvimento sendo marcada com pouca margem de dúvida –, entre aqueles que se identificam ou são identificados como envolvidos, em especial a população mais jovem, tais definições são muito mais difusas. Nesse espectro, ademais, o cometimento de delitos – e mesmo a participação em atos ilícitos integrados às dinâmicas das facções – não é, necessariamente, fator determinante para uma ou outra classificação. De um lado, é possível ver uma mão – traficar ou cometer algum serviço – para o grupo criminal e não se conceber como um envolvido no crime. De outro, quem nunca nem viu uma mão pode, de fora, ser identificado como tal.
No caso das gradações que perpassam pela autodefinição, as justificações para a participação em economias ilegais surgiram, nos relatos colhidos, como um fator determinante ao envolvimento: há, em um extremo, aqueles que manifestam fortes laços de pertencimento com os coletivos criminais, cujos códigos participam, de forma mais pronunciada, em sua construção identitária e processos de subjetivação. Em outros casos, os adolescentes entrevistados relataram passagens transitórias pelo crime, recorrendo às suas atividades de maneira pontual e com objetivos bem delimitados – por exemplo, comprar algo em específico, ajudar no pagamento de uma conta da família ou lidar com um gasto imprevisto. Segundo esses interlocutores, em que pese eventualmente tenham visto uma mão, eles não faziam e não haviam feito parte das facções criminais. Não se concebiam, assim, como envolvidos.
A autodeterminação acerca do envolvimento, todavia, esbarra em limitações, que são acentuadas quando recaem sobre a juventude moradora de periferias. Isso se percebeu, por exemplo, quando interlocutores que declararam não ser e nunca terem sido envolvidos no crime apresentaram intensas preocupações quanto à sua integridade, que se refletiam no cuidado com os afetos e na criação de aguçadas sensibilidades para a circulação urbana, incorporadas em mecanismos de gestão do risco que sempre devem estar atualizados. Alicerçando essa sensação, que se espraiou sobre os jovens, se encontrava o medo de ser identificado como um contra – e, apesar de ter havido, em meados de 2018, um arrefecimento dos conflitos iniciados dois anos antes, essas implicações seguiram sendo referidas por adolescentes, fossem eles envolvidos ou não.
Uma das principais características observadas na guerra dos coletivos de Porto Alegre se deu no âmbito das transformações ocorridas na geopolítica do crime, no sentido da conversão de vários grupos criminais, de distintas escalas e expressividade, em dois grandes blocos – que se constituíram, em oposição um ao outro, como embolamentos rivais. Nesse processo, territorialidades associadas a cada um dos embolamentos se justapuseram às territorialidades prévias, englobando-as e lhes conferindo novas dimensões. Como resultado, grupos que não se representavam como rivais passaram, ao tornarem-se parte de um embolamento, a ver-se como contras – o que foi replicado, ainda que não sem contradições ou ambiguidades, no crime como um todo. Em tal contexto, o número de inimigos que cada grupo ou boca possuía se ampliou em grau considerável, e lançou-se uma “caça aos contras” que atingiu o espaço urbano com base na polarização entre os dois embolamentos.
Foi sobre esse cenário que agarrar um contra circulando pelo bairro – ou seja, matá-lo – passou a ser uma prática fortemente estimulada pelos coletivos. O cometimento de homicídios ensejava, do ponto de vista dos jovens que almejavam o crescimento na firma, o ganho de moral com o grupo e com o seu patrão, também podendo repercutir no acesso a vantagens e benefícios. Todavia, mesmo nessa empreitada, as clivagens sobre quem podia e não podia ser morto seguiam presentes – devendo-se, em tese, respeitar o princípio de não envolver moradores. É, entretanto, na operacionalização concreta dessa distinção – clara apenas discursivamente – que o borramento das fronteiras entre envolvidos e não envolvidos se torna proeminente, com os atos criminais alcançando não só os jovens que fazem parte do crime, mas também os que, não o integrando, partilham de alguns dos elementos que dele irradiam e participam de seus espaços de sociabilidade.
Tal julgamento perpassa, em parte, por questões de juízo subjetivo, que resultam da interpretação sobre marcadores diversos: não só a dimensão territorial, mas também os jeitos de se vestir, as formas de portar-se ou movimentar o corpo na rua e mesmo a impressão passada pelo rosto. Nos momentos em que a violência física é cometida por um grupo forasteiro à vila, que invade uma boca rival para cometer um atentado11, a presença dos indivíduos naquele espaço é suficiente para todos que sejam tomados como contras. Essa relação, porém, não é automática: como as bocas são espaços de socialização, não é preciso ser envolvido para transitar por elas ou nelas permanecer com os cupinxas. Todavia, ainda que os atentados possam vitimar adolescentes e jovens adultos que, estando nas bocas, não eram envolvidos, tais mortes não costumam ser encaradas como um desvio do certo, dado que as vítimas, por partilharem os mesmos espaços com aqueles que o são, tampouco chegam a ser identificadas como moradores. Nesse sentido, também no âmbito do crime – e não só dos agentes do Estado – basta estar junto de quem é de fato envolvido para ser considerado como tal (Ceccheto et al., 2018).
Já quando a violência não se dá no espaço das bocas, mas nas ruas, bares e praças, o critério territorial permanece o primeiro a ser utilizado na identificação do outro como envolvido. Nesse sentido, situações nas quais os contras transitavam em veículos pelas vilas rivais, a fim de sequestrarem jovens que caminhavam por seus bairros, eram orientadas pela noção de que cada indivíduo representa não apenas a si, mas sua vila e, por extensão, seu embolamento (Cipriani, 2019, p. 223). Assim, partiam do pressuposto de que “cada um é um todo” (Diógenes, 1998, p. 144) – constatação reforçada na medida em que os limites das vilas costumam ser remetidos, por aqueles que são envolvidos no crime, ao controle exercido pelo embolamento ou por seus patrões.
Por sua vez, a correta atribuição do outro como contra se torna um desafio maior quando os jovens do bairro são agarrados por integrantes do próprio embolamento que o territorializa – a fim de que, caso identificados como inimigos, sejam executados. Nessas situações, potencializadas pela caça aos contras estimuladas em termos de guerra, quem é envolvido nos grupos aborda aqueles atores que não reconhece como moradores de suas vilas – sob a suspeita de que se tratam de forasteiros, possivelmente oriundos de vilas rivais. Diante desse cenário, no entanto, é preciso ter certeza quanto ao envolvimento daquele que foi capturado, pois se corre o risco de atingir um morador, um conhecido ou familiar de integrantes da facção, e inclusive alguém que já́ foi ou é envolvido no crime – e que, por isso, é entendido como um aliado do embolamento.
Em ambos os casos citados – sequestros cometidos por envolvidos nas práticas dos embolamentos de fora e de dentro do bairro – o marcador territorial não é o suficiente para a tipificação: é preciso tentar identificar, de acordo com os jovens entrevistados, quem é “sereno” e quem é “malandrinho”, quem é “oprimidinho” e quem tem “jeitinho de cadeia”. De fato, esse tipo de postura, identificada com a malandragem, costuma ser mobilizada por jovens da socioeducação que têm carreira criminal ou cujos familiares são reconhecidos no crime, como forma de gerar medo nos técnicos durante os primeiros atendimentos (Koerich, 2018). Porém, fora desses espaços, em que algumas cartas já estão na mesa – sendo apropriadas e instrumentalizadas, com fins diferentes, pelos jovens e pelos atores institucionais – as distinções adquirem caráter mais difuso, e a malandragem pode ser identificada a partir de signos bastante corriqueiros.
No cálculo efetuado por quem atribui a identificação do outro, participam sensibilidades interpretativas que derivam da prática, da vivência no crime e da percepção sobre os seus códigos sociais e sociabilidades, que podem incluir desde o uso de maconha e a pretensão em “pagar de peitinho forte” – uma forma de ser "pose" e querer chamar a atenção –, até o uso de marcas e tipos de vestimenta almejados pelos adolescentes naqueles contextos. Evidentemente, assim como o consumo de maconha, essas preferências são partilhadas por um contingente muito maior de indivíduos que aqueles concretamente envolvidos no crime, tornando-se mais indistintos os seus marcos estéticos ou discursivos e o núcleo duro das práticas e símbolos partilhados por integrantes de grupos criminais. Elas são de qualquer maneira, combinadas em um caleidoscópio de elementos que deságua nos tipos sociais associados, no próprio crime, aos contras – havendo, aí, a construção de uma espécie de "tipo contra que suplanta o envolvimento de fato" (Cipriani, 2019, p. 221).
Nessas circunstâncias, em que os limites do envolvimento aparecem borrados por marcadores da vivência juvenil, é a instrumentalização de códigos próprios ao crime que serve de recurso aos jovens. Assim, é narrando onde vivem, o que fazem e com quem andam – e articulando essas referências ao crime – que os adolescentes capturados em suas vilas operam argumentos em sua defesa, a fim de preservarem sua integridade física. Eles recuperam, então, o repertório de seus conhecidos que participam das dinâmicas criminais – os familiares que estão presos em uma galeria da facção ou os amigos que são envolvidos, por exemplo – bem como trazem informações sobre as bocas e sociais nas quais costumam transitar e acerca da rua onde moram. Em suma, ao serem englobados pelo envolvimento, também o puxam para si e dele se apropriam, distinguindo – no plano das relações do próprio crime – não sua posição como envolvidos ou moradores, mas como aliados ou contras.
Por outro lado, a atribuição quanto ao envolvimento pode advir não de dentro do crime (seja partindo de contras ou não), mas de fora dele, irradiando das tipificações feitas por agentes estatais, especialmente policiais militares em trabalho ostensivo nas vilas. Isso ocorre, em parte, na medida em que os signos que conformam o tipo contra coincidem, em regra, com o tipo social incriminável pelos agentes do Estado. Assim é que, dentre todos os signos e símbolos mencionados pelos interlocutores, a forma de se vestir – seguida pela "cara do tráfico" ou "a cara do crime" – foi ressaltada como o principal elemento a marcar as distinções entabuladas seja pelos policiais, seja pelos atores do judiciário. Nesses casos, a estratégia de confundir ainda mais as fronteiras do envolvimento – buscando ser identificado como tal, mas entendido como um aliado – são substituídas pela necessidade de marcá-las o mais fortemente possível, situando-se como um não envolvido.
Portanto, partilhar certos códigos e acessar determinados bens de consumo implica uma maior vulnerabilidade da juventude diante de variados atores: a polícia, os integrantes do embolamento da própria vila e os contras – o que acresce, concomitantemente, as chances de sua incriminação e a possibilidade de que sintam, de forma concreta, os efeitos dos conflitos pautados entre grupos rivais. Em suma, fumando um na boca, jogando videogame na casinha de apoio à boca, comparecendo às sociais e vestindo “Quick” e “Oakley” – ou ostentando o boné de marca, a prata e as camisetas de time – a juventude socializa com os cupinxas, fortalece sua autoestima, acessa condições que levam ao empoderamento e recebe o reconhecimento de outros jovens, mas também experimenta uma exposição ampliada à sujeição criminal (cf. Misse, 1999)12 e às ofensivas de envolvidos no crime.
Esse artigo buscou refletir sobre a categoria do envolvimento no crime a partir de aspectos da vivência juvenil em periferias urbanas na Região Metropolitana de Porto Alegre. Conquanto a categoria envolvido-com seja recorrentemente utilizada para criminalizar interações sociais e legitimar a violência policial, física e simbólica, diante da juventude moradora de periferias (Ceccheto et al., 2018), privilegiamos analisar os modos como o envolvimento aparece não na relação entre esses jovens e os atores estatais, mas em suas relações e cotidianos – atravessados por territorialidades, estilos de vida, afetos e momentos de socialização nas fronteiras do crime e em meio a distinções locais entre aliados e contras. Argumentamos que, embora o amplo uso da noção de envolvimento, por parte de diferentes atores sociais, possa gerar a ilusão de que seu significado é partilhado homogeneamente, o que as inserções nos campos de pesquisa nos mostraram foi que o termo é polissêmico, adquirindo sentidos que oscilam de acordo com o contexto de seu emprego, o propósito do uso e aquele que o utiliza.
Apesar de o verbo envolver-se sinalizar uma relação de continuidade e movimento, sua habitual utilização no particípio (envolvido) sugere uma ação já concretizada, sem retorno, quase uma sentença. Nesse entendimento, há uma divisão basicamente binária entre os que são e os que não são envolvidos, traduzindo categorias estáticas, não raro totalizantes e opostas, que operam para distinguir os "portadores do crime" daqueles que não carregam consigo essa marca (Misse, 1999). Na prática, contudo, é possível observar que ser envolvido se assemelha, com muito mais frequência, à noção de estar envolvido: assumindo o sentido de uma condição que não só é processual, como também pode ser temporária, embora não necessariamente possua início, meio e fim bem definidos.
Em geral, o termo envolvido é precedido do verbo ser e não do verbo estar, tanto nos momentos em que é referido pelos jovens, quanto ao ser utilizado por atores externos à dinâmica dos embolamentos. Essa diferença, aparentemente banal, traz indícios acerca da concepção essencializante que o envolvimento pode adquirir: enquanto “estar” denota uma ação com inscrição temporal específica, “ser” carrega o sentido de permanência, da identidade fixa e da irreversibilidade. Contudo, alguns jovens de fato mencionaram a expressão “estar envolvido”, especialmente aqueles que possuíam uma inserção pontual em práticas infracionais13. Essa variação demarca, mais uma vez, a existência de gradações para o envolvimento, que variam de acordo com diferentes ações e marcadores, tornando difícil uma divisão precisa entre envolvidos e os não envolvidos.
Dessa forma, compartilhar certos códigos de conduta, e mesmo alguns marcadores identitários e de sociabilidade, pode borrar as fronteiras entre o ser e o não ser envolvido, tornando o processo de envolvimento mais abrangente do que a prática de atividades ilícitas ou a vinculação com um grupo criminal. Apontamos que, quando essa distinção não deriva da autoidentificação, mas de uma atribuição feita pelo outro, sua indeterminação pesa com maior proeminência sobre a juventude moradora de periferias, para quem há o agravante de ser vista como alvo preferencial tanto pelos agentes estatais quanto pelos contras. Tal tipificação, como visto, decorre do enquadramento dos jovens seja com a representação genérica do crime ou com os contras – levando a que sejam enquadrados como "tipos incrimináveis" pela polícia ou como "tipos contra" por integrantes de facções criminais, devido a signos corporais, hábitos, comportamentos e, enfim, a cara do crime. Contudo, mais do que a imputação sobre o envolvimento ser atribuída apenas de “fora para dentro”, identificamos o papel que os diferentes usos do envolvimento possuem na identidade juvenil, compondo um processo constante de co-produção desse sentido também “de dentro para fora”.
Por fim, ressaltamos que, conquanto os significados atribuídos ao envolvimento oscilem ao ser reproduzidos nas práticas sociais da juventude moradora de periferias, estando balizados por marcadores de vivência juvenil e extrapolando os limites dos atos criminais, é possível identificar dois episódios que possuem importância fundamental no processo de “catapultar” os graus de envolvimento. O primeiro é cair preso e ter “passagem pelo sistema” socioeducativo ou prisional. Contar, em sua trajetória, com episódios de privação de liberdade (ou mesmo de cumprimento de medidas socioeducativas de meio aberto) traz um elemento concreto sobre o envolvimento da juventude: para os agentes da segurança pública, e mesmo para integrantes de círculos de vizinhança e da comunidade, estar fichado é quase entendido como um registro de ser envolvido. Entre os cupinxas mais jovens, por sua vez, cair preso pode agregar moral com os pares e mesmo com a facção, embora acarrete enorme sofrimento individual e para as famílias de quem caiu.
O segundo elemento considerado crítico para a configuração do ator como um envolvido relaciona-se com a realização de um ato específico no âmbito do crime. Se trata não da comercialização de drogas ou do cometimento de assaltos – que, conforme visto, podem ensejar passagens mais fluidas pelo envolvimento –, mas do uso da violência letal. O cometimento de um homicídio, quando se dá no âmbito das dinâmicas faccionais, figura como um verdadeiro ponto de corte no envolvimento, tanto no que tange ao pertencimento do indivíduo ao coletivo, quanto no que diz respeito à sua vulnerabilidade diante dos contras. Ao cometer um homicídio, nesse sentido, o indivíduo “ganha uma sigla” e é entendido, por seus cupinxas, como um verdadeiro membro da facção, além de poder afirmar-se inequivocamente enquanto tal (Cipriani, 2019, pp. 229-230).
Todavia, a partir desse momento de passagem, o jovem se torna ainda mais vulnerável às ações da polícia e dos contras, o que também acirra a probabilidade de que se integre na facção e torna mais difícil que consiga largar o crime. O aumento da importância do coletivo na trajetória do jovem então envolvido, cujos códigos tendem a participar mais fortemente da produção de sua identidade, se dá no contexto da demanda pelo acesso à rede de proteção – instrumental e afetiva – disponibilizada pela firma e pelo patrão. Na facção, a “circularidade da violência” (Diógenes, 1998, p. 118) condensa, simultaneamente, proteção e agressão – mesmo porque a retribuição ao efeito protetivo do coletivo perpassa por uma necessária firmação da coragem e da “disposição para matar” (Zaluar, 2000, p. 143) nos momentos em que ele as demandas. A partir daí, enfim, envolver-se, estar se envolvendo ou ter-se eventualmente envolvido finalmente chega mais perto, para o próprio ator e para os demais, do ser envolvido.
2 Socióloga. Doutora em Sociologia e Bacharela em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestra em Ciências Sociais e Bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Realiza pesquisas na área da Sociologia da Violência, com ênfase em estudos sobre mercados ilegais, sistemas prisionais e facções criminais. E-mail: marcellicipriani@hotmail.com. ↩
3 Doutora em Sociologia, Bacharela e Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestra em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Analista Socióloga de Políticas Públicas e Gestão Governamental do Governo do Estado do Rio Grande do Sul. E-mail: koerich.bruna@gmail.com ↩
4 O sentido atribuído à palavra varia de acordo com como ela é utilizada e a fim de que tipo de relação busca significar. Nesse contexto, embolamento corresponde à aliança multiescalar firmada por diferentes grupos no crime, que constituem uma rede de favores recíprocos – não necessariamente prescritivos, mas assentados na expectativa de reciprocidade – e convergem para inimigos comuns, marcando quem é aliado e quem é contra nas disputas criminais. Para mais informações, ver: Cipriani, no prelo. ↩
5 Por exemplo, a Vila Safira, dentro do bairro Mário Quintana, é uma vila de um patrão. A Bom Jesus – o bairro inteiro – é uma vila de outro patrão. Ambas são, para além disso, vilas do embolamento dos Bala na Cara (cf. Cipriani, 2019, p. 162) ↩
6 É comum, de fato, que os termos se confundam, e o indivíduo pode tanto dizer que é embolado com um grupo – qualificando o seu envolvimento –, quanto usar o termo como um sinônimo do próprio envolvimento. Por exemplo, quando para se perguntar acerca da participação de alguém no crime se pergunta, simplesmente, “ele é embolado”? (cf. Cipriani, no prelo) ↩
7 Em certa medida, essa permanência do jovem na rua vem carregada de um sentimento de remorso dos familiares (especialmente das mães) por não conseguirem garantir uma maior presença no cotidiano dos filhos, devido a outros afazeres, principalmente profissionais. ↩
8 Conforme apontou Acosta (2019 p. 107), por vezes as sociais se originam como festas privadas, em uma espécie de “festas de garagem” mas que, conforme vão crescendo, ocupam o espaço externo. Como identificado em nosso campo, todavia, o termo sociais também passou a ser utilizado para significar festas abertas, já organizadas nas ruas. ↩
9 Para uma compreensão sobre o apoio por meio da expectativa de reciprocidade e a partir de distintos contextos, cf. Cipriani, 2019, pp. 111-116, 159-168, 217, 228. ↩
10 Em música gravada em homenagem ao antigo patrão de um importante grupo criminal de Porto Alegre, executado no ano de 2015, escuta-se o seguinte: "chegando na favela com o seu cordão pesado, pingente de diamante, dava pra comprar um Camaro. Chegando de Land Rover ele não andava a pé: com Adidas de mil, na camisa um Jacaré" (MC Negão - A Homenagem) (grifos nossos). ↩
11 Ataques feitos por grupos de indivíduos a vilas rivais, de carro ou a pé, e com a intenção de tocar o terror nos contras (e não de tomar sua boca). Para mais informações, ver: Cipriani, 2019, pp. 205-230. ↩
12 Durante o desenvolvimento de sua pesquisa, um interlocutor de Cipriani (2019, p. 188), policial militar, lhe encaminhou uma mensagem que havia sido compartilhada em um grupo de de WhatsApp da Brigada Militar de Porto Alegre. Nela, constava o seguinte: “atenção inteligência da BM. Quicksilver = Bala, Oakley = Antibala”. ↩
13 Seguindo a definição presente em Koerich (2018, p.144):“Os Jovens com inserção pontual em práticas infracionais caracterizam-se por terem praticado atos infracionais poucas vezes e, em geral, estarem cumprindo medida por pequenos delitos [...]. Nesse tipo, a prática infracional não aparece como um marcador relevante de formação da identidade social do jovem e sim como um fato ocorrido de forma isolada em sua trajetória”. ↩